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Laboreal

versão On-line ISSN 1646-5237

Laboreal vol.19 no.2 Porto dez. 2023  Epub 01-Dez-2023

https://doi.org/10.4000/laboreal.21481 

Pesquisa Empírica

Estratégias de Mediação do Sofrimento Laboral e Saúde Mental de Venezuelanos no Brasil

Estrategias de Mediación del Sufrimiento Laboral y la Salud Mental de los Venezolanos en Brasil

Stratégies de médiation de la souffrance au travail et de la santé mentale de Vénézuéliens au Brésil

Strategies for Mediation of Labor Suffering and Mental Health of Venezuelans in Brazil

Vanessa Ruffatto Gregoviski1 
http://orcid.org/0000-0003-2404-8714

Janine Kieling Monteiro2 
http://orcid.org/0000-0003-2577-1322

1Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), UNISINOS, Av. Unisinos, nº. 950. Bairro Cristo Rei - São Leopoldo/RS CEP: 93.022-750.vanessaruffattog@gmail.com


Resumo

Pretendeu-se analisar estratégias de mediação (defesa e enfrentamento) de venezuelanos para lidar com vivências de sofrimento laboral, refletindo sobre impactos na saúde mental deles. É uma pesquisa qualitativa, transversal e exploratória com 16 migrantes venezuelanos domiciliados no Sul do país. Utilizaram-se um questionário sociodemográfico e uma entrevista semiestruturada, com dados interpretados pela Análise de Conteúdo. As estratégias de defesa foram: negação, controle, isolamento e racionalização. Àquelas de enfrentamento foram: apoio no trabalho, aprendizagem e desligamento da empresa. A saúde mental no trabalho esteve ligada a sentimentos de pertencimento, valorização e crescimento, dialogando com o sentido do trabalho, enquanto o sofrimento patológico surgiu principalmente em mulheres desempregadas, com sintomatologia depressiva e pensamentos suicidas. Percebe-se que o trabalho é central a eles, suas identidades e subjetividades. A COVID-19 potencializou vulnerabilidades, especialmente naqueles desempregados. Evidenciou-se pontos cruciais que necessitam de maior atenção, provendo pistas que podem subsidiar práticas clínicas e políticas públicas.

Palavras-chave: emigração e imigração; psicodinâmica do trabalho; subjetividade; saúde mental; saúde do trabalhador

Resumen

El objetivo fue analizar las estrategias de mediación (defensa y enfrentamiento) de los venezolanos para hacer frente a las experiencias de sufrimiento laboral, reflexionando sobre los impactos en su salud mental. Se trata de una investigación cualitativa, transversal y exploratoria con 16 migrantes venezolanos residentes en el sur del país. Se utilizó un cuestionario sociodemográfico y una entrevista semiestructurada, y los datos se interpretaron mediante Análisis de Contenido. Las estrategias de defensa fueron: negación, control, aislamiento y racionalización. Las de confrontación fueron: apoyo laboral, aprendizaje y salida de la empresa. La salud mental laboral se vinculó a los sentimientos de pertenencia, aprecio y crecimiento, dialogando con el sentido del trabajo, mientras que el sufrimiento patológico se manifestó principalmente en mujeres desempleadas, con síntomas depresivos y pensamientos suicidas. El trabajo es central para ellos, sus identidades y subjetividades. La COVID-19 potenció vulnerabilidades, especialmente en los desempleados. Se señalaron puntos cruciales que necesitan más atención, proporcionando pistas que puedan respaldar las prácticas clínicas y las políticas públicas.

Palabras clave: emigración e inmigración; psicodinámica del trabajo; subjetividad; salud mental; salud ocupacional

Résumé

L'objectif était d'analyser des stratégies de médiation (défense et adaptation) utilisées par des Vénézuéliens pour faire face à des expériences de souffrance au travail, en considérant l'impact sur leur santé mentale. Il s'agit d'une étude qualitative, transversale et exploratoire menée auprès de 16 migrants vénézuéliens résidant dans le sud du pays. Un questionnaire sociodémographique et un entretien semi-structuré ont été utilisés, et les données ont été interprétées à l'aide d'une analyse de contenu. Les stratégies de défense ont été : le déni, le contrôle, l'isolement et la rationalisation. Les stratégies d'adaptation ont été : le soutien au travail, l'apprentissage et le départ de l'entreprise. La santé mentale au travail était liée aux sentiments d'appartenance, de valorisation et de progression, en dialogue avec le sens du travail, tandis que la souffrance pathologique apparaissait principalement chez les femmes au chômage, avec des symptômes dépressifs et des pensées suicidaires. On constate que le travail est au cœur de leur vie, de leur identité et de leur subjectivité. Le COVID-19 a renforcé les vulnérabilités, en particulier chez les chômeurs. Cette étude a mis en évidence des points cruciaux qui méritent plus d'attention, en proposant des repères susceptibles d'étayer les pratiques cliniques et les politiques publiques.

Mots clés: émigration et immigration; psychodynamique du travail; subjectivité; santé mentale; santé au travail

Abstract

It was intended to analyze mediation strategies (defense and coping) of Venezuelans to deal with experiences of suffering at work, reflecting about the impacts on their mental health. It is a qualitative, cross-sectional and exploratory research with 16 Venezuelan migrants living in the southern region of Brazil. A sociodemographic questionnaire and a semi-structured interview were used, with data interpreted by Content Analysis. The defense strategies were denial, control, isolation, and rationalization. Those coping were support at work, learning and leaving the company. Mental health at work was linked to feelings of belonging, appreciation, and growth, dialoguing with the meaning of work, while pathological suffering appeared mainly in unemployed women, with depressive symptoms and suicidal thoughts. It is noticed that work is central to them, their identities, and subjectivities. COVID-19 has increased vulnerabilities, especially among the unemployed. Crucial points that need greater attention were highlighted, providing clues that can support clinical practices and public policies.

Keywords: Emigration and Immigration; psychodynamics of work; subjectivity; mental health; worker's health

1. Introdução

O trabalho é um dos quesitos essenciais diante de decisões migratórias. Não diferente disto, podemos pensar na importância que adquiriu na vida de migrantes venezuelanos que vieram ao Brasil em busca de melhores oportunidades de trabalho e sobrevivência após crise humanitária vivenciada naquele país. Dados oficiais do Governo Federal estimam que, em 2020, 17.385 venezuelanos tiveram asilo concedido no Brasil (refúgio) pelo Comitê Nacional para Refugiados, enquanto outros 46.192 solicitaram e ainda estariam aguardando retorno (Silva et al., 2021). Isto posto, cabe a indagação sobre como eles conseguem lidar com as dificuldades que se apresentam e como isto impacta na saúde mental deles, especialmente em um cenário latino-americano marcado pela precarização laboral eminente frente às configurações neoliberais e à COVID-19 (Eberhardt & Miranda, 2017; Franco et al., 2010; Gregoviski et al., 2022a; Gregoviski et al., 2022b; Henrich et al., 2021; Silva et al., 2021).

Diante disso, esclarece-se que o trabalho possui uma função que não se restringe ao sustento econômico, indo além e interferindo em aspectos relacionados à saúde psíquica. Assim, uma crise relacionada ao trabalho também se torna uma crise de identidade na medida em que se entende que ele é formador da subjetividade dos sujeitos, jamais ocupando uma posição de neutralidade em relação aos trabalhadores, e com impactos nos sentimentos de utilidade social, reconhecimento de pares, satisfação laboral e construção de rede de suporte. Desse modo, a dinâmica de construção da subjetividade no trabalho transforma tanto o sujeito quanto o ambiente, sendo o trabalhador um ator participante nesse processo (Areosa, 2019; Barros & Mendes, 2003; Dejours, 2008; Dos Anjos et al., 2012).

Porém, ainda que ocupe uma posição central na construção do sujeito, é inerente ao contexto laboral o confronto da realidade (o que o trabalhador executa em seu cotidiano) com aquilo que é prescrito (normas ou orientações dadas pela Organização do Trabalho para o cumprimento da atividade), causando angústias e sofrimento pelo sentimento de fracasso que emerge. Desse modo, a Psicodinâmica do Trabalho, teoria orientadora deste estudo, assinala que o sofrimento existe em todas as experiências laborais, sendo necessário a ocorrência da ressignificação disto para que se adquiram vivências prazerosas (Barros & Mendes, 2003; Dejours, 2008).

A ressignificação pode ocorrer por intermédio de estratégias de mediação do sofrimento que ora conseguem promover mudanças no ambiente laboral e no indivíduo, o que possibilita a transformação da causa da angústia que afeta aos trabalhadores, ora não, sendo isto um fator mais ligado ao adoecimento psíquico. As estratégias de mediação surgem como ações tomadas para que os trabalhadores consigam administrar as vivências de sofrimento laboral, o que desemboca em uma busca pela evitação, combate ou ressignificação do sofrimento, podendo ser estratégias de defesa ou de enfrentamento. Ademais, assinala-se que elas podem ocorrer tanto de forma mais individualizada quanto de forma coletiva (Areosa, 2021; Dejours, 2005; Dejours, 2008; Dos Anjos et al., 2012; Moraes, 2013; Oliveira, 2014).

Aquelas de defesa, individuais ou coletivas, são recursos que se associam a mecanismos inconscientes que, em geral, negam ou racionalizam o sofrimento laboral como uma forma de evitação de sentimentos incômodos, tais como o medo e a insegurança. Ocorrem especialmente em ambientes laborais tomados por gestões opressoras e/ou que exploram os sujeitos, desmobilizando-os. Elas podem ser essenciais para que o sujeito suporte pressões e angústias por meio da proteção, adaptação ou assujeitamento, porém frequentemente se relacionam mais à possibilidade de adoecimento de trabalhadores, visto que, no quesito de transformação, promovem pouca mudança naquilo que gera o sofrimento, deslocando-se de formas coletivas de enfrentamento, o que instaura um efeito alienador e pode evoluir para uma ideologia defensiva (Areosa, 2021; Dejours, 2005; Dejours, 2008; Dos Anjos et al., 2012; Moraes, 2013; Oliveira, 2014).

Por outro lado, as estratégias de enfrentamento, como a mobilização subjetiva dos trabalhadores, conseguem se mostrar mais eficazes para a ocorrência da modificação de vivências de sofrimento em vivências de prazer, pois estão relacionadas a transformações individuais e coletivas que refletirão na Organização do Trabalho como um todo, alterando a realidade que experienciam. Em muito, associam-se a locais em que há diálogo do coletivo de trabalhadores, com espaços de discussões, cooperação, suporte emocional e articulação política. Compreende-se, ainda, que o coletivo de trabalhadores é primordial para fortalecer o indivíduo, tanto por ser uma rede de suporte impreterível, quanto pela articulação que dele provém (Areosa, 2021; Dejours, 2005; Dejours, 2008; Dos Anjos et al., 2012; Moraes, 2013).

No que diz respeito à experiência de trabalho de venezuelanos no Brasil, estudos com algumas nacionalidades de migrantes sinalizam muito do que com eles ocorre: não reconhecimento/revalidação das experiências de trabalho anteriores à migração, mudança de postos laborais, precarização do trabalho, exploração, desemprego, subempregos, trabalho análogo à escravidão e outros. Consequentemente, os impactos psíquicos disto causam adoecimentos psíquicos significativos diante do agravamento de sua vulnerabilidade pelas questões laborais. Cabe pontuar a possibilidade de agravamento desta situação após a emergência da pandemia do novo Coronavírus, aumentando o risco psicossocial a circunstâncias laborais degradantes e ao desemprego (Gregoviski et al., 2022a; Henrich et al., 2021; Marques & Souza, 2022; Rodrigues et al., 2020; Zanatti et al., 2018).

Logo, compreender a forma como esses migrantes lidam com o sofrimento é, também, compreender um sinalizador clínico de suma importância, capaz de evidenciar campos de atuação para profissionais da saúde mental, da Clínica do Trabalho, bem como outros agentes capazes de promoverem mudanças institucionais, ampliando a saúde mental e proporcionando uma vida digna por intermédio de um trabalho decente que estimule espaços de mobilização. O entendimento de aspectos psicodinâmicos do trabalho mostra o real do trabalho e os desafios existentes na operacionalização de um espaço de acolhimento que seja seguro, ético, político e articulado com outras clínicas, constituindo-se como resistência ante o aumento das precarizações, especialmente aos que a elas estão mais vulneráveis (Gregoviski et al., 2022a; Gregoviski et al., 2022b; Martins et al., 2021).

Desse modo, este artigo analisou quais foram as estratégias de mediação utilizadas por venezuelanos que residem na região Sul do país para lidar com vivências de sofrimento laboral. Ademais, também se refletiu acerca dos impactos na saúde mental desses sujeitos a partir do exposto.

2. Método

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, transversal e exploratória que seguiu as recomendações de qualidade para esse delineamento (O’Brien et al., 2014). Portanto, em se tratando de uma abordagem qualitativa, este manuscrito não objetiva generalizar as contribuições postas, mas aprofundá-las. Para tal, utilizaram-se como instrumentos um questionário sociodemográfico e uma entrevista semiestruturada (embasada na teoria da Psicodinâmica do Trabalho).

Dialogou-se com 16 venezuelanos que residem na região Sul do Brasil (Rio Grande do Sul e Santa Catarina), todos selecionados pelos métodos de conveniência (Minayo et al., 2011) e de bola de neve (Vinuto, 2014). Coloca-se o uso do termo “migrantes” dada a diversidade de status migratório: refugiados, sendo os que se deslocam forçadamente pelo cenário de violação dos direitos humanos, e imigrantes, que migram em busca de melhores condições de vida e emprego (Silva et al., 2021).

Os participantes em questão estiveram de acordo com a pesquisa, autorizando sua realização diante da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em duas vias. Anterior a isto, a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade vinculada às pesquisadoras. Ressalta-se que, ao longo do manuscrito, foram utilizados nomes fictícios com intuito de preservação do anonimato dos sujeitos.

Os encontros para coleta de dados ocorreram de março a maio de 2020, período no qual a pandemia da COVID-19 se apresentava em um momento inicial no Brasil. Assim, todas as entrevistas ocorreram de forma virtual, com duração que variou de quarenta minutos a duas horas. Também foi uma possibilidade a entrevista por intermédio de diálogos escritos em aplicativo de comunicação, especialmente por conta da dificuldade na conectividade dos participantes. As adaptações necessárias se mostraram ora como um benefício, visto ampliação das regiões da pesquisa e alcance dos participantes, ora como uma dificuldade, visto questões de conexão de alguns dos entrevistados.

Todos os encontros foram gravados com a autorização dos sujeitos, e transcritos para análise das pesquisadoras. Os dados foram interpretados pela análise de conteúdo proposta por Bardin (2011).

Sobre os participantes, foram: 16 venezuelanos (10 mulheres e seis homens), sendo uma residente do estado de Santa Catarina, e os demais do Rio Grande do Sul. As idades variaram de 21 a 56 anos, com principal denominação quanto a raça/cor sendo, conforme citado por eles, “pardos” ou “morenos”. A maioria possui filhos, porém o estado civil foi bastante distribuído (solteiros, casados, em união estável e divorciados). Todos possuíam ensino médio concluído, e oito ensino superior (ainda que nenhum tenha conseguido revalidar o diploma no Brasil). O tempo de moradia e status migratório também foi variado, indo de poucos meses até cinco anos no Brasil, e tendo vindo como imigrante por recursos próprios ou na posição de refugiado (muitas vezes expostos a maiores violações de direitos na trajetória migratória e ao chegar ao Brasil). Por fim, coloca-se que seis estavam desempregados no momento da pesquisa.

3. Resultados e Discussão

Os dados evidenciaram que diante de um cenário conturbado, pandêmico e de crises políticas e socioeconômicas no Brasil, as vulnerabilidades desses migrantes em relação ao aspecto laboral também se ampliaram, o que pode ser potencializador do sofrimento. Os achados deste estudo seguem evidenciando a precariedade laboral às quais estão expostos ao adentrar em um país estrangeiro que nem sempre age de forma acolhedora e humanitária, o que pode se relacionar até mesmo a postos de trabalho em situação análoga à escravidão, desse modo, expondo um quadro de vulnerabilidades múltiplas relacionadas a inúmeros fatores, sendo alguns o idioma, a falta de uma rede de apoio sociocomunitário, a impossibilidade de revalidação de diplomas acadêmicos, a xenofobia e o xenoracismo, entre outros (Eberhardt & Miranda, 2017; Gregoviski et al., 2022a; Gregoviski et al., 2022b; Henrich et al., 2021; Marques & Souza, 2022; Rodrigues et al., 2020; Zanatti et al., 2018).

Nesse sentido, como também sinalizado por Barros e Mendes, 2003), diante desse cenário, os trabalhadores se veem obrigados a utilizar estratégias de mediação para conseguir conciliar as demandas da Organização do Trabalho enquanto tentam manter seus empregos e sua saúde mental, podendo pensar que, no caso dos desempregados entrevistados, a finalidade estaria relacionada a manutenção do sentimento de esperança por um futuro promissor e saúde psíquica. Atenta-se à necessidade de que, para discussão acerca das estratégias de mediação do sofrimento laboral e como se relaciona com a saúde mental, não se construa um discurso patologizador ou que culpabiliza o sujeito, colocando-se ainda mais à mercê de um fazer dominante, colonizado, eugenista, exploratório e positivista.

Cabe pensar acerca das influências da ocupação de subempregos nesses venezuelanos, entendendo que isto também se configura como uma forma de precarização que pode estar ainda mais agravada pelas vulnerabilidades que são inerentes à migração. O modelo de circulação de capital vigente exalta a terceirização e formas cada vez menos visíveis de respaldo aos trabalhadores, indo contra a garantia de seus direitos em diversas ocasiões, com parca fiscalização e altas exigências, indo na contramão da condição emancipadora do trabalho. O sofrimento estaria, assim, presente em indicadores que podem evoluir ao adoecimento mais grave, citando-se tanto sintomas psíquicos quanto físicos, e a falta de reconhecimento (Barros & Mendes, 2003; Ribeiro, 2009; Disney, 2021; Praun, 2020).

O sofrimento que emerge desse cenário torna a utilização das estratégias de mediação primordial até mesmo como uma forma de não adoecer diante das dificuldades. As cobranças excessivas, parca seguridade social, condições precárias para realização das atividades e outros aspectos semelhantes acabam sendo aceitos pelos sujeitos ante a impossibilidade de troca de posto laboral, desembocando nas estratégias que serão discutidas a seguir, destacando-se que nenhuma delas foi analisada sem a compreensão de a qual contexto se referiam, algo essencial para entender se dizem respeito a estratégias de defesa ou de enfrentamento (Barros & Mendes, 2003).

3.1. Estratégias de Defesa

As estratégias de defesa, que podem ser compreendidas como o “escudo protetor dos trabalhadores” (Areosa, 2021, p. 324), foram usadas em um número muito maior do que as de enfrentamento. Entende-se que isto, ainda que promissor a curto prazo, provoca poucas transformações na carga de sofrimento patogênico vivenciado pelo trabalhador, bem como no ambiente de trabalho em si, relacionando-se a psicopatologias quando se tornam insuficientes. Foram estratégias de defesa trazidas pelos venezuelanos: negação, controle, isolamento e racionalização.

A negação, presente tanto em falas quanto em comportamentos de evitação a situações de sofrimento vivenciadas no trabalho, foi percebida como uma estratégia amplamente utilizada pelos venezuelanos entrevistados. A cisão do trabalho da vida do sujeito surge nas falas de Doménica, que coloca que “sempre mantive minha vida laboral separada da minha vida pessoal, de uma maneira que não me afete”; comportamentos de fuga ao se falar sobre o sofrimento também não foram infrequentes nas falas. O discurso de Mariluz e Maria Belém demonstra o uso da negação como forma de resposta ao sofrimento, pois banaliza-o e exclui sua existência: “Depois me acostumei (referindo-se ao ritmo maçante de trabalho), como se nada fosse” (Mariluz), “Tento ser positiva (...) não me sinto mal, estou sempre contente e feliz” (Maria Belém). Em ambos os exemplos acima, as duas apresentaram indicativos de desconsideração quanto à intensidade do sofrimento laboral discutido, porém, claramente demonstraram incoerência e ambiguidade entre aquilo expresso em suas expressões faciais e corporais percebidas pelas pesquisadoras (angústia), e o dito (tranquilidade, felicidade). Nas contradições podem se expressar sentimentos que estão presentes no inconsciente do sujeito por interlocução dos atos falhos ou banalização dos sentimentos negativos (Dejours, 2006; Lotterman et al., 2018; Martins, Cruz & Botomé, 2001; Mendes, 2007).

O controle surge nas falas de Cléo e José. Para ela o controle foi uma estratégia indispensável para lidar com tentativas de sabotagens dos colegas, ainda que isto tenha o potencial de colocá-la sempre em alerta, logo, sob grande estresse (esclarecendo-se que a terminologia “estresse” foi utilizada pelos próprios entrevistados, para a Psicodinâmica do Trabalho, teoria orientadora da análise e discussão do artigo, os estudos se dão a partir do conceito de sofrimento psíquico, existindo diferenças substanciais entre ambos os conceitos teóricos): “Acho que o pior sempre vai acontecer. Então tento sempre fazer as coisas certas para minimizar os erros. Nunca me ausento”. No caso de José, por conta do medo de perder o emprego, envolveu-se em uma rotina maçante de estudos de português, em que não conseguia se permitir o erro ou a desistência, e que trazia sensações físicas e psíquicas de esgotamento. Entende-se que o controle, até certa medida, é algo pertinente quando seu uso é feito com o intuito de não paralisação diante do medo e das inconstâncias vividas (Dejours, 2006; Lotterman et al., 2018; Martins et al., 2001; Mendes, 2007), mas o ocorrido nesses migrantes parece ter se mostrado em uma intensidade maior, ocasionando sintomas iniciais de adoecimento.

“No começo quando não entendia algumas coisas (…) é estressante, porque sempre fica pensando que vão mandar para a rua, aí fica pensando em como ia conseguir outro emprego, e a família? e as contas? e a comida? como que conseguiria outro? [referindo-se ao emprego] (…) Era muita autocobrança, é mais estressante. Quando voltava do trabalho ficava até meia-noite ou uma da manhã assistindo música e vídeo em português, olhando livros para praticar o dia todo, mas às vezes, mesmo que por estresse, você ficava ... sem conseguir pensar muito bem, mas às vezes ficava … sabe … não conseguia ... ficava embotado, não conseguia pensar, estava fatigado, precisava de um respiro da aprendizagem do português, mas era puro estresse sabe” (José).

O isolamento, também presente na pesquisa de (Mariano e Carreira, 2016), é percebido em situações cuja única evitação possível se configura no afastamento do ambiente laboral a fim de se recompor. Na pesquisa, isto também é apontado por Cléo que profere os dizeres “prefiro trabalhar sozinha” como uma estratégia desenvolvida para evitar o contato com colegas de trabalho que tinham em relação a ela uma postura xenofóbica. Dessa forma, Cléo adquire uma atitude de afastamento como único recurso psíquico viável para conseguir prosseguir com seu trabalho, visto que não conseguia, até o momento da entrevista, encontrar formas eficazes de confrontar a postura dos colegas e, consequentemente, provocar transformações mais efetivas: “Desde o início eles me deixaram claro sua opinião de que eu não merecia (..) para eles eu tava roubando a oportunidade de um brasileiro (…) admito que o relacionamento com alguns dos meus colegas me gera desconforto, assim que prefiro trabalhar sozinha”. Pensa-se que esta possa ser uma atitude ainda mais comum em pessoas que tenham vivenciado inúmeras violências e violações de direitos humanos, como o caso de migrantes venezuelanos, pois temem que possam perder a única fonte de sustento para si e familiares que permaneceram na Venezuela, o que pode acirrar a precarização a qual estão expostos no mercado de trabalho brasileiro.

Ademais, notou-se que a estratégia de racionalização foi amplamente mencionada. Isto ocorreu em grande parte por trabalhadores venezuelanos em situação de desemprego e subemprego - compreendido como trabalhos com alta carga de flexibilidade e/ou informalidade (Ribeiro, 2009), principalmente com a justificativa na fé de que terão um futuro melhor por conta de um plano de uma entidade superior (Deus) - “Pode esperar, Aquele que tá lá em cima abrindo as portas, confio no que tá lá em cima, fazendo todas as coisas” (Cecília). Dos 16 entrevistados, sete trouxeram a racionalização como estratégia mais utilizada (em frequência e intensidade), sendo que destes, quatro estavam em situação de desemprego.

A racionalização pode ser compreendida como um mecanismo de defesa do Ego que se apresenta em espaços laborais com o intuito de atenuar a gravidade da situação experienciada, utilizando explicações lógicas para amenizar sentimentos intoleráveis, como a angústia, especialmente quando não se consegue interferir sobre o cenário ou forma de gerência dos sistemas (Oliveira, 2014). Isto reforça a ideia anterior de que aos trabalhadores em situação de maior vulnerabilidade por conta da migração involuntária, há uma particular dificuldade em se posicionar frente às injustiças - algo muito presente, especialmente na situação de desemprego.

Coloca-se que os sujeitos que não se encontravam em uma situação regular de emprego também foram considerados para análise na pesquisa pela compreensão de que tinham experiências anteriores que poderiam servir como base, bem como para melhor compreensão de como as vivências frente ao trabalho impactam no sujeito, compreendendo-se que a ausência de uma ocupação também se constitui como uma experiência que requer aprofundamento dentro da Psicodinâmica do Trabalho, sendo ainda uma lacuna teórica existente. É visto como forma preocupante o uso maciço dessas estratégias pelos trabalhadores em uma condição mais frágil porque, conforme teorizam Oliveira (2014) e Areosa (2021), as estratégias de defesa, geralmente como uma resposta frente a situações em que se sentem impotentes, podem fazer com que se suporte o intolerável.

3. 2. Estratégias de Enfrentamento

As estratégias de enfrentamento citadas pelos migrantes foram: apoio no ambiente de trabalho, possibilidade de aprendizagem e desligamento da empresa. Elas surgiram em menor frequência do que as de defesa, assim como em menos entrevistados (porém, somente foram percebidas em sujeitos com emprego formal, à exceção da estratégia de desligamento da empresa, presente unicamente na fala de Juanita, desempregada voluntária).

O apoio surge como uma estratégia das mais eficazes, presente tanto entre pares e comunidade, quanto em um âmbito laboral formal (com chefias). Estreitamente ligado a isto está o sentimento de gratidão diante das conquistas, pois elas são entendidas como construções que somente se tornaram possíveis graças a ajudas externas, como citado por Manoel, que infere que os sonhos o auxiliaram a seguir e persistir, caminho que só foi possível por conta das pessoas que encontrou.

“A gratidão que tu tens é uma coisa assim … porque a pessoa tem que ser muito agradecida né, eu tenho sonhos, objetivos, metas, mas estou trabalhando por eles (…) tenho que ser agradecido com isso, com Deus primeiramente, com a empresa que até agora está firme e não tem desistido, graças a Deus” (Manoel).

Realça-se que o apoio entre pares e com a comunidade foi notório e se demonstrou como um suporte essencial. No caso de Silvestre isto inclusive adquiriu uma significância ética e política porque ele passou a entender que o apoio a outros imigrantes e refugiados era uma forma de lidar com as angústias que a ele pudessem se apresentar relacionadas às dificuldades do mundo do trabalho, assim, compreendia que fazer a diferença na vidas dos sujeitos era essencial, talvez tanto pela sua história de agruras na Venezuela, quanto por perceber como outros conterrâneos são (re)tratados no Brasil, constituindo-se como uma estratégia que adquire tanto um caráter individual quanto coletivo (comunitário e político):

“Hoje quero focar na área social (…) tenho vontade em trabalhar em instituições sociais (…) aí que me achei (…) quero fazer diferença hoje em dia. Dá estresse? Dá! (…) No final do dia eu me sinto satisfeito. O sorriso das pessoas, um filho que nasceu, o velho que recebeu auxílio alimentação, o cara que recebeu sua documentação na hora certa, a pessoa que foi ouvida por um psicólogo, todas aquelas pessoas têm muito para te dar um abraço. Sinto que é isso que te traz o maior retorno, algo que nem o econômico vai trazer, tem de ver o tanto de mensagem que recebo de pessoas agradecendo e eu fico muito feliz, me enche de energia” (Silvestre).

O contexto de trabalho, quando se configurou de forma compreensiva e colaborativa, foi um destaque dentro dessa subcategoria: “A diretora me acolheu de uma maneira linda (...) as crianças também me acolheram muito bem” (Estefânia ao se referir ao emprego em espaço escolar), “Eu pergunto para elas, minhas colegas brasileiras, e elas, com carinho, ajudam” (Dulce), “Eu tenho uma boa equipe de trabalho. Eu me sinto reconhecido!” (José). A cooperação evidenciada no apoio é, desse jeito, uma das estratégias de enfrentamento mais eficazes (Giannini et al., 2019).

Coloca-se que o apoio e a possibilidade de aprendizagem foram as estratégias de enfrentamento descritas como construções coletivas. Este fato pode ter sido ocasionado pelos venezuelanos entrevistados atuarem em diferentes empresas e instituições, logo, impossibilitando a percepção de coletividade presente em um espaço em específico.

Nesse sentido, a possibilidade de aprendizagem é construída como algo que não ocorre de forma isolada, mas em consonância com o objetivo de trocas com os colegas de trabalho, formalizando o sentimento de pertencimento. Para além disso, cita-se a aprendizagem como uma engrenagem necessária para lidar com as angústias que possam emergir, já que ela também se relaciona com a conquista de metas e sonhos: “Procuro uma maneira de aprender, saber, todos os dias me nutrindo de informações que possam me levar a ser autossuficiente” (Piedad), “No trabalho estou aprendendo também superação, aprendi muita coisa” (Manoel).

Finalmente, coloca-se que o desligamento do posto de trabalho, citado somente por uma participante (Juanita), é analisado como uma estratégia de enfrentamento neste estudo ao se perceber que ofereceu uma ressignificação das angústias, não sendo uma decisão precipitada e nem sequer uma forma de negação colocada em ato. A decisão de Juanita vem após inúmeras reflexões e diálogo com sua gestora e, quando isto em nada resultou, optou por escolher primar pela sua saúde psíquica do que por um posto de trabalho, ainda que isto pudesse trazer sérias consequências socioeconômicas a longo prazo: “Lhe falei que não vim ao Brasil para ser humilhada, que se preciso ser humilhada trato de ir de volta à Venezuela, lá já tenho minha casa e se tiver que morrer de fome morrerei de fome”.

3. 3. Saúde Mental

O entendimento de saúde mental no trabalho, que foi utilizado neste manuscrito, embasou-se na perspectiva da Psicodinâmica do Trabalho que compreende que há impacto dos aspectos laborais na subjetividade dos trabalhadores a partir das relações e vivências construídas (Areosa, 2019). Ressalta-se a necessidade de não se pensar em saúde mental por vias lineares ou unicamente patologizantes, mas sim compreendendo como o trabalhador busca, a partir de seus recursos psíquicos, maior equilíbrio na dinâmica com o seu labor. Assim sendo, conceitua-se saúde mental como a existência de meios (recursos) para a construção de uma trajetória pessoal e social que caminha de encontro ao bem-estar biopsicossocial, sendo impreterível, em um âmbito laboral, que exista liberdade para respeitar a si e seus desejos, e agir de forma individual ou coletiva no trabalho (Dejours, 2005; Dejours, 2008).

De um ponto de vista prático, percebe-se que o trabalho ocupa, na vida dos venezuelanos entrevistados, um lugar central e que é determinante para que consigam refletir acerca da saúde mental, assim sendo, colocam-se aspectos laborais como determinantes sociais de saúde (Buss & Pellegrini Filho, 2007). É unânime o entendimento de sofrimento patológico em todos os desempregados, à exceção de Juanita, pois, conforme exposto, isto foi uma decisão tomada por ela no intuito de enfrentamento à carga de sofrimento gerada por vivências de assédio moral no trabalho, e de encontro ao fomento de seu bem-estar biopsicossocial, logo, prevalecendo os aspectos positivos - o que poderia ser chamado de desemprego voluntário (Ribeiro, 2009).

Quando questionados sobre o entendimento que possuíam quanto ao trabalho influenciar ou não a saúde, Noel e Doménica colocaram que não notavam nenhuma relação entre as duas variáveis. Entretanto, destaca-se que eles foram participantes que demonstraram estratégias de defesa de negação para manejar a carga de sofrimento frente ao trabalho (desemprego para Noel e um trabalho fisicamente demandante para Doménica), sendo uma resposta coerente diante dos recursos psíquicos que utilizaram: “Eu acredito que o trabalho não influencia em nada” (Noel).

Para além deles, todos expuseram que são indissociáveis, trazendo que é um espaço de pertencimento (“As pessoas que trabalham contigo passam a ser tua família [...] Tu passas muito tempo naquele espaço” - Silvestre), de valorização pessoal (conforme conta Manoel ao refletir sobre como seu avô entendia o espaço de trabalho, algo essencial e que conferia sentido a si mesmo ao valorizar a sua existência, sendo esta uma construção feita ao longo de sua história que carrega até hoje de forma transgeracional: “ele dizia assim [referindo-se ao seu avô], se eu não trabalho, fico deprimido e vou morrer mais rápido, então assim, como ele fala, é possível que o trabalho ocupe todo o espaço que ele tem”) e de crescimento financeiro (como dito por Pascual e Omar: “Para mim é como ganha o pão do dia a dia”).

Desse modo, pensa-se que o sentido atribuído ao trabalho também será um constructo que interfere diretamente com a saúde mental dos trabalhadores. Para (Dejours, 2008): "A construção do sentido do trabalho pelo reconhecimento - premiando o indivíduo quanto a suas expectativas com respeito à sua realização pessoal (edificação da identidade no campo social) - pode transformar o sofrimento em prazer" (p. 74).

Nos aspectos mais preocupantes, a carência de saúde mental também surgiu em uma via de adoecimento psíquico, fundamentalmente em pessoas desempregadas, sinalizando uma necessidade de cuidado em saúde mental mais atento. Àqueles que, à época da coleta de dados, estavam vinculados a alguma instituição ou organização, trouxeram sinais de adoecimento em histórias passadas, como o caso de Silvestre (com questões físicas e neurológicas por conta das exigências em um trabalho de alta demanda: “Quando a gente foi relacionando sobre minha [a neurologista e ele] (…) ela disse ‘tu tens um grande nível de estresse, mas como és um cara legal, sorridente, tu tapas tudo isso, mas o que está acontecendo dentro de ti é muita pressão que não queres assumir”) e Manoel (quando ocupou postos análogos à escravidão, logo após sua entrada no país como solicitante de refúgio: “não acho que tenha nada que eu considere ruim ou difícil no meu trabalho (…) em Roraima foi diferente (…) exploram muito!”).

Os sinalizadores mais preocupantes de adoecimento na pesquisa se apresentaram em mulheres e foram: pensamentos catastróficos e depressivos (Cecília, Carmen, Piedad e Mariluz). Para elas, isso esteve estreitamente ligado ao desemprego, sinalizando o quanto a perda (ou ameaça de perda) do trabalho pode atuar como fragmentadora da identidade dos sujeitos (Gregoviski et al., 2022a; Jardim, 2011). No caso de Cecília, que tem um filho pequeno, isto traz à tona (re)vivências traumáticas ligadas à fome (“Triste, preocupada (…) nossa família depende disso, preocupamos com aluguel, comida, crianças. Então a gente fica magoada, triste”), enquanto no de Mariluz a de perder tudo que possui e ter de recomeçar (“Já senti muito estresse pelo que lhe disse [referindo-se a deixar tudo para trás e se perceber desempregada em decorrência da pandemia, sem economias e seus bens materiais conquistados durante a vida] (…) estou nervosa, mas me levanto”. Para Carmen e Piedad imperaram a preocupação com a família que segue na Venezuela, logo, com sentimento de impotência pela sua condição econômica não ser favorável ao auxílio daqueles que por elas são queridos: “Não posso ajudar minha família (…) não poder ajudá-la traz à tona todos esses sentimentos”.

Cecília, Carmen, Piedad e Mariluz apresentaram sintomatologias comuns em casos de depressão, como a tristeza, ansiedade, insônia, ganho ou perda de apetite, irritabilidade, isolamento (não como algo relacionado à pandemia), pensamentos catastróficos e de morte. Estefânia e Dulce trouxeram em seus relatos vivências muito semelhantes àquelas de Cecília e Mariluz, porém destacaram que isto somente ocorreu quando não tinham nenhuma vinculação profissional, sendo fonte de preocupação. Novamente, reforça-se a necessidade da atuação frente a situações de desemprego, especialmente no público que vem ao país por conta do deslocamento forçado, já vitimados com inúmeras violações de direitos humanos.

A pandemia, ainda que não sendo o foco principal deste estudo por conta de sua emergência ter sido durante as primeiras coletas de dados, surge como um potencializador das situações de fragilidade. Nota-se, pelas falas, que ela somente adquire papel de protagonista quando sendo algo relacionado ao desemprego (como algo concreto, ou um medo), nos demais, surge com cargas ansiogênicas esperadas dentro de uma crise sanitária, com o medo de contágio, distanciamento dos familiares que seguiam na Venezuela (e preocupação com eles) e incerteza quanto ao futuro.

4. Considerações Finais

Percebendo o trabalho como fator central à constituição do sujeito em aspectos que podem ser compreendidos como diretamente relacionados à saúde psíquica, é impreterível que os profissionais que atuam diretamente com a assistência ou a gestão em saúde mental tenham formação adequada para compreender a imensidão de particularidades que são próprias do deslocamento forçado. Especificamente da área da Psicologia e das Clínicas do Trabalho, compreende-se que há um enorme potencial de trabalho pela melhor compreensão dos aspectos subjetivos que constituem o sujeito, sendo esta pesquisa uma importante fonte de dados que pode nortear o trabalho com o sujeito migrante, independentemente do setting terapêutico e/ou institucionais em questão.

Logo, o estudo evidenciou pontos cruciais que necessitam de maior atenção, como as estratégias de mediação e a saúde mental, principalmente quando relacionada a vias mais urgentes ao adquirirem caráter de sofrimento (para além daquele próprio do deslocamento forçado, mas sempre atravessado por ele) e de patologia, quando o sofrimento não consegue encontrar vias saudáveis de ressignificação, inclusive pelo cenário caótico que urge incentivando trabalhos cada vez mais informais e flexíveis, então, precários. Pontua-se, ademais, que o agravante pandêmico, ainda que não sendo o foco desta pesquisa, não pode passar despercebido, e é um claro sinalizador do aumento da vulnerabilidade e intensidade de sofrimento nesses venezuelanos.

As estratégias de defesa e de enfrentamento demonstraram, aqui, formas que os trabalhadores venezuelanos utilizam para lutar contra o sofrimento, buscando-se dar um destino mais saudável, ainda que por vezes mantendo o equilíbrio por um fio. Naquelas ditas de defesa, há de se atentar ao quanto podem ser imobilizadoras ao sujeito, deixando-o estagnado diante de uma posição que agrava ainda mais sua fragilidade biopsicossocial, mencionando-se que as principais percebidas estiveram relacionadas à negação do sofrimento, controle exacerbado, isolamento de pares e racionalização (especialmente aliada a um recurso espiritual que, ainda que seja essencial aos sujeitos, deve-se atentar para não cristalizar pensamentos e comportamentos). Aquelas de enfrentamento, ainda que tidas como mais eficazes por promover a sublimação das angústias, foram percebidas neste estudo ocorrendo de forma muito mais individuais do que coletivas, o que causa inquietação acerca do quanto o contexto laboral segue ou não sendo adoecer, visto não ter sido construída a mobilização coletiva na forma como se primaria dentro desse constructo. Ainda, destas, as mais apresentadas foram apoio dentro do espaço laboral, possibilidade de aprendizado e desligamento do espaço adoecedor.

Ademais, destaca-se que a saúde mental no trabalho esteve ligada a sentimentos de pertencimento, valorização pessoal e crescimento financeiro, em muito dialogando com o sentido que o trabalho adquire na vida dessas pessoas. As situações que adquiriram vias patogênicas estão ligadas, principalmente, ao desemprego, evidenciando-se a necessidade de enfoque nessa área para melhor se pensar sobre políticas de enfrentamento, visto que o desemprego, como um fenômeno cada vez mais presente por conta da reestruturação do capital, atua como um importante aspecto na construção das subjetividades humanas (Dejours, 2006). Ainda, pontua-se que o gênero feminino demonstrou maior carga de sofrimento patogênico, sendo um recorte interseccional que requer atenção.

Dessa forma, sugere-se que as pesquisas que abordem a tríade saúde mental - trabalho - migração sigam ocorrendo, pois se constituem como um subsídio fundamental para aperfeiçoamento de práticas clínicas e de políticas públicas sociais. Destaca-se que este estudo sinaliza um campo que requer aprofundamento (agenda de pesquisa), especialmente pelos agravantes que podem ter sido instigados pela pandemia: a situação de desemprego.

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Recebido: 19 de Janeiro de 2023; Aceito: 31 de Outubro de 2023

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