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New Trends in Qualitative Research

versão On-line ISSN 2184-7770

NTQR vol.18  Oliveira de Azeméis out. 2023  Epub 30-Nov-2023

https://doi.org/10.36367/ntqr.18.1023.e852 

Artigo Original

Acolhimento à Demanda Espontânea: Percepção dos Enfermeiros da Atenção Primária à Saúde

Embracement in Primary Health Care: Perception of Nurses

Elisabete Mesquita Peres de Carvalho1 
http://orcid.org/0000-0002-5140-0237

David Ximenes Pires1 
http://orcid.org/0009-0000-8766-9222

Thaísa Massa Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0003-2940-6787

Kelen Aparecida Spadoti1 
http://orcid.org/0009-0005-7492-0541

Joyce Sousa Leite1 
http://orcid.org/0000-0002-5797-3933

Renata Mercêz da Silva1 
http://orcid.org/0009-0005-5516-4365

1 Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, Brasil


Resumo

Introdução: O acolhimento é uma prática presente nas relações de cuidado, entre trabalhadores de saúde e usuários, nos atos de receber e escutar as pessoas, sendo um mecanismo de ampliação e facilitação do acesso. Objetivos: Compreender, na percepção dos enfermeiros que atuam na Atenção Primária à Saúde, como ocorre o processo de acolhimento nas Unidades Básicas de Saúde da Região Norte do Distrito Federal. Métodos: Trata-se de um estudo descritivo, exploratório de cunho qualitativo, realizado com 33 enfermeiros. A coleta de dados ocorreu no período de 10 de outubro a 30 de novembro de 2022. Os dados foram analisados por meio da análise de conteúdo de Bardin: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Resultados: Foi possível encontrar dois núcleos de sentido que foram divididos em duas categorias: 1- processo de trabalho do enfermeiro no atendimento à demanda espontânea; e 2-necessidades de aprendizagem na percepção do enfermeiro. Conclusões: Verificou-se a necessidade de ampla divulgação dos documentos norteadores com as atividades a serem desenvolvidas pelo enfermeiro do acolhimento, com clareza dos fluxos e dos papéis de cada profissional, além de ampla capacitação de todos os profissionais, definição de matriz de alinhamento da equipe ou equipes ESF em cada UBS com o enfermeiro do acolhimento, a fim de que sejam estabelecidas a organização e a condução do processo de acolhimento com base nas necessidades do território e na organização interna da equipe.

Palavras-Chave: Atenção Primária à Saúde; Estratégia Saúde da Família; Acolhimento; Papel do profissional de Enfermagem; Humanização da Assistência; Educação em Saúde

Abstract

Introduction: Welcoming is a practice present in care relationships, between health workers and users, in the acts of receiving and listening to people, being a mechanism for expanding and facilitating access. Objectives: Understand, in the perception of nurses who work in Primary Health Care, how the reception process occurs in Basic Health Units in the North Region of the Federal District. Methods: This is a descriptive, exploratory qualitative study, carried out with 33 nurses. Data collection took place from October 10 to November 30, 2022. Data were analyzed using Bardin's content analysis: pre-analysis, material exploration and treatment of results, inference and interpretation. Results: It was possible to find two core meanings that were divided into two categories: 1- The nurse's work process in meeting spontaneous demand and 2- Learning needs in the nurse's perception. Conclusions: There was a need for wide dissemination of guiding documents with the activities to be developed by the reception nurse, clearly of the flows and roles of each professional, besides wide training of all professionals, Definition of team alignment or teams in each UBS with the host nurse, in order to establish the organization and conduct of the reception process based on the needs of the territory and the internal organization of the team.

Keywords: Primary Health Care; National Health Strategies; User Embracement; Nurse’s Role; Humanization of Assistance; Environmental Health Education

1. Introdução

O Programa Saúde da Família (PSF) foi criado em 1994 pelo Ministério da Saúde, idealizado, inicialmente, como uma ferramenta de extensão da cobertura assistencial e, como proposta estruturante na organização do Sistema Único de Saúde (SUS). O PSF - hoje denominado Estratégia Saúde da Família (ESF) - prioriza as ações de proteção e promoção à saúde dos indivíduos e da família, em caráter integral e contínuo (Barros et al., 2018). A atenção primária lida com situações e problemas de saúde de grande variabilidade, das mais simples até as mais complexas, as quais exigem diferentes tipos de esforços e ações de suas equipes.

Tal complexidade caracteriza-se pela exigência de se considerarem, a todo tempo e de acordo com cada situação, as dimensões orgânica, subjetiva e social do processo saúde-doença-cuidado, para que as ações de cuidado possam ter efetividade. Além disso, as equipes da atenção primária estão fortemente expostas à dinâmica cotidiana da vida das pessoas nos territórios. Nesse sentido, a capacidade de acolhida e escuta das equipes aos pedidos, demandas, necessidades e manifestações dos usuários no domicílio, nos espaços comunitários e nas unidades de saúde, é um elemento-chave (Brasil, 2013).

Enquanto característica do processo de trabalho das equipes da atenção primária, recomenda-se que o acolhimento esteja presente em todas as relações de cuidado, nos encontros entre trabalhadores de saúde e usuários, nos atos de receber e escutar as pessoas e suas necessidades (Brasil, 2017). O tema acolhimento surgiu a partir das discussões sobre a reorientação da atenção à saúde, sendo elemento fundamental para a reorganização da assistência. É um dispositivo que está inserido na Política de Humanização do Ministério da Saúde (HumanizaSUS) e que vai além da recepção ao usuário, pois considera toda a situação da atenção à saúde a partir da entrada deste no sistema SUS (Coutinho et al., 2015).

A diretriz do acolhimento busca deslocar o eixo central do médico para uma equipe multiprofissional, a qual se encarrega da escuta qualificada do usuário, comprometendo-se a resolver a demanda no dia ou pelo menos de forma agendada conforme a complexidade de cada problema. Desse modo, transforma a relação entre equipe e usuário, baseando-se em parâmetros humanitários, de solidariedade e cidadania, rompendo com os paradigmas convencionais prevalecentes de um modelo de gestão de oferta historicamente construído (Camelo et al., 2016).

Dessa forma, o acolhimento garante a acessibilidade do usuário e também a qualificação das relações e, nesse processo, em que a escuta qualificada às necessidades é fundamental, a finalidade não é mais a busca pelo atendimento do “médico” e sim, por uma resposta resolutiva às suas demandas. É importante pontuar que embora seja frequente o acolhimento pela equipe de referência do usuário, não existe uma única e melhor forma de acolher a demanda espontânea (Brasil, 2013).

Espera-se com este estudo contribuir para as discussões do acolhimento como dispositivo de reorganização do processo de trabalho das equipes, imprimindo sentidos e perspectivas a ele que são fundamentais aos sujeitos em ação que pretendem constituir novos modos de receber e escutar o usuário na APS.

Diante do exposto, o objetivo deste estudo é compreender, na percepção dos enfermeiros que atuam na APS, como ocorre o processo de acolhimento nas Unidades Básicas de Saúde da Região Norte do Distrito Federal.

2. Metodologia

2.1 Caracterização do Estudo

Estudo do tipo exploratório-descritivo, com abordagem qualitativa, desenvolvido em 16 das 36 UBS, existentes na Região de Saúde Norte do Distrito Federal. A abordagem qualitativa, além de permitir desvelar processos sociais ainda pouco conhecidos, propicia a construção de novas abordagens, revisão e criação de novos conceitos e categorias durante a investigação e pode conduzir a resultados importantes sobre a realidade social (Minayo, 2014).

2.2 Cenário do Estudo/Participantes

As Unidades Básicas de Saúde (UBS) pesquisadas comportam em sua estrutura física, entre duas e dez equipes ESF. Foram convidados todos os enfermeiros que atuam na Atenção Primária à Saúde na sala de acolhimento ou nas equipes de ESF, o que caracteriza a amplitude da pesquisa. Como critério de inclusão foi considerado: atuar na equipe de Estratégia Saúde da Família no período da coleta de dados; e como critério de exclusão: estar afastado do serviço por motivo de férias, licença médica, ou quaisquer afastamentos legais. A amostra foi não probabilística e adotou critérios de conveniência (Vergara, 2009). Utilizou-se, como parâmetro da saturação amostral, o esgotamento de novos assuntos no discurso dos respondentes (Flick, 2009). A amostra foi composta por 33 enfermeiras (os).

2.3 Coleta de Dados

A coleta de dados ocorreu entre outubro e novembro de 2022, por meio de entrevistas gravadas, previamente agendadas, realizadas no setor de trabalho dos respondentes, com média de duração em torno de 15 minutos. Foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada com duas questões abertas, de acordo com os objetivos do estudo. O questionário contemplou a seguinte pauta: 1- Você poderia me contar como funciona o acolhimento aqui nesta UBS? Como é feito? Por quem é feito? e 2- Quais são as necessidades de aprendizagem para o enfermeiro(a) desenvolver o acolhimento na APS? Cada entrevista foi codificada utilizando a denominação Respondente seguida do algarismo arábico 1, 2, 3, 4, 5, 6, e assim por diante.

Após o consentimento do profissional em participar da pesquisa por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi realizada a entrevista. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas, mantendo o conteúdo literal das falas.

2.4 Análise de Dados

Os dados foram trabalhados segundo a análise de conteúdo de Bardin (2011). A análise temática tem como objetivo verificar hipóteses e/ou interpretar o que está por trás de cada conteúdo manifesto, pois leva em consideração o contexto em que a situação analisada está inserida. Esse processo desdobrou-se em três etapas: a pré-análise; a exploração do material; o tratamento dos dados obtidos e a interpretação. Dessa forma, a análise ocorreu de acordo com esses três polos, para facilitar a compreensão e a organização dos dados obtidos na entrevista (Minayo, 2014).

Os dados provenientes das transcrições das entrevistas foram submetidos à técnica de análise do tipo temática, segundo Minayo (2014) originando as seguintes categorias: 1 - Processo de trabalho do enfermeiro no acolhimento à demanda espontânea; e 2 - Necessidades de aprendizagem na percepção do enfermeiro.

2.5 Considerações Éticas

Foram respeitados todos os conceitos éticos e de confidencialidade relacionados às informações dos participantes. Os participantes foram informados dos riscos decorrentes da pesquisa, relacionados ao próprio desconforto/constrangimento que as respostas à entrevista podem gerar. Buscou-se minimizar tais riscos, garantindo a realização da entrevista em local reservado e liberdade para não responder questões constrangedoras. Foi assegurado o sigilo, a privacidade, a proteção da imagem e a confidencialidade dos dados coletados, de forma a manter a privacidade do respondente. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal - CEP/SES/DF e aprovado com Parecer Substanciado nº 5.654.941 CAAE: 61311422.6.0000.5553, de 29 de dezembro de 2021.

3. Resultados e Discussão

Respondeu à pesquisa um total de 33 enfermeiras (os), que atuam no acolhimento em 16 das 36 UBS da Região Norte, sendo 85% do sexo feminino e 15% do sexo masculino. A média de idade foi de 42 anos, sendo a idade mínima de 24 anos e a máxima de 65. A média de tempo de formado foi de 14 anos, a média de trabalho na APS foi de 7 anos, e a média de tempo no acolhimento foi de 2,5 anos.

Da análise dos dados emergiram duas categorias e cinco subcategorias, permitindo fundamentar as interpretações feitas na discussão e interpretá-las de acordo com a produção científica.

Na Tabela 1, evidenciam-se os modelos de acolhimento encontrados na APS da Região Norte.

Tabela 1: Categoria 1 - Processo de trabalho no acolhimento à demanda espontânea: percepção do enfermeiro 

Fonte: próprios autores

Figura 1. Fluxograma - Modalidade de Acolhimento Único ou Ampliado

Nesta pesquisa, a modalidade de acolhimento único foi a mais encontrada nos processos de trabalho das UBS. Nesse modelo, as equipes reservam vagas de atendimento à demanda espontânea (tanto para médicos quanto para enfermeiros).

Após o usuário passar pelo acolhimento - e caso necessário, classificação de risco -, o enfermeiro identifica a ESF de referência desse usuário. Caso a equipe do usuário não consiga atendê-lo devido ao elevado número de demandas, o usuário pode ser atendido por outra equipe, que não a sua. Quanto aos usuários não adscritos, fora de área de abrangência da UBS, são distribuídos revezadamente entre as equipes e os profissionais disponíveis no período. Quando o enfermeiro do acolhimento está em afastamento médico ou previsto (férias, folga de escala ou abono), os enfermeiros das equipes revezam-se no acolhimento.

O acolhimento é conceituado como uma prática presente nas relações de cuidado, entre trabalhadores de saúde e usuários, nos atos de receber e escutar as pessoas, sendo um mecanismo de ampliação e facilitação do acesso. Entretanto, mais importante do que a definição dada a essa ação é a forma como ela é realizada. Para sua garantia, é necessário que os serviços de saúde estejam configurados no sentido de atender às necessidades de forma apropriada no momento da procura do usuário, garantindo que o usuário tenha acesso aos serviços de saúde (Neto et al., 2022).

A modalidade do acolhimento único, embora fragilize o vínculo da equipe com o usuário - por permitir que o paciente da equipe A seja atendido pela equipe B no momento das urgências e emergências -, costuma dar melhores respostas aos questionamentos enfrentados pela outra modalidade. E também se apresenta como mais adequada nos cenários em que não se conta com cobertura universal, como no Distrito Federal, onde atualmente não há cobertura de 100% da população dependente do Sistema Único de Saúde (SUS) (GDF, 2022). Entende-se como cobertura ideal, uma equipe ESF urbana responsável por até 4.000 habitantes e uma equipe ESF rural responsável por até 2.750 habitantes (BRASIL, 2019).

A ESF veio como proposta de mudança ao modelo de atenção à saúde, retirando o foco do modelo hospitalar para uma atenção mais próxima das comunidades, sendo o acolhimento e o vínculo ferramentas fundamentais para o estabelecimento da confiança com o usuário. Nesse contexto, a APS tem a importante atribuição de ser a porta de entrada preferencial do sistema de saúde, reconhecendo o conjunto de necessidades e impactando positivamente nas condições de saúde da população (Girão & Freitas, 2016).

Figura 2. Modalidade de Acolhimento por Equipe de Referência. Fonte: próprios autores

A modalidade de acolhimento pela equipe de referência também foi identificada. Nesse modelo, o enfermeiro de cada equipe realiza a primeira escuta, atendendo à demanda espontânea do usuário residente na sua área de abrangência. O médico faz a retaguarda para os casos agudos e também atende os usuários agendados. Nos casos de pacientes “fora de área”, estes também serão acolhidos por um profissional responsável pelo acolhimento dos usuários fora de área e daqueles cujas equipes estão sem enfermeiros no período, seja por afastamento, reunião da equipe ou visita domiciliar. Se a queixa for considerada aguda, o usuário será direcionado para atendimento com um médico da UBS que faz a retaguarda em escala de revezamento.

Cada modalidade tem suas vantagens e desvantagens, que não podem ser observadas como listas de comparação mas serem compreendidas de acordo com a realidade de cada UBS (GDF, 2022). Ao refletir sobre aspectos que afetam diretamente o processo de trabalho da unidade -como extensão territorial, vulnerabilidade social, absenteísmos e déficit de recursos humanos acarretando sobrecarga de equipes completas ante a realidade das equipes incompletas -, cabe considerar, enfim, todos os desafios próprios de uma Estratégia que foi implantada a partir de um modelo antigo de Atenção à Saúde, quando se optou por receber nas equipes EsF especialistas (pediatras e ginecologistas) após passarem por um treinamento e assumirem como médicos de família e comunidade, processo esse conhecido como Converte.

Tal processo consistiu em uma conversão progressiva no Distrito Federal para o modelo de Estratégia de Saúde da Família, a partir de 2017, em todas as unidades básicas de saúde que, anteriormente a isso, funcionavam com modelo ambulatorial, contando com médicos ginecologistas, pediatras e clínicos gerais em suas equipes.

Os enfermeiros eram divididos em especialidades, como saúde da mulher, saúde do idoso, hanseníase e tuberculose. Esses mesmos profissionais puderam optar por permanecer na UBS após o processo de conversão realizando cursos, contudo a mudança de olhar e rotina de trabalho é gradual, sendo necessário que o profissional entenda o novo modelo de trabalho (GDF, 2017).

Contudo, pensando o acolhimento como ferramenta para ampliação e facilitação do acesso e estratégia de garantia do direito à saúde, entende-se o acesso enquanto direito universal a partir de diferentes dimensões - política, econômico-social, organizacional ou mesmo simbólica. Em que pese a complexidade das diferentes dimensões envolvidas, pode-se afirmar que o acesso tem na dimensão técnica e organizacional um nó crítico importante para o fortalecimento da APS (Camargo & Castanheira, 2020).

Sabe-se que o vínculo é construído por meio da relação entre trabalhador de saúde e usuário, objetivando a prática centrada no sujeito, sendo considerado como uma tecnologia leve associada à humanização, o qual não existe sem que os usuários sejam reconhecidos na condição de sujeitos. Constitui-se numa ferramenta eficaz na democratização das práticas de cuidado, favorecendo a negociação entre trabalhadores e usuários, tornando-os sujeitos autônomos no tratamento e corresponsabilizandos-os no processo do cuidado, na prevenção das comorbidades e na promoção da saúde (Girão & Freitas, 2016).

3.1 Há duas modalidades de Acolhimento: único e pela Equipe de referência

A pesquisa evidenciou que cada UBS implementou a modalidade de acolhimento mais adequada para a realidade local, pois cada unidade possui suas características e singularidades na organização do processo de acolhimento. Nessa Região de Saúde, os gerentes de território tiveram a liberdade de escolher a modalidade mais adequada à realidade do seu serviço. Assim, antes de escolher a modalidade a ser adotada, os gestores levaram em consideração as características peculiares de cada local, como a característica territorial, cobertura de equipe ESF, a vulnerabilidade social, a estrutura física da UBS, dentre outras.

Dessa forma, quando determinada UBS adota uma modalidade de acolhimento distinta da praticada por outra, não é só a forma de acolher e atender a demanda espontânea que difere de uma para outra, é também a forma como as agendas são organizadas, é a forma como se dá a experiência do cidadão na unidade (GDF, 2022). Diferentemente do que ocorre nas unidades de urgência/emergência (pronto-socorro dos hospitais e UPAs), em que os pacientes são triados de acordo com seus quadros clínicos, a APS possui as ferramentas de vinculação e de responsabilização que são fundamentais no momento da escuta de cada paciente (Neto et al., 2022).

Essas ferramentas de vinculação e responsabilização são utilizadas no processo de acolher que corrobora o entendimento da dinâmica na organização às demandas de saúde, sendo reconhecido como ponto positivo tanto pela gestão como para os profissionais atuantes.

Para Villani et al. (2017), independentemente da modalidade escolhida, faz-se necessário manter os princípios essenciais, como a escuta qualificada, a identificação das necessidades de saúde do usuário, a elaboração de um plano de cuidado, a promoção do atendimento íntegro e humanizado, de forma a proporcionar a vinculação da equipe de saúde com o usuário.

A Tabela 2, referente à segunda categoria, apresenta aspectos relacionados à necessidade de aprimoramento dos enfermeiros, bem como à compreensão do próprio papel enquanto profissional que acolhe e escuta a demanda espontânea.

Tabela 2: Categoria 2 - Processo de trabalho no acolhimento à demanda espontânea: necessidades de aprendizagem do enfermeiro 

3.2 Necessidade de conhecimento teórico e prático para atender às demandas

Ficou evidenciada a necessidade de aperfeiçoamento e qualificação das atividades exercidas pelo enfermeiro no acolhimento à demanda espontânea. Esses resultados também foram encontrados na pesquisa de Morelato et al. (2021), os quais confirmam que é necessário o desenvolvimento de competências cognitivas, procedimentais e de natureza ética e social, na perspectiva da multidimensionalidade e indivisibilidade do ser humano na saúde, compatíveis com as principais demandas assistenciais da Atenção Primária à Saúde.

Ademais, verificou-se que muitos desses profissionais assumiram essa atribuição sem uma preparação prévia, corroborando a insegurança no desempenho das atividades. Assim, os entrevistados reconhecem a necessidade de cursos de capacitação com intuito de fortalecer o processo de trabalho e qualificação da assistência na APS. Em estudo semelhante, Costa et al. (2018) evidenciaram a importância de capacitar os profissionais atuantes no exercício do acolhimento a fim de prepará-los e torná-los aptos a atender a comunidade. Além disso, afirmam que a qualificação técnica contribui para a organização do processo de trabalho e promove maior resolutividade e humanização no atendimento.

No discurso dos profissionais também foi observada certa insatisfação com alguns fatores que dificultam a escuta na ocasião do acolhimento, como a estrutura inadequada das UBS, principalmente naquelas que comportam sete, oito e até dez equipes. Em consonância com esses achados, pesquisas evidenciaram que fatores podem interferir e repercutir de forma negativa no acolhimento, como a rotatividade e quantidade insuficiente de profissionais, infraestrutura inadequada, pouco treinamento destinado às equipes e carência de materiais (Feitosa et al., 2021; Ribeiro et al., 2022).

Com relação à qualificação dos profissionais, entende-se que é de responsabilidade da gestão de saúde promover estímulos aos profissionais no que tange às abordagens teóricas e práticas sobre o acolhimento, visto que são subsídios primordiais na concretização de um método humano e íntegro (Feitosa et al., 2021). Dessa forma, a Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal elaborou capacitação para os profissionais enfermeiros que atuam na APS, no sentido de sensibilizar os profissionais sobre a importância do acolhimento como forma de acesso do usuário ao serviço de saúde, conforme Nota Técnica Nº 11 (GDF, 2022).

3.3 Necessidade de compreender a Gestão do Acolhimento e Classificação de Risco na APS e o papel do enfermeiro

Os enfermeiros afirmaram a necessidade de protocolos clínicos e fluxos mais claros que orientem sobre as competências do enfermeiro no acolhimento, explicitando até onde o enfermeiro pode atuar. Muitos relataram que se sentem inseguros e despreparados, e que a inexistência de orientações claras é um obstáculo para a tomada de decisão e compromete a resolutividade da assistência. Para Ferreira et al. (2018), o enfermeiro necessita desenvolver várias competências, as quais nem sempre a graduação e as especializações na área conseguem contemplar.

No entanto, o acolhimento tem seu alicerce científico na consulta de enfermagem, primeira etapa do Processo de Enfermagem (PE), momento em que o profissional se aproxima do indivíduo, ouve suas demandas, avalia as condições de saúde biopsicossociais e espirituais e, por fim, planeja o cuidado necessário. Vale refletir que a insegurança e o despreparo clínico, identificados como limitações desses profissionais, podem acarretar prejuízos ao processo de acolhimento, pois há o risco de o profissional ficar apenas na queixa-conduta, sem a devida reflexão ampliada da clínica para o cuidado integral, corroborando a necessidade da capacitação em serviço (Morelato et al., 2021).

De certa forma, a percepção de alguns respondentes sobre o acolhimento é ainda pouco abrangente e bastante confundida com o sistema de Triagem Manchester (STM) ou similares, utilizados nas portas de emergências, onde o objetivo é organizar a demanda de pacientes que procuram o atendimento, identificando as prioridades clínicas antes da avaliação médica. Para Feitosa et al. (2021), a concepção errônea sobre o acolhimento repercute de modo negativo no desempenho profissional e na resolutividade das queixas apresentadas pelos usuários. Sabe-se que o processo de acolher vai além da recepção e do direcionamento do paciente (Ribeiro et al., 2022).

Assim, à medida que o enfermeiro compreender a abrangência do acolhimento e do seu papel nesse cenário, ele buscará os recursos necessários para o seu aperfeiçoamento no contexto das suas atividades na APS (Frota Barros et al., 2018). Diante dos discursos, verifica-se a necessidade de capacitação, de utilização de protocolos, bem como da retomada dos estudos relacionados à primeira etapa do processo de enfermagem, momento este em que o enfermeiro utiliza a anamnese e o exame clínico, imprescindíveis na abordagem desse profissional no acolhimento (Morelato et al., 2021).

Cabe também aos gestores o incentivo de momentos para a realização de educação permanente em saúde dos profissionais que compõem a UBS (envolvendo uma ou mais categorias), quando o objetivo seria a discussão de um tema ou protocolo específico. Como características, essas reuniões devem ser de curta duração (máximo 30 minutos) e periodicidade (por exemplo, a cada 15 dias). São também de corresponsabilidade dos profissionais integrantes da equipe de saúde, principalmente os profissionais de nível superior, incentivar a discussão sobre protocolos clínicos e fluxos, podendo utilizar um período da reunião de equipe para essa atividade.

Considera-se que a investigação qualitativa é relevante para aprofundar as discussões acerca dessa temática, tendo em vista que conseguimos captar a percepção dos próprios enfermeiros sobre o trabalho desenvolvido por eles. Além disso, este estudo desvelou necessidades de treinamentos, capacitações e educação continuada não apenas sobre as formas de acolhimento à demanda espontânea, mas também quanto a própria formação dos enfermeiros que atuam na APS.

4. Considerações Finais

Embora o acolhimento à demanda espontânea esteja implementado nas UBS da Região de Saúde pesquisada, uma vez que as modalidades de acolhimento foram disponibilizadas e definidas por cada gestor de território em discussão com as equipes ESF, verificou-se neste estudo que o processo segue permeado por desafios e dificuldades. Tais percalços vão desde a compreensão do que é acolhimento na atenção primária à saúde até como fazer o acolhimento nesse serviço complexo, responsável pelo atendimento de uma população de um território definido, abrangendo todos os ciclos de vida.

A estruturação do processo com um profissional enfermeiro definido para o serviço do acolhimento como mais um membro da equipe da UBS, conforme previsto na Nota Técnica Nº 11/2022 -SES/DF, e não como membro da equipe ESF, provoca certa confusão de papéis desses profissionais na rotina da unidade. Nesse caso, o acolhimento deixa de ser visto como atribuição de uma equipe multiprofissional e torna-se atividade restrita do profissional enfermeiro. Essa confusão de conceito sobre o acolhimento e do papel definido desse profissional, que não está inserido em uma ESF, mas sim na equipe da UBS como um todo, é refletida nos relatos da presente pesquisa.

Diante desse contexto, sugere-se a ampla divulgação dos documentos norteadores com as atividades a serem desenvolvidas pelo enfermeiro do acolhimento, com clareza dos fluxos e dos papeis de cada profissional; ampla capacitação de todos os profissionais; definição de matriz de alinhamento da equipe ou equipes ESF em cada UBS com o enfermeiro do acolhimento, a fim de que sejam estabelecidas a organização e a condução do processo de acolhimento com base nas necessidades do território e na organização interna da equipe.

Por fim, ressalta-se a importância de pesquisas futuras, voltadas para os demais profissionais, envolvendo usuários e gestores, bem como, com amplitude das Regiões de Saúde, no intuito de expandir a discussão sobre a temática e analisar, segundo a percepção dos diversos atores, as formas de alinhar os discursos. Dessa forma, pode se fortalecer essa estratégia que é fundamental na reorganização do processo de trabalho, viabilizando o acesso a todos que procuram os serviços de saúde, consolidando os princípios do Sistema Único de Saúde.

5. Referências

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Recebido: 30 de Março de 2023; Aceito: 30 de Setembro de 2023

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