Introdução
Este artigo possui como objetivo principal a caracterização da formação e ação do primeiro órgão de policiamento internacional, a Comissão Internacional de Polícia Criminal (CIPC), criada em 1923 e renomeada como Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol) após a Segunda Guerra Mundial. Enfatiza-se sua inserção no cenário internacional de bipolarização na Guerra Fria e o envolvimento de seus membros com interesses políticos naquele período. Esta instituição foi criada com o propósito de colaboração entre forças policiais nacionais, para o compartilhamento de informação e combate a crimes de direito penal comum, que transcorriam através das fronteiras nacionais. A compreensão de possíveis envolvimentos políticos no interior da organização permite analisar o nível de influência política individual de seus membros, e o interesse dos Estados-nações envolvidos nos mecanismos internos desta instituição. Ademais, pode-se compreender a influência de certos eventos históricos na constituição de organizações internacionais e de que modo as potências mundiais atuaram no estabelecimento das relações internacionais do período analisado. A Guerra Fria protagonizou tensões globais de longo prazo que influenciaram as supremacias nacionais e as relações internacionais como um todo. Neste sentido, teve um forte impacto na dinâmica estrutural do internacionalismo. A competição bipolarizante influenciou não somente relações políticas entre nações, mas interferiu consideravelmente no modo de ação de instituições internacionais.
Estudos voltados para a análise deste tema dão, em geral, ênfase à participação de Estados-nações no interior de organizações internacionais (Stalcup, 2013, p. 237). Especialmente no campo da criminologia é notável o foco de pesquisas em práticas nacionais, mesmo quando estas atuações não se mostravam guiadas por envolvimento devidamente estatal (Knepper, 2010, p. 5). Mostra-se necessário, em vista disto, apontar diferenças teóricas relativas a atuações policiais internacionais e transnacionais, e de que forma estas se estruturaram mediante a consolidação institucional da Interpol ao longo do século XX.
O termo “transnacional” se aplica a atores não diretamente ligados a Estados-nações, que traduzem relações a um nível individual que transcendem fronteiras nacionais. Esta caracterização pode ser apontada aos primeiros anos da CIPC. Até a década de 1930, esta organização de policiamento era gerida exclusivamente através do envolvimento de membros de forças policiais, e não por Estados-nações, formando um grupo de oficiais com uma cultura e objetivos comuns (Deflem, 2002, p. 61). Já o conceito de “internacional” remete para as ações que envolvem a participação oficial de Estados e são voltadas para a defesa de interesses nacionais. Neste trabalho é necessário caracterizar a evolução da trajetória da Interpol enquanto organização com características transnacionais até o final da Segunda Guerra Mundial para, depois, analisar seu crescente envolvimento agora em um contexto internacional durante a Guerra Fria.
A década de 1930 trouxe um afastamento da caracterização transnacionalista da atuação da CIPC, devido à tomada nazista da organização, utilizada com maior frequência para a obtenção de influência internacional (Herren, 2017, p. 192). Pode-se, assim, compreender como a cooperação entre polícias se sustentou em um momento em que se considerava que as relações internacionais estavam em decadência. O enquadramento teórico da historiadora de relações internacionais Patricia Clavin (2005, p. 428), que problematiza a ideia de início da história internacional como nascida a partir de 1945 e põe em perspectiva noções de decadência de diálogos internacionais durante o período entreguerras, permite analisar as influências de potências nacionais na Interpol a partir de sua tomada pelo Terceiro Reich, e posteriores interpretações de influências do internacionalismo nazista em seu restabelecimento após o fim da Guerra.
A questão da influência política de grandes potências na Interpol, e de atuações voltadas para interesses de países-membros do bloco ocidental a partir de 1946, são analisadas ao longo deste trabalho para entender o nível de envolvimento ideológico no funcionamento oficial desta organização internacional. A análise do envolvimento da Interpol com o polo ocidental e capitalista, e a influência de ideais europeus e estadunidenses em seu funcionamento a partir da segunda metade do século XX, permite compreender melhor o desenvolvimento do policiamento internacional, suas ligações e objetivos políticos, e seu enquadramento em função de eventos contemporâneos.
O texto é estruturado em cinco tópicos, que se debruçam sobre momentos distintos da mobilização trans e internacionalista policial, bem como as diferentes motivações e metodologias utilizadas nesse processo. A primeira parte descreve os desdobramentos iniciais da colaboração entre forças policiais, abrangendo o período do século XIX até a Segunda Guerra Mundial. Após a incorporação da CIPC por forças nazistas, a Comissão foi reestruturada no pós-guerra e tentou continuar suas operações, não considerando sua tomada de controle autoritária. Com a permanência de agentes associados a regimes ditatoriais de direita e a saída abrupta de membros do Leste europeu, a terceira parte do artigo discute como os membros ocidentais da organização promoviam uma narrativa de compromisso político sustentada dentro da comissão de polícia. A partir desse ponto, observa-se uma crescente presença de órgãos de vigilância estadunidenses e a motivação de seus agentes para expandir sua influência nesse contexto. Os tópicos finais abordam com mais clareza a situação do Federal Bureau of Investigation (FBI) e do Federal Bureau of Narcotics (FBN), agências norte-americanas no interior da Interpol, e analisam a problemática do envolvimento de objetivos nacionais no âmbito de organizações internacionais, exemplificada pela mudança no entendimento da designação “terrorismo” na constituição da Interpol.
A dificuldade de acesso a fontes e arquivos oficiais da Interpol impede uma análise mais completa desta organização. Contudo, o uso da International Criminal Police Review como fonte primária, contribui para compreender a visão de mundo de oficiais ocidentais e seus principais objetivos mediante a ação policial internacional. O periódico da organização era escrito por seus membros e voltado para a circulação interna. A análise desta revista permite apontar como a Interpol era vista com frequência como um “clube” por seus oficiais europeus. A inclusão de participantes não alinhados politicamente com o bloco capitalista, no decorrer da Guerra Fria, demonstrou ser um assunto sensível no interior desta instituição.
Fundamento e oficialização do policiamento internacional
A CIPC constituiu a primeira instituição voltada para a colaboração oficial entre policiais no combate à criminalidade. Embora tenha sido criada na segunda década do século XX, seu estabelecimento demonstra a oficialização de uma tendência de colaboração que vinha, pelo menos, das duas décadas finais do século XIX. Para compreender as bases institucionais em que se situava, os seus membros e os seus métodos de funcionamento, é necessário analisar as origens do pensamento e da ação internacionalista policial, e como tais conceitos influenciaram posteriormente a atuação e visão de mundo dos agentes a eles ligados. Ao assinalar a crescente motivação para a colaboração policial entre membros de forças policiais de diferentes países, é possível compreender não somente a herança histórica que influenciou a criação e atuação da Interpol em 1946, mas também detalhar de que modo o pensamento político de seus participantes permeia, com frequência, o funcionamento de instituições policiais.
O historiador Richard Bach Jensen (1981) dedicou sua pesquisa à análise do combate ao “terrorismo” anarquista a nível internacional, e aponta, em sua argumentação notável, uma constância de ideais relativos ao policiamento político, originários do século XIX, durante o funcionamento da Interpol, interpretada como descendente direta da Conferência anti-anarquista de Roma, de 1898. Embora alguns estudos apontem a origem de tendências de articulação policial entre nações como proveniente do período das Revoluções de 1848 (Fijnaut, 1997, p. 108), esforços mais concretos por meio de governantes para a criação de uma unidade de colaboração entre polícias só podem ser vistos algumas décadas depois, no final do século. No entanto, é interessante verificar de que modo o pensamento político de 1848 permeou toda a história do internacionalismo policial: este pode ser apontado como o primeiro momento em que governantes utilizaram métodos de troca de informação e se mobilizaram em conjunto, com o propósito de perseguir adversários políticos vistos pelas nações europeias como uma ameaça ao poder estabelecido. Este diálogo, observado na segunda metade do século XIX, voltado para a manutenção de um determinado regime político que se encontrava no poder e para a perseguição de seus dissidentes, fornece explicação primária para a tendência posterior de mobilização com vista a criação de um policiamento internacional em bases mais permanentes e oficiais.
Uma mobilização mais concreta de policiais ocorreu décadas depois quando, a partir de 1870, os crescentes ataques anarquistas, fazendo uso da recentemente inventada dinamite, passaram a causar insegurança entre as classes médias das sociedades europeias. O assassinato do czar Alexandre II, em São Petersburgo, em 1881, por um anarquista, pode ser apontado como o estopim para um número cada vez maior de atentados violentos a políticos e, em geral, uma ameaça à sociedade civil. O assassinato da imperatriz Elizabeth da Áustria, em 1898, também por um anarquista, impulsionou a união pan-europeia que levou à convocação de uma conferência anti-anarquista, ocorrida no mesmo ano em Roma (Jensen, 1981, p. 323). Esta foi um ponto de partida para a comunicação internacional entre autoridades nacionais relativa a assuntos criminais e, pela primeira vez, possuía a intenção clara de perseguição a um certo tipo de atividade criminal transfronteiriça. Embora não tenha alcançado projetos de lei comuns para o combate da violência política entre nações, o estabelecimento de uma pauta para um policiamento europeu único, com intenções de vigilância política, situa suas principais motivações.
Os desdobramentos das relações policiais decorrentes de perseguições políticas internacionais continuaram ao longo do século XX. O assassinato de mais um chefe de Estado, o presidente americano William McKinley, em 1901, por um anarquista polonês, esteve na base da segunda conferência para o combate ao anarquismo. Esta, que ocorreu em 1904 em São Petersburgo, deu origem a um novo acordo internacional, e continuidade ao diálogo entre nações estabelecido em 1898, aprofundando a criação de protocolos de atuação policial relativa a este tipo de criminalidade. Torna-se, então, evidente que o compromisso político desempenhou um papel central na condução da cooperação policial internacional.
Após 1904, as conferências e reuniões de policiais, com a participação de múltiplos países, caracterizaram o modo crescentemente utilizado de diálogo entre polícias para o compartilhamento de informações e métodos investigativos (Jensen, 1981, p. 341). Alguns exemplos podem ser apontados, como os congressos de polícia realizados em Buenos Aires (1905), Madrid (1909), São Paulo (1912) e Washington (1913), voltados principalmente para o combate ao tráfico de drogas, prostituição, lavagem e falsificação de dinheiro. As complexidades do contato entre policiais a nível individual, e o papel que estes ocupavam em suas determinadas sociedades, guiaram trajetórias transnacionais no combate ao crime. A partir do momento em que ocorre a mobilização voltada para a cooperação transfronteiriça de polícias, o modo de pensamento dos indivíduos envolvidos muda, passando a ser observado um ideal mútuo de compromisso com a segurança da sociedade ocidental. O crescente contato entre policiais de diferentes países estimulou, entre eles, um certo sentimento de compromisso, demonstrando uma equivalência de ideologias e a presença de senso de responsabilidade para a manutenção da ordem do sistema político ocidental. Este fenômeno aponta para a presença de uma carga política comum sustentada por atores de diferentes nacionalidades, e outra camada de influência política no processo de internacionalização da polícia e do policiamento.
A primeira tentativa de oficializar institucionalmente aquele contato ocorreu em 1914, na cidade de Mônaco, durante o Primeiro Congresso de Polícia Criminal (Fijnaut, 1997, p. 109), que buscava estabelecer estratégias de investigação criminal a nível internacional. Embora tenha sido vista como um sucesso por seus participantes, caracterizando uma primeira tentativa de criação de um órgão internacional para colaboração policial mais formal, seus objetivos foram diretamente afetados pelo início da Primeira Guerra Mundial. Com o final dos conflitos bélicos, em 1918, as preocupações relativas à criminalidade internacional retomaram a agenda política e policial de forma revigorada. A situação de depressão econômica e a fragilidade política dos Estados-nações europeus impulsionaram o aumento da criminalidade na Europa. Infrações voltadas principalmente para a fraude e falsificação de dinheiro mobilizaram policiais, ilustrando a necessidade de criação de um mecanismo oficial voltado para a colaboração entre forças policiais e compartilhamento de informações relacionadas com os transgressores das leis criminais (Fooner, 1973, p. 16).
Após longo período de gestação, o empenho de policiais foi coroado durante o Congresso de Polícia Internacional, realizado em Viena no ano de 1923 (Deflem, 2002, p. 124). Este congresso, idealizado pelo delegado de polícia vienense Johannes Schober, contou com a participação de oficiais de 20 países e formulou a criação da CIPC. Sua primeira reunião formal aconteceu em maio de 1924 e contou com a presença de oficiais austríacos, alemães, belgas, franceses, norte-americanos, entre outros. A participação de membros era individual, voltada exclusivamente para agências de polícia, com pouco envolvimento governamental. Deste modo, o compromisso pessoal existente entre os policiais se mostrou essencial para o desenvolvimento desta instituição.
A institucionalização da CIPC expunha a tendência de colaboração entre policiais europeus, um processo que decorria em torno de uma noção de ordem comum (Fijnaut, 1997, p. 111). Esta ideia de fraternidade era sustentada por um senso de compromisso moral compartilhado, relativo à proteção da sociedade e manutenção da ordem. O pacto mútuo apresentado demonstra que a CIPC não pode ser interpretada como politicamente neutra: os princípios próprios dos seus oficiais, como a manutenção de senso comum, voltado para proteção de suas respectivas nações contra ameaças revolucionárias, derivavam de uma tendência observada desde o século XIX e guiaram a formação institucional da Comissão e seu desempenho como organização internacional durante eventos no pós Primeira Guerra Mundial.
No contexto de uma crescente bipolarização global a partir da Revolução Russa, em 1917, é preciso notar que o comunismo internacional passou a ser considerado a maior ameaça à ordem ocidental, em comparação com as ações anarquistas anteriormente comentadas. Desta forma, os oficiais de polícia da União Soviética nunca foram convidados a colaborar com a Comissão, se tornando a única nação europeia não participante até 1939 (Fooner, 1973, p. 14), fato que permite questionar a posição política supostamente neutra da organização.
O desenvolvimento da CIPC estacionou durante a década de 1930. Agentes de polícia nazistas passaram a integrar a Comissão com maior frequência a partir de 1934, participando das Assembleias Gerais (Fijnaut, 1997, p. 116). Com a anexação da Áustria pela Alemanha nazista em 1938 (Anschluss), a comissão policial passou a ser presidida por Reinhard Heydrich, importante figura para o estabelecimento do Terceiro Reich e oficial da Schutzstaffel (SS), principal agência policial na Alemanha nazista e em territórios ocupados. Após esta anexação, o gabinete oficial da CIPC foi deslocado para a capital alemã (Deflem, 2002, p. 181). O processo de nazificação da primeira organização de policiamento internacional culminou em sua tomada oficial antes do começo da Segunda Guerra Mundial. A presença vocal de delegados nazistas na instituição, antes do estopim bélico de 1939, não provocou considerável oposição por parte de outros membros da organização (Mazower, 2012, p. 141). Deste modo, demonstra-se a constância do pensamento político dos participantes e seus compromissos com a permanência de ideais voltados para a supremacia europeia ocidental, mesmo quando esta envolvia presenças autoritárias nos mecanismos internos da CIPC. Até o começo da guerra, mas já durante a atuação formal da SS na Comissão, a comparência de membros de outras nações, mesmo de países liberais e democráticos como França e Inglaterra, por exemplo, não foi afetada pela presença autoritária (Knepper, 2011, p. 99). Vários dos seus fundadores iniciais, como Van Houten e Florent Lowage, continuaram em serviço após o ocorrido e colaboraram ativamente com agentes nazistas alemães e fascistas italianos e portugueses.
Um dos principais pesquisadores da trajetória histórica da Comissão Internacional, o sociólogo Mathieu Deflem (2002, p. 194), aponta que o principal motivo de o processo de nazificação das funções policiais da Comissão ter ocorrido de forma tão suave, se deu devido a similaridades observadas entre princípios nazistas e as práticas policiais comuns existentes em outros países. Deflem guia toda a sua argumentação com base na ênfase de influências governamentais em atuações voltadas para o policiamento internacional. Apontando a persistência de objetivos políticos como principal justificativa para influências ideológicas que permeiam a história do policiamento transnacional, tese que tende a excluir o papel individual dos policiais em ações voltadas para o combate criminal, seus argumentos podem ser utilizados para demonstrar a influência do pensamento político em atuações relativas à criminalidade.
Teóricos das Relações Internacionais (Andreas & Nadelmann, 2006, p. 13) entendem que o papel histórico das organizações internacionais e o combate ao crime organizado transnacional têm sido guiados pelos interesses das principais potências. Os métodos e objetivos do policiamento internacional podem ser caracterizados como respondendo frequentemente à ordem política internacional do momento, interpretação que pode ser comprovada tanto na análise das atividades de cooperação policial no final do século XIX, como na cooptação nazista da CIPC no período entreguerras. Nota-se que o senso de comunidade entre agentes do combate ao crime desenvolveu-se mesmo após ser confrontado com a divisão ideológica entre países do continente europeu (Fijnaut, 1997, p. 121). Deste modo, e considerando a falta de evidência documental disponível para compreensão integral de detalhes referentes à atuação nazista na CIPC, que se estende por cerca de uma década, a tomada autoritária da organização ilustra um momento de considerável importância para o entendimento, quer de seu funcionamento como órgão policiador, quer, posteriormente, da história do pensamento internacionalista policial no século XX.
Em consequência da contínua participação de membros provenientes de nações democráticas e sua colaboração com policiais ligados a regimes autoritários, a análise do impacto da sua presença na CIPC após 1945 se mostra necessária.
Reconstrução: a Interpol no pós-guerra
Após caracterização do processo de formação da CIPC enquanto instância de colaboração entre policiais de diferentes países, faz-se necessário analisar a trajetória desta organização a partir da queda do Terceiro Reich, o fim da Segunda Guerra Mundial, e sua reconstrução como Interpol. Um ano após a vitória dos Aliados, em 1946, os membros fundadores restabeleceram a CIPC, junto com representantes de 17 países. A presença dos mesmos delegados, envolvidos nos primeiros diálogos relativos ao policiamento internacional, datados da década de 1920, determinou algum grau de continuidade de um órgão policial supostamente internacional, mas, na realidade, mais semelhante a um “clube” composto por membros exclusivos (Fijnaut, 1997, p. 124).
O restabelecimento da CIPC ocorreu formalmente devido à percepção do acréscimo de atividades criminosas a partir do final da Segunda Guerra, com oficiais de polícia preocupados, sobretudo, com fraudes, crimes financeiros de falsificação de moedas e tráfico de narcóticos e de mulheres, que ilustram com frequência pautas abordadas por estes agentes. Notam-se equivalências entre o surgimento da Comissão em 1923, uma resposta ao aumento do crime internacional a partir de 1918, e sua retomada em 1946: períodos de crise econômica passados na Europa após ambas as guerras mundiais impulsionaram as atividades criminais (Fooner, 1973, p. 144). A fragilidade das fronteiras nacionais, sobretudo em períodos pós-guerra, facilitou o trânsito entre países e justificou também o acréscimo da criminalidade internacional nas décadas de 1920 e 1940. A Assembleia Geral de 1946, ocorrida em Bruxelas, foi considerada o primeiro encontro de delegações dos Estados sobreviventes à guerra, e realizada com propósito de dar continuidade ao trabalho da Comissão. Muito do passado autoritário da CIPC foi desconsiderado e indicado como simples perda de controle (Ullrich, 1962, p. 176). Devido a isso, não ocorreram políticas oficiais para interpretar e desmantelar a influência nazista na CIPC.
A mudança de nome da organização, a partir de 1946, pode ser vista como parte da tentativa de afastá-la de suas ligações autoritárias do passado e do apagamento de sua história. A designação CIPO-Interpol, em detrimento da sigla adotada anteriormente, oficializada na Assembleia Geral de 1956, já era utilizada por seus membros desde o seu restabelecimento em 1946.
Um dos principais meios de comunicação entre os delegados participantes da organização, além das assembleias gerais realizadas anualmente, ocorria por meio da revista International Criminal Police Review. Seus artigos, publicados mensalmente e escritos por diversos policiais participantes, oferecem detalhes sobre novos métodos investigativos, técnicas de inteligência e novidades no campo da criminologia. Também expõem atividades realizadas pela Comissão e detalhes sobre seus procedimentos institucionais. Estabelecida em 1924, esta publicação era de circulação interna e confidencial. A interpretação da linguagem utilizada por seus membros, e o modo de se referirem a certos eventos, também ajudam a ilustrar a atuação da organização perante eventos globais, por vezes com caráter político. A análise de artigos escritos neste periódico que detalham a história da Comissão permite compreender a perspectiva que seus próprios membros possuíam acerca dos fatos que levaram à formação e desenvolvimento da CIPC.
A representação oferecida na literatura oficial da organização sobre o início do policiamento internacional, como oriundo de 1904 (Ullrich, 1962, p. 170), a partir da Convenção sobre tráfico de pessoas iniciada neste ano, se mostra distinta da caracterização histórica estabelecida universalmente por pesquisadores da instituição. É interessante apontar que, ao não considerar as origens do policiamento internacional como provenientes do século XIX, a literatura estabelecida por membros da Comissão Internacional tenta se afastar o máximo possível de origens derivadas de policiamento político de sua constituição.
A tendência oficial observada na literatura da Comissão torna evidente a tentativa de apagamento de uma bagagem histórica da CIPC com o propósito de provar que o envolvimento político não fez parte das relações internacionais entre polícias. Ao salientar o estabelecimento de um órgão oficial de combate ao crime transfronteiriço, marcado pelo combate ao tráfico de pessoas e de narcóticos, a falsificação de dinheiro e a fraude, porém excluindo tendências marcadas por ansiedades políticas que permearam as últimas décadas do século XIX, os membros da Interpol determinaram quais eram as partes da história do policiamento entre fronteiras mais valiosas para divulgação de seus próprios objetivos.
Similarmente, tendências de apagamento de eventos históricos e suas consequências ocorrem, novamente, em relação ao discurso oficial observado em alusão ao processo de nazificação da CIPC. A visão da tomada nazista como mera perda de controle, solucionada nos primeiros anos do pós-guerra, desconsidera a participação constante de antigos membros da SS até meados da década de 1970 e de outros policiais ligados a governos autoritários. Estes agentes se mantiveram presentes na Organização ao longo do pós-guerra justamente por conta da certa indiferença do processo de nazificação da CIPC por seus membros, em conjunto com a ideia de fraternidade sustentada pelos oficiais participantes, mencionada anteriormente.
Ao descrever peculiaridades do crime de genocídio em um artigo da International Criminal Police Review, em 1947, este é definido como um crime comum diante do direito penal, não configurando, segundo a interpretação dos agentes da Comissão, uma questão com contornos políticos. É interessante apontar que, em sua literatura oficial, o compromisso de atuação para a prevenção de ações e políticas genocidas é salientado como necessário por toda comunidade internacional, e o papel da Interpol é especificamente realçado: “Avant la guerre, la C.I.P.C. avait collaboré à l’élaboration et à l’application des conventions tendant à réprimer certains actes graves blessant la morale ou la conscience universelle et pour lesquels la théorie de l’universalité de la répression était admise” (Marabuto, 1947, p. 26).
Ao salientar apenas o papel da Comissão na elaboração de convenções com o propósito de impedir crimes contra a humanidade após a Segunda Guerra, torna-se evidente a tentativa de afastamento da tomada nazista da CIPC por seus membros, de modo que seu comportamento como organização internacional durante o período de nazificação não é mencionado.
O não envolvimento em questões políticas é algo constantemente assinalado por meio de mecanismos oficiais da organização, embora o próprio discurso de seus membros, a nível individual, não possa ser interpretado como neutro em relação ao envolvimento em determinados regimes governamentais. O caso mais evidente desta dicotomia talvez se situe nos discursos feitos pelo secretário geral da Interpol, Jean Nepote, entre 1963 e 1978, e pelo presidente da organização, Agostinho Lourenço, entre 1956 e 1960. Nepote, agente de polícia francês que colaborou ativamente com o governo de Vichy durante o período de ocupação alemã (Posner, 1990, p. 22), menciona que a distinção entre criminalidade política e comum nem sempre é evidente. Embora esta separação, em teoria, seja explicitada como importante para a efetivação institucional da organização, seu discernimento se caracteriza, na prática, como dificultoso. Após relatar a dificuldade de separação entre ofensas contra a lei com caráter político e atividades criminosas sem influência ideológica, a solução apresentada pelo secretário geral se encontra na confiança nos agentes de polícia envolvidos: “In practice, of course, it is often difficult to decide when a particular offense must be classified as political. In such situations, all we can do is to use our best judgment and rely on the integrity of everyone involved” (Nepote, 1967, p. 9).
Ao relatar o método de controle para crimes com motivação política enquanto responsabilidade individual dos oficiais, sem método formal para o discernimento entre a criminalidade comum e política, o funcionamento básico da organização é conferido a policiais com interesses próprios, incluindo políticos. Este modo de administração confirma a interpretação que ilustra compromissos políticos de oficiais atuantes no aparato da Interpol e a consequente parcialidade que regia sua atuação.
Além dos discursos de Nepote, declarações de Agostinho Lourenço, membro da Comissão, presidente da Interpol no final da década de 1950, demonstram a flexibilização de conceitos relativos ao policiamento político. Agente de polícia português, Lourenço foi o criador da Polícia de Vigilância de Defesa do Estado (PVDE), polícia política com o propósito de perseguição de dissidentes do governo fascista de Salazar (Chalante, 2011, p. 56). Antes de ser eleito como presidente da Interpol, participou da CIPC desde, pelo menos, o ano de 1934. Tendo estado presente na Assembleia Geral da Interpol em Paris, em 1947, elaborou um relatório para Salazar descrevendo as principais pautas e discussões efetuadas nas reuniões, onde inclui um breve resumo sobre a história recente da CIPC, referindo o aumento da criminalidade do pós-guerra como necessidade para retomada da Comissão, retratada como “velha” e “dispersa”1. O oficial comenta também a suposta atuação da Interpol alheia à vigilância política, assinalando que, na realidade, esta neutralidade não se sustentava, e que a confusão entre tipos de crime podia ser compreensível: “Embora a C.I.P.C. seja um organismo cujo funcionamento é, ou deve ser, absolutamente alheio à política dos seus componentes, porquanto o seu objectivo é exclusivamente o da repressão da criminalidade, é certo porém que em Bruxelas (no ano passado) se esboçaram assuntos a que a política não era estranha”.2
Após esta descrição, exaltou o papel do então presidente, Florent Lowage, como necessário para a eliminação de tensões internas já relativas à bipolarização crescente após 1945:
Na presidência, um homem que bem poderia classificar de altíssimo valor, Mr. Lowage, [...] orientando decididamente a marcha das discussões, eliminando causas de possíveis atritos ou melindres, e tendo uma perfeita noção da forma e do momento em que deve proceder à votação dos pontos a decidir, de maneira a apresentarem a côr dos princípios da civilização ocidental.
Evidentemente, a mera presença destes atores, com ligações fascistas, e o fato de alcançarem altos cargos de prestígio mesmo após o término da Segunda Guerra, podem ser utilizados para comprovar a representação de ideais políticos na organização. Os discursos destes membros evidenciam a posição política da Interpol nos anos posteriores ao seu restabelecimento, em 1946, e ilustram o compromisso com a consolidação de uma força de policiamento voltada para ideais eurocêntricos de progresso, visto que assinalam com frequência a superioridade civilizatória destas nações.
Embora a influência política na organização seja evidente pela presença de Estados-membros com regimes autoritários, a interpretação que aponta motivações para este fenômeno como provenientes apenas da influência de governos na autonomia burocrática da instituição (Deflem, 2005), não interpreta corretamente as raízes da constituição do sistema de policiamento internacional, e despreza a influência que seus membros individuais nele exercem, uma vez que constituem uma subcultura própria de valores compartilhados. Evidentemente, menções de manutenção de “princípios da civilização ocidental” nas reuniões da Assembleia Geral de 1947, associadas à exclusão da participação de membros como a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) ou outros países do bloco comunista, apontam para a existência de um compromisso político no centro da organização após sua retomada em 1946. O relatório de Lourenço ilustra ademais crescentes tensões diplomáticas ocorridas na Assembleia Geral de 1947:
A delegação portuguesa nunca deixou de observar quaisquer factos que apresentassem aspectos políticos, e, nesta ordem de ideias, anotou que os membros das delegações se poderiam dividir, quanto às suas ideologias, em dois grupos opostos: - um constituído pela Bulgária, Yugoslávia e Tchecoslováquia; - outro, pelos restantes, entre os quais há modalidades de convicção e de receio3.
Deste modo, a divisão de participantes entre dois grupos distintos, observada por Lourenço, caracteriza a manifestação de tensões políticas mobilizadas pela Guerra Fria nos mecanismos oficiais da organização, e demonstra que a neutralidade afirmada em teoria pela Interpol não pode ser observada em suas atuações práticas. O periódico publicado pela organização permite acompanhar as assembleias gerais da instituição durante os primeiros anos de seu restabelecimento, possibilitando compreender como seus membros se situavam durante suas reuniões e pautas oficiais. Esta fonte permite compreender, com maior profundidade, as relações diplomáticas no interior da Interpol durante as primeiras décadas da Guerra Fria. A análise da adesão e saída de forças policiais de certos países da organização relaciona este fenômeno com a estrutura política global vigente nesse período.
Consequências da bipolarização da guerra fria no policiamento internacional
A competição entre potências que caracteriza o período da Guerra Fria influenciou não somente as relações políticas entre nações, como interferiu consideravelmente no modo de ação das instituições internacionais. É importante caracterizar e analisar o papel da Interpol como instituição de policiamento no contexto dos conflitos globais entre o final da década de 1940 e o início da década de 1960, considerando a crescente influência política dos Estados Unidos da América (EUA) e da URSS no plano internacional (Mazower, 2012, p. 197). O pressuposto teórico que interpreta a tendência de internacionalização do controle criminal como proveniente dos poderes ocidentais, guiada por interesses políticos e econômicos, permite compreender consequentes tentativas de hegemonia americana neste contexto (Andreas & Nadelmann, 2006, p. 20).
A partir do governo de Harry Truman, em 1945, a política externa estadunidense passa a se mobilizar de forma crescentemente agressiva em relação à ameaça comunista, procurando cada vez mais obter influência global (Westad, 2017, p. 101). O ramo do policiamento internacional, especialmente no contexto da Interpol, permite observar a mudança de noções de superioridade ocidental, previamente centradas na Europa, para maior foco no papel dos Estados Unidos, de forma que a participação estadunidense foi comemorada pelas publicações oficiais da organização. Um artigo do periódico da instituição, em 1946, aponta os EUA como estando “à frente da civilização ocidental”, fundamentando ademais a interpretação de existência de compromisso político no cerne da organização, e noções de certa superioridade ocidental entre seus membros:
Toutefois, sa position comme organisme d’une renommée mondiale ne pouvait être consacrée que si elle recueillait l’adhésion des grands Etats du continent américain. L’ Amérique qui, il n’y a pas tant d’années, ouvrait les bras à la
civilisation occidentale, est aujourd’hui à son avant-garde. Ses terres immenses, ses ressources gigantesques en ont fait un des centres d’équilibre de la vie du monde (Ducloux, 1946, p. 3).
A participação do FBI na Interpol, até o ano de 1951, permite aprofundar as dinâmicas do crescente interesse do governo dos EUA na organização, que visava exportar as práticas do law enforcement, fato que explica a presença cada vez mais constante de delegados americanos nos mecanismos oficiais da Interpol. Esse movimento é exemplificado pela eleição do diretor do FBI, J. Edgar Hoover, como vice-presidente da organização em 1947, fato amplamente celebrado pelos agentes europeus ocidentais presentes. O receio sentido por oficiais americanos de que a Interpol se tornaria um “bloco de influência pernicioso” se a União Soviética ganhasse mais protagonismo no continente europeu, impulsionou uma maior participação dos EUA (Deflem, 2002, p. 202). Ao considerar este fato, pode-se apontar que a entrada americana na organização refletiu o desejo de manutenção do controle das instituições internacionais por parte do bloco da Europa ocidental e dos Estados Unidos.
A participação de oficiais representantes de países do leste europeu, parte do bloco comunista, comentada por Lourenço, causou, posteriormente, maiores discórdias com oficiais estadunidentes e europeus ocidentais. A presença de países ligados à União Soviética aquando do restabelecimento da organização, como a Bulgária, a Iugoslávia e a Tchecoslováquia, e a posterior adesão da Polônia em 1949, deu a impressão a membros ocidentais de que estes países serviam de intérpretes ou observadores da potência comunista. Convidados por terem participado na CICP antes do início da Segunda Guerra, estes membros europeus passaram a ser vistos com outros olhos neste novo momento. Durante a Assembleia Geral de 1948, realizada em Praga, não foi possível identificar a presença de delegação estadunidense.
A maior disparidade entre blocos no interior da Interpol ocorreu em 1950, quando opositores do regime comunista na Tchecoslováquia sequestraram um avião e exigiram que este aterrissasse numa base militar americana na Alemanha Ocidental. O governo tcheco solicitou a emissão de mandados de busca e troca de informações relativas a este crime ao secretariado da Interpol, que os aprovou e distribuiu aos seus outros membros. Hoover se opôs a este envolvimento, alegando que o ocorrido foi um crime com conotações políticas claras e, em protesto, retirou o FBI da Interpol (Stalcup, 2013, p. 246). Após este evento, as nações do bloco comunista ainda apareceram na lista de participantes da organização, mas não compareciam às assembleias gerais, e todas saem até o ano de 1954.
O criminólogo Cyrille Fijnaut (1997, p. 125) argumenta que o problema da saída do FBI neste contexto demonstra que, num momento de tensões políticas em seu interior, a Interpol foi incitada a permanecer ao lado do Ocidente contra possíveis influências comunistas. Devido a esta ter optado por uma posição de neutralidade neste contexto, os membros americanos perceberam que não conseguiriam ter a influência que gostariam no seu funcionamento. Após o afastamento do FBI, membros da Interpol lamentam diversas vezes a sua saída, interpretada como uma lacuna no sistema de policiamento mundial. Mesmo em um contexto de adesão de múltiplas nações a organização, que se afastava de sua caracterização como uma instituição majoritariamente europeia e que, por influência dos movimentos decoloniais vigentes, passou a contar com a crescente participação de países da América Latina, Ásia e África ao longo da segunda metade do século XX, a importância dos Estados Unidos continuou a ser ressaltada:
Bien que le nombre des Etats adhérents se soit encore accru dernièrement, nous n’en avons pas moins éprouvé un regret particulièrement vif de voir le Bureau Fédéral d’Investigations de Washington se détacher de nous sans préavis, en 1950, et créer ainsi une importante lacune dans le dispositif mondial. (...) nous voulons croire que la décision de notre collègue M. Hoover ne sera pas irrévocable (Lowage, 1951, p. 224).
O claro senso de importância dado à presença dos EUA em uma instituição internacional ilustra a infiltração de noções de compromissos políticos, sustentados a nível individual por seus membros em meio à linguagem oficial da organização. Ao observar as intervenções dos participantes da Interpol em relação a certos países-membros, pode-se apontar a permanência de noções políticas em seu funcionamento. O discurso notado que exalta a participação estadunidense não ocorre em relação a nenhuma outra delegação durante o período observado.
A possibilidade de adesão da URSS à Interpol tem sido alvo de constantes questionamentos pela bibliografia dedicada ao estudo da organização e oferece diferentes perspectivas para seu entendimento. Mathieu Deflem (2002) argumenta que a não participação deste Estado ocorreu devido à proximidade de suas forças policiais com os centros políticos do país. De acordo com o sociólogo, esta tese se sustenta ao mostrar que países anteriormente hostis no campo político durante a Segunda Guerra colaboraram sem consideráveis atritos na comissão, ao salientar a contínua presença e relação entre polícias francesas, inglesas, italianas e alemãs. A separação entre instituições policiais nacionais e seus respectivos governos demonstra, segundo sua tese, a capacidade de não influência política em seu funcionamento cotidiano.
Porém, ao observar a participação de membros ligados a governos autoritários, como Portugal e Espanha, pode-se considerar que não necessariamente todos os membros ativos da organização possuíam considerável afastamento de assuntos politicamente carregados. Deste modo, a exclusão e suspeita observada por oficiais pertencentes a apenas um lado do sistema político global, caracteriza a polarização no funcionamento da organização policial. O envolvimento espanhol na Interpol pode ser colocado em evidência com base no artigo de 1955 que define o que é um refugiado, apontando que republicanos espanhóis e vítimas de regimes fascistas possuem classificação oficial como refugiados:
Le terme de réfugié s’applique aux personnes - qu’elles aient ou non gardé leur nationalité d’origine - qui satisfont à l’une des conditions suivantes: [...] les victimes des régimes ci-après: [...] les régimes installés par les nationaux-socialistes ou par les fascistes et qui les ont contre les Nations Unies. [...] Les républicains espagnols, qu’ils jouissent ou non d’un statut international en tant que réfugiés (Goldenberg, 1955, p. 40).
Embora tenha assinalado a perseguição política aos republicanos espanhóis e seu estado consequente de deslocados de seu país natal, a Interpol continua a colaborar com membros espanhóis que possuem ligação com seu governo autoritário. Ainda que denuncie ditaduras que não cumprem a Declaração dos Direitos Humanos e possuem forças de polícia estreitamente conectadas com ações de vigilância política, a organização se mostra disposta a manter relações com países-membros relacionados com estas atuações quando estes se encontram aliados ao campo capitalista.
Deste modo, torna-se legítimo o questionamento da argumentação sustentada por Deflem. Ao retratar apenas as condições estruturais de instituições de polícia a nível nacional, este afirma que as circunstâncias que afetam órgãos de policiamento no Leste europeu e na União Soviética são estruturalmente similares às que influenciam a saída do FBI da Interpol (Deflem, 2002, p. 209). Esta interpretação não leva em consideração que a saída do FBI como membro da Interpol, e de Hoover como seu vice-presidente, não significou a quebra de laços do policiamento americano com a Interpol. Em seu lugar, o FBN passou a frequentar reuniões como observador até a aprovação formal de sua adesão como membro pelo congresso estadunidense, em 1958.
O FBN, independente da Interpol, atuava internacionalmente enviando seus agentes para territórios da Ásia, Europa e Oriente Médio para cumprir interesses estadunidenses relativos ao desmantelamento do fluxo transfronteiriço de narcóticos. Ao abrir escritórios em Roma e Beirute, em 1951, é comprovado que esta agência não é estritamente nacional, mas é também utilizada com propósito de internacionalização de ideais americanos relativos ao combate contra o tráfico de estupefacientes em múltiplos continentes (Andreas & Nadelmann, 2006, p. 129). A atuação entre nações executada pelo Bureau se enquadrava no novo plano de fundo político protagonizado pelos Estados Unidos - o crescente universalismo da Guerra Fria aumentou o interesse de oficiais americanos em áreas previamente não consideradas (Westad, 2017, p. 128). Sua atuação e influência em outros países se mostra por vezes questionada por governantes de suas desejadas áreas de influência, devido à falta de legitimidade legal de suas atividades. Neste contexto explica-se a ligação de oficiais do FBN com a Interpol: a participação na organização foi utilizada como meio de legitimar a influência americana no exterior. De acordo com um agente representante dos EUA envolvido em assuntos de criminalidade internacional a partir da década de 1950,
Operational agents from the Bureau of Narcotics abroad could claim and did claim to be Interpol agents to give their work a veneer of legitimacy. We didn’t give a goddamn about Interpol early on. We wanted Interpol to legitimize our police operations overseas as we were the only country in the world that sends cops abroad operationally (Andreas & Nadelmann, 2006, p. 129).
Deste modo, fica claro o contínuo envolvimento de interesses políticos nacionais no interior da Interpol. Não foram observadas manifestações negativas em relação à atuação do Bureau de narcóticos na literatura oficial da organização, onde a participação constante de policiais estadunidenses é frequentemente exaltada. Ao comparar este relacionamento com a presença e eventual saída de países-membros ligados a governos comunistas é notável inferir que, com frequência, durante as primeiras décadas da Guerra Fria, a Interpol priorizava a adesão de membros voltados para o bloco capitalista e ligados ao Ocidente.
Um dos exemplos deste fenômeno foi a participação da Alemanha que ilustra, além disso, o nível de influência da bipolarização do sistema político global no funcionamento daquela organização. Em 1948, assinalou-se a entrada da zona franco-alemã e, a partir do ano seguinte, da britânica e americana. Após a consolidação da Alemanha Ocidental como nação, esta passou a participar na organização como única nação alemã. Devido à prioridade concedida por seus membros à adesão de nações aliadas ao bloco capitalista, não foi comentada a possibilidade de participação de forças policiais oriundas da Alemanha Oriental.
Em 1954, o artigo publicado no periódico da Interpol fundamentava esta interpretação: descrevia o tratado que estabeleceu a formação de uma Comunidade Europeia de Defesa (CED) entre nações ocidentais, que englobava não somente ligações mais estreitas de policiamento entre fronteiras da Alemanha Ocidental, Bélgica, França, Luxemburgo, Itália e Países Baixos, mas também conectava as forças armadas destes países, reforçando a unidade no bloco capitalista:
Il est convenu que, dis l’entrée de traité, les Etats-membres transfèrent à la C.E.D. leur pouvoir de répression des infractions pénales qui pourraient être commises par les membres des forces européennes. La répression de ces infractions pénales sera assurée par une législation pénale commune établie dans le respect des règles constitutionnelles propres à chaque Etat-membre (Goldenberg, 1954, p. 46).
Ao detalhar resoluções voltadas para a cooperação militar da comunidade, o artigo afasta-se do campo policial, chamando a atenção para a constância de dicotomia entre nações representadas na Interpol e a representação extensa de realizações do polo ocidental em detrimento de outro lado do sistema internacional: “Le traité comporte un protocole relatif au droit pénal militaire. En effet, les Etats-membres, considérant l’importance essentielle d’une répression uniforme des infractions pénales dans le cadre des forces de la C.E.D., sont tombés d’accord sur la nécessité d’établir dès que possible une législation pénale militaire commune“ (Goldenberg, 1954, p. 47).
O desempenho da Interpol mediante a situação de bipolarização global demonstra, além de tendências antigas de alinhamento ao Ocidente e valorização de políticas europeias observadas desde sua formação, o nível de influência ideológica de seus membros perante resoluções oficiais aprovadas.
Terrorismo: uma nova questão
O estudo da formação e comportamento da Interpol é importante para compreender seu uso político durante a Guerra Fria. A questão do combate ao terrorismo por meio da sua atuação se mostrou notavelmente polêmica até inícios da década de 1970. A partir deste momento ocorre um crescente envolvimento institucional na sua atuação contra terroristas, um aspecto que pode ser utilizado para fundamentar a argumentação sustentada neste trabalho. A mudança na interpretação deste crime por participantes da Interpol ilustra o ápice de influências de interesses estatais em uma organização internacional no período observado. Embora se afaste do recorte temporal especificado, que se foca nos primeiros anos da Guerra Fria, os desdobramentos de ações desta organização nas décadas seguintes tornam possível a compreensão mais profunda do nível de influência política do bloco capitalista até o final do século XX.
A reformulação e aprovação dos novos estatutos e do regulamento interno em 1956, oficializou a preocupação sentida por seus membros em relação ao envolvimento da Interpol com delitos ideologicamente motivados. Seu terceiro artigo confirmou a proibição de toda atividade ou intervenção em assuntos não relativos a crimes derivados do direito comum: “Toute activité ou intervention dans des questions ou affaires présentant un caractère politique, militaire, religieux ou racial sont rigoureusement interdites à l’Organisation”.4
Embora os oficiais com envolvimento em policiamento político em seus países de origem estejam presentes na Interpol, e a organização se mostre por vezes comprometida por noções de superioridade de participação de membros ocidentais, como observado em seu periódico, não se verifica, entre 1946 a 1958, um envolvimento claro na repressão de crimes com motivações políticas, provenientes de qualquer um dos grandes blocos de influência.
A partir de 1966, ocorreram crescentes pressões de delegados para tornar a Interpol ativa num papel contraterrorista, mas o compromisso de manutenção do combate a criminalidade comum e a adequação ao artigo terceiro dos estatutos foram salientados pelo presidente para justificar o não envolvimento com estes delitos (Barnett & Coleman, 2005, p. 610). O comitê executivo da organização apresentou dúvidas relativas à mudança operacional reivindicada por seus membros: um maior compromisso com o antiterrorismo na Interpol caracterizaria o afastamento de seus estatutos oficiais. O secretário geral Jean Nepote afirmava que, ao permitir uma afirmação de compromisso com o antiterrorismo, a Interpol ameaçaria seu empenho com a imparcialidade e dividiria seus membros participantes. Mesmo com indagações de certos membros, incluindo o presidente e secretário geral da organização, a pressão externa de potências como os EUA provocou uma mudança relativa ao envolvimento político da Interpol, especialmente a partir da década de 1980. Considerada como momento de efetivação concreta de tomada de controle americano no policiamento internacional, após infiltração constante de ideais estadunidenses de repressão ao crime desde os anos 1960, a maior preocupação com atividades terroristas na Interpol pode ser considerada como diretamente conectada com o papel de liderança global desta potência (Andreas & Nadelmann, 2006, p. 6).
A eleição presidencial de 1984, nos EUA, pode ser vista como justificativa principal para esta consequente mudança brusca no comportamento da Interpol como organização internacional, nas últimas décadas do século: John Simpson, o primeiro presidente estadunidense da organização, é eleito diretor do Serviço Secreto dos Estados Unidos (Andreas & Nadelmann, 2006, p. 141). Coincidentemente, no mesmo ano, é observada uma mudança no terceiro artigo dos estatutos que proibia o envolvimento da organização em crimes com conotação política. A partir deste momento, qualquer ato politicamente violento que não se enquadre em determinada “área de conflito” não seria interpretado como político, permitindo, por outro lado, sua atuação em atos de terrorismo estrangeiro em territórios norte-americanos e europeus ocidentais (Stalcup, 2013, p. 246). Estas mudanças institucionais no funcionamento da Interpol permitem entender a utilização da organização para interesses políticos de grandes potências e o afastamento de ideais de neutralidade e de cooperação internacional igualitária entre países-membros.
Deste modo, é notável que, por toda a sua história ao longo do século XX, a Interpol comprove o potencial observado de politização do trabalho policial por meio de influências externas. Ao considerar o exemplo de sua nazificação, Deflem (2005) aponta a vulnerabilidade da organização para posteriores atuações políticas em seu interior, o que se confirma posteriormente ao analisar o momento da Guerra Fria. A ideia de que sua postura como organização internacional de policiamento deve ocorrer considerando fatores diplomáticos, políticos e legais, para se situar como instituição neutra perante eventos contemporâneos das relações internacionais (Fooner, 1973, p. 59), se mostra verídica ao observar o comportamento da Interpol na segunda metade do século. A preocupação apontada com a manutenção de ilusão de valores de não-envolvimento político entre a década de 1940 e início de 1960 demonstra que, embora não condizente com a realidade de suas atuações, era necessário reafirmar a isenção política em seu interior durante o período de maiores tensões entre potências globais.
Com o progressivo enfraquecimento das tensões da Guerra Fria, especialmente a partir da década de 1980, observa-se uma crescente influência política nos processos decisórios da Interpol, predominantemente orientada por interesses ocidentais, particularmente dos Estados Unidos e da Europa, evidenciando o predomínio de um direcionamento ideológico alinhado ao bloco capitalista. A maior presença dos EUA em lugares de topo na organização confirma a tendência observada a partir de 1947, quando Hoover foi eleito vice-presidente, e demonstra a consolidação do papel norte-americano como líder, e consequente preponderância deste país em assuntos de policiamento internacional. A importância deste período histórico consiste na alteração do propósito do policiamento internacional. A interpretação das mudanças na configuração internacional a partir de 1945 torna clara a redefinição de organizações internacionais desse momento. Devido à crescente associação de projetos internacionalistas com o poder norte-americano, é possível observar uma utilização de mecanismos da Interpol para obtenção de seus interesses nacionais em fins do século XX e especialmente após o início do século XXI.
O ataque terrorista ocorrido em 11 de setembro de 2001, embora seja consideravelmente afastado do recorte temporal deste trabalho, pode ser utilizado para apontar o auge da participação ocidental em atuações voltadas para a obtenção de ganho político por seus países-membros. Esta tendência, que se intensificou progressivamente a partir de sua retomada em 1946, ilustra conexões com as primeiras atuações voltadas para o policiamento político desde o século XIX. Neste momento, a Interpol reforçou seu compromisso antiterrorista afirmado nos anos 1980. Sua atuação, voltada para o compartilhamento de inteligência relativa a ataques com origem política passa a constituir uma das ações principais desta organização (Barnett & Coleman, 2005, p. 613).
A crescente influência americana na Interpol e sua linha de atuação, voltada para ideais ocidentais e capitalistas, pode ser caracterizada como proveniente de direcionamentos históricos anteriores, que ganham força a partir de tendências de bipolarização mundial e conflitos politicamente derivados no pós-guerra. O compromisso afirmado pela Interpol em seus discursos oficiais de afastamento de ideais políticos, neutralidade e papel internacional que engloba seus países-membros de modo igualitário, se mostrou afastado das ações protagonizadas pela organização, caracterizando o envolvimento ideológico por parte de seus participantes e realizações institucionais.
Conclusão
Ao tomar como exemplo o caso da Interpol face ao evento histórico bipolarizante a nível global da Guerra Fria, este artigo debruçou-se sobre a questão do envolvimento político em uma estrutura de policiamento voltada para uma ação supostamente apolítica e internacional. Ao analisar a influência de motivações e ideologias pessoais sustentadas por seus membros e objetivos de interferência de potências nacionais em sua atuação, pode-se concluir que esta organização não se manteve uma força neutra de vigilância entre fronteiras. A breve revisão de discursos sustentados pelo periódico feito por e para policiais participantes, a International Criminal Police Review, permitiu a identificação de seus membros ocidentais como estando voltados para objetivos políticos. A manutenção da ordem e estrutura do bloco capitalista se mostra uma constante e pode ser considerada como uma das razões para a eventual saída de todos os oficiais ligados à Europa Oriental, vista como uma “cortina de ferro”. A visão de que estes agentes seriam espiões ligados às forças da União Soviética demonstra a bipolarização política existente dentro da Interpol, nos seus primeiros anos de restauração e, após a década de 1950, a estruturação de uma organização cada vez mais voltada para os interesses ocidentais.
Como observado acima, a temática do policiamento internacional e seus desdobramentos, em específico a história da Interpol, primeira organização internacional de policiamento, ainda possui uma bibliografia em construção e oferece amplo espaço para novos desenvolvimentos e investigações.














