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New Trends in Qualitative Research

On-line version ISSN 2184-7770

NTQR vol.18  Oliveira de Azeméis Oct. 2023  Epub Nov 30, 2023

https://doi.org/10.36367/ntqr.18.2023.e884 

Artigo Original

Percepção dos Pacientes com Doença Renal Crônica sobre os Impactos do Tratamento na Atividade Profissional

Perception of Patients with Chronic kidney Disease about the Impacts of Treatment on Professional Activity

Ana Larissa Teles Cabral1 
http://orcid.org/0000-0002-3745-2380

Brena Barreto Barbosa2 
http://orcid.org/0000-0002-1536-614X

Lia Silveira Adriano1 
http://orcid.org/0000-0002-7329-6178

Ântónio Augusto Ferreira Carioca1 
http://orcid.org/0000-0002-1194-562X

Geraldo Bezerra da Silva Junior1 
http://orcid.org/ https://orcid.org/0000-0002-8971-0994

1 Universidade de Fortaleza, Brasil

2 Universidade Estadual do Ceará, Brasil


Resumo

Introdução: A vida das pessoas com Doença Renal Crônica (DRC) é alterada em diversos aspectos. Dentre eles, o trabalho destaca-se como um dos que sofrem profundas consequências e comprometimento na sua continuidade. Embora existam estudos sobre as limitações impostas pelo tratamento da DRC nas atividades profissionais, a percepção dos pacientes em relação a essas limitações ainda é pouco explorada na literatura. Objetivo: Conhecer as percepções dos pacientes renais crônicos, em hemodiálise e transplantados renais, sobre as limitações impostas pelo tratamento nas suas atividades profissionais. Métodos: Estudo qualitativo, realizado com 21 pacientes com DRC (13 em tratamento de hemodiálise e 8 transplantados renais). A coleta de dados se deu por meio de entrevistas, a partir de um roteiro semiestruturado, e submetidas à análise de conteúdo, na modalidade temática. Resultados: Foram identificados três temas de análise: 1. Diagnóstico e acesso ao tratamento; 2. Limitações nas atividades diárias e no trabalho e 3. Mudanças relacionadas ao trabalho e apoio familiar. Entre os pacientes com hemodiálise, a necessidade de realizar sessões frequentes foi citado como um dificultador para a retomada das atividades laborais. Mesmo entre os pacientes transplantados, as limitações físicas e os cuidados pós-cirúrgicos afetaram a produtividade e a capacidade de retorno ao trabalho da maneira habitual. Conclusões: As mudanças experimentadas pelos entrevistados após o início do tratamento da DRC afetaram sua capacidade de retornar ao trabalho, e o apoio familiar foi considerado essencial para facilitar esse processo. A pesquisa qualitativa se mostrou uma ferramenta importante no entendimento de como as mudanças na vida do paciente renal crônico após o início do tratamento afetam sua capacidade de retornar ao trabalho.

Palavras-Chave: Doença Renal Crônica; Hemodiálise; Transplante Renal; Reinserção no Trabalho

Abstract

Introduction: The lives of people with Chronic Kidney Disease (CKD) are changed in several ways, among them, work stands out as one of those that suffers profound consequences and compromises its continuity. Although there are studies on the limitations imposed by the treatment of CKD in professional activities, the perception of patients in relation to these limitations is still little explored in the literature. Objective: To know the perceptions of chronic kidney patients, on hemodialysis and kidney transplant patients, about the limitations imposed by the treatment in their professional activities. Methods: Qualitative study, carried out with 21 patients with CKD (13 on hemodialysis and 8 with kidney transplant). Data collection took place through interviews, based on a semi-structured script, and submitted to content analysis, in the thematic modality. Results: Three analysis themes were identified: 1. Diagnosis and access to treatment; 2. Limitations in daily activities and work and 3. Work-related changes and family support. Among hemodialysis patients, the need for frequent sessions was cited as a barrier to resuming work activities. Even among transplant patients, physical limitations and post-surgical care affected productivity and the ability to return to work as usual. Conclusions. The changes experienced by respondents after starting CKD treatment affected their ability to return to work, and family support was considered essential to facilitate this process. Qualitative research proved to be an important tool in understanding how changes in the life of chronic renal patients after starting treatment affect their ability to return to work.

Keywords: Chronic Kidney Disease; Renal Dialysis; Kidney Transplantation; Return to Work.

1. Introdução

A Doença Renal Crônica (DRC) é um importante problema mundial de saúde pública cuja incidência e prevalência vêm aumentando consideravelmente, acarretando altos custos para o sistema de saúde decorrentes da complexidade do seu tratamento (Stanifer, Muiru, Jafar, & Patel, 2016). O tratamento da DRC ocorre de acordo com a evolução da doença, podendo ser conservador, nos estágios iniciais, com uso de medicamentos, modificações dietéticas e restrição hídrica; e, na DRC avançada, quando o tratamento conservador se torna insuficiente, pode ser necessário iniciar o processo de diálise, que substitui parcialmente a função dos rins. Como última alternativa de tratamento, existe a possibilidade do transplante renal (Riella, 2003), que pode proporcionar uma melhora na qualidade de vida, maior sobrevida, e custos mais baixos em saúde, em comparação com a diálise a longo prazo (Santos et al., 2018).

A vida das pessoas com DRC é alterada em diversos aspectos, dentre eles, o trabalho destaca-se como um dos que sofrem profundas consequências e comprometimento na sua continuidade. A rotina de tratamentos a que são submetidos os indivíduos, principalmente que estão em processo de diálise, ocasionam limitações físicas, modificando o cotidiano desses pacientes (Marinho, de Oliveira, da Silva Borges, da Silva, & Fernandes, 2017). Mesmo entre os transplantados renais, a reinserção no mercado de trabalho é dificultada, devido aos cuidados pós-cirúrgicos e ao medo da perda dos benefícios sociais (Costa & Nogueira, 2014).

Para além das restrições físicas, as representações sociais de uma doença constituem um ponto de vista pessoal, que podem mudar ao longo do tempo e influenciar diretamente as estratégias de enfrentamento utilizadas para lidar com os problemas e as emoções e à adesão ao tratamento (Chirinos, Meirelles & Bousfield, 2015). Ainda existem questões a serem exploradas em profundidade a respeito dos fatores cognitivos, emocionais e do comportamento de indivíduos com DRC interferentes em sua relação com o trabalho, que devem ser levadas em consideração na implementação de um atendimento integral pelos profissionais de saúde, objetivando melhorar a qualidade de vida desses pacientes (Cruz, Tagliamento, & Wanderbroocke, 2016).

Diante do exposto, o objetivo desse estudo foi conhecer as percepções dos pacientes renais crônicos, em hemodiálise e transplantados renais, sobre as limitações impostas pelo tratamento nas suas atividades profissionais. Nossa questão de investigação foi “Quais são as percepções dos pacientes renais crônicos, em hemodiálise e transplantados renais, quanto às limitações impostas pelo tratamento nas suas atividades profissionais?”.

2. Metodologia

Escolheu-se a pesquisa qualitativa por ser centrada nos esquemas interpretativos de compreensão de dinâmicas, executada pela interação do observador com o sujeito de pesquisa, com vistas a compreender a percepção que os doentes renais crônicos em hemodiálise e pós-transplantados atribuem ao trabalho.

No contexto da abordagem qualitativa, Minayo (2012), explica que a pesquisa qualitativa é de base empírica e ocupa-se, nas Ciências Sociais, com um nível de realidade que não pode ou não deveria ser quantificado; ou seja, ela trabalha com um universo dos significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, que se fazem evidentes no quadro de referência em que foi coletado.

A pesquisa foi realizada em duas unidades de saúde na região metropolitana de Fortaleza, capital do Estado do Ceará, Brasil, que prestam assistência à portadores de DRC, em seus diversos estágios e disponibilizam atendimento aos pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), quais sejam: Hospital Geral de Fortaleza (HGF) e a Clínica de Doenças Renais e Hipertensão Arterial (Rim Centro).

A escolha dos campos se deu, primeiramente, devido à importância que o HGF representa para os pacientes de todo o Ceará e estados vizinhos, destacando-se nacionalmente como programa de transplantes. Quanto à escolha do Rim Centro, deu-se devido à demanda que a clínica tem de pacientes, por serem de vários municípios próximos, nos permitindo conhecer a realidade de todo esse público e pelo tempo que a empresa atua na área. O estudo foi realizado no ambulatório do transplante HGF, e nas salas de hemodiálise do Rim Centro.

Os participantes da pesquisa foram pacientes renais crônicos em tratamento dialítico, e transplantados renais, que foram incluídos no estudo por conveniência, de modo consecutivo e não probabilístico, utilizando os princípios da amostragem intencional. Foram incluídos na pesquisa os pacientes maiores de 18 anos, pacientes que estavam fazendo tratamento de hemodiálise há mais de três meses, e transplantados renais a mais de três meses. Foram excluídos da pesquisa crianças e pacientes com algum déficit cognitivo que não estivessem aptos a participar da entrevista. A amostra foi composta por 21 pacientes (13 em tratamento hemodialítico e 8 transplantados renais).

A coleta de dados foi realizada no ano de 2017, por meio de entrevistas semiestruturadas, com duração média de 30 minutos, as quais foram realizadas durante as sessões de hemodiálise e antes das consultas de seguimento pós-transplante e conduzidas por uma estudante de mestrado em Saúde Coletiva. O fechamento amostral se deu por saturação do conteúdo. Portanto, a inclusão de participantes foi interrompida no momento em que o pesquisador identificou que o material obtido foi suficiente, por apresentar redundância das informações (Fontanella et al., 2011). As falas dos entrevistados foram gravadas em áudio, mediante a autorização e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Um roteiro semiestruturado foi adotado como um impulsionador da fala, constando os seguintes quesitos: 1. Caracterização do Sujeito (data de nascimento, sexo, escolaridade, estado civil, vínculo empregatício, profissão, período que exerce a profissão e anos de trabalho); 2. Características da Doença (doença de base, tempo de diálise ou tempo de transplante); e 3. Questões Norteadoras (“Fale sobre a descoberta da doença nos rins”; “Depois da doença, o que mudou na sua vida e na sua rotina?”; “Como ficou a sua vida profissional após o transplante/hemodiálise?”; “Quais as razões de não retornar a sua atividade profissional?)”.

As características dos participantes foram descritas na tabela 1.

Tabela 1 Características dos participantes do estudo. 

Fonte: elaborada pelos autores

O roteiro-guia utilizado orientou não só o trabalho de coleta, como também o de organização dos dados segundo três eixos temáticos. Esses temas, por sua vez, funcionaram como orientadores dos sistemas classificatórios (núcleos de sentido) durante o processamento de dados (quadro 1) conforme a proposta operativa da Análise de Conteúdo de Bardin (2011).

A Análise de Conteúdo busca a compreensão dos significados no contexto das palavras para atingir uma interpretação mais profunda do conteúdo do discurso, cuja proposta maior é fazer uma análise focalizando o sentido das palavras, ultrapassando o alcance meramente descritivo da mensagem e a utilização de técnicas quantitativas das falas (Bardin, 2011).

A operacionalização desse momento acontece por meio de três fases: 1. Ordenação dos dados (fase que envolve a classificação dos relatos e observações desde o do contato tanto com as entrevistas quanto com os documentos selecionados para análise, em que foi realizada a leitura aprofundada das falas transcritas para sistematizar as impressões iniciais do conteúdo); 2. Classificação dos dados (etapa na qual foi realizada a leitura detalhada de cada entrevista, registrando as primeiras impressões e, desde então, constituindo em núcleos de sentidos e na codificação, por meio da redução do texto a expressões ou palavras de significância e posterior agregação em categorias temáticas); e 3. Análise final dos dados - considerada importante para compreensão e interpretação das falas, permitiu a classificação dos elementos segundo suas semelhanças e diferenças, com posterior agrupamento em função das características comuns (Bardin, 2011). Os achados foram apresentados em quatro temáticas e seus respectivos núcleos de sentidos.

O estudo foi desenvolvido com base nos princípios legais e éticos que devem ser seguidos nas investigações envolvendo seres humanos, conforme a Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2013). Assim, os participantes da pesquisa foram previamente informados acerca dos objetivos e da sua justificativa, sendo-lhes assegurado o sigilo das informações e a privacidade, de forma a proteger-lhes a imagem, evitando qualquer prejuízo ou danos físicos. Os dados serão mantidos sob guarda por cinco anos, devendo ser posteriormente apagados. Foram respeitados os valores sociais, culturais, religiosos e também morais. Para não ser revelado o nome real dos pacientes, foram utilizados pseudônimos, com nomes de pássaros, tendo em vista o alcance desses pacientes, que podem ter uma melhor qualidade de vida após o transplante.

A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Fortaleza, tendo sido aprovada pelo Parecer de Número 1.747.820/2016.

3. Análise de Dados

Esta seção é dividida em duas etapas: eixos temáticos e núcleos de sentidos. Conforme preconizou-se, são três os temas de análise, a saber: 1. Diagnóstico e acesso ao tratamento; 2. Limitações nas atividades diárias e no trabalho e 3. Mudanças relacionadas ao trabalho e apoio familiar.

3.1 Diagnóstico e acesso ao tratamento

O primeiro eixo temático explora a descoberta do diagnóstico da doença, as mudanças ocorridas na vida dos sujeitos, e como se deu o percurso dos mesmos na rede de atenção à saúde até o início do tratamento.

Este eixo temático foi analisado a partir de dois núcleos de sentido: 1. Mudanças na vida cotidiana do renal crônico após diagnóstico e 2. Acesso ao tratamento.

3.1.1 Mudanças na vida cotidiana do renal crônico após diagnóstico

Diversas foram as alterações mencionadas na rotina pessoal dos entrevistados, em especial as mudanças com cuidados em saúde. Entre os pacientes em hemodiálise, houve predominância de modificações consideradas negativas, com comprometimento das atividades de descanso e lazer.

“Mudou tudo, porque você fica mais na clínica do que em casa. Quando não é na hemodiálise, é no hospital fazendo exame, e eu gostava muito de viajar e não pode. [...] Gostava de fumar e beber, e também não pode” (BEIJA-FLOR).

Os pacientes em hemodiálise costumam frequentar os centros de diálise duas ou três vezes por semana, durante três a quatro horas por sessão, o que pode interferir tanto na vida pessoal quanto profissional (Wright & Wilson, 2015). As hospitalizações frequentes, a necessidade de seguir dietas restritivas, as manifestações cutâneas e mucosas da doença, impõem mudanças que impactam na qualidade de vida, fazendo com que a dependência da hemodiálise seja acompanhada tanto de sentimentos positivos como negativos (Miri, Rahnama, & Naderifar, 2022).

Entre os entrevistados transplantados, predominaram as mudanças positivas associadas aos maiores cuidados com a saúde, e a uma maior autonomia proporcionada pelo transplante.

“Mudou para melhor, porque antes eu comia de tudo assim, né?! Aquelas porcarias, salgado, feijoada, fritura, que hoje não como mais. Só não podia viajar muito, mas depois que eu transplantei consigo viajar mais, bebo muita água, o que não podia na hemodiálise” (CANTADOR).

Para os transplantados renais, o transplante proporciona uma melhora da qualidade de vida, representada pela reconquista da saúde, melhor desempenho das atividades diárias, maior liberdade e independência, possibilitando ganhos qualitativos no cotidiano e melhora do bem-estar geral (Santos et al., 2018). Em comparação à diálise, o transplante renal oferece melhores condições de vida, porém exige que os pacientes adotem uma disciplina contínua e complexa de autocuidado, já que a não adesão aos cuidados em saúde é uma das principais causas de rejeição do transplante (Jamieson et al., 2016).

3.1.2 Acesso ao tratamento

O diagnóstico tardio da DRC foi mencionado entre os entrevistados. A incerteza inicial quanto à presença da doença renal por parte dos profissionais de saúde contribuiu para um prolongamento da permanência dos pacientes na rede de atenção à saúde, que não foi associado a um cuidado direcionado à prevenção do agravo da doença.

“[...] o médico passou um antibiótico, porque sempre que sentia infecção ia para o hospital, mas aí foi se agravando e me mandaram para o HGF. No HGF me deram um remédio, [...] lá constataram que foi o alto consumo de medicamento que parou meu rim” (ALBATROZ).

“Descobri por causa da infecção urinária! Eu ia sempre para o Hospital das clínicas, vivia internada, porque tinha pneumonia também, só tratando, mas eu ia para casa e tinha infecção urinária de novo, [...] quando fizeram o raio-x, tava a metade do rim comprometido” (CORUJA).

A progressão da DRC pode ser interrompida ou aliviada se for diagnosticada em um estágio inicial. Infelizmente, não há sintomas clínicos específicos até que ocorram danos mais graves (Wang et al., 2019). Nesse contexto, a Atenção Primária à Saúde (APS) exerce papel fundamental. Na APS, o diagnóstico da DRC deve acontecer com maior eficiência, pois é possível proporcionar a triagem e o manejo dos pacientes nos estágios iniciais da doença e realizar os encaminhamentos adequados no momento oportuno, de forma a contribuir ao acesso precoce ao tratamento (Bravo-Zúñiga, Gálvez-Inga, Carrillo-Onofre, Chávez-Gómez, & Castro-Monteverde, 2019).

Para além do diagnóstico tardio da DRC, foi possível perceber a dificuldade de acesso ao tratamento, por alguns entrevistados, devido à distância existente entre o local de moradia e o centro de diálise.

“Eu tive que vender tudo, vendi a barraca, a casinha que eu tinha em Cascavel [interior do Ceará], para vir morar em Fortaleza, e comprei uma casa aqui. Só que eu era acompanhado no centro de diabetes desde 2008, porque eu já tinha hipertensão e diabetes, tomava medicação” (GAVIÃO).

Nas grandes cidades brasileiras, as unidades de diálise são próximas das residências dos pacientes. Entretanto, nos municípios menores, principalmente no Norte e Nordeste do país, a distância dos centros de diálise e a pouca disponibilidade dos mesmos é motivo para que os pacientes percorram longas distâncias em busca de atendimento (Ritt et al., 2007), sendo as dificuldades de acesso ao tratamento hemodialítico um dos principais obstáculos na atenção à saúde das pessoas com DRC (Mercado-Martinez et al., 2015).

3.2 Limitações nas atividades diárias e no trabalho

O segundo eixo temático analisa as consequências do tratamento da DRC na execução das atividades de rotina e no trabalho. Encontra-se associado a dois núcleos de sentido: 1. O estigma da DRC; e 2. As repercussões do tratamento da DRC.

3.2.1 O estigma da DRC

Alguns dos entrevistados relataram dificuldades de inserção no mercado de trabalho após diagnóstico e início do tratamento da DRC. O estigma da doença os fez serem considerados inaptos à atividade profissional.

“Mudou a minha vida com relação ao trabalho porque hoje a doença renal é considerada doença, doença mesmo, e quem está doente não pode trabalhar. E não tem nenhuma empresa, nenhuma firma, nenhum concurso público que vá mudar essa aceitação [...]. Eu fiz dois concursos públicos e não passei porque fui reprovada no teste de saúde.” (BEIJA-FLOR)

O estigma é conceituado como uma marca depreciativa que inabilita os sujeitos, julgando-os como desviantes e reduzindo-os à uma característica específica (Goffman, 1988). A DRC impõe suas marcas no cotidiano, fazendo com que os indivíduos se sintam depreciados pela perda do seu status social, ocasionada pela discriminação em sua vida pessoal e em sua capacidade para o trabalho (Capistrano et al., 2022).

O relato dos entrevistados também aponta para uma caracterização das pessoas com DRC como deficientes pelos profissionais da saúde, de forma a inseri-los na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (lei nº 13.146/2015), como forma de garantir uma fonte de renda por meio dos benefícios de assistência social.

“Os próprios médicos acharam por bem me aposentar! Então hoje em dia eu sou aposentado, aí aposentado não pode trabalhar de carteira assinada, então tive que ir para um outro seguimento e trabalhar como autônomo” (CANTADOR).

As mudanças na vida profissional são algumas das que mais afetam o paciente renal em idade produtiva, devido à dificuldade de conciliar o tratamento com um emprego formal. A maioria não consegue permanecer no mercado de trabalho, sendo necessária a procura por benefícios de assistência social que, em boa parte das vezes, é inferior à renda anterior do indivíduo (Marinho, de Oliveira, da Silva Borges, da Silva, & Fernandes, 2017).

3.2.2 As repercussões do tratamento da DRC

Os pacientes em hemodiálise, que possuíam atividade laboral anterior, referiram limitações das condições físicas após as sessões de tratamento, impossibilitando-os de manter uma jornada de trabalho habitual.

“Às vezes a gente sai bem da diálise, mas tem dia que a gente sai cansadinha e indisposta. Por causa dos horários que eu saio de casa, saio 9 horas da manhã, chego aqui e faço a diálise no horário da tarde e só chego em casa lá para às 17 horas, então como é que vou [trabalhar]? Só se fosse para trabalhar um dia sim e um dia não” (CANÁRIO).

Em estudo que avaliou a capacidade funcional e a qualidade de vida de pessoas com DRC sob tratamento de hemodiálise, foi observada redução da capacidade funcional, que resultou na dificuldade de realização de atividades básicas, além do comprometimento de atividades de lazer, de convívio social e de trabalho, interferindo negativamente na qualidade de vida (Fassbinder, Winkelmann, Schneider, Wendland, & Oliveira, 2015).

As consequências do tratamento da DRC vão além das limitações físicas. As questões psicológicas e emocionais também despontaram na fala dos entrevistados, ainda que de forma indireta. Como ilustra a fala a seguir, em que foi atribuído o significado de morte à não adesão ao tratamento da hemodiálise.

“Bem, esse tratamento lhe prende muito. Três vezes na semana, você tem que estar aqui. Se você não estiver, passa mal ou morre. Então tem que dar prioridade a esses dias para você estar aqui” (ROUXINOL).

A hemodiálise é uma possibilidade importante para a preservação da vida do doente renal, porém, ao mesmo tempo em que é percebida como uma oportunidade de recuperação, é também descrita como uma experiência debilitante. Outra questão ambígua em relação à hemodiálise é a convivência com a possibilidade da morte, já que não dialisar pode significar a perda da vida (Santos et al., 2018). Devido a essas repercussões pessoais na vida do paciente com DRC em hemodiálise, existe uma grande associação entre esse tipo de tratamento e a depressão (Pretto et al., 2020), sendo os sintomas depressivos acentuados naqueles que não exercem atividade laboral (Andrade, Sesso, & Diniz, 2015).

3.3 Mudanças relacionadas ao trabalho e apoio familiar

O terceiro eixo temático aborda as alterações na rotina dos entrevistados que exerciam alguma atividade laboral anterior ao tratamento de hemodiálise ou ao transplante, e como, com o apoio de familiares, conseguiram manter uma rotina de trabalho. Este eixo temático foi analisado por meio de dois núcleos de sentido: 1. Mudanças ocorridas na atividade profissional e 2. Apoio familiar no processo de trabalho.

3.3.1 Mudanças ocorridas na atividade profissional

A perda do status social ocasionada pelas mudanças impostas pela DRC e as incertezas futuras a respeito da vida laboral foram assuntos mencionados com sentido de importância tanto pelos entrevistados transplantados como para os que estavam em hemodiálise.

“A minha vida salarial caiu demais, eu ganhava um valor, agora eu ganho outro. Agora não né, quando comecei a fazer hemodiálise [...]” (CALOPSITA).

O trabalho, quando causador de significado existencial, tem profunda relação com o autoconceito e a autopercepção do papel que o indivíduo exerce na sociedade (Andrade, Sesso & Diniz, 2015).

A permanência do trabalho preserva parcialmente a vida como era antes da doença, representa uma alteração menor da rotina, além da manutenção da identidade, da dignidade, da independência e da saúde mental (Cruz, Tagliamento, & Wanderbroocke, 2016).

“Eu era um empresário de sucesso, eu tinha muitos funcionários, gerava emprego, tinha um poder aquisitivo médio alto, tinha uma vida social, e aí perdi tudo. Tive que fechar a empresa, perdi todos os equipamentos, porque eu fui considerado morto, porque eu estava no hospital” (SABIÁ).

Em estudo que analisou a percepção de homens em tratamento hemodialítico, foi observado que esse público sofre com a perda do status social, o descrédito e o afastamento das pessoas do seu convívio, além do sentimento de solidão, de abandono e do tratamento diferenciado de familiares. O estereótipo do “doente” distancia os homens do modelo de masculinidade imposto pela sociedade e ocasiona a perda do poder social, que antes da doença era centralizado no homem como provedor da família (Capistrano et al., 2022).

3.3.2 Apoio familiar no processo de trabalho

Os pacientes destacaram o apoio de familiares, como um incentivo para o enfretamento do sofrimento inerentes à sua situação e também como um suporte à permanência das atividades de trabalho. A sensação de não estar sozinho, de se sentir apoiado por pessoas que fazem parte de seu convívio, foi ressaltada tanto por pessoas em tratamento hemodialítico como por pessoas transplantadas.

“[...] Depois que voltei do hospital, que fui adquirindo peso, fiquei só na hemodiálise. E meu irmão, que é mesmo que um pai para mim, começou a fabricar as camisas de novo comigo, mas em pequenas quantidades” (PÁSSARO-DE-SOL).

Os familiares estão entre as fontes mais frequentes de apoio social e emocional mencionadas pelos pacientes com DRC em hemodiálise (Silva et al., 2016). O suporte familiar é essencial no processo de adaptação do renal crônico ao tratamento e auxilia na superação das dificuldades que acompanham o convívio com a doença (Ferreira, Azevedo, Oliveira, & Guimarães, 2022).

“[...] Agora eu trabalho em uma gráfica também, mas é de outra pessoa, é a gráfica da minha irmã. Mas como eu já transplantei, trabalho normal com ela, ela sabe que as vezes a pessoa fica gripada e tem que ficar internada essas coisas assim, mas por ser da família aceita” (ALBATROZ).

O transplante renal visa a reabilitação da vida das pessoas, o que inclui torná-las aptas ao retorno ao trabalho. Porém, boa parte dos receptores não consegue se reinserir na atividade laboral e se veem em uma condição de dependência da seguridade social. Após a realização do transplante, muitos motivos constituem obstáculos para o retorno às atividades de trabalho, como: a sensação de incapacidade física e psicológica, as limitações fisiológicas decorrentes do transplante, o desejo de manter garantido o auxílio-doença e a aposentadoria (Costa, & Nogueira, 2014).

Apesar da insegurança causada pelo transplante, a família é apontada como a principal unidade de cuidado em todo processo, auxiliando na recuperação e na adesão aos cuidados pós-cirúrgicos, inclusive na adaptação de retorno às atividades habituais (Cruz, Daspett, Roza, Ohara, & Horta, 2015).

4. Considerações Finais

As mudanças experimentadas pelos entrevistados após o início do tratamento da DRC afetaram sua capacidade de retornar ao trabalho, e o apoio familiar foi considerado essencial para facilitar esse processo. Entre os pacientes com hemodiálise, a necessidade de realizar sessões frequentes foi citado como um dificultador para a retomada das atividades laborais, especialmente em pacientes que precisam se deslocar para as clínicas de diálise em outros municípios. Mesmo entre os pacientes transplantados, as limitações físicas e os cuidados pós-cirúrgicos afetaram a produtividade e a capacidade de retorno ao trabalho da maneira habitual.

A pesquisa qualitativa se mostrou uma ferramenta importante no entendimento de como as mudanças na vida do paciente renal crônico após o início do tratamento afetam sua capacidade de retornar ao trabalho. Os achados têm implicações relevantes para o cuidado de pacientes com DRC, uma vez que o retorno ao trabalho é considerado um aspecto fundamental da qualidade de vida e pode afetar diretamente a saúde mental e emocional, e consequentemente, a reintegração dos pacientes renais crônicos às atividades habituais durante e após o tratamento…

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Recebido: 30 de Março de 2023; Aceito: 30 de Setembro de 2023

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