SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.19Inteligencia Competitiva, Emprendimiento y Pequeña Empresa: Una Revisión BibliográficaCo-Creación de Valor Según Líderes, Usuarios y Gestores Públicos en el Sector Cultural índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


New Trends in Qualitative Research

versão On-line ISSN 2184-7770

NTQR vol.19  Oliveira de Azeméis mar. 2024  Epub 15-Fev-2024

https://doi.org/10.36367/ntqr.19.2023.e908 

Artigos Originais

Trabalho em Equipe e Prática Colaborativa: Percepções dos Colaboradores no Projeto E-vara do Tribunal Regional Federal da 3ª. Região

Teamwork And Collaborative Practice: Perceptions Of Collaborators In The Regional Federal Court Of The 3rd. Region´S Project E-Vara

Fábio Fresca1 
http://orcid.org/0000-0003-3015-103X

Ricardo Henrique Pucinelli2 
http://orcid.org/0000-0003-2935-1966

1 Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM, Brasil

2 Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa em Análise Qualitativa (IBEPAQ), Brasil


Resumo

Introdução O trabalho em equipe está se transformando no principal meio de organizar o trabalho nas organizações. Neste sentido, o Tribunal Regional Federal da 3ª. Região adotou o trabalho em equipe como uma das diretrizes do modelo de unificação de suas secretarias. Mais do que utilizar equipes em seus processos, o trabalho em equipe envolve a prática colaborativa. Objetivos O presente artigo descreve como os servidores públicos percebem o trabalho em equipe e a prática do trabalho colaborativo no Programa e-Vara implementado na Subseção Judiciária de Santos.; Métodos Os procedimentos metodológicos foram realizados em três etapas no estudo de caso. A primeira consistiu na revisão de literatura narrativa acerca de definições relativas ao conceito de equipes de trabalho e prática colaborativa. Na segunda etapa foram coletados os dados primários produzidos em entrevistas semiestruturadas por meio de gravação usando celular e microfone de lapela. A terceira etapa consistiu na análise de conteúdo dos dados via software NVivo. Resultados. Os resultados demonstram que os colaboradores estão comprometidos com o trabalho em equipe, mas essa percepção não se estende à prática colaborativa de maneira uniforme entre todos. Conclusões A implementação de programas de reconhecimento, atividades sociais de integração e ampliação do diálogo para a criação de um ambiente colaborativo é recomendável, tanto na fase final de seleção, conhecida por socialização, como após o funcionamento da unificação de secretarias/ofícios.

Palavras chave: Administração Pública; Cultura Organizacional; Liderança; Poder Judiciário; Prática Profissional.

Abstract

Teamwork is becoming the main means of organizing work in organizations. In this sense, the Federal Regional Court of the 3rd. Region adopted teamwork as one of the guidelines of the unification model of its secretariats. More than using teams in their processes, teamwork involves collaborative practice. Goals This article describes how public servants perceive teamwork and the practice of collaborative work in the e-Vara Program implemented in the Judiciary Subsection of Santos. Methods The methodological procedures were carried out in three stages in the case study. The first consisted of reviewing the narrative literature about definitions related to the concept of work teams and collaborative practice. In the second stage, the primary data produced in semi-structured interviews were collected through recording using a cell phone and lapel microphone. The third step consisted of data content analysis via NVivo software. Conclusions. The implementation of recognition programs, social integration activities and expansion of dialogue to create a collaborative environment are recommendable, both in the final selection phase, known as socialization, and after the operation of the unification of secretariats/trades.

Keywords: Public administration; Organizational culture; Leadership; Judicial power; Professional Practice.

1.Introdução

O Tribunal Regional Federal da 3ª. Região, motivado pela necessidade de adequação do fluxo dos processos, das competências dos servidores e pela padronização de serviços frente à nova realidade tecnológica, criou, introduziu e implementou o Programa e-Vara na cidade de Santos, litoral de São Paulo (Tribunal Federal da 3ª Região [TRF3], 2019; 2020).

Em linhas gerais, neste modelo de gestão, foi criada a Central de Processamento Judicial Eletrônico (CPE) composta por quatro seções que auxiliam a execução de atividades sem cunho decisório, a cargo das varas por elas abrangidas, em regime de colaboração. As Varas abrangidas pela CPE passam a se denominar Varas Eletrônicas (e-Varas) e se dedicam, principalmente, ao conteúdo da atividade jurisdicional, a saber, despachos, decisões e sentenças. Orientado pelo New Public Management, o TRF3 escolheu o trabalho em equipe e a prática colaborativa como condição básica na interrelação entre as equipes da Central de Processamento Eletrônico (CPE) e os gabinetes das e-Varas (Conselho da Justiça Federal [CJF], 2019). Poucas tendências influenciam tanto a situação dos colaboradores como a introdução do trabalho colaborativo em equipes (Robbins, Judge & Sobral, 2011).

Colaborar com os outros, compartilhar informações, confrontar diferenças, sublimar interesses pessoais em prol do bem da equipe são pressupostos do mindset do trabalho em equipe. Mais do que utilizar equipes em seus processos para produzir com maior eficiência e eficácia, a unificação deve ser pautada por gestores e colaboradores que colaborem entre si. Caso o trabalho em equipe não seja tratado de forma associada à prática colaborativa, a percepção deste descompasso compartilhada pelos servidores afeta o potencial e o próprio sentido da unificação. Acrescente-se que pesquisas sobre a prática do trabalho colaborativo em equipe nos modelos de unificação de secretarias/ofícios no âmbito do Poder Judiciário ainda são incipientes.

Desta forma, o objetivo do presente artigo foi identificar como os servidores públicos percebem o trabalho em equipe e a prática colaborativa no Programa e-Vara na Subseção Judiciária de Santos-SP cujo modelo foi implantado desde 3 de fevereiro de 2020.

Para alcançar o objetivo, os procedimentos metodológicos foram realizados em três etapas. A primeira consistiu na revisão bibliográfica narrativa acerca de definições relativas ao conceito de trabalho em equipe e prática colaborativa e na análise documental do Projeto e-Vara coletados no site do TFR3. Na segunda etapa, os dados primários foram coletados em entrevistas semiestruturadas presenciais. A terceira etapa consistiu na análise dos dados via técnica de análise de conteúdo usando o software NVivo e na apresentação e discussão dos resultados.

Para melhor compreensão, o artigo foi organizado em quatro seções, contendo a exposição ordenada do assunto. Após a introdução, a primeira seção apresenta o conceito e as características essenciais da prática colaborativa e trabalho em equipe. A segunda seção apresenta o Projeto e-Vara. A terceira seção apresenta os procedimentos metodológicos empregados para se atingir o objetivo. A quarta seção descreve os resultados, e, por meio da técnica da análise de conteúdo, foram discutidas e interpretadas as percepções dos servidores quanto aos objetivos do estudo.

Os resultados indicam o comprometimento dos servidores públicos com o trabalho em equipe, mas essa percepção não se estende à prática colaborativa de maneira uniforme entre todos. Em seguida, as considerações finais.

2.Referencial Teórico

Quando se lê um despacho, uma decisão ou uma sentença/acórdão proferidos em um processo judicial, esquecemo-nos da grande equipe responsável pela produção da atividade-fim do Poder Judiciário. A atividade-meio é operada pelos servidores públicos e, é graças ao trabalho protagonizado por eles que a atividade-fim se torna realidade nos 93 Tribunais do Brasil (CJF, 2019).

Pensada e formada pelas e para as pessoas, a introdução da unificação de secretarias/ofícios delimita quem são, quem as compõem e de que forma devem os servidores agir e interagir dentro dos limites impostos pela estrutura organizacional e pela nova realidade tecnológica (Bowditch & Buono, 2009).

Na unificação de secretarias/ofícios, a atividade-meio é complexa e requer um esforço dos gestores e servidores no sentido da mudança de uma mentalidade menos individualista para uma cultura colaborativa, assentada no trabalho colaborativo entre os setores da CPE e os gabinetes das e-Varas. É no âmbito de uma cultura organizacional, baseada na colaboração que os modelos alternativos de gestão cartorária são mais facilmente implementados, pois permite definir estratégias conjuntas para enfrentar problemas ou dificuldades, em especial, daqueles que não se apresentam fáceis ou viáveis de resolver individualmente pelo servidor.

A literatura acadêmica sobre trabalho em equipe e a prática colaborativa é maior nas áreas da saúde, educação e exatas e vai além das questões interpessoais, incluindo a perspectiva do usuário, da família ou da comunidade (Domajnko et al., 2015; Peduzzi & Agreli, 2018). Embora na linguagem corrente colaborar seja sinônimo de cooperar, pois ambos possuem o prefixo “co” que designa uma ação conjunta, colaborar se distingue de cooperar no seu significado etimológico.

Segundo Boavida e Ponte (2002), colaborar deriva do latim laborare, que significa atuar conjuntamente com outros com o mesmo fim, enquanto cooperar deriva de operare que significa realizar uma operação simples e definida previamente em um plano; é produzir determinado efeito; funcionar ou fazer funcionar de acordo com um plano ou sistema. Assim, a colaboração tem amplitude maior de partilha e interação, bem mais do que uma simples realização conjunta de operações.

Na colaboração os diversos colaboradores trabalham em conjunto, numa relação de ajuda mútua e relativa igualdade, para atingir objetivos comuns, enquanto na cooperação, as relações podem ser bastantes desiguais e até hierárquicas, e os objetivos podem ser difusos e totalmente subordinados aos objetivos individuais de alguns participantes (Damiani, 2008). Por sua vez, na colaboração a responsabilidade é de todos, pois todos os colaboradores compartilham seus esforços, habilidades e conhecimentos na consecução de um objetivo comum, enquanto na cooperação todos combinam a realização de um trabalho comum cujo objetivo a ser alcançado pode ser separado e autônomo.

Desta forma, a colaboração representa mais do que uma mera cooperação entre colaboradores (Boavida & Ponte, 2002). O trabalho colaborativo baseia-se no processo de trabalho articulado e pensado em conjunto, com comunicação efetiva e aprendizagem mútua em que as diferentes potencialidades dos servidores são ativadas na busca dos resultados visados pela unidade judiciária.

No contexto dos modelos alternativos de gestão cartorária, a colaboração emerge como uma prática profissional indispensável, e, principalmente, no Projeto e-Vara do TRF, na medida em que a divisão do trabalho (ou especialização) entre a CPE e e-Varas tem por escopo potencializar os resultados dos fluxos de trabalho, acelerar a execução das tarefas e evitar o retrabalho. Por outro lado, quando as organizações se reestruturam para produzir de modo mais eficaz e eficiente, utilizando as equipes como forma de melhor gerir os conhecimentos, habilidades e atitudes de seus servidores, é importante distinguir as diferenças entre grupo de trabalho e equipes de trabalho.

Grupo de trabalho é a reunião de dois ou mais indivíduos que interagem basicamente para atingir determinado objetivo (Sundstrom, De Meuse, & Futrell, 1990). Seus integrantes se juntam para compartilhar informações e tomar decisões para ajudar cada membro no desempenho de suas tarefas. Não há necessidade de engajamento dos indivíduos em um trabalho colaborativo. Equipe de trabalho, por sua vez, é a reunião de esforços individuais que geram uma sinergia positiva em prol de um nível de desempenho maior do que a somatória das contribuições individuais (Robbins et al., 2010).

Embora alguns estudos apresentem uma verdadeira “receita de bolo com muitos ingredientes” (Hyatt & Ruddy, 1997), a literatura sobre trabalho colaborativo em equipe também destaca a relevância de fatores de contexto, de composição e dos processos para o estabelecimento de equipes efetivas, integradas e colaborativas (CJF, 2019).

Para fins do presente trabalho, essas definições permitem esclarecer como o trabalho em equipe e a prática colaborativa são percebidos pelos servidores públicos no contexto do “Programa e-Vara” implantado na Subseção Judiciária de Santos-SP.

3.Projeto e-Vara do TRF3

Pelo Provimento CJF35 n. 34, de 10 de outubro de 2019, o TRF da 3ª Região instituiu o Programa para o Processamento Judicial Eletrônico na Seção Judiciária de São Paulo, denominado “Programa e-Vara”, e implantou a Central de Processamento Eletrônico na Subseção Judiciária de Santos, conhecida por “CPE” (CJF, 2019). O objetivo geral é implantar um modelo organizacional atualizado, eficiente e inovador, em conexão com as técnicas mais modernas de gestão. A estratégia é focada na obtenção de resultados céleres e adequados, com eficiência e racionalidade na alocação de recursos, a partir de uma nova visão de gestão pública.

Em linhas gerais, neste modelo de gestão, foi criada a Central de Processamento Judicial Eletrônico (CPE) que auxilia a execução de atividades sem cunho decisório, a cargo das varas por elas abrangidas, em regime de colaboração, sem subtrair nenhuma das competências das respectivas unidades, que poderão executá-las sob a supervisão direta do magistrado, quando necessário ou conveniente.

No programa e-Vara, o papel da CPE é de auxílio exclusivo da atividade-meio, sem caráter decisório, por meio de uma nova divisão de tarefas e distribuição dos recursos humanos em quatro secções coordenadas por supervisores. As Varas abrangidas pelas CPEs passam a se denominar Varas Eletrônicas (e-Varas), permanecem autônomas, independentes, especialmente quanto à gestão do acervo, instrução dos processos, e, principalmente, quanto ao conteúdo da atividade jurisdicional, a saber, despachos, decisões e sentenças (CJF, 2019).

Os principais elementos estruturais da CPE podem ser encontrados no texto preliminar da rede de apoio ao processamento judicial eletrônico e no relatório e voto n. 5188626/2019 que culminaram no Provimento CJF35 n. 34, de 10 de outubro de 2019 (CJF, 2019; TRF3, 2019).

Quanto à divisão do trabalho (ou especialização), a CPE-Santos é composta por quatro seções: Seção de Recebimento de iniciais, Distribuição e Atendimento; Seção de Triagem, Análise e Comunicação; Seção de Expedição e Cumprimento e Seção de Atos Ordinatórios. A especialização da CPE tem por escopo potencializar os resultados dos fluxos de trabalho, acelerar a execução das tarefas e evitar o retrabalho.

As atribuições dos setores mencionados fazem com que os servidores se especializem em realizar parte das atividades da unidade, executando tarefas específicas, em vez de fazer a atividade inteira. Desta forma, a divisão do trabalho é decorrência lógica da departamentalização, que é o agrupamento de atividades para que as tarefas específicas possam ser executadas de acordo com as atribuições das quatro seções da CPE. A principal vantagem da departamentalização funcional foi colocar juntos servidores especialistas em equipes, que desempenharão atribuições específicas dos respectivos setores a quem estão lotados (Hirschfeld, 2006).

Por se tratar de uma estrutura de apoio, a divisão do trabalho por seções não subtrai nenhuma das competências das e-Varas, que podem executar as tarefas sob supervisão do magistrado, se este entender necessário ou conveniente, nem constitui óbice à realização de atividades conexas, complementares, suplementares ou decorrentes, desde que a cargo da CPE, ainda que afeta a outra seção, se necessário o trabalho colaborativo.

O princípio da unidade de comando é atribuído ao Juiz Coordenador da CPE, que ajuda a preservar o conceito da linha única da autoridade. A hierarquização em instâncias - embora mitigada pela diretriz de gestão colegiada - permanece presente neste modelo de organização. Os escalões hierárquicos atingem o nível 3 (Comitê Gestor Regional, Comitê Gestor, Juiz Coordenador, Coordenador da CPE). A tomada de deliberações é colegiada, a partir de olhares plurais e múltiplos, adotando, sempre que possível, as técnicas de construção de consensos.

A padronização também é o traço característico deste modelo organizacional. Para alcançar maior eficiência no processamento judicial, buscou-se aproximar a estrutura organizacional do processo eletrônico, padronizando-se os procedimentos sem cunho jurisdicional. Com a padronização de tarefas, estimam-se ganhos de agilidade no processamento dos feitos e racionalização dos recursos materiais e humanos.

O organograma expresso na Figura 1 resume a estrutura da CPE e das e-Varas.

Figura 1 Organograma da estrutura da CPE e e-Varas. 

4.Metodologia

Os procedimentos metodológicos deste artigo foram realizados em três etapas. A primeira consistiu na revisão bibliográfica acerca de definições relativas ao conceito de colaboração e trabalho em equipe na análise de documentos relativos às unificações de ofícios/secretarias no TRF3, que permitiram identificar e descrever as principais características dos modelos da unificação introduzida pelo Projeto e-Vara. A terceira etapa consistiu na coleta dos dados primários que, por sua vez, foram coletados em trabalho de campo no mês de agosto de 2022, por meio de entrevistas semiestruturados junto aos servidores participantes do projeto e-Vara na cidade de Santos-SP, usando-se para isso um celular e microfone de lapela.

Embora delimitada a população da pesquisa, o primeiro desafio foi encontrar o ponto de saturação das entrevistas semiestruturadas. Eisenhardt (1989) recomenda que os casos sejam adicionados até o alcance da “saturação teórica”.

Patton defende que não há um número exato para a seleção nem regras para tamanho de amostra em pesquisas qualitativas (Patton, 2002). Tal como explica Charmaz, a saturação exige o ajuste dos novos dados com as categorias anteriores as quais foram delineadas previamente em função da revisão de literatura (Charmaz, 2006). Saturar dados, segundo Morse, Barrett, Mayan, Olson, & Spiers (2002), garante a replicação em categoria; a replicação verifica e garante a compreensão e a completude.

Considerando o objetivo do presente artigo, a seleção da amostragem se apoiou no conceito geralmente sugerido para a saturação: como o esgotamento temático; como o ponto na coleta de dados primários em que novas informações produzem pouca ou nenhuma informação expressiva, o que ocorreu no 18º. entrevistado.

Ao mesmo tempo em que as entrevistas eram desenvolvidas, empregava-se a observação direta e participante para compreender as ações, reações e comportamentos dos integrantes-entrevistados e atividades desenvolvidas no ambiente da CPE e das e-Varas.

A observação foi informal e realizada, diariamente, nos dias úteis, de 1º a 26 de agosto de 2022, após às 14:00 horas, no Fórum da Justiça Federal de Santos-SP.

A terceira etapa consistiu na análise dos dados via análise de conteúdo (Bardin, 2011). Diferentemente da pesquisa quantitativa em que a análise recai sobre dados numéricos, a abordagem adotada na presente pesquisa foi a qualitativa, valorizando-se os elementos textuais.

Sob o aspecto teórico, a análise de conteúdo, como técnica e procedimento, melhor se adequou na análise dos dados primários, porque permitiu a transformação de uma quantidade de texto não estruturado num resumo organizado e conciso dos principais resultados (Krippendorff, 2004). Bardin (2011), por sua vez, acrescenta que se trata do processo de transformar dados brutos para se atingir uma representação da sua expressão. Parte-se do conteúdo literal e manifesto da unidade de análise para o seu significado mais abstrato em categorias ou temas (Erlingsson & Brysiewicz, 2017).

Em termos práticos, após a transcrição das entrevistas, o material foi lido na íntegra, e, em seguida, foi importado para o software NVivo (QSR International, 2020) para se dar início à exploração do material e ao processo de codificação e categorização em que os conteúdos das entrevistas foram divididos de forma sistemática em unidades menores, a partir da matriz de análise construída com base no marco teórico. Ao final desta etapa, a triangulação permitiu a articulação entre os dados empíricos, os conceitos da temática estudada e a análise do contexto da unificação de secretarias (Gomes, Souza, Minayo, Malaquias, & Silva, 2005).

Do ponto de vista do objetivo do artigo, a fase de interpretação dos dados pela técnica de triangulação de métodos, contribuiu para as inferências, assim como para a reflexibilidade do pesquisador, definida como aquela em que as conclusões são tomadas “por meio do aumento de controles cruzados e utilização de princípios de uma técnica crítica que torna possível acompanhar de perto os fatores que podem enviesar uma pesquisa”, e não com base em ideologias, impressões e intuições prévias (Bourdieu, 2004; MCINTYRE, 2019).

As inferências, entendidas como atitudes interpretativas baseadas nas evidências e indicadores levantados e sustentados por uma estrutura técnica de validação, serão descritas na próxima secção (BARDIN, 2011).

5.Apresentação dos dados e Análise dos resultados

Considerando os objetivos da pesquisa, o presente capítulo descreve como os servidores públicos percebem o trabalho em equipe e a prática colaborativa no Programa e-Vara do TRF3 cujo modelo foi implantado na Subseção Judiciária de Santos desde 3 de fevereiro de 2020. Atento ao compromisso ético de garantia do anonimato, os entrevistados são apresentados no texto pela denominação “EntrX”, onde “X” corresponde ao número do entrevistado.

Nas vozes dos entrevistados, o trabalho em equipe refere-se basicamente ao comprometimento dos servidores com um propósito comum. Trabalhar em equipe ocorre quando as pessoas envolvidas trabalham com objetivo comum em favor do bem comum.

O bem da Vara e visando um atendimento bom. É a finalidade do cartório, que é atender bem e apresentar uma solução o quanto antes (Entr013).

Objetivos comuns são alcançados pelo esforço mútuo, quando as pessoas se ajudam. Se tem uma pilha grande que deu mais trabalho e o colega acabou primeiro, todo mundo se junta para acabar o quanto antes (Entr013). Não se pode pensar na administração pública como uma coisa burocrática de se fazer apenas uma parte. É preciso pensar no processo como um todo (Entr007).

O modelo mental prevalente é o de que o trabalho deve ser feito de modo comum entre os servidores: ajudar o outro é a melhor coisa, pois o processo anda rápido. Tudo fica maravilhoso (Entr001). Trabalhar em equipe é não estar sozinho (Entr003).

É se colocar à disposição para ajudar quando alguém pede alguma coisa (Entr014). É ter uma situação problema e todo mundo se envolver para alcançar um objetivo comum. Ajudar quem está precisando de forma natural e não impositiva (Entr006).

De acordo com o Entr008, só se pode chamar de trabalho em equipe onde o que todos fazem, todos se responsabilizam pelo resultado.

Nesse sentido, o modelo mental acerca do trabalho em equipe contribui particularmente para a redução do estresse, pois traz tranquilidade (Ellis,2006).

Segundo o Entr002, “você se sente tranquilo. Se você deixou de fazer ou não fez, ou esqueceu, ou não foi bem, alguém vai te avisar. Alguém vai consertar e você vai saber o que aconteceu e vai girando”.

Na solução de dificuldades, o espírito de equipe se mostra presente quando o colega está em casa e pede uma ajuda. Entra-se em contato e ele está ali te ajudando (Entr015).

Compartilhar conhecimento é outra percepção mencionada, pois se trabalha num negócio mais amplo em que se ensina o outro, não se guarda o que se sabe. Antes se trabalhava sozinho e se guardava aquilo (conhecimento) e não se passava para outros (Entr002).

Contudo, ao se analisar os níveis de conflito decorrentes do relacionamento existente entre a CPE e os gabinetes, os dados primários revelam que, de um modo geral, os servidores integrantes das equipes formadas não foram totalmente doutrinados na cultura organizacional, pautada em um regime colaborativo.

Nota-se uma lacuna na percepção dos servidores quanto à prática colaborativa que remonta à fase de socialização das equipes. Depois de feita a seleção, teve treinamento na CPE (Entr001), mas não para os servidores das e-Varas.

Para quem permaneceu nas e-Varas, a percepção prevalente é de que não mudou nada nos gabinetes (Entr18), de modo que o treinamento não seria necessário (Entr006) nem fez falta, pois era uma questão de pura adaptação (Entr012).

O treinamento dado aos servidores da e-Vara foi de PJ-e (Entr008; Entr017) no fluxo do sistema processual (Entr006), que ninguém sabia ainda como seria isso (Entr014).

Talvez isso pudesse ter sido mais bem pensado, porque partiu-se do pressuposto de que para os servidores da e-Vara não teria tanta alteração. Mas, acabou tendo, porque mudaram as nossas atribuições (Entr007).

O treinamento poderia ter sido mais alongado pelo seguinte: cada servidor que foi para a CPE, tinha experiência e a expertise da Vara onde trabalhava. Mas, o servidor não tinha o conhecimento de trabalhar com quatro varas ao mesmo tempo, que é o nosso caso aqui. Então, o treinamento foi mais para adequar os atos processuais lá em baixo da CPE do que para qualquer outra coisa. Por isso, esse treinamento poderia ser um pouquinho mais apurado (Entr009).

Contudo, foi muito bom o treinamento realizado quando inaugurou a CPE em fevereiro. Foram duas semanas de treinamento (Entr014).

Tinha dinâmicas para os servidores se entrosarem (Entr016), se conhecerem, criarem esse clima de troca e de equipes, porque cada um veio de uma Vara, então juntou todos e cada um tinha um perfil diferente. Teve que ter esse entrosamento e isso ajudou muito. Até hoje tem esse espírito de equipe, porque a gente teve esse treinamento (Entr014).

Para quem foi trabalhar na CPE, o treinamento foi maravilhoso, pois trabalhou dois aspectos importantes: os recursos humanos, no preparo psicológico da equipe de agregar valores, e, concomitantemente, a parte tecnológica, a parte técnica do projeto. Nesse sentido, a direção foi muito feliz, porque conseguiu colocar ao mesmo tempo um trabalho desenvolvendo a parte humana e a parte tecnológica (Entr015).

O ideal seria um treinamento conjunto de todos (Entr009), pois a gente acabou se fechando mais com o treinamento da nossa e-Vara, e acabamos deixando lá a CPE para fazer o treinamento deles lá, entendeu? (Entr009).

Teve o treinamento muito pautado no trabalho cooperativo na colaboração, que foi apropriado pelos participantes nesse período. Só que ficou restrito à CPE, essa vocação para trabalho colaborativo. Nada desse treinamento, nada disso, foi transferido para as e-varas. É como se as e-varas não tivessem sofrido nenhuma alteração.

Na verdade, as e-Varas fazem parte do projeto. É um duo: têm as e-varas e a CPE. Assim, na verdade, eu não sei até que ponto os gabinetes sabem muito bem como a CPE funciona (Entr004).

Na Figura 2 é apresentado um resumo das frequências (em porcentagem absoluta) das principais categorias analisadas em função dos entrevistados.

Figura 2 Gráfico de coluna empilhadas 100% apresentando as principais categorias analisadas em função dos entrevistados. Os dados foram gerados pelo software NVivo e depois editado no software Excel. 

Desta forma socialização, entendida como processo que ajuda os colaboradores a se adaptarem à prática colaborativa exigida no modelo, perpassou pelo treinamento inicial que ficou restrito somente aos servidores da CPE (Ashforth, Saks, Lee, 1998). Foi aqui que a lacuna ocorreu, pois, o treinamento não foi um programa de socialização coletivo, sequencial e serial a ponto de enfatizar a colaboração como uma prática a ser adotada por todos os servidores, não apenas pelos servidores da CPE, mas, também, pelos servidores que permaneceram nas e-Varas. A não-inclusão de todos os servidores, tanto daqueles que permaneceram nas e-Varas, como daqueles que foram selecionados para a CPE, no treinamento institucional, atingiu, por exemplo, em parte, a prática colaborativa que ainda não é compartilhada, em grau maior ou menor, entre todos os servidores da CPE e das e-Varas.

6.Considerações Finais

O objetivo do presente artigo foi identificar como os servidores públicos percebem o trabalho em equipe e a prática colaborativa no Programa e-Vara na Subseção Judiciária de Santos cujo modelo de unificação de secretarias foi implantado desde 3 de fevereiro de 2020. Quanto ao objetivo, os servidores compreenderam de que se trata de um novo modo de se trabalhar, e, para atingir esse objetivo, determinados valores e práticas são fundamentais, dentre as quais, que o trabalho se desenvolva em equipe e de forma colaborativa.

Quanto ao trabalho em equipe, a população da pesquisa está comprometida com um propósito comum, compartilha conhecimentos e possui um sentido do que precisa ser feito para o bem da unidade judiciária visando um bom atendimento ao destinatário dos serviços judiciais. Nesse sentido, o modelo mental acerca do trabalho em equipe contribui particularmente para a redução do estresse, trazendo mais tranquilidade entre os colaboradores. Na percepção dos entrevistados, a responsabilidade pelos resultados cabe a todos e estes somente são alcançados pelo esforço conjunto dos integrantes das equipes.

Mais do que potencializar os resultados dos fluxos de trabalho, acelerar a execução das tarefas e evitar o retrabalho, o projeto e-Vara construiu equipes de servidores especialistas nos setores da CPE e dos gabinetes das e-Varas que somam esforços, possuem propósitos comuns, confiam na equipe, compartilham um modelo mental particularmente uniforme, são comprometidos e sabem trabalhar em conjunto. Contudo, não basta apenas a busca de um objetivo comum pelo trabalho em equipe. É necessário que a prática colaborativa seja adotada entre as equipes.

Nesse sentido, os dados empíricos demonstram que houve uma lacuna no processo de socialização das equipes que não compartilham, em grau maior ou menor, a mesma percepção de que a colaboração está presente na relação interpessoal entre a CPE e os gabinetes das e-Varas. O projeto foi concebido com a ideia de uma prestação jurisdicional mais eficiente e rápida, com a ênfase na colaboração, no sentido de reciprocidade em que o trabalho de um depende do outro. Ao contrário do treinamento dado às equipes dos setores da CPE, o treinamento fornecido aos servidores da e-Vara foi restrito ao PJ-e, com foco nos fluxos processuais. Talvez, o treinamento pudesse ter sido mais bem pensado, porque se partiu do pressuposto de que para os servidores da e-Vara não ocorreria tanta alteração. O ideal seria um treinamento conjunto de todas as equipes, porque as reorganizações estruturais em modelos de unificação de secretarias/ofícios requerem um ambiente ainda mais colaborativo.

Desta forma, a implementação de programas de reconhecimento, atividades sociais de integração e ampliação do diálogo para a criação de um ambiente colaborativo é recomendável, tanto na fase final de seleção, conhecida por socialização, como após o funcionamento da unificação de secretarias/ofícios.

Embora o estudo de caso ofereça um retrato compreensível de fenômenos complexos e ajude a entender melhor as particularidades neles envolvidas, uma das limitações do presente artigo é a impossibilidade de generalização dos resultados para outros modelos de unificação de ofícios/serventias em funcionamento em outros ramos do Poder Judiciário.

Além disso, outros estudos podem fazer avançar a compreensão sobre as possíveis relações de causalidade entre variáveis de contexto (liderança e estrutura, sistemas de avaliação de desempenho) e composição de equipes de trabalho (diversidade, gênero, tamanho) na percepção dos colaboradores sobre o trabalho em equipe baseado na colaboração.

7.Referências

Ashforth, B. E., Saks, A. M., & Lee, R. T. (1998). Socialization and newcomer adjustment: The role of organizational context. Human relations, 51(7), 897-926. [ Links ]

Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. Edições 70. [ Links ]

Boavida, A. M., & Ponte, J. P. D. (2002). Investigação colaborativa: Potencialidades e problemas. Reflectir e investigar sobre a prática profissional, (1), 43-55. [ Links ]

Bourdieu, P., & Bourdieu, P. (2004). Science of science and reflexivity (Repr). Polity. [ Links ]

Bowditch, J., & Buono, A. F. (2009). Elementos de comportamento organizacional. Cengage Learning. Charmaz, Kathy. Constructing grounded theory: A practical guide through qualitative analysis. Sage, 2006. [ Links ]

Conselho da Justiça Federal ; Provimento CJF3R Nº 34, de 10 de outubro de 2019. Institui o Programa para o Processamento Judicial Eletrônico na Seção Judiciária de São Paulo (Programa e-Vara) e implanta a Central de Processamento Eletrônico na Subseção Judiciária de Santos (CPE-Santos). Santos, SP:Conselho da Justiça Federal; 2019. Disponível em: < https://www.trf3.jus.br/atos-normativos/atos-normativos-dir/Conselho%20da%20Justi%C3%A7a/Provimentos/2019/Provimento0034.htm>. Acesso em: 21 ago. 2022. [ Links ]

Conselho Nacional da Justiça Federal Pesquisa de Percepção dos Magistrados, Servidores e Advogados quanto à Especialização de Varas por Competência e a Unificação de Cartórios Judiciais. Brasilia, 2020. Disponível em: < Relatorio-de-unificacao-dos-cartorios_2020-08-25_3.pdf (cnj.jus.br)>. Acesso em: 13 nov. 2022. [ Links ]

Damiani, M. F. (2008). Entendendo o trabalho colaborativo em educação e revelando seus benefícios. Educar em revista, 213-230. [ Links ]

Domajnko, B., Ferfila, N., Kavcic, M., & Pahor, M. (2015). Interprofessional education In Europe: policy and practice. Beyond interprofessionalism: caring together with rather than for people. Antwerpen/Apeldoorn: Garant. [ Links ]

Eisenhardt, K. M. (1989). Building theories from case study research. Academy of management review, 14(4), 532-550. [ Links ]

Ellis, A. P. (2006). System breakdown: The role of mental models and transactive memory in the relationship between acute stress and team performance. Academy of Management Journal, 49(3), 576-589. [ Links ]

Elo, S., & Kyngäs, H. (2008). The qualitative content analysis process. Journal of advanced nursing, 62(1), 107-115. [ Links ]

Erlingsson, C., & Brysiewicz, P.(2017). A hands-on guide to doing content analysis. African journal of emergency medicine, 7(3), 93-99. [ Links ]

Gomes, R., Souza, E. R. D., Minayo, M. C. D. S., Malaquias, J. V., & Silva, C. F. R. D. (2005). Organização, processamento, análise e interpretação de dados: o desafio da triangulação. MINAYO, Maria Cecília de Souza; ASSIS, Simone Gonçalves de; SOUZA, Edinilsa Ramos de. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005. p. 185-221. [ Links ]

Hirschfeld, R. R., Jordan, M. H., Feild, H. S., Giles, W. F., & Armenakis, A. A. (2006). Becoming team players: Team members' mastery of teamwork knowledge as a predictor of team task proficiency and observed teamwork effectiveness.Journal of Applied Psychology, 91(2), 467. [ Links ]

Hyatt, D. E.,& Ruddy, T. M. (1997). An examination of the relationship between work group characteristics and performance: Once more into the breech. Personnel psychology, 50(3), 553-585. [ Links ]

Krippendorff, K. (2004). Content analysis: An introduction to its methodology. Sage publications. [ Links ]

McIntyre, L. (2019). The scientific attitude: Defending science from denial, fraud, and pseudoscience. Mit Press. [ Links ]

Morse, J. M., Barrett, M., Mayan, M., Olson, K., & Spiers, J.(2002). Verification strategies for establishing reliability and validity in qualitative research. International journal of qualitative methods, 1(2), 13-22. [ Links ]

Patton, M. Q. (2002). Qualitative research & evaluation methods: Integrating theory and practice. Sage publications. [ Links ]

Peduzzi, M.,& Agreli, H. F. (2018).Trabalho em equipe e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, 22, 1525-1534. [ Links ]

QSR International Pty Ltd. (2020) NVivo (released in March 2020), https://www.qsrinternational.com/nvivo-qualitative-data-analysis-software/home. [ Links ]

Robbins, S., Judge, T.,& Sobral, F.(2011). Comportamento organizacional: teoria e prática no contexto brasileiro.Pearson Prentice Hall. [ Links ]

Sundstrom, E., De Meuse, K. P., & Futrell, D. (1990). Work teams: Applications and effectiveness. American psychologist,45(2), 120. [ Links ]

Tribunal Federal da 3ª Região Relatório e Voto Nº 5188626/2019. São Paulo: Tribunal Federal da 3ª Região 2019. Disponível em: <https://www.jfsp.jus.br/documentos/administrativo/GADI/programa-e-vara/SEI_TRF3_-_5188626_-_relatorio_e_voto_-_Programa_e-Vara.pdf>. Acesso em: 21 ago. 2022. [ Links ]

Recebido: 30 de Março de 2023; Aceito: 30 de Setembro de 2023

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons