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New Trends in Qualitative Research

On-line version ISSN 2184-7770

NTQR vol.13  Oliveira de Azeméis Sept. 2022  Epub Sep 08, 2022

https://doi.org/10.36367/ntqr.13.2022.e673 

Artigo original

Narrativas de adoecimento crônico: Histórias de vida e trabalho das mulheres com câncer do colo do útero

Narratives of chronic illness: Life and work stories of women with cervical cancer

Isabel Marco Huesca1 
http://orcid.org/0000-0001-5533-1577

Élida Azevedo Hennington2 
http://orcid.org/0000-0001-5280-8827

1Instituto Nacional de Câncer, Brasil

2Fundação Oswaldo Cruz, Brasil


Resumo:

Introdução: O câncer do colo do útero faz parte do grupo de doenças crônicas não transmissíveis, que se caracterizam pela longa duração e a necessidade de tratamento contínuo. Por se tratar de doença que mantém a pessoa em seu quadro de vida habitual, ela ocupa o centro de todas as relações sociais e suas repercussões se fazem sentir em todos os aspectos da vida. Esse tipo de câncer atinge principalmente mulheres de nível socioeconômico baixo e em fase produtiva de suas vidas. Nesse sentido, o trabalho, seja ele profissional ou doméstico, entendido como parte constitutiva da identidade social da mulher, sofre profundas transformações devido ao adoecimento. Objetivo: Compreender a relação saúde-doença-trabalho das mulheres com câncer do colo do útero, a partir do enfoque narrativo. Métodos: A pesquisa constitui-se em um estudo de natureza qualitativa, voltada para uma melhor compreensão dos sentidos atribuídos pelos sujeitos envolvidos, as mulheres com câncer do colo do útero atendidas em unidade hospitalar pública especializada no atendimento ao câncer do colo do útero, a respeito das repercussões do adoecimento crônico em suas vidas, com ênfase no mundo do trabalho. O principal instrumento de coleta de dados usado na pesquisa será o roteiro de entrevista com questões abertas. As entrevistas terão enfoque narrativo e para tratar o material produzido será utilizada a análise narrativa. Resultados: A coleta de dados está em andamento, após a aprovação pelos comitês de ética envolvidos. Conclusões: Esta pesquisa poderá proporcionar maior visibilidade desta temática para a sociedade, reforçando e reconhecendo a importância de pensar a respeito da garantia dos direitos relacionados ao trabalho para mulheres acometidas por doenças crônicas.

Palavras-chave: Doença crônica; Câncer do colo do útero; Trabalho; Mulheres trabalhadoras; Narrativa.

Abstract:

Introduction: Cervical cancer is part of the group of non-communicable chronic diseases, which are characterized by long duration and the need for continuous treatment. Because it is a disease that keeps the person in their usual life, it occupies the center of all social relationships and its repercussions are felt in all aspects of life. This type of cancer mainly affects women of low socioeconomic status and in the productive phase of their lives. In this sense, work, whether professional or domestic, understood as a constitutive part of women's social identity, undergoes profound changes due to illness. Objective: To understand the health-disease-work relationship of women with cervical cancer, from a narrative approach. Methods: The research is a qualitative study, aimed at a better understanding of the meanings attributed by the subjects involved, women with cervical cancer treated in a public hospital unit specialized in the care of cervical cancer, the regarding the repercussions of chronic illness in their lives, with emphasis on the world of work. The main data collection instrument used in the research will be the interview guide with open questions. The interviews will have a narrative focus and narrative analysis will be used to deal with the material produced. Results: Data collection is in progress, after approval by the ethics committees involved. Conclusions: This research may provide greater visibility of this issue to society, reinforcing and recognizing the importance of thinking about the guarantee of rights related to work for women affected by chronic diseases.

Keywords: Chronic disease; Cervical cancer; Work; Working women; Narrative.

1.Introdução

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), as condições crônicas compreendem um grupo extremamente amplo de agravos, que apresentam em comum a cronicidade e a necessidade de cuidados permanentes. Inclui-se nesse grupo condições transmissíveis e não transmissíveis, distúrbios mentais e incapacidades funcionais (WHO, 2003). As doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) são as principais causas de mortes no mundo e geram um elevado número de mortes prematuras, perda da qualidade de vida com alto grau de limitação nas atividades de trabalho e de lazer, além de impactar economicamente as famílias e a sociedade em geral, agravando as iniquidades e aumentando a pobreza (Ministério da Saúde, 2011). As neoplasias compõem o grupo de DCNT. Devido ao tratamento de longa duração dessas patologias, por se tratar de doenças, em grande parte dos casos, incuráveis e que normalmente não tiram a pessoa de seu quadro de vida habitual, as mesmas, ocupam o centro de todas as relações sociais. Sendo assim, o doente e o médico não são os únicos atores participantes deste processo e o “impacto desorganizador” da doença se faz sentir na família, no trabalho, e no lazer (Adam & Herzlich, 2000). O desenvolvimento de uma doença crônica grave como o câncer do colo do útero é uma situação crítica, que interrompe o curso natural da vida e gera incertezas em relação ao futuro, portanto, é uma forma de ruptura biográfica. Entender o adoecimento crônico como evento que ocasiona a ruptura biográfica é pensar o quanto ele provoca descontinuidade na vida das pessoas e na sua interação social (Bury, 1982; Montagner & Montagner, 2011). A experiência do adoecimento crônico é entendida aqui como uma experiência pessoal e, ao mesmo tempo, uma construção social e histórica. Portanto, o adoecimento por câncer não pode ser pensado senão a partir das relações sociais em que os indivíduos estão inseridos. Como parte importante da vida e da identidade social da mulher, o trabalho, assim como seu corpo sofre profundas transformações devido ao adoecimento. Na vida da mulher diagnosticada com câncer do colo do útero são impostas limitações pela própria doença e seu tratamento, que podem se estender por vários meses ou anos, afastando a mulher do trabalho que desempenhava ou limitando sua atuação devido às reações ao tratamento e à progressão da doença. As mulheres sempre estiveram inseridas no mundo do trabalho, porém a partir da década de 1970 assiste-se a uma incorporação massiva da força de trabalho feminina no mercado de trabalho profissional (Biroli, 2018). Paralelamente, as mulheres seguem sendo as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidado, remunerado e não remunerado realizado no domicílio, que aqui será tratado como trabalho de reprodução social (Hirata, 2016; Araújo, 2018). O mundo do trabalho é um reflexo do mundo exterior, como a sociedade brasileira é marcada por hierarquias de gênero, raça e classe, essas mesmas categorias irão influenciar em possibilidades de trabalho diferenciadas para os sujeitos e em uma divisão do trabalho doméstico não remunerado que ainda hoje sobrecarrega as mulheres. No entanto, não se pode falar de mulheres como um grupo homogêneo, o gênero deve ser pensado em conjunto com outros eixos de opressão como a raça/cor e a classe social. Os marcadores sociais da diferença são um campo de estudo das Ciências Sociais que tentam explicar como são constituídas socialmente as desigualdades e hierarquias entre as pessoas (Hollanda, 2019). As principais hipóteses do estudo são: 1- o adoecimento crônico por câncer do colo do útero, enquanto situação crítica geradora de incertezas, se caracteriza como uma experiência disruptiva na vida das mulheres adoecidas, principalmente no que se refere à sua condição enquanto trabalhadoras; 2- no caso de mulheres com câncer do colo do útero, os denominados marcadores sociais de raça/cor, gênero e classe social, além de explicitar a diversidade no tecido social, servem como elementos demarcadores de relações de poder para hierarquização da vida e perpetuação de desigualdades. Posto isso, torna-se relevante compreender em profundidade como o adoecimento crônico por câncer do colo do útero repercute no trabalho desempenhado por essas mulheres, seus impactos na esfera profissional e de reprodução social. Para pensar o trabalho na vida dessas mulheres é necessário articular e interseccionar as categorias de gênero, raça/cor e classe social, pois elas irão determinar a posição social ocupada pelas mesmas e refletirão na sua maneira de inserção no mundo do trabalho. Algumas questões que se apresentam para esse estudo são: Quais mudanças ocorrem no trabalho desempenhado pelas mulheres após o adoecimento por câncer do colo do útero? Quais as dificuldades encontradas por essas mulheres após o adoecimento e tratamento do câncer do colo do útero quanto ao trabalho doméstico e profissional? Como os marcadores de classe social, raça/cor e gênero se entrelaçam, se moldam e se modulam na determinação de desigualdades/injustiças sociais na vida dessas mulheres? Como essas mulheres engendram alternativas na redefinição de seus papéis sociais enquanto trabalhadoras? Dada a situação das mulheres no mundo trabalho, enquanto grupo atingido pelas hierarquias de gênero, raça/cor e classe social, que quando associadas ao adoecimento crônico as coloca em situação de maior vulnerabilidade, a proposta deste estudo é compreender a relação saúde-doença-trabalho das mulheres adoecidas com câncer do colo do útero em tratamento em uma unidade especializada em tratamento oncológico no Rio de Janeiro - Brasil, a partir do enfoque narrativo. Parte-se do pressuposto que o adoecimento crônico, enquanto evento que promove a interrupção do curso natural da vida, contribui para o acirramento das desigualdades, de gênero, raça/cor e classe social, e influencia na piora das condições de vida e trabalho das mulheres com câncer do colo do útero. O presente estudo justifica-se por possibilitar conhecimento sobre um aspecto do adoecimento crônico ainda pouco explorado na pesquisa em saúde, por proporcionar visibilidade para a relação entre o adoecimento e suas repercussões no mundo do trabalho feminino, e também poderá subsidiar estudos futuros que abordem outros aspectos socioeconômicos relevantes do adoecimento crônico, ultrapassando a perspectiva biomédica. O conhecimento produzido poderá apontar para a importância de repensar a garantia dos direitos relacionados ao trabalho para os sujeitos acometidos por doenças crônicas.

2.Métodos

O estudo é uma nota prévia, que fará parte da tese de doutorado da pesquisadora e referir-se-á a análise qualitativa da narrativa das mulheres adoecidas com câncer do colo do útero em relação às repercussões do adoecimento em suas vidas e trabalho, com enfoque narrativo. A pesquisa constitui-se em um estudo de natureza qualitativa, voltada para uma melhor compreensão dos sentidos atribuídos pelos sujeitos envolvidos, as mulheres com câncer do colo do útero, a respeito das repercussões do adoecimento crônico em suas vidas, com ênfase no mundo do trabalho. As condições de vida e trabalho qualificam de forma diferenciada a maneira pela qual as pessoas pensam, sentem e agem a respeito da saúde e da doença. O estudo direciona-se para o contexto em que as trabalhadoras estão inseridas e para a singularidade das relações sociais. Das abordagens qualitativas optou-se pela utilização das narrativas. A escolha por este referencial se deu por ele possibilitar o acesso às experiências das mulheres que vivenciam o processo de adoecimento por câncer do colo do útero. Acreditamos que a experiência do câncer do colo do útero e as rupturas por ele proporcionadas poderiam ser acessadas pela escuta dos relatos das referidas mulheres. Para entender os problemas sociais é necessário o conhecimento dos sujeitos que são diretamente afetados por eles. Busca-se utilizar as experiências dos sujeitos para aumentar o entendimento da vida e do comportamento humano (Collins & Bilge, 2020). A utilização das narrativas como estratégia de compreensão do processo saúde-doença no caso dos adoecidos crônicos (Caçador & Gomes, 2020) tem sido utilizada na perspectiva de ver a doença a partir da experiência e da inserção social dos sujeitos. O acesso às experiências dos outros se dá por meio das histórias que os sujeitos contam sobre coisas que lhes aconteceram (Gomes & Mendonça, 2002). A pesquisa será desenvolvida em uma unidade hospitalar especializada no atendimento oncológico. Esta unidade integra o Sistema Único de Saúde (SUS) e oferece tratamento integral às pessoas que têm câncer. Está localizada na cidade do Rio de Janeiro - Brasil e é classificada como de alta complexidade. O referido hospital foi escolhido por se tratar de um centro de referência especializado no atendimento ao câncer do colo do útero; por ser um serviço público de atendimento de referência para pessoas com essa neoplasia; por concentrar o maior número de mulheres em tratamento de câncer do colo do útero no Estado do Rio de Janeiro; por ser um serviço público reconhecido pela qualidade de sua atuação; e também pelo fácil acesso da pesquisadora ao campo. Na pesquisa, serão selecionadas mulheres com diagnóstico de câncer do colo do útero em tratamento. Os critérios de inclusão são: mulheres com diagnóstico de câncer do colo do útero há, pelo menos, seis meses; mulheres com idade igual ou maior de 18 anos; mulheres que já tenham iniciado o tratamento clínico seja ele cirúrgico, quimioterápico ou radioterápico; mulheres atendidas, pelo menos uma vez, pela equipe de Serviço Social, com relato em prontuário do(a) profissional; mulheres que deram o seu consentimento expresso, após esclarecimentos claros e detalhados, para participar do estudo. Serão excluídas da pesquisa as mulheres que não iniciaram o tratamento clínico, seja ele cirúrgico, quimioterápico ou radioterápico; as que possuam tempo de diagnóstico inferior a seis meses; as menores de 18 anos de idade; as mulheres encaminhadas para prosseguimento do tratamento em outras unidades de saúde; as sem condições de participar da entrevista; e as que não desejarem participar da pesquisa. Considerando o tipo de estudo a ser realizado, pretende-se entrevistar de 10 a 15 mulheres de acordo com os critérios definidos acima. A opção por um número reduzido de informantes teve o intuito de obter um maior aprofundamento do relato de suas experiências de vida. Primeiramente, será elaborado o perfil das usuárias diagnosticadas com câncer do colo do útero em tratamento na unidade hospitalar pesquisada, matriculadas nos anos de 2019 a 2021, a partir do mapeamento de dados do Registro de Câncer de Base Hospitalar, de onde serão extraídos os seguintes dados: idade, raça/cor, instrução, ocupação, estado conjugal, cidade de residência, data da triagem, data da primeira consulta, estadiamento da doença, data do início do tratamento, tipo de tratamento recebido e data do óbito, caso tenha ocorrido. Após a construção do perfil das usuárias diagnosticadas com câncer do colo do útero, serão selecionadas as mulheres que atendam os critérios do estudo e, então, será realizado o levantamento de dados secundários nos prontuários físico e eletrônico. As variáveis pesquisadas serão características clínicas, demográficas, socioeconômicas e ocupacionais. A partir da análise dos prontuários e, baseada nos critérios de inclusão e exclusão, será criada uma listagem de mulheres elegíveis, ordenadas pelo número de matrícula, para a realização das entrevistas. A seleção das informantes será intencional e dirigida para contemplar a máxima heterogeneidade possível conforme os seguintes critérios de interesse: usuárias com a doença em diferentes estadiamentos; com diferentes propostas de tratamento; de distintas faixas etárias; diferentes origens territoriais e étnico-raciais; e com diferentes condições socioeconômicas baseadas nas seguintes variáveis, renda, escolaridade e ocupação. As mulheres serão convidadas a participar do estudo através de contato telefônico, neste momento, será explicada a proposta da pesquisa e realizado o convite para a participação na mesma. Se for necessário para os objetivos da pesquisa ou para comodidade da participante, será realizado mais de um encontro. As entrevistas ocorrerão mediante assinatura de TCLE, nas dependências da instituição, e será garantido o sigilo. Todas as entrevistas serão gravadas em áudio e posteriormente realizadas as transcrições na íntegra. O principal instrumento de coleta de dados usado na pesquisa será o roteiro de entrevista com questões abertas, que dizem respeito às experiências das participantes, considerando os atravessamentos pelo adoecimento e suas relações com o trabalho. A perspectiva das entrevistas em profundidade busca dar centralidade às histórias que as pessoas contam acerca da sua experiência após o adoecimento por câncer do colo do útero e, mais especificamente, da relação deste com o mundo do trabalho. As entrevistas terão enfoque narrativo e, as mulheres, serão convidadas a fornecer relatos sobre seu adoecimento e o que isso significou em sua vida. O interesse da pesquisa é compreender como as mulheres em tratamento de câncer do colo do útero entendem e vivenciam o adoecimento crônico e as repercussões disso em sua vida, com ênfase nas relações saúde-doença-trabalho. A entrevista narrativa tem como objetivo encorajar e estimular o entrevistado a contar a história sobre algum acontecimento importante de sua vida e do contexto social (Bauer & Javchelovitch, 2008). Neste caso, o principal material de investigação é a fala. É a partir dela que se revelam valores, normas, símbolos e, é possível identificar e compreender representações sociais de determinados grupos em condições históricas, socioeconômicas e culturais específicas, o que confere o efeito da universalização e da particularização. Sendo assim pode-se dizer que as estruturas e as tradições de determinado grupo social refletem implicitamente no comportamento individual, sendo o indivíduo uma continuidade de seu grupo (Minayo & Sanches, 1993). Para tratar o material produzido a partir das entrevistas será utilizada a análise narrativa. Essa perspectiva de análise mostra como a estrutura, o conteúdo e a interpretação são entrelaçados. Assim, fornece uma maneira sistemática de entender como as pessoas tornam os eventos de suas vidas significativos, bem como a forma como eles se envolvem na construção contínua de suas identidades (Bell, 1999). Quando narrativas são produzidas durante as entrevistas, sua análise lança luz sobre as formas como elas são produzidas em conjunto pelo pesquisador e o sujeito, bem como os discursos emergentes influenciam o sentido do pesquisador e do sujeito na elaboração de estratégias e produção de conhecimento (Bell, 1999). A análise narrativa usa porções narrativas de um texto como dados e atende aos elementos estruturais das narrativas, bem como o seu conteúdo, como base para interpretação. Ao analisar o conteúdo, bem como a estrutura, a análise narrativa torna visíveis os contextos particulares em que os contadores estão localizados e as matrizes múltiplas, instáveis, sobrepostas e que se cruzam de poder e resistência. A análise narrativa nos permite ver como as pessoas são orientadas a agir pelas relações em que estão inseridos e pelas histórias com as quais se identificam (Bell, 1999). As narrativas são produzidas conjuntamente por contadores e ouvintes que são atores sociais cujas matrizes sociais e culturais são marcadas por gênero, idade, raça, classe e status profissional (Bell, 1999). Para Riessman (2005), esse tipo de análise pode ter como base a ideia da narrativa como construção interacional. Assim, entende-se que o contar uma história é uma forma de agir, que envolve sua audiência. Na narrativa como uma construção interacional, prevalece a ideia de que a audiência constrói conjuntamente a narrativa, historicamente e culturalmente. Nessa visão, entende-se que contar uma história é um processo de elaboração conjunta, em que aquele que conta e aquele que ouve criam sentidos colaborativamente. A análise narrativa será realizada a partir da proposta de Schutze, apresentada por Bauer (2008) de indexação das categorias para análise do texto. Dessa forma, após a transcrição e leitura exaustiva das entrevistas, serão identificadas as principais noções e categorias teóricas e empíricas e posteriormente realizar-se-á a indexação do texto. Um acontecimento pode ser traduzido tanto em termos gerais quanto em termos indexados. Indexados significa que a referência é feita a acontecimentos concretos em um lugar e em um tempo. Narrações são ricas de colocações indexadas, primeiro porque elas se referem às experiências pessoais, e segundo, porque elas tendem a ser detalhadas com um enfoque nos acontecimentos e ações (Bauer & Javchelovitch, 2008). Schutze propõe seis passos para analisar narrativas. O primeiro é a transcrição de alta qualidade do material verbal. O segundo passo é a divisão do texto em material indexado e não indexado. As proposições indexadas são referentes a acontecimentos concretos em um lugar e em um tempo, enquanto as proposições não indexadas expressam valores, juízos e o conhecimento do senso comum. As proposições não indexadas podem ser de dois tipos: descritivas e argumentativas. As descrições se referem a como os acontecimentos são sentidos e experenciados, aos valores e opiniões ligados a eles. A argumentação se refere à legitimação do que é contestado e as reflexões sobre os conceitos gerais dos acontecimentos. No terceiro passo utilizam-se todos os componentes indexados do texto para analisar o ordenamento dos acontecimentos para cada sujeito. No quarto passo, as proposições não indexadas do texto são investigadas como “análise do conhecimento”. Aquelas opiniões, conceitos, reflexões são a base sobre a qual se reconstroem as teorias operativas. Essas teorias operativas são então comparadas com elementos da narrativa, pois elas apresentam o autoentendimento do entrevistado. O quinto passo consiste no agrupamento e na comparação entre as trajetórias individuais. E no último passo, as trajetórias individuais são colocadas dentro do contexto e semelhanças são estabelecidas (Bauer & Javchelovitch, 2008). Por se tratar de uma investigação envolvendo seres humanos, esse projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa das instituições envolvidas, sendo aprovado pela instituição proponente sob parecer nº 5.201.875, CAAE de número 53364221.2.0000.5240, e pela instituição coparticipante sob parecer nº 5.291.051, CAAE de número 53364221.2.3001.5274, como preconiza a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. Após a realização das entrevistas, que ocorrerão no período de março de 2022 a agosto de 2022, será realizada a análise e interpretação do material, o que constituirá a tese de doutorado da pesquisadora.

3.Resultados

A coleta de dados encontra-se em andamento, pois a mesma foi iniciada em março de 2022, após aprovação pelos comitês de ética das instituições envolvidas.

4.Conclusões

A escolha por falar sobre o câncer do colo do útero e as suas repercussões na vida e trabalho das mulheres está relacionada à elevada incidência dessa neoplasia no país e à sua associação com as condições socioeconômicas, somados ao fato dessa doença atingir, na maioria dos casos, mulheres em idade economicamente ativa. A produção do conhecimento sobre o câncer do colo do útero é vasta, com grande parte dos estudos na área biomédica. Existem diversas pesquisas que abordam o tema da adesão e do rastreamento, da prevenção, da infecção pelo HPV e sua relação com o câncer do colo do útero, da mortalidade por este tipo de neoplasia, do diagnóstico tardio, das sequelas deixadas pelo tratamento, das características sociodemográficas e clínicas da população atingida por essa doença, dentre outros temas de significativa relevância para o aprofundamento do conhecimento sobre a doença. Porém, estudos que enfoquem a relação do adoecimento por câncer do colo do útero e suas repercussões no mundo do trabalho são escassos. A maioria é direcionada para relacionar a doença com fatores de risco. Alguns estudos sobre o perfil das mulheres adoecidas trazem informações sobre o trabalho e a renda dessas mulheres, mas as repercussões no mundo do trabalho não são o tema central de nenhum deles. Através das narrativas das mulheres adoecidas com câncer do colo do útero, a experiência do adoecimento pode ser reconstruída, bem como sua história de vida. A narrativa da doença irá proporcionar a transformação da doença de fenômeno individual em fenômeno coletivo, permitindo compreender como o adoecimento crônico por câncer do colo do útero repercute no trabalho das mulheres, área marcada pelas hierarquias de gênero, raça/cor e classe social. As repercussões do adoecimento na vida e nas atividades de trabalho desempenhadas por essas mulheres observadas a partir da realização da pesquisa, poderão servir de subsídio para que mais estudiosos se debrucem sobre esse tema, bem como para proporcionar maior visibilidade dessa temática para a sociedade, reforçando e reconhecendo a importância de pensar a respeito da garantia dos direitos relacionados ao trabalho para mulheres acometidas por doenças crônicas. Além disso, esse estudo poderá permitir, ainda, conhecer melhor quem são essas mulheres adoecidas por câncer do colo do útero, suas trajetórias de vida e relações com o trabalho e, assim, proporcionar reflexões sobre a relação saúde-doença-trabalho na sociedade atual. Essa pesquisa possibilitará conhecer os significados e efeitos do adoecimento nas atividades de trabalho desempenhadas pelas mulheres adoecidas com câncer do colo do útero, analisar as situações de trabalho dessas mulheres na perspectiva de gênero, raça/cor e classe social e, identificar as alternativas por elas na redefinição de seus papéis sociais enquanto trabalhadoras.

5.Referências

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Recebido: 01 de Fevereiro de 2022; Aceito: 01 de Abril de 2022

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