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New Trends in Qualitative Research

On-line version ISSN 2184-7770

NTQR vol.18  Oliveira de Azeméis Oct. 2023  Epub Nov 30, 2023

https://doi.org/10.36367/ntqr.18.2023.e876 

Artigo Original

Trabalho, Violência e Saúde Mental: Um Estudo Qualitativo com Mulheres

Work, Violence and Mental Health: A Qualitative Study with Women

Ioneide de Oliveira Campos1 
http://orcid.org/0000-0002-6803-2725

Yasmim Bezerra Magalhâes2 
http://orcid.org/0000-0002-0614-5644

Silvia Badim Marques1 
http://orcid.org/0000-0003-1331-719X

1 Universidade de Brasília, Brasil

2 Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos - Uniceplac, Brasil


Resumo

Introdução: A discussão sobre trabalho e gênero tem apontado a vulnerabilidade da mulher na sociedade, no entanto, no âmbito da saúde mental, ainda são escassos os estudos que discutem essa temática na perspectiva da reabilitação psicossocial. Objetivos: Compreender as experiências de trabalho de mulheres vítimas de violência atendidas em um serviço de saúde mental. Métodos: Estudo qualitativo com a participação de 18 mulheres usuárias de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Brasília, Distrito Federal, as quais responderam a uma entrevista semiestruturada. Os dados foram analisados com o apoio da análise temática de conteúdo. Identificaram-se as seguintes categorias: o trabalho precarizado e informal; as diferentes formas de violência e sua relação com o trabalho; atravessamentos dos sonhos: onde as mulheres se sentem (in)capazes? O rótulo da loucura e a relação com o trabalho. Resultados: Identificaram-se várias influências associadas ao trabalho, sendo este, de modo geral, informal, no qual as participantes relataram relações precárias de exploração, violência e baixa remuneração. Considerações finais: As experiências de trabalho de mulheres vítimas de violência entrevistadas indicaram a necessidade de estratégias de empoderamento no âmbito da atenção psicossocial, para o enfrentamento dessa violência.

Palavras-Chave: Saúde mental; Gênero; Violência; Mulheres; Trabalho

Abstract

Introduction: The discussion about work and gender has pointed to the vulnerability of women in society, however, in the context of mental health there are still few studies that discuss this theme around psychosocial rehabilitation. Objectives: The present study aimed to understand the work experiences of women victims of violence seen in a mental health service. Methods: Eighteen women who attended a Psychosocial Care Center (CAPS) in Brasília, Federal District, participated in this study and answered a semi-structured interview. The data were analyzed from the thematic analysis of the content. Results: the following categories were identified: precarious and informal work, the different forms of violence and their relationship with work, crossings of dreams; where women feel (in) capable and the label of madness and the relationship with work. Various influences are associated with work, which is generally informal and a scenario in which participants report poor relationships of exploitation, violence and low pay. Final considerations: Empowerment strategies within psychosocial care can present themselves as preventive resources and create coping strategies for the interfaces of violence that permeate the interviewees' experiences.

Keywords: Mental health; Gender; Violence; Women; Work

1. Introdução

O tema mulheres vitimizadas por situações de violência tem sobressaído no cenário nacional e internacional. Entretanto, essa temática, embora tenha por pano de fundo a discussão sobre gênero, não apresenta consenso na literatura científica. Todavia, a questão de gênero relaciona-se com a discussão sobre trabalho de forma basilar, tendo como expoente a segunda onda do movimento feminista, que considera a questão da maternidade e do controle sobre a função reprodutiva das mulheres como alicerce central do patriarcado para a reprodução do capital e para manutenção do poder econômico nas mãos dos homens.

Como salienta Federici (2013), “Enquanto o trabalho reprodutivo for desvalorizado, enquanto for considerado um assunto privado e da responsabilidade das mulheres, elas sempre enfrentarão o capital e o Estado com menos poder que os homens e em condições de extrema vulnerabilidade social e econômica” (p. 8). Para Federici (2017), o corpo, para as mulheres, é o que a fábrica é para os homens trabalhadores assalariados. Assim, a apropriação do corpo feminino pelo Estado é um meio para a reprodução e a acumulação de trabalho.

As mulheres, portanto, foram alijadas do trabalho competitivo na sociedade capitalista burguesa, restando-lhes, por anos, a ocupação da função doméstica e maternal, além de trabalhos de baixa remuneração e alicerçados nesses serviços domésticos em outras casas ou estabelecimentos. Desse modo, o processo intenso das transformações no trabalho tem repercutido em um cenário no qual a condição de trabalho tende a ser gradativamente mais flexibilizada. Como consequência, há um aumento de trabalhos não remunerados, outros empregos sem carteira assinada, salários inferiores aos dos homens, perdas de direitos e trabalho informal (Chaves, Tejeda Costa, & Cunha, 2023; Oliveira, Vieira, & Baeta, 2021; Silva, 2019), realidade identificada predominantemente no contexto do presente estudo.

O contínuo processo de substituição das mulheres por homens na profissão é um claro exemplo de como, paulatinamente, as mulheres foram excluídas de todos os ramos de trabalho especializado, sendo-lhes negado tanto treinamento profissional quanto oportunidades de adentrar este mercado (Federici, 2017). Soma-se a isso questões relacionadas às jornadas e diversidade de tarefas referentes ao papel do trabalho feminino na sociedade atual, além da dupla ou tripla jornada de trabalho da mulher, evidenciando que, após a jornada de trabalho, ainda existem outras preocupações com tarefas domésticas e cuidados com a família (Bezerra, Corteletti, & Araújo, 2021; Roque & Bertolin, 2021).

Para Roque e Bertolin (2021), a despeito do aumento de mulheres no mundo do trabalho e na esfera pública, a dupla jornada ainda é uma dura realidade, na medida em que essas têm que conviver com a conciliação entre a atividade doméstica e a laboral, ambas papéis culturalmente atribuídos à mulher, ou seja, há uma naturalização do trabalho doméstico como feminino, pressupondo pouco reconhecimento. Este fator contribui ainda para maior dificuldade de equiparação entre homens e mulheres no mundo do trabalho. A questão da assimetria salarial entre mulheres e homens ainda é uma dimensão pouco explorada no Brasil (Baltar & Omizzolo, 2020).

Em estudo sobre participação da mulher no mercado de trabalho brasileiro de 2014 a 2019, Baltar e Omizzolo (2020), demonstraram como a baixa atividade econômica no período de recessão e a lenta recuperação após 2017 afetou as diferenças entre mulheres e homens no mercado de trabalho no Brasil. Para as autoras, os principais elementos envolvidos nessa assimetria econômica entre mulheres e homens estão na diferença salarial e na baixa participação das mulheres no mercado de trabalho, ou seja, mantém-se, no Brasil, a inserção de mulheres em atividades voltadas aos cuidados e de homens em atividades de produção, o que configura uma característica estrutural do mercado de trabalho.

Alguns dados recentes do Instituto SEMESP (2020), mostram a variação salarial ao longo do tempo, com diferença de 41% a menos nos salários do sexo feminino. Esses dados ficam ainda mais alarmantes quando são observados sob o recorte racial e capacitista. Segundo a Pesquisa Triwi (2020), 24% das empresas entrevistadas não tinham mulheres negras no quadro de funcionários, o que corresponde a cerca de 1 em cada 4, e cerca de 70% não incluíam colaboradoras com deficiência física. Dentre as empresas entrevistadas, 46,8% tinham até 10% do quadro de funcionárias representado por mulheres negras, e apenas 3,2% contavam com mais de 51% de funcionárias negras.

Percebe-se, portanto, que a precariedade do trabalho e as dificuldades enfrentadas pelas mulheres são questões importantes a serem estudadas. Neste artigo, coloca-se para debate os casos de mulheres com históricos de diversos tipos de violência e em processo de sofrimento psíquico, com enfoque no histórico de trabalho, para compreender suas experiências de trabalho. Desse modo, questiona-se: Quais os tipos de trabalho, formal ou informal, exercido por mulheres vítimas de violência atendidas em um serviço de saúde mental? Em quais dessas experiências havia precarização do trabalho da mulher? E quais interesses ou habilidades (cozinhar, costurar, dentre outras) elas possuíam?

O objetivo deste estudo é compreender as experiências de trabalho de mulheres vítimas de violência atendidas em um serviço de saúde mental.

2. Metodologia

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), CAAE no 96478618.6.0000.8093, e obteve financiamento da Fundação de Apoio à Pesquisa (FAP/DF). Trata-se de estudo qualitativo, descritivo e exploratório, realizado com mulheres atendidas em um serviço de saúde mental. A opção por esse tipo de estudo decorreu do fato de esta abordagem aprofundar o conhecimento com base nos discursos dos participantes, não se limitar aos dados numéricos, mas debruçar-se sobre os sentidos e o conteúdo das respostas. Entende-se que a descrição dos relatos e a não formulação de hipóteses conferem a característica exploratória deste estudo.

Neste texto será apresentada uma parte dos resultados de uma pesquisa maior, desenvolvida entre os anos de 2017 e 2018, em um serviço de saúde mental tipo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), caracterizado como espaço destinado ao cuidado em saúde mental de base comunitária, para acompanhamento de pessoas em sofrimento psíquico.

Selecionou-se 44 mulheres admitidas em um CAPS entre os anos de 2015 e 2017, as quais tiveram algum episódio de violência ao longo de suas trajetórias de vida. Todas elas foram contactadas para solicitar a participação voluntária e serem informadas sobre o objetivo e a relevância da participação no estudo, antes de assinarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Dentre essas, participaram deste estudo 18 mulheres, as quais foram entrevistadas. Para tanto, utilizou-se um roteiro de entrevista semiestruturada com as seguintes questões: conte sobre suas experiências de trabalho (lugar, função atribuída, motivo de saída); em quais dessas experiências de trabalho identificavam a desvalorização do trabalho da mulher, como avaliavam a sua renda e as necessidades que apresentavam; conhecer se as entrevistadas possuíam alguma habilidade (por exemplo: cozinhar, costurar, artesanato etc.), e se gostariam de fazer algum curso de qualificação. As entrevistas tiveram a duração de aproximadamente uma hora e foram realizadas no CAPS, em uma sala específica para as entrevistas, indicada pelos profissionais do serviço. Todas as participantes foram esclarecidas de que poderiam deixar a pesquisa no momento que lhes fosse conveniente.

Para preservar as identidades das participantes entrevistadas, as suas falas foram identificadas neste estudo com a letra “P”, seguida por um número, de acordo com o Quadro 1, a seguir:

Quadro1. Caracterização das participantes do estudo 

Essas informações foram coletadas dos prontuários das mulheres, especialmente do protocolo de acolhimento, e conferidas ao longo da evolução do acompanhamento.

Foi utilizado como método a análise de conteúdo temática (Bardin, 2009). Como forma de rigor metodológico, as categorias temáticas foram definidas após a coleta dos dados em três fases: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados.

Na primeira etapa, a pré-análise, foram organizadas todas as entrevistas, e as ideias preliminares foram sistematizadas em quatro passos (leitura flutuante, revisão dos objetivos, escolha dos documentos e formulação de indicadores). Na segunda etapa, foram criadas as primeiras categorias, iniciando com o desmembramento do discurso das mulheres com posterior agrupamento/reagrupamento das unidades de registro das falas, com base na repetição de palavras e termos. A terceira etapa consistiu no tratamento dos dados, inferências e interpretação. Neste sentido, buscou-se interpretar as entrevistas, para apurar as categorias a que as falas se referiam, de acordo com o conteúdo que expressavam, correspondentes a determinadas discussões já existentes no campo dos estudos de gênero e trabalho.

As categorias criadas foram analisadas por dois examinadores, a fim de chegar-se a um consenso para proceder-se a análise e discussão. A opção por esse método de análise de conteúdo decorreu do fato de consistir em um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, que buscam observar a inferência de conhecimentos relativos às condições em que aquelas mensagens foram produzidas.

3. Resultados e Discussão

O quadro 1 apresentada demonstra o perfil das participantes do estudo quanto aos aspectos sociodemográficos. Nele pode-se observar a média de idade de 42,5 anos e o desvio padrão de 8,6 anos, com média de 1,5 filhos e desvio padrão de 1,3, mais da metade solteiras. Apenas cinco mulheres trabalhavam na ocasião da pesquisa. Observa-se ainda uma renda baixa, em que apenas uma participante apresentou o maior nível salarial (4 a 7 salários mínimos).

Quanto ao grau de escolaridade, oito mulheres tinham o ensino médio completo, quatro tinham o ensino fundamental completo e outras três, incompleto. Apenas uma relatou o ensino superior, porém, incompleto. Outras duas participantes não tinham a informação em prontuário.

Em relação aos tipos de violência relatadas, quatro reportaram violência sexual e outras quatro, violências domésticas. Os demais tipos foram: psicológica (n=3), psicológica e moral (n=2), física e psicológica (n=1), física, sexual e psicológica (n=1), física (n=1), agressão no trabalho (n=1), sexual e psicológica (n=1).

A seguir são apresentadas as quatro categorias geradas na análise do conteúdo das entrevistas.

3.1 CATEGORIA 1 - O Trabalho Precarizado e Informal

Quanto aos tipos de trabalho relatados pelas entrevistadas, podem ser agrupados em três grandes grupos: serviços domésticos, tais como cuidadora de idosos, babá, empregada doméstica; serviços comerciais: vendedora em papelaria, vendedora em loja de presentes, auxiliar de limpeza em shopping, administradora, secretária em escritório de advocacia, atendente de sorveteria, cozinheira em restaurante e garçonete em lanchonete, caixa de padaria, zeladora, empacotadora e setor comercial de jornal local; serviços relacionados à educação e arte, tais como monitora de professora, auxiliar de secretária em escola, dançarina e cobradora de ônibus; e serviços informais, como catadora de lata, doceira, entregadora de panfletos.

“Eu gosto de vender bijuteria, porque é bom que eu saio um pouco de casa, eu vejo pessoas quando eu estou na rua, quando eu vou ao Hospital de Base, conheci umas médicas lá, as atendentes. Aqui no HRT, eu já conheço algumas pessoas que já me compram.” (P6).

“Por causa da exigência da pessoa é que você tem que fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Você atende o balcão, aí limpa, aí você limpa e depois tem que limpar! Mas eu gostei muito de trabalhar de auxiliar de sala, de crianças. Eu trabalhei em uma escola e também gostei muito de trabalhar no shopping, que foi meu último emprego, como auxiliar de limpeza. Eu trabalhei lá e foi ótimo, gostei muito!” (P3).

O contexto apresentado na fala das usuárias assume características da ambivalência com o lugar do trabalho. As atividades laborativas assumidas com vínculos empregatícios precários, ou na ausência deles, o desempenho de multitarefas com baixa remuneração e a subordinação em meio às amplas exigências surgem como fatores estressores, que apontam para o desgaste físico-emocional das entrevistadas. Tendo em vista que essas limitações se impõem, é possível notar ainda a construção de relações de trabalho autônomas, capazes de gratificá-las, pelo fato de formarem novos vínculos e pela mobilização de habilidades sociais na relação com clientes.

“Eu só trabalhei de carteira assinada... Só pela conversa! Uma firma de limpeza, as outras tudo era casa de família, casa que tinha seis pessoas, muito serviço, e não era de carteira assinada. Ai, isso já tem 16 anos que eu tô com esse problema de fibromialgia. Cada dia que passa ela vai piorando.” (P14).

“Olha, eu sempre fui dona de casa. Trabalhar fora, eu nunca trabalhei. Trabalhei só um ano na casa de alguém e nunca trabalhei com carteira assinada. Eu trabalhava em casa mexendo com concertos e costuras e minha vida mais foi dona de casa mesmo.” (P16).

A ONG britânica Oxfam emitiu o relatório intitulado “A Desigualdade Econômica está́ fora de Controle", no qual expõe que o sistema econômico mundial sexista é o modelo responsável por reforçar abismos entre populações de ricos e pobres (O Globo, 2020).

O relatório acusa cerca de 2,5 bilhões de horas de trabalho realizadas pelas mulheres, todos os dias, sem remuneração alguma. Afirma ainda que os governos e as empresas ignoram esse dado, enquanto promovem a invisibilidade desse grupo e privilegiam outros processos de trabalho, no caso das empresas, reconhecidos como atividades de superior importância, por agregar capital e promover lucros.

3.2 CATEGORIA 2 - As Diferentes Formas de Violência e sua Relação com o Trabalho

Há, nas narrativas, um trânsito entre situações geradoras de sofrimento e as consequências do adoecimento em torno de um processo de vulnerabilização, alicerçado nas relações de violência. Cabe considerar que a subordinação compreende aspectos de violência simbólica (Bourdieu, 2003) e isto perpassa os espaços sociais, familiares e profissionais das mulheres. O silêncio (experiências guardadas) e a posição de apassivamento parecem ser o retrato do que impõe ao feminino a ideia socialmente construída daquilo que é submisso por natureza.

Para além desse aspecto, a concretude das violências não deixa de estar representada em agressões e abusos evidenciados em suas experiências. A relação com o trabalho que adoece, no entanto, torna-as necessárias, traduz a mensagem contraditória de sofrer e não abrir mão da recompensa de um lugar de importância, o qual ninguém é capaz de ocupar da mesma forma. Estas circunstâncias estão em torno da organização de uma imagem positiva de si, isto é, uma percepção que confronta os sentimentos de incapacidade, ainda que o custo desse lugar seja, de igual modo, sacrificante e adoecedor.

“Já é a terceira vez que eu trabalho com ela. É tanto que não dava nem a carteira pra puxar, e as últimas duas vezes ela pediu porque eu saía. Aí ela vai chamando gente... Aí num dá conta de ficar no lugar que eu tava. Aí eu passo um tempo, e ela me chama de volta. Aí eu volto, aí eu já tô melhor. Aí eu volto, mas toda vez que eu volto, eu adoeço, eu fico doente.” (P2).

“Eu queria um futuro melhor para os meus filhos, mas eu não conseguia. Eu só tenho experiência em padaria. Eu sei administrar uma padaria. Ele [o patrão] me batia, quando eu perguntava onde ele estava. E ainda me jogou na justiça.” (P15).

“Trabalhar com homem, eu já tive esse problema. Trabalhei aqui bem pertinho com advogados e vários estagiários. O dono era um senhor. Ele me assediava 24 horas por dia. Quando a esposa dele chegava, ele falava que eu era lerda, que eu não sabia fazer nada.” (P4).

Em concordância com essas observações, Castro et al. (2023) discutem a precarização das relações de trabalho no mundo contemporâneo e apontam que o trabalho pode operar tanto como fonte de bem-estar quanto como um campo de vulnerabilidade, de modo que esta contraposição, por vezes, ocasiona uma série de adoecimentos físicos e psíquicos, que são sempre analisados individualmente, sem considerar os dispositivos do capitalismo, como lucro e produtividade. De igual modo, as mulheres são representadas entre as maiores vítimas de estereótipos, discriminação e assédio moral. Recorrentemente, esses tipos de violências contra a mulher são manifestadas de forma sutil ou perversa (Vaz et al., 2023).

“Eu sofri a violência do preconceito né, e também, uma vez, o patrão quis abusar de mim. Na realidade, esse caso foi parar na delegacia, porque a patroa disse que ele era um homem santo. Aí depois que eu chegava, ele me atendia de cueca. Um dia ele mostrou as partes íntimas pra mim. Aí o dia que eu fui falar pra ela, ele me deu um chute na perna. Eu desci do apartamento e fui pra delegacia.” (P1).

“Eu fiquei sendo secretária dele 3 anos, mas, o que me incomodou, foi que ele me assediava muito sexualmente. Eu acho que ele confundiu, por ele ter me arranjado esse emprego. Ele achava que eu ia, é... dormir com ele, transar com ele. As propostas indecentes, tipo assim: Hoje vamos para o motel, hoje vamo!” (P6).

Como reflexo das situações de abuso sexual são descritas sensações de insegurança na relação com os homens em momentos distintos: já antes do contato com o ambiente de trabalho (infância e adolescência) e na experiência com os empregadores na vida adulta. Essas narrativas remontam ao histórico de violências sexuais, o qual é mobilizador das emoções de medo e desmerecimento presente nas condições impostas pelos ambientes de trabalho, elementos que ornamentam uma estrutura complexa de situações geradoras de angústia, as quais resultam, em sua maioria, no afastamento do ambiente de trabalho e na precipitação de quadros psicossomáticos.

3.3 CATEGORIA 3 - Atravessamentos dos Sonhos: onde as Mulheres se Sentem (in)Capazes?

As histórias de vida, em geral, são permeadas pelos intervalos entre a experiência sonhada e a realizada. A transposição dos anos desperta os desejos e, em torno deles, o desconforto das possibilidades inalcançadas, além de sentimentos de menos-valia e frustração com as expectativas acerca dos projetos de vida. Médica, ambientalista, psicóloga, cabeleireira, ser capaz “como um homem”, ter uma profissão, experiências/habilidades de trabalho, entre outros anseios, revelam a posição de mulheres que vislumbraram potencialidades e se decepcionaram com os impedimentos para realizar seus objetivos.

As entrevistadas perceberam a importância da escolarização como um aspecto importante para a realização de seus projetos pessoais, no entanto as atribuições domésticas iniciaram-se demasiadamente cedo na experiência delas. As prioridades dessas mulheres passaram a se delinear em torno de terceiros, o que acarretava prejuízos para a entrada e permanência em processos formativos e profissionalizantes. Esse contexto era demarcado pela inserção precoce dessas mulheres em funções conjugais e de maternidade.

“Eu parei de estudar na quinta série, com quatorze anos. Na verdade, eu parei de estudar antes de casar, né. Eu perdi minha mãe muito cedo, fui criada em uma estrutura familiar muito complicada né, que meus tios eram alcoólatras, viciados em drogas, e aí eu não tive um pulso forte para me manter na escola, né. Tentei retornar depois que eu fui mãe, mas num dá pra conciliar as duas coisas. Não consegui. Eu era muito nova. Tinha um casamento problemático também. Meu marido era violento, enfim, o tempo passou e eu acabei assim perdendo aquela vontade, entendeu? Na verdade, eu não perdi, ficou adormecida, né, e aí até hoje não retomei.” (P11).

“Devido aos acontecimentos da minha vida... de ter filhos muito cedo, de ter me tornado dona de casa muito cedo, acabei abrindo mão dos meus sonhos. De dar continuidade aos meus estudos, de me profissionalizar com o que eu sempre tive vontade. que era a psicologia, né?” (P12).

“Eu trabalhava com meu filho no carrinho. Meu filho era pequeno ainda. Com 2 anos e pouco, 4 anos. Eu trabalhava com eles, não tinha com quem deixar. Deixava na creche, antes não tinha creche. Ficava com medo.” (P13).

Uma vez que as atribuições de cuidado se instalavam, essas mulheres evidenciavam perdas em seus investimentos de formação e trabalho, além do surgimento de conflitos na família que se somavam às barreiras para a dedicação em projetos pessoais paralelos à organização familiar.

“Ganhar mais ou menos. Eu acho que, com certeza, era o direito das mulher ganhar mais, porque tem mulher que, além de tudo, de trabalhar fora, quando chega em casa também vai trabalhar novamente, né? Vai fazer o quê? comida, vai cuidar dos filho, e ainda vai lavar o quê? as roupas dos macho né, dos marido né? Então, quem é que trabalha mesmo, na verdade, assim? Pra mim, é as mulheres, né?” (P18).

Oneradas pelo acúmulo de suas tarefas, as mulheres verbalizaram a insatisfação com a desigualdade percebida na remuneração do trabalho que exerciam, bem como a necessidade de reconhecimento da sobrecarga inerente a esse conjunto de demandas. Os sinais de adoecimento, principalmente as dores representadas no corpo e nos estados depressivos, começavam a apresentar os limites do sofrimento vivenciado ao longo das trajetórias de vida e a comunicar dificuldades no seguimento dos projetos e anseios de realização profissional, além de serem elementos limitadores para o cumprimento das exigências cotidianas de trabalho.

Por vezes, os sintomas de sofrimento psíquico foram responsáveis pelo afastamento e renúncia dessas mulheres ao exercício de seus trabalhos remunerados. Entretanto, há uma intersecção desses discursos no que tange à função protetiva do trabalho enquanto lugar social, de pertencimento a uma lógica de consumo que promove contratualidade e devolve autonomia a essas mulheres, por meio de seu poder de compra, ou seja, de independência financeira em suas relações familiares.

3.4 CATEGORIA 4 - O Rótulo da Loucura e a Relação com o Trabalho

É indispensável considerar, na análise, que as mulheres entrevistadas compreendiam um agrupamento com diagnósticos psiquiátricos, os quais estavam permeados de representações sociais acerca da loucura. Além disso, a noção difundida socialmente de que possuir um transtorno mental significa estar inapto ou limitado em suas atribuições, costuma gerar mais insegurança e resultar em profecias autorrealizadoras. Nesse sentido, as reações de frustração podem favorecer ainda mais barreiras de atuação profissional em razão das limitações de crença em si mesmo e, portanto, gerar limitações no processo criativo necessário à resiliência.

“Tem gente que não sabe que eu trato no Caps, pessoas vizinhas, porque elas discriminam, não sei por que, não se eles pensam que a gente é louco, doido. Um dia uma vizinha minha falou: “não, ali mora aquela louca”, mas eu não sou louca, eu sou um pouco, assim, nervosa. Não sou louca. Eu não me trato como uma louca.” (P1).

“Não consigo ficar em uma festa, reunião, festa de família. Eu sou grata aos CAPS. Mas as pessoas que recebem remédios controlados não são bem vistas na sociedade. É muita humilhação.” (P15).

“Como vai ser sua passagem, é, essas coisas, como a gente tem essa carteirinha aqui, essa do Passe Livre, você não pode receber vale da empresa. Então não tem como você esconder que tem um problema psiquiátrico. E quando você fala que tem problema psiquiátrico, geralmente as empresas não contratam você.” (P3).

As categorias anteriores expuseram uma série de eventos estressores e precipitadores de sofrimento em mulheres. Embora elas apresentassem ampla capacidade de ajustamento entre as demandas de trabalho doméstico e sua produtividade extradomiciliar, os efeitos dessas exigências pareciam somar-se ao adoecimento psíquico.

Nesse aspecto, o estudo de Bragé et al. (2020) investigou o perfil de internações psiquiátricas femininas e ressaltou a elevada ocorrência de transtornos mentais nessa população, de diferentes faixas etárias e fases do ciclo reprodutivo. Observaram ainda a ocorrência mais frequente dos diagnósticos de depressão (46,4%) e do transtorno de humor bipolar (23,9%). Esse cenário aponta para a necessidade de políticas de atenção à saúde mental das mulheres, que possam abranger essa demanda complexa e interseccional. Uma vez que o sofrimento mental por elas apresentado é entremeado de estigmas e de uma sobrecarga sociocultural de violência, as agendas de enfrentamento a essas iniquidades necessitam contar com uma rede intersetorial de programas e serviços articulados que possam ofertar o suporte necessário.

4. Considerações Finais

O estudo, que objetivou compreender as experiências de trabalho de mulheres vítimas de violência atendidas em um serviço de saúde mental, apoiou-se nas falas de mulheres assistidas em um serviço do CAPS. A análise do conteúdo das falas, permitida pelo método adotado na pesquisa, mostrou que as várias influências encontravam-se associadas ao trabalho, sendo este, de modo geral informal e ocorriam num cenário no qual as participantes relataram relações precárias de exploração, violência e baixa remuneração. As falas das mulheres entrevistadas tornaram possível alcançar as dimensões objetivas e subjetivas do sujeito e de sua relação com a atividade laboral.

Os trabalhos ocupados por essas mulheres exigiam pouca qualificação. As experiências compartilhadas por elas indicaram que o adoecimento, a cobrança, as condições desiguais em relação ao homem, a necessidade de medicamentos e de terapia, a dependência familiar ou mesmo a expectativa social de cuidar dos filhos eram elementos-chave para a compreensão do quão difícil é para elas continuar trabalhando ou ir em busca de oportunidades de trabalho, muito embora todas elas estivessem em idade produtiva.

Os sonhos de estudar, associados ao estigma, pareceram um aspecto de grande influência na empregabilidade.

É importante ressaltar que, mesmo com as múltiplas vulnerabilidades, tais mulheres mostraram-se na construção de arranjos frente à nova condição de vida e de adoecimento. E mesmo com a perda da funcionalidade, existiam potenciais, habilidades e projetos.

Entre as limitações deste estudo, inclui-se a não devolução dos resultados da pesquisa tanto às participantes, como à equipe do CAPS, pois a finalização coincidiu com o advento da pandemia do coronavírus e as mudanças de gestão e de profissionais. Esses fatores dificultaram o acesso às mulheres e à equipe anterior, que acompanhou a pesquisa.

Considera-se que o engajamento em empreendimentos solidários seja uma alternativa de trabalho para o coletivo feminino e, ao mesmo tempo, uma estratégia de empoderamento potencialmente capaz de prevenir a violência no local de trabalho e minimizar vulnerabilidades e interseccionalidades expostas por essas mulheres.

Sugere-se a realização de pesquisas que abordem as estratégias de empoderamento no âmbito da atenção psicossocial como recursos preventivos, bem como as correlações entre estigma e adoecimento frente à empregabilidade de mulheres usuárias dos serviços de saúde mental. Espera-se que estes resultados orientem condutas entre os profissionais de saúde e educação, bem como aspectos da dinâmica institucional dos serviços que trabalham com este tema.

Para finalizar, a metodologia utilizada em estudos sobre gênero, trabalho e mulheres é reconhecidamente eficaz, uma vez que, ao ouvir suas narrativas, dá voz e significado às histórias e experiências, além de contribuir para uma discussão maior no campo da saúde mental e de gênero.

5. Referências

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Recebido: 30 de Março de 2023; Aceito: 30 de Setembro de 2023

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