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New Trends in Qualitative Research

versão On-line ISSN 2184-7770

NTQR vol.7  Oliveira de Azeméis jun. 2021  Epub 11-Nov-2021

https://doi.org/10.36367/ntqr.7.2021.313-320 

Artigos Originais

Uma proposta metodológica sobre o discurso fotográfico no âmbito da pesquisa acadêmica

A Methodological Proposal on Photographic Discourse in the Academic Research Context

Dilza Côco1 
http://orcid.org/0000-0001-8371-8517

Érika Sabino de Macêdo1 
http://orcid.org/0000-0001-6647-7176

Priscila de Souza Chisté Leite1 
http://orcid.org/0000-0003-2689-4180

Sandra Soares Della Fonte2 
http://orcid.org/0000-0002-9514-7202

1 Instituto Federal do Espírito Santo, Brasil

2 Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil


Resumo:

As pesquisas no âmbito do Mestrado Profissional em Ensino de Humanidades, realizadas pelo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação na Cidade e Humanidades, têm apresentado dificuldades em utilizar a imagem fotográfica de modo contextualizado e estético. Para atenuar esse problema, foi planejada e executada ação de formação, sob a forma de minicurso, com o tema “A fotografia na pesquisa acadêmica”. A partir dessa experiência, este artigo tem como objetivo apresentar metodologia desenvolvida na referida formação a qual foi executada de modo virtual. Os 12 participantes eram alunos e egressos do Mestrado Profissional em Ensino de Humanidades, bem como licenciandos em Pedagogia do Instituto Federal do Espírito Santo. O referencial teórico-metodológico adotado no curso inspira-se no filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin. Na sequência, exibe percurso formativo do curso, evidenciando os cinco encontros e, a seguir, discorre sobre as análises das produções escritas dos participantes. Conclui que o curso contribuiu para a mudança de pensamento sobre a utilização da fotografia na pesquisa acadêmica, tendo em vista que os participantes incorporaram as discussões realizadas nos textos escritos que criaram. A partir dessa experiência, é possível pensar que tal iniciativa pode ser compartilhada em outros contextos desde que a fotografia seja reconhecida como discurso que possui carácter histórico, ideológico, estético e dialógico, ou seja, considerando seus aspectos plásticos (cor, composição, textura e contraste), o contexto em que foi produzida, a formação social do fotógrafo, a comunicação entre as imagens fotográficas e outros textos visuais/verbais; e a recepção por parte dos leitores que podem atribuir ao discurso fotográfico diferentes sentidos.

Palavras-chave: Fotografia; Pesquisa Acadêmica; Metodologia de Pesquisa; Ensino.

Abstract:

The research carried out in the Professional Master in Humanities Teaching by the Group of Studies and Research on Education in the City and Humanities have presented difficulties in using the photographic image in a contextualized and aesthetic way. To decrease this problem, a training course was planned and conducted as a short course, with the theme “Photography in academic research”. Based on this experience, this article aims to present the methodology developed in that short course. This minicourse was executed in a virtual way and had twelve participants, among them students and graduates of the Professional Master in Humanities Teaching, as well as undergraduates in Pedagogy of Instituto Federal do Espírito Santo. The theoretical-methodological framework adopted in the course was inspired by the philosopher of language Mikhail Bakhtin. This text shows the formative course of the course, highlighting each of the five meetings and then discusses the analysis of the written productions of the participants. It concludes that the course contributed to the change in thinking about the use of photography in academic research, considering that the participants incorporated the discussions held in the course into the written texts they created. Based on this experience, it is possible to think that such an initiative can be shared in other contexts as long as the photograph is recognized as a discourse that has a historical, ideological, aesthetic and dialogical character, that is, considering its plastic aspects (color, composition, etc.), the context in which it was produced, the social formation of the photographer, the communication between photographic images and other visual / verbal texts; and the reception by readers who can assign different meanings to them.

Keywords: Photography; Academic Research; Research methodology; Teaching.

1. Introdução

A pesquisa acadêmica abarca um campo amplo de possibilidades metodológicas que visam estruturar o fazer científico. Permite delineamentos específicos conforme as necessidades de cada área de conhecimento, além da combinação de recursos e técnicas que favorecem a apreensão de objetos de estudos diversos, especialmente os de natureza social. Na área de ensino, no contexto do sistema brasileiro de pós-graduação, o aporte metodológico de pesquisa com viés qualitativo ocorre de forma predominante (Minayo, 2000). Nesse contexto, o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação na Cidade e Humanidades (Gepech), criado em 2016 e vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades (PPGEH), do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), alinha-se a essa proposição metodológica.

O enfoque prioritário de investigação desse grupo de pesquisa concentra-se no cenário dos estudos sobre Educação na Cidade. A partir dessa temática, no âmbito do PPGEH, os integrantes do grupo têm desenvolvido investigações que sistematizam materiais educativos, direcionados às demandas do trabalho pedagógico em escolas de Educação Básica. Esses materiais são elaborados por mestrandos a partir de pesquisa teórico-empírica sobre diferentes espaços/tempos de cidades do Espírito Santo, Brasil. Tais materiais são compartilhados com docentes em ações coletivas de formação continuada, visando à avaliação das propostas de trabalho e o consequente aprimoramento, para então, disponibilizá-los ao público em geral (Côco, Chisté, Della Fonte & Macêdo, 2021). Nessa trajetória embrionária, observamos que muitos pesquisadores encontravam dificuldades para utilizar a imagem fotográfica de modo contextualizado e estético.

Para superar esse desafio, no segundo semestre de 2020, propusemos uma ação de formação continuada para os integrantes do referido grupo. No contexto da pandemia da Covid 19, que impôs a necessidade de isolamento social, organizamos um minicurso no formato virtual, utilizando a plataforma digital “Google Meet”. Foram cinco encontros com a duração de duas horas cada e 12 participantes, sendo oito mestrandos, duas doutorandas e duas licenciandas do curso de Pedagogia. A partir dessa experiência, este artigo tem como objetivo apresentar a metodologia desenvolvida no curso como modo de colaborar para as discussões sobre este tema em outros contextos.

De forma a organizar este artigo, na próxima seção, apresentaremos as etapas deste minicurso. Na sequência, analisaremos produções escritas elaboradas pelos participantes após os estudos sobre fotografia.

2. Percurso de estudos coletivos sobre fotografia

Conforme apontado, observamos no âmbito do Mestrado de Humanidades um interesse pelo uso da fotografia nas investigações desenvolvidas pelos alunos. No entanto, a sua utilização necessitava de um debate e de um aprofundamento sobre o tema. Nesse sentido, o objetivo do minicurso “A fotografia e a pesquisa acadêmica” foi apresentar aos participantes o pensamento de teóricos que investigaram elementos da linguagem fotográfica e sua relação com a sociedade. Ao ampliar o conhecimento sobre esse assunto, a expectativa era que os alunos retornassem para suas pesquisas munidos de outro ponto de vista, repleto de provocações e questionamentos que oferecessem um embasamento teórico e imagético para que pudessem prosseguir com suas investigações.

A estrutura do curso e o desenvolvimento das aulas foram embasados por conceitos teóricos postulados pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin. As ideias desse pensador são debatidas e investigadas no âmbito do Gepech. Portanto, utilizá-lo como aporte metodológico configurou-se, no processo de elaboração do curso, uma decisão coerente e significativa. O conceito de historicidade e de excedente de visão foi fundamental no processo de planejamento dos encontros e do conteúdo apresentado. Para Bakhtin (2000), a descrição da época, do lugar e da formação social do autor ou do texto não são suficientes para entender a historicidade de um discurso. A dimensão histórica bakhtiniana está ancorada no conceito de dialogismo.

Tal conceito refere-se a como os diferentes enunciados se comunicam. Ao observar a interação entre enunciados, sejam eles diálogos cotidianos, expressões de ideias ou uma produção artística, é preciso compreendê-los como formas sociais que comunicam algo e que possuem, em sua gênese, além de uma expressividade própria, o contexto repleto de enunciados à sua volta: a época, o meio, a família, as obras literárias/artísticas e as ideologias. Nesse sentido, a estrutura dos encontros estabeleceu relações entre teoria, produções artísticas, jornalísticas, acadêmicas e contexto social e histórico da imagem fotográfica.

Os teóricos e fotógrafos abordados no curso são pensadores e artistas que já foram amplamente discutidos por outros sujeitos e em outros contextos. No entanto, as conexões estabelecidas na estrutura desse curso apresentam uma nova perspectiva sobre esses textos e imagens. Segundo Bakhtin (2000), os discursos estão sempre em processo de serem completados e finalizados pela visão do outro. O conhecimento a respeito do outro é sempre condicionado pelo “[...] lugar que sou o único a ocupar no mundo: nesse lugar, nesse instante preciso, num conjunto de dadas circunstâncias” (Bakhtin, 2000, p. 43). É desse lugar específico, o Gepech, a partir de nossas ideias e valores, que olhamos para esses pensadores e fotógrafos abordados. Ocupar esse lugar nos permitiu completar a obra dos teóricos, pesquisadores e artistas apresentados no conteúdo do minicurso “A fotografia e a pesquisa acadêmica”.

Embasados por esses conceitos, a configuração dos encontros apresentou as possíveis interações e diálogos entre teoria, produção artística e produção acadêmica. Conforme explicamos, entendemos que a compreensão da teoria ocorre no diálogo entre os conceitos apresentados e as imagens fotográficas produzidas, ambos inseridos em contextos sociais e culturais específicos. Dessa forma, a estrutura das aulas foi organizada a partir da interação entre esses principais discursos e de suas possíveis relações com outros textos e imagens: pesquisas acadêmicas, imagens jornalísticas, materiais publicitários, cartões postais, produções cinematográficas e videoclipes. Explicitada a ideia geral do minicurso, apresentaremos a seguir uma síntese do seu percurso, abordando os tópicos principais discutidos em cada encontro.

A primeira e a segunda aula foram dedicadas ao pensamento do filósofo alemão Walter Benjamin. Apresentamos inicialmente uma introdução que abordou a imagem e seus usos ideológicos. Analisamos imagens jornalísticas que demonstravam um aspecto importante dessa linguagem: a fotografia como construção da imagem pública. Em seguida, abordamos um breve percurso da História da arte e da fotografia (Benjamin, 1994). Discutir essas questões introdutórias foi fundamental, pois os participantes possuíam formação acadêmica em diferentes áreas do conhecimento, tais como história, geografia, pedagogia, filosofia e artes cênicas.

Em seguida, abordamos os conceitos encontrados na teoria benjaminiana a partir do debate sobre a tese principal desse autor: as formas de exposição da fotografia e do cinema modificaram a arte e sua recepção. Essa tese diz respeito ao conceito de aura defendido pelo autor. Refere-se à passagem de uma percepção contemplativa da obra de arte autêntica e original à percepção distraída imersa em cópias amplamente disseminadas. Em diálogo com Benjamin, apresentamos a produção do fotógrafo Atget, citado pelo autor, a obra de Cartier Bresson e seu conceito de momento decisivo postulado por este mestre da fotografia. Discutimos ainda as ideias benjaminianas sobre a estetização da política empreendida pelo nazismo, ou seja, o uso do cinema na construção de uma narrativa fascista. Abordamos também o conceito de politização da arte no contexto do cinema expressionista alemão e do cinema russo, nos quais a mudança de cena, a justaposição e os cortes geravam um sentido ideológico no discurso cinematográfico. Para concluir esses dois encontros, analisamos, a partir dos conteúdos abordados, a montagem do videoclipe “Under Pressure”, do grupo inglês “Queen”.

No terceiro encontro, colocamos em diálogo dois pensadores fundamentais para a compreensão da linguagem fotográfica no âmbito artístico e cultural da segunda metade do século XX: o francês Roland Barthes (2018) e sua obra “A câmara clara” e a americana Susan Sontag (2004) com sua publicação “Sobre fotografia”.

Sontag aborda a fotografia como rito social, apontando as imagens fotográficas como uma crônica visual de nós mesmos que nos possibilita observar, melancolicamente, as transformações da paisagem e as ausências das pessoas. Além disso, a autora nos alerta para a contradição existente nas imagens fotográficas: elas despertam a consciência para questões políticas e sociais, mas, ao mesmo tempo, a sua utilização de forma recorrente na sociedade contemporânea gera uma banalização. A partir dessas questões, analisamos a obra da fotógrafa americana Diane Arbus. Ainda nessa aula, apresentamos ideias do semiólogo Roland Barthes que, a partir de sua própria relação com a imagem fotográfica, propõe dois conceitos para analisarmos a fotografia: o Studium e o Punctum. O primeiro, relacionado ao contexto que a representação fotográfica oferece ao espectador, e o segundo, relacionado com aspectos subjetivos do olhar: “É ele que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar. (...) O punctum em uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)” (Barthes, 2018, p. 29). Para exemplificar esse debate, apresentamos a obra de fotógrafos citados pelo próprio autor, como Mapplethorpe, Germaine Krull, Kertész. Terminamos esse encontro com a sugestão de leitura do artigo “Refugiados e a fotografia: uma análise iconológica das imagens de Alan Kurdi” de Camila Magalhães de Holanda.

Iniciamos o quarto encontro com a discussão das imagens fotográficas analisadas no artigo acadêmico sugerido no encontro anterior. Em seguida, abordamos as ideias apresentadas nas obras do francês Philippe Dubois e do teórico brasileiro Boris Kossoy. Dubois (1993) explica, em sua obra “O ato fotográfico”, que o discurso fotográfico não é neutro, ele é uma construção. O autor nos alerta para importância de desmistificar a ideia da fotografia como simples instrumento mecânico ou como uma memória documental do real, enfatizando a importância da presença do sujeito/artista nesse processo e suas intenções. No entanto, o autor enfatiza como preponderante o caráter indicial da fotografia: “A foto é em primeiro lugar índice. Só depois ela pode tornar-se parecida (ícone) e adquirir sentido (símbolo)” (Dubois, 1993, p. 53). No desenvolvimento desse debate teórico, discutimos o artigo “A mudança da imagem do presidente Lula nas campanhas para presidente da república” das autoras Cecília de Castro Rodrigues e Amália Raquel Pérez-Nebra. A pesquisa analisa fotografias jornalísticas e publicitárias de quatro campanhas do ex-presidente do Brasil, mostrando o processo de adequação da imagem do político às expectativas dos eleitores. Em interação com o teórico, apresentamos a obra do fotógrafo Brassai que buscava, em seus retratos de pessoas comuns, a revelação de uma verdade interior oculta.

O pensamento do fotógrafo e pesquisador Boris Kossoy (2002) foi o tema abordado na segunda parte desse encontro. Na publicação “Realidades e ficções na trama fotográfica”, o autor busca analisar as tramas ideológicas presentes, mas ocultas pela superfície das imagens. Ciente do poder da fotografia como instrumento para a difusão de ideias e para a construção de narrativas manipuladoras, o autor aponta a necessidade de desconstruir e decodificar as imagens que utilizamos em nossas pesquisas e análises: “Resulta de tal desconhecimento, ou despreparo, o emprego das imagens do passado apenas como ilustrações dos textos: o potencial do documento não é explorado, suas informações não são decodificadas, posto que, não raro, se encontram além da própria imagem” (Kossoy, 2002, p. 20-21). Nesse sentido, o autor aponta dois conceitos importantes para análise de imagens fotográficas. A primeira realidade diz respeito aos aspectos interiores da fotografia, ou seja, a trama dos fatos e as circunstâncias que envolvem a imagem: as intenções do fotógrafo, o contexto de sua posterior veiculação ou exposição, o contexto histórico, cultural e social da época e as ideias predominantes. De acordo com o autor, esse é o ponto de chegada para uma investigação histórica a partir da fotografia. O outro conceito, denominado a segunda realidade, está relacionado à ideia de índice, apontado por Dubois (1993), e diz respeito à realidade exterior e ao fato em si. É a comprovação de que aquele evento ocorreu. Em consonância com esses conceitos, apresentamos, para o aprofundamento do debate, fotografias históricas do Brasil abordadas na obra do autor e destacamos as intenções ideológicas contidas e camufladas na produção dessas imagens.

No último encontro do curso, debatemos as ideias de José de Souza Martins, contidas em sua obra “Sociologia da fotografia e da Imagem”. Iniciamos a aula com uma revisão de todos autores e conceitos abordados até o momento. Em seguida, analisamos a abordagem teórica do autor, bem como os usos pessoais e sociais da fotografia. Martins (2008) destaca a importância de compreendermos o aspecto dessa linguagem que funciona como uma ficção social e cotidiana, na qual os sujeitos representados entendem essas imagens como instrumento de auto-identificação. Além de impregnada pela fantasia do fotografado, ela também envolve o imaginário do fotógrafo e do espectador. Diante dessa multiplicidade de sentidos, o autor aponta a necessidade de uma “Sociologia da fotografia e da imagem”. O autor descarta o entendimento da fotografia como evidência e a conceitua como uma evidência do invisível, pois a fotografia revela o ausente.

A reflexão sociológica da fotografia nos permite elucidar os elementos desse imaginário social e compreender a tensão entre ocultação e revelação que permeia nosso cotidiano. Estabelecemos relações dessa parte teórica com comentários sobre o filme “Blow-up” de Michelangelo Antonioni, produzido em 1966. A narrativa dessa obra mostra a fotografia como elemento desvelador das relações sociais ilusórias. Para complementar o entendimento dessa temática, apresentamos as produções de duas fotógrafas: Alícia D’Amico, antropóloga visual que retratou moradores de favelas de Buenos Aires, e Gisèle Freund que retratou personalidades da cultura europeia. Finalizamos o curso abordando a obra do fotógrafo Pierre Verger, analisando as imagens de representações religiosas no Brasil contidas na publicação do autor e apresentando o ensaio fotográfico elaborado por Martins e seus alunos em um complexo penitenciário, denominado “Carandiru: a presença na ausência”. O olhar crítico sobre essas produções artísticas enfatizou a importância que Martins (2008, p. 59) confere ao aspecto estético da fotografia para sua utilização na pesquisa acadêmica.

Após a apresentação do percurso metodológico utilizado no minicurso, na próxima seção, apresentaremos as produções textuais elaboradas pelos participantes como forma de avaliação voluntária do curso e de compreendermos se os conhecimentos discutidos no curso contribuíram para o desenvolvimento de suas pesquisas.

3. Análise das Produções Escritas dos Participantes

Com base no referencial teórico adotado no minicurso, analisamos os textos elaborados pelos participantes a fim de entender de que modo a organização desses encontros contribuíram para a formação do pesquisador. Destacamos que, dos doze participantes, sete deles apresentaram, após nossa solicitação, textos escritos (corpus de análise) com apontamentos reflexivos e avaliativos. Não solicitamos os textos escritos para egressos e alunos de graduação, somente para os mestrandos. Os diferentes enunciados que compõem as produções dos participantes revelam a interação entre eles e os conteúdos ministrados. A partir do referencial teórico-metodológico bakhtiniano, compreende-se que os textos materializam pensamentos e vivências. Indicam conexões com textos anteriores, além de inscrever a gênese de possíveis textos futuros.

Nesse diálogo com o conjunto dos textos, os enunciados ainda são tomados como indicadores do processo de formação do pesquisador. Formação entendida como movimento coletivo com potencial para provocar deslocamentos, ou seja, uma formação que produz condições para uma nova qualidade de pensamento e, consequentemente, de um novo agir no mundo (Moura, 2017).

Como modo de exibir esses dados, apresentaremos alguns extratos que entendemos ser reveladores desse processo de mudança. Os extratos de enunciados serão identificados por letras e números (TC1, TE2, TT3, TR4, TB5, TL6 e TJ7), cabendo ressaltar que obtivemos a autorização dos autores para a utilização de seus textos. Realizamos a leitura integral do corpus e, devido ao limite de extensão do presente artigo, elegemos as categorias de dialogismo e acabamento (Bakhtin, 2000) para selecionar e analisar os extratos.

No TC1, encontramos evidências de diálogos com os estudos realizados a partir da obra dos autores estudados, conforme o seguinte excerto: “Aprendemos a considerar as divergências e a crítica à fotografia em relação à arte, mas também consideramos o registo fotográfico como um recurso a ser utilizado para fomentar a criticidade”. Em outros trechos de TE2, encontramos enunciados que reiteram esse processo de aprendizagem.

Sobre as apropriações no decorrer da formação, compreendi que a fotografia não é neutra e nem inocente, há as fotos históricas estereotipadas, sendo preciso desvendar a trama da imagem fotográfica: quem foi o fotógrafo? Qual o espaço/tempo do registo? Qual era o objeto/assunto de análise? Qual era a mensagem pretendida? (TE2).

Assim, notamos, nesses extratos (TC1 e TE2), indicativos de que o percurso desenvolvido no minicurso favoreceu reflexões que ampliaram o conceito de fotografia, especialmente no sentido de trazer para análise elementos não aparentes, tais como aspectos históricos e ideológicos. Além disso, podemos observar que os estudos contribuíram para que os mestrandos entendessem a fotografia como um discurso que remete não somente ao conteúdo da imagem, mas coloca em diálogo a atuação do próprio autor da fotografia e de seu receptor. Essas proposições foram também destacadas nos textos TT3 e TR4:

[...] também pude aprimorar o meu olhar crítico no sentido de buscar perceber as intencionalidades por trás das imagens inseridas nas produções, sejam acadêmicas, jornalísticas, governamentais [...]. O que me leva a questionar, inclusive, se a minha produção acadêmica também possui intencionalidade, e que é preciso estar atenta a que tipo de informação eu pretendo transmitir e quais reflexões eu irei suscitar quando inserir uma imagem para representar determinada análise (TT3).

A fotografia é uma potência que leva reflexões e pode manipular as pessoas, para o bem ou para o mal, pois o artista tem a responsabilidade e o poder de se utilizar das imagens para persuadir o espectador, emocioná-lo e seduzi-lo. O pesquisador precisa ter domínio sobre essas questões (TR4).

Desse modo, os textos produzidos pelos participantes do minicurso evidenciaram a compreensão de que o ato de fotografar não se resume a um simples fazer artístico ou técnico, mas assume uma dimensão ética, de natureza política, fato que revela o caráter ideológico desses discursos. A produção da fotografia nesse aspecto coloca em destaque o excedente de visão (Bakhtin, 2000) do fotógrafo, ou seja, do lugar singular que ocupa no contexto de relações, ele expressa sua visão de mundo e se posiciona. Por conseguinte, o observador também complementa o sentido da imagem fotográfica quando a interpreta a partir de sua visão de mundo. Esses diálogos formam uma movimentada cadeia de interpretações. Da mesma forma, o fotografado interfere nesse processo, produzindo sua imagem por meio de poses estudadas e adereços inseridos. Nos extratos de TB5, TL6 e TJ7, notamos indicativos desse movimento criativo de interlocução, especialmente quando os participantes ocupam a posição de pesquisador.

[...] uma temática até então desconhecida por mim, já que nunca tinha lido ou pensado em todos os aspectos presentes no ato de fotografar. O conceito político da imagem chama bastante atenção, pois a própria captação daquilo que se pretende demonstrar ou representar é ideológica. E, de certa forma, pode ocultar a realidade ao invés de expressá-la, por isso é importante decodificar, interpretar as imagens, buscar aquilo que muitas vezes está escondido e depende da percepção daquele que observa (TB5).

[...] as discussões e debates presentes no curso, em muito ajudaram a refletir sobre a utilização ou não de determinado documento fotográfico coletado, além de também gerar uma reflexão, sobre os aspectos técnicos utilizados pelos fotógrafos na tentativa de dissimular as ideologias que, muitas vezes, revelam alguma afinidade com o poder, criando cenários objetivados pela dissimulação e ocultação, mostrando que toda objetividade (da imagem) nada é ao acaso, geralmente tanto as técnicas como as finalidades buscam acentuar uma sociedade baseada em sua aparência, ocultando a realidade do vivido (TL6).

[...] com este curso pudemos entender que o conhecimento teórico do ato fotográfico, desde a sua gênese, passando por suas modificações no decorrer dos anos, pode ser realizado na atualidade como uma ferramenta de trabalho (TJ7).

Essas reflexões demostram uma nova qualidade de pensamento, pois os mestrandos indicam compreender que a imagem fotográfica é um discurso ideológico, político, artístico e histórico. Observamos também que o estabelecimento de relações entre o conjunto dos postulados dos autores estudados no minicurso com o processo de produção das pesquisas dos participantes TB5, TL6 e TJ7, confirmam que “[...] Toda interpretação é o correlacionamento de dado texto com outros textos” (Bakhtin, 2003, p. 400).

Desse modo, inferimos que o diálogo com os diferentes autores (Barthes, 2018; Benjamin, 1994; Dubois, 1993; Kossoi, 2002; Martins, 2008; Sontag, 2004), abordados no minicurso, ganha destaque no acontecimento vivo da vida dos mestrandos, quando estes anunciam a produção de outros textos, superando uma visão dogmática e analisando as imagens de sua própria pesquisa de modo crítico e criativo.

4. Conclusões

Neste artigo, apresentamos uma proposta metodológica desenvolvida no minicurso “A fotografia e a pesquisa acadêmica”. Por meio de um percurso dialógico, sensibilizamos os alunos quanto às interações possíveis entre a linguagem conceitual e a figurada, mais precisamente entre a teoria, a produção artística e a pesquisa acadêmica. Buscamos desmistificar a ideia da fotografia como registro do real, apontamos suas interferências na sociedade e como essas imagens são influenciadas pelos sujeitos sociais envolvidos no ato fotográfico.

Nesse processo, articulamos os referenciais da fotografia com a perspectiva dialógica de Bakhtin, visando favorecer o entendimento da fotografia como discurso histórico, político, ideológico e artístico. A metodologia dialógica promoveu o entendimento de que a análise da imagem fotográfica, ou de qualquer produção artística e cultural, seja ela utilizada em um processo de ensino-aprendizagem ou na pesquisa acadêmica, deve ser compreendida na relação que estabelece com seu contexto social/político e com outros discursos.

Essa articulação favoreceu a mudança de pensamento dos participantes, aspecto evidenciado nos excertos apresentados. Notamos que os integrantes do curso se apropriaram das discussões realizadas e expressaram nos textos escritos esse movimento de mudança. A partir dessa experiência, é possível pensar que tal iniciativa possa ser compartilhada em outros contextos desde que a fotografia seja considerada em seus aspectos plásticos (cor, composição, textura e contraste) e em seus aspectos contextuais: o local de sua produção, o sujeito ou evento fotografado, a formação social do fotógrafo, os locais de difusão, sua relação com outros textos visuais/verbais e a recepção por parte dos leitores que podem atribuir a elas diferentes sentidos.

Finalmente, percebemos que a metodologia dialógica apresentada neste artigo, apoiada no conceito de historicidade bakhtiniana está em consonância com a ideia central dos teóricos abordados na formação: a compreensão da fotografia passa pelo entendimento de que essas produções visuais são construções alicerçadas em outros discursos, em outros olhares, em outros contextos. A análise aprofundada dessas imagens, no âmbito da pesquisa acadêmica, envolve uma desconstrução crítica e consciente. Acreditamos que essa metodologia ofereceu aos alunos possibilidades de entendimento do discurso fotográfico.

Como continuidade, em um momento posterior, pretendemos observar como este curso impactou o uso da fotografia nas dissertações e nos materiais educativos produzidos, na tentativa de observarmos se constam outros pontos de vista e repertórios imagéticos/teóricos ampliados.

5. Referências

Côco, D., Leite, P. S. C., Della Fonte, S. S., Macêdo, E. S. (2021). Educação na cidade: diálogos e caminhos do GEPECH. São Carlos: Pedro & João Editores. [ Links ]

Bakhtin, M. (2000). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]

Barthes, R. (2018). A Câmara Clara: Notas sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. [ Links ]

Benjamin, W. (1994). A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: Benjamim, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense. [ Links ]

Dubois, P. (1993). O ato fotográfico. Campinas, SP: Papirus. [ Links ]

Holanda, C. M. (2019). Refugiados e fotografia: uma análise iconológica das imagens de Alan Kurdi. Revista Passagens, Fortaleza, 10(1), 70-93. Acedido janeiro 9, 2021, em http://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/47282/1/2019_art_chmagalhaes.pdf. [ Links ]

Kossoy, B. (2002). Realidades e ficções na trama fotográfica. Cotia, SP: Ateliê Editorial. [ Links ]

Martins, J. S. (2008). Sociologia da Fotografia e da Imagem. São Paulo: Editora Contexto. [ Links ]

Minayo, M. C. S. (2000). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec. [ Links ]

Moura, M. O. (2017). Educação escolar e pesquisa na teoria histórico-cultural. São Paulo: Edições Loyola. [ Links ]

Sontag, S. (2004). Sobre fotografia. São Paulo: Companhia da Letras. [ Links ]

Recebido: 18 de Março de 2021; Aceito: 28 de Abril de 2021

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