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New Trends in Qualitative Research

versão On-line ISSN 2184-7770

NTQR vol.19  Oliveira de Azeméis mar. 2024  Epub 15-Fev-2024

https://doi.org/10.36367/ntqr.19.2023.e916 

Artigos Originais

Vulnerabilidade e Vulneração de Crianças no Contexto da Pandemia do Covid-19: Análise de Mídia

Vulnerability and Vulneration of Children in the Context of the Covid-19 Pandemic: Media Analysis

Isabella Regina Gomez de Queiroz1 

Milena Silva Lisboa2 
http://orcid.org/0000-0003-0303-9173

Yasmen Guanaes Farias1 

Pedro Ian Andrade1 

Vitor Mateus Lantyer2 
http://orcid.org/0000-0002-9260-2900

1 Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, Brasil

2 Espaço Moebius de Psicanálise, Brasil


Resumo

Durante a pandemia do COVID-19, mudanças ocorreram em diversos campos, fazendo-se importante conhecer os contextos de risco social e psíquico que marcam condições de vulnerabilidade e vulneração, vividas por crianças e bebês, a despeito de crianças: refugiadas, residentes em favela e crianças vítimas de violência intrafamiliar. Objetivo: Conhecer possíveis riscos à saúde mental de crianças, em situação de vulnerabilidade, no período da pandemia de Covid-19, na realidade brasileira. Método: Estudo de mídia, com vistas à análise do contexto sociopolítico, favorecendo a visão crítica de leituras de mundo distintas, fundamental para compreensão do objeto pretendido. Resultado: A partir dos dados levantados, estruturou-se categorias específicas à cada grupo estudado, a saber: 1) crianças refugiadas: precariedade do abrigo; dimensão legal; perdas e lutos; e xenofobia. 2) crianças residentes periféricas: perdas e lutos; violência à criança; acesso à saúde; e fome. 3) violência intrafamiliar: direitos da criança em situação de violência; violência doméstica na pandemia e meios extradomiciliares que amparam a criança. Os resultados obtidos em cada um dos objetivos específicos, denunciam especificidades de cada um dos grupos: as crianças refugiadas, além de perderem direitos vivenciam perda da sua origem, dificultando o endereçamento do seu sofrimento a um “outro”. As crianças residentes em periferias, além de serem afetadas pela pandemia, sofreram efeitos da necropolitica, advinda da herança colonial. Crianças vítimas de violência intrafamiliar enfrentaram agravos decorrentes do isolamento social e adoecimnto psíquico dos cuidadores. Considera-se, por fim que sem a denúncia necessária, os riscos de esquecimento de tão grave problemática pode se fazer efetivar e os recursos necessários ao cuidado não se fazerem urgentes. A análise da mídia favoreceu lidar com uma lacuna no campo científico, possibilitando a criação de reflexões da condição de vulneração de populações invisibilizadas.

Palavras chave: Pesquisa qualitativa; Análise de mídia; COVID-19.

Abstract

During the COVID-19 pandemic, changes occurred in several fields, making it important to know the contexts of social and psychic risk that mark conditions of vulnerability and vulnerability, experienced by children and babies, despite children: refugees, residents in favelas and children’s victims of domestic violence. Objective: To know possible risks to the mental health of children, in a situation of vulnerability, in the period of the Covid-19 pandemic, in the Brazilian reality. Method: Media study, with a view to analyzing the sociopolitical context, favoring a critical view of different world readings, fundamental for understanding the intended object. Result: From the collected data, specific categories were structured for each group studied, namely: 1) refugee children: precariousness of the shelter; legal dimension; losses and mourning; and xenophobia. 2) children living in peripheral areas: losses and bereavements; child violence; access to health; and hunger. 3) domestic violence: rights of children in situations of violence; domestic violence in the pandemic and extra-domiciliary means that support the child. The results obtained in each of the specific objectives, denounce specificities of each of the groups: refugee children, in addition to losing rights, experience the loss of their origin, making it difficult to address their suffering to an “other”. Children residing in peripheries, in addition to being affected by the pandemic, suffered the effects of necropolitics, arising from the colonial heritage. Children victims of intrafamily violence faced injuries resulting from social isolation and mental illness of caregivers. Finally, it is considered that without the necessary denouncement, the risks of forgetting such a serious problem can become effective and the resources necessary for care do not become urgent. Media analysis favored dealing with a gap in the scientific field, enabling the creation of reflections on the vulnerable condition of invisible populations.

Keywords: Qualitative research; Media analysis; COVID-19.

1.Introdução

Durante a pandemia do COVID-19, inúmeras mudanças ocorreram, subitamente, nos diversos campos: saúde, social, político, educacional, cultural (quando a cultura digital ganhou força) e, por fim, na dimensão psíquica. Distintos quadros de adoecimento psíquico emergiram ou foram intensificados. A produção científica foi incrementada, mas os grupos historicamente invisibilizados, a despeito da realidade das crianças vulnerabilizadas e mesmo, em estado de vulneração, tais como as crianças refugiadas, crianças residentes nas periferias e crianças vítimas de violência intrafamiliar foram pouco estudadas. Negligenciadas em seus cuidados, seja pela vulneração dos seus cuidadores primários, seja pela inserção na dura realidade vivida nesses contextos, essas crianças padeceram de modo particular. Destaca-se importância dessa investigação dada a lacuna de conhecimento esses grupos, em condição de vulnerabilidades e, mais ainda, de vulneração, no contexto da pandemia, a despeito de crianças refugiadas, residentes em periferias e crianças vítimas de violência intrafamiliar.

Em decorrência da neotenia, o ser humano ao nascer já se encontra em situação de vulnerabilidade, necessitando de um próximo assegurador que garanta sua sobrevivência, sua inscrição na linguagem, promovendo-o à condição humana. Contudo, o bebê não é apenas passivo diante do seu cuidador primário; ele, também, constrói seus significados no corpo e na mente e, ao mesmo tempo, parentaliza seus pais (Lemos & Neves, 2019). Em relação ao seu lugar no grupo familiar, diante do processo de subjetivação, Lemos & Neves (2019, p. 73), consideram que “A complexa tarefa de subjetivar exige do sujeito um movimento constante de distanciamento e aproximação narcísica, no qual ele deverá assumir seu lugar no grupo, ao mesmo tempo em que (re)significa e singulariza seu lugar e sua herança”. Dada a magnitude da questão, conhecer os contextos de risco social e psíquico são de fundamental importância para denunciar quadros de vulnerabilidade e de vulneração (Sotero, 2011), vividos por crianças e bebês, com ênfase no contexto da pandemia de Covid-19, riscos para a saúde mental desses seres, ainda em formação.

Essa realidade tende a trazer desdobramentos por, pelo menos, uma década, urgindo o mapeamento de distintas situações, almejando a discussão de políticas de enfrentamento a essas realidades, destacadamente para crianças e bebês que vivenciaram várias perdas, em um tempo da vida em que o aparelho psíquico está, ainda, se constituindo (Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Infância, 2020). À época do início da pandemia do Covid-19, as investigações científicas em torno dessas temáticas estavam sendo tratados cientificamente à medida em que todas as mudanças em decorrência da pandemia estavam, simultaneamente, acontecendo. Assim, a dimensão e a complexidade de seus efeitos ainda estão se apresentando.

O volume de publicações em veículos de comunicação, nesse período, foi intenso, constituindo-se, como importante campo de estudo, não somente pela quantidade de informações, mas por partir de posicionamentos políticos e sociais distintos, atravessados pelas posições ideológicas adotadas. Através da análise de mídias pode-se abordar as construções sociais acerca de distintas dimensões da sociedade atual e sobre o passado histórico, a partir de diferentes tipos de documentos de comunicação de massa, tais como jornais, documentários, revistas, filmes, programas de rádio e televisão, constituindo-se, portanto, como importante fonte de dados para a pesquisa social (Gil, 2008).

Sendo passível de favorecer diálogos com outros campos de saber, a análise de mídia adotada, nos estudos desenvolvidos por três estudantes de psicologia em seus trabalhos de conclusão de curso, abriram espaços para discutir os dados coletados à luz da psicanálise refletindo sobre a condição de vulneração dos grupos de crianças historicamente invisibilizados. Para construção do campo investigativo foi criado, pelo orientador/pesquisador, um projeto guarda-chuva, intitulado “Vivências de vulnerabilidade infantil e pandemia de COVID-19: riscos ao psiquismo”, com o objetivo geral de “Conhecer possíveis riscos à saúde mental de bebês e crianças refugiadas, periféricas e vítimas de violência doméstica, em situação de vulnerabilidade no período da pandemia de Covid-19, na realidade brasileira.” Teve como objetivos específicos: “Conhecer como a condição de vulnerabilidade/vulneração (risco à saúde mental) da criança refugiada está sendo tratada em veículos de informação de imprensa no contexto da pandemia do COVID-19”; “Conhecer o que está publicado na mídia de grande circulação a respeito dos possíveis riscos à saúde mental de crianças residentes em periferias, no contexto da COVID-19”; “Conhecer o que está sendo veiculado nas mídias digitais acerca da situação de violência intrafamiliar contra crianças no contexto da pandemia do Covid-19, com possíveis desdobramentos ao psiquismo infantil”. Cada objetivo específico correspondeu a planos de trabalhos individuais de trabalhadores distintos.

2.Revisão de Literatura

Em 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que o mundo vivia uma pandemia decorrente do coronavírus, agente responsável pela Covid-19 (Ônibus, Alcazar & Galvão, 2020). Para mitigá-la, adotou-se medidas sanitárias, incluindo distanciamento e isolamento sociais.

Desde o início, a pandemia apresentou-se como desafio à saúde mental de crianças, podendo incrementar taxas de transtornos mentais, em virtude de medos e inseguranças decorrentes do isolamento físico e social. Verificou-se, ainda, alterações no psiquismo infantil fruto de estresse psicológico, ansiedade, medo e preocupação acarretando adversidades funcionais e comportamentais nas crianças (Mata, Dias, Saldanha & Picanço, 2020). Situações de incerteza e perdas causadas pela COVID-19 podem provocar sentimentos de raiva, medo da doença e ansiedade pela perda do vínculo com as pessoas, em razão de distanciamento, adoecimento ou morte (Panksepp, 1998 como citado por Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Infância, 2020, p.15).

A pandemia escancarou seus efeitos em grupos vulnerabilizados, atingindo, mais intensamente, países mais pobres e/ou instáveis política e socialmente.

A saúde mental das crianças refugiadas apresenta-se afetada, com presença de episódios recorrentes de ansiedade, depressão, excesso de preocupação, insônia entre outros (Fiocruz, 2020). Nessas situações, deve-se considerar, não só a ameaça da própria pandemia, como, também, as vulnerabilidades relacionadas ao processo imigratório (Fiocruz, 2020).

O estrangeiro carrega marcas da sua história de vida, sendo feita uma construção simbólica singular que, ao longo da vida, o amparou, sendo uma razão para existir no mundo (Silva, Vieira & Oliveira, 2016). Porém, o refúgio desconstrói esse discurso e o lugar de sentido, podendo para alguns ser uma experiência traumática, sendo considerada como uma aniquilação de si mesmo e da subjetividade (Silva, Vieira & Oliveira, 2016). Esse desamparo e vulnerabilidade trazem consigo consequências que são perigosas, como: relações abusivas, trabalho escravo, tráfico de pessoas, abusos sexuais, violências físicas e morais, xenofobia e preconceitos (Silva, Vieira & Oliveira, 2016). O processo de identificação apresenta-se como um ponto complexo, uma vez que elas precisam reconstruir o simbólico singular que as amparam como forma de se constituírem enquanto um sujeito. Crianças em situação de refúgio, não puderam contar com os cuidados referentes às medidas sanitárias, além de sofrerem os efeitos da amplificação do não cumprimento dos direitos previstos em lei.

Em outro ponto, crianças residentes em favela constituíram-se uma parte frágil de todo o período pandémico. Para Almeida (2021), compreender as situações de vulnerabilidade nas favelas brasileiras durante a pandemia, demanda tomar como ponto de partida a concepção do racismo em sua dinâmica estrutural. Essa prática de desumanização é dada a partir da lógica colonial que se materializa nos países da periferia do capitalismo, como aponta Almeida (2021). O contexto de violência presente nas periferias brasileiras expõe o que o filósofo Mbembe (2018) chama de necropolítica, um poder que opera em uma capacidade de ditar quem deve viver ou morrer. No tocante à realidade das favelas durante a pandemia, como constatado pela Fiocruz a partir de novos monitoramentos, evidenciou que as comunidades mais pobres do Rio de Janeiro estão sendo as mais afetadas pela pandemia devido à falta de uma infraestrutura adequada. Em São Paulo nota-se o mesmo agravante: como aponta a pesquisa do epidemiologista Paulo Lotufo da USP, a letalidade do novo coronavírus é 60% maior em bairros mais pobres. Consoante a isso, a população negra é uma das que mais vive na extrema pobreza, além da situação de trabalho informal, que marcava 47,3% dessa população antes da pandemia, segundo dados do IBGE (2019, como citado em Santos et al. 2020). Destaca-se, ainda, as mortes decorrentes de violências e conflitos entre o tráfico e a polícia, as perdas decorrentes das complicações do novo coronavírus também estiveram presentes de forma expressiva nas periferias (Christoffel et al., 2020). A indigência precariza a vida humana, afetando a saúde mental (Silva & Santana, 2012), destacadamente quando ainda está se constituindo psiquicamente. A violência que acomete crianças no Brasil é tão variada quanto suas vítimas. De acordo com Azevedo e Guerra (2015), pode-se encontrar no Brasil o seguinte cenário de “infâncias”: a) a infância pobre - vítima da violência social; b) a infância explorada - vítima da violência no trabalho; c) a infância torturada - vítima da violência institucional; d) a infância fracassada - vítima da violência escolar; e) a infância vitimizada - vítima da violência doméstica e com a qual será feito recorte para sua maior discussão e aprofundamento no tópico subsequente a este.

A violência doméstica pode ser um fato social de difícil constatação na medida em que ocorre entre quatro paredes daquilo que é denominado de lar. Com a pandemia, as medidas de confinamento tornaram a realidade da criança susceptível à violência intrafamiliar, a uma condição de risco, agravada pelo fechamento das escolas, já que os professores são os que primeiro identificam as marcas da agressão sofrida. Vale ressaltar que os números de violência no Brasil, mesmo antes da pandemia, já eram alarmantes.

Em 2019, por exemplo, o Disque Direitos Humanos (Disque 100) revelou 159.063 denúncias de maus-tratos, tendo um aumento de 15% em relação ao ano de 2018. Dentro dessas denúncias, 86.837 eram de violências contra crianças e adolescentes, correspondendo à 55%. Destaca-se que o local de maior ocorrência dos crimes era na casa da vítima (Platt et al, 2020).

3.Método

Utilizou-se o método qualitativo, exploratório, de análise documental, a partir de veículos de comunicação digital. A análise dos dados foi realizada a partir do método de análise de mídias e os dados coletados foram discutidos à luz da psicanálise. A metodologia qualitativa trabalha com a construção de significados, valores, atitudes, dando um enfoque a um aprofundamento das relações, aos fenômenos que traduzem uma realidade não passível de ser quantificada. Dessa forma, considera esses processos a partir de uma óptica das transformações dos sujeitos (Minayo, 2001). O estudo documental de fontes primárias, que não receberam algum tipo de tratamento analítico foi escolhido para o presente estudo, elegendo a coleta de dados a partir revistas e jornais de fácil circulação em formato digital, como: Veja, Carta

Capital, Folha de São Paulo e Estadão, que apresentam vieses ideológicos distintos com o intuito de estabelecer uma ampliação reflexiva em torno do objeto de estudo, a partir de uma contextualização histórica, social e cultural, coerentemente com Sá-Silva, Almeida & Guindani (2009). A análise documental permite uma observação acerca das dinâmicas de desenvolvimento de conhecimentos, comportamentos, práticas, tanto à nível individual, quanto grupal (Cellard, 2008, como citado em Sá-Silva, Almeida & Guindani, 2009).

Situados aquém de estudos científicos, que atendam à diversidade cultural, dado o cunho do saber eurocêntrico, essas realidades viram manchetes dos diferentes campos da mídia, sendo tratadas ideologicamente, segundo a concepção de cada veículo de comunicação. Esse se constitui um campo fértil de investigação, reflexão e coleta de dados, para a abordagem a uma realidade esquecida pelo meio científico. Assim, tendo em vista a atualidade do fenômeno pesquisado, com poucos materiais científicos publicados sobre os grupos estudados (crianças refugiadas, crianças de periferia, crianças de rua, crianças indígenas, crianças quilombolas, crianças com desenvolvimento atípico, no contexto da pandemia pelo Covid -19), o estudo de mídia, coerentemente com Thompson (2009), foi elencado como um dos aliados na investigação, por favorecer uma leitura crítica diante de leituras de mundo distintas, possibilitando análise de contexto sociopolítico.

A mídia caracteriza-se por ser meio de comunicação e propagação de informações e é uma importante aliada na construção discursiva da realidade social, aportando elementos ideológicos e posicionamentos que carregam leituras de mundo distintas. Constitui-se como arena discursiva em que posicionamentos diversos competem na construção da realidade social, apesar de ser compreendida como um veículo neutro de difusão de informações (Thompson, 2009).

Nesta seara, faz-se necessária uma reflexão sobre o poder da ideologia na formação de identidades através do discurso propagado pela mídia, a partir da difusão de perspectivas distintas, construídas como verdades, atravessadas por posicionamentos e leituras de mundo, com possíveis efeitos de manutenção de relações de dominação ou ampliação das lutas de resistência (Pimentel, 2008). Requer, assim, uma postura crítico-metodológica de seus discursos.

A convocação para esses posicionamentos torna-se importante para o fazer do profissional da psicologia, dada a sua vocação ao campo da saúde mental, permeado por esses elementos da realidade social e discursiva, promovendo uma ampliação do olhar para essas formas de viver, ao tempo em que o convoca a intervir em um campo, muitas vezes esquecido, carente de uma construção de um laço social que tome pessoas, invisibilizadas, como sujeitos e promova a uma ultrapassagem dos discursos impostos pela realidade que o vulnerabiliza.

A partir da leitura exaustiva, realizou-se a construção das categorias, buscando núcleos de sentidos, coerentemente com Minayo (2001). Para cada grupo de criança estudado, estabeleceu-se critérios baseados em termos de busca compatíveis com cada um dos contextos estudados. O critério de inclusão se tratou da seleção de notícias que abordem aspectos biopsicossociais que possibilitem a reflexão sobre os riscos à saúde mental das crianças refugiadas, residentes em favela e vítimas de violência doméstica e familiar.

4.Resultados

Em relação ao estudo das crianças refugiadas, notou-se que as temáticas são comuns, existindo uma diferença, apenas, em como elas são abordadas. É perceptível que na Folha de São Paulo, Estadão e Carta Capital as notícias são bem elaboradas, existindo um detalhamento maior das situações ocorridas. No entanto, na revista Veja as notícias são objetivas e pouco detalhadas. Ainda assim, percebe-se que algumas notícias que eram semelhantes, abordavam conteúdos que se complementavam, enriquecendo as informações obtidas. Embora os veículos estudados sejam nacionais, a maioria das notícias sobre o tema investigado reportaram-se ao cenário internacional, existindo uma maioria de notícias sobre o continente europeu e, mais especificamente, da Grécia. Verificou-se um menor número de notícias sobre o continente americano. A realidade do refúgio, no Brasil, foi pouco abordada. Na maioria das notícias as crianças são abordadas e mencionadas de maneira sucinta como parte da população refugiada, existindo, apenas, sete notícias que buscam focar na realidade das crianças refugiadas. Mesmo assim, não se percebe nas narrativas uma preocupação com a saúde mental das crianças, sendo isso mencionado de forma breve em apenas uma das notícias. Após a leitura dessas reportagens, nota-se que é possível relacionar as vivências da população refugiada, incluindo as crianças, com o material encontrado na literatura. A partir dos dados levantados, foram estruturadas as seguintes categorias em relação às crianças refugiadas:

1) precariedade do abrigo;

2) dimensão legal;

3) perdas e lutos; e

4) xenofobia.

Analisando as categorias, percebeu-se que as crianças refugiadas se encontram em condição de vulneração, em um frequente desamparo, uma vez que saem do seu país de origem em razão da violência e revivem esse mesmo cenário onde buscam asilo, sendo expulsas e rejeitadas. Esse desamparo é matriz das situações de trauma e faz com que a criança se depare com sua impotência, se encontrando em uma situação de assujeitamento. A partir disso, não há uma garantia de bem-estar para essas crianças que precisam construir um laço social como forma de ter uma identificação e elaboração das perdas. Dentre essas perdas tem-se: a da cultura, do idioma, da família, da moradia, da escola e do alimento. Destacam-se dois elementos que podem contribuir para o estabelecimento de um luto complicado nesse grupo de crianças: em primeiro, o fato de não estar inscrita no laço social, não tendo uma rede de apoio (escola ou comunidade) para ajudá-la na elaboração; a precarização ou ausência do suporte da família que afetada pelo sofrimento ou, afastada da criança. A dificuldade de fazer o endereçamento do seu sofrimento a quem de fato possa escutá-la, mediante as diferenças culturais, estando, assim, em uma dinâmica de privação relacionada à linguagem - constitutiva do psiquismo - tornando difícil o processo de identificação. Dessa forma, a criança refugiada encontra-se afetada pelo contexto em que vive na pandemia, se identificando possíveis riscos ao seu psiquismo.

O estudo a respeito de como as crianças residentes em periferias, as categorias elencadas foram:

1) perdas e lutos;

2) violência à criança;

3) acesso à saúde; e

4)fome.

A pesquisa revelou a exposição ao desamparo da criança residente em favela, atravessado por lutos não elaborados, situações potencialmente traumáticas, pelo racismo e pela necropolítica presentes no território brasileiro. As crianças vivenciaram as situações de pandemia e a violência urbana presente em seu contexto, demonstrou riscos presentes em sua realidade social, assim como uma maior vulnerabilidade para a saúde mental. Foi possível averiguar que há uma precariedade de discussão sobre esta realidade na mídia popular. Na maior parte das manchetes, essas crianças não possuíam um destaque. Situações como o aumento da orfandade na pandemia e a elevada mortalidade de crianças pela Covid-19 durantes as primeiras ondas foram pouco discutidas. Mesmo esta situação sendo alvo de debates para a construção de políticas públicas entre estados da região do nordeste brasileiro. A divergência entre os posicionamentos ideológicos das revistas e jornais apurados se torna mais evidente a partir das discussões acerca das intervenções policiais nas periferias.

A Carta Capital e a Folha de São Paulo apresentam posicionamentos contrários a essas atuações, enquanto a Revista Veja e o Estadão, ora sustenta uma posição de neutralidade, ora se contradizem em defesa dessas intervenções. Os temas que ganharam um maior destaque, tratou da volta da fome e os efeitos das intervenções policiais, durante a pandemia, destacando seus desdobramentos na vida de crianças residentes em periferia - a perda de familiares, restrições da sociabilidade, cenário de violência extrema exposta nas ruas.

Os corpos periféricos são posicionados à margem, desprivilegiados economicamente, destituídos de valor no laço social. A abordagem da Revista Carta Capital foi mais crítica, trazendo à tona questões relativas ao desdobramento das políticas adotadas pelo governo Bolsonaro, destacando a insegurança alimentar e o racismo. O Jornal Estadão, colocou-se na posição de descrever os fatos, sem maiores reflexões.

Com relação à violência intrafamiliar, organizaram-se três categorias:

1) direitos da criança em situação de violência;

2) violência doméstica na pandemia e

3) meios extra-domiciliares que amparam a criança.

Pode-se observar que o sofrimento do infante ainda é desestimado, refletindo como o direito da criança é percebido e tratado socialmente. Pode-se, também, perceber a insuficiência do ECA para tutela dos direitos da criança na pandemia, bem como o surgimento de outros diplomas legais afim de atenuar os casos de violência contra a criança. A pesquisa demonstrou que a violência doméstica contra crianças ocorre independentemente de marcadores de classe, cor, religião e escolaridade e que, no que compete à violência sexual, a ambivalência de sentimentos no ego fragilizado de uma criança vítima desse tipo de violência interfere em seu processo edípico, na sua estruturação enquanto sujeito e na sua autoimagem. Os dados confirmam que o fechamento das escolas durante a pandemia contribuiu para subnotificações de violência doméstica contra a criança, na medida em que a instituição escolar representa o local de maior segurança para o menor realizar denúncias.

A existência de subnotificações reforça a importância da exposição e do debate deste tema, o que não pôde ser percebido pelas mídias digitais de maneira geral. Isso reflete o quanto o sofrimento e o direito do infante ainda são desestimados socialmente. Os resultados que foram obtidos em cada um dos objetivos traçados trazem contribuições de extrema relevância para a comunidade científica. Todo esse cenário segue pouco estudado. Os achados em relação a cada um dos objetivos traçados denunciam especificidades de cada um dos grupos. As crianças refugiadas, além de perderem seus direitos vivenciam a perda da sua origem, dificultando o endereçamento dos do seu sofrimento a um “outro”. As crianças residentes em periferias, além de serem afetadas pela pandemia, sofreram os efeitos da necropolítica, advinda da herança colonial. Com relação às crianças vítimas de violência intrafamiliar, verificou-se o agravo da situação em decorrência do isolamento social e ao agravo da saúde mental das figuras de cuidado.

5.Considerações Finais

Sem a denúncia necessária, os riscos de esquecimento de tão grave problemática pode se fazer efetivar e os recursos necessários ao cuidado não se fazerem fundamentais, tal como requer essa situação. Faz-se urgente a prática em rede de intervenção transdisciplinar e interinstitucional de diferentes instituições, além da importância do surgimento de uma contraideologia sobre a criança, reconhecendo sua especificidade, enquanto ser em condição peculiar de desenvolvimento, titular do direito à proteção e com prioridade de tratamento. Reitera-se a necessidade do desenvolvimento de mais estudos acerca do que ocorreu nesse período pandêmico e quais medidas foram adotadas para tutela do bem-estar-social da criança brasileira.

Diante disso, destaca-se a importância do método de análise da mídia que viabilizou o tratamento à lacuna no campo científico, possibilitando a criação de reflexões da condição de vulneração de populações invisibilizadas e na construção de uma pesquisa qualitativa. Considera-se, por fim que sem a denúncia necessária, os riscos de esquecimento de tão grave problemática pode se fazer efetivar e os recursos necessários ao cuidado não se fazerem urgentes. A análise da mídia favoreceu lidar com uma lacuna no campo científico, possibilitando a criação de reflexões da condição de vulneração de populações invisibilizadas e na construção de uma pesquisa qualitativa.

6.Referências

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Recebido: 30 de Março de 2023; Aceito: 30 de Setembro de 2023

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