SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número36De antiga colônia portuguesa à Dubai Brasileira. Um estudo sobre Balneário Camboriú, Santa Catarina, BrasilEduardo Lourenço - uma análise do destino português índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


População e Sociedade

versão impressa ISSN 0873-1861versão On-line ISSN 2184-5263

População e Sociedade  no.36 Porto dez. 2021  Epub 15-Set-2022

https://doi.org/10.52224/21845263/rev36v1 

Varia

A Associação de Classe dos Industriais de Padarias do Porto na Crise das Subsistências

The Class Association of the Bakery Industries of Porto in the Crisis of Livelihoods

1Investigador Autónomo, Trofa, Portugal.


Resumo

O presente artigo pretende escrutinar o papel da Associação de Classe dos Industriais de Padarias do Porto no decorrer da Crise das Subsistências em consequência da Primeira Grande Guerra. Trata-se de uma indagação à atividade de uma associação de classe que estava fortemente envolvida no dia a dia da sua comunidade e também na instabilidade provocada por aquele conflito. Os estudos realizados anteriormente fazem na sua maioria apenas referência ao consumidor, ao seu papel e às suas dificuldades, descurando a associação de produtores que tem, por razões óbvias, uma importância considerável no abastecimento alimentar. Com o auxílio de ampla bibliografia, periódicos, como também dos fundos do Arquivo Distrital do Porto, tentar-se-á perceber como a associação lidou com as inúmeras dificuldades de abastecimento de matéria-prima às padarias da cidade que obviamente estrangulavam os circuitos comerciais e, sobretudo, encarou a enorme pressão do comum cidadão que procurava garantir o pilar fundamental da sua alimentação.

Palavras-Chave: Associação de Classe; Industriais de Padaria; Porto; Crise Subsistência; Primeira Grande Guerra.

Abstract

The present article intends to scrutinize the role of the Class Association of the Bakery Industrialists of Oporto in the course of the Livelihoods Crisis as a consequence of the First World War. It is an enquiry into the activity of a class association that was heavily involved in the daily life of its community and also in the instability caused by that conflict. Previous studies have mostly referred only to the consumer, his role and his difficulties, neglecting the producers' association, which for obvious reasons has considerable importance in food supply. With the help of a vast bibliography, periodicals and the funds of the Arquivo Distrital do Porto, we will try to understand how the association dealt with the countless difficulties in the supply of raw materials to the bakeries of the city, which obviously strangled the commercial circuits, and above all, how it faced the enormous pressure from ordinary citizens seeking to guarantee the fundamental pillar of their diet.

Keywords: Class Association; Bakery Industrialists; Porto; Livelihood Crisis; World War I.

Introdução

O presente artigo pretende analisar a atividade da Associação de Classe dos Industriais de Padaria do Porto num dos momentos mais delicados para a sociedade portuense: a Primeira Grande Guerra. Vários foram os momentos de tensão protagonizados pelas massas populares, sobretudo quando eram mais intensas as dificuldades de compra e abastecimento de produtos alimentares.

As questões que norteiam esta inquirição histórica é a compreensão do real papel desta associação no momento temporal referido anteriormente como também as possíveis soluções que possam ter surgido, com as subsistências a estarem no topo da agenda social/económica e também política.

Anunciado o objetivo de estudo, no patamar seguinte é imperioso tentar compreender as necessidades de abastecimento alimentar e as restantes questões relacionadas com a problemática das subsistências, mais concretamente a carência de pão nos mercados. Atente-se, em primeiro lugar, nos números populacionais para melhor entendimento da dimensão do esforço que tinha de ser concretizado.

É fundamental, contudo, indicar as etapas para a concretização desse prepósito que passará pelo escrutínio das fontes de informação do Arquivo Distrital do Porto, concretamente do fundo de arquivo da própria associação, como também pela imprensa. A justificação para essa escolha é pela proximidade da informação à instituição, como também a imprensa ser uma fonte inesgotável de conhecimento e também obviamente de validação das circunstâncias naquele momento da história.

Dinâmicas demográficas

Antes de avançar para o escrutínio dos problemas e das situações que a presente inquirição pretende escrutinar, poderá se realizar um pequeno enquadramento geográfico relativo à organização, referindo que a associação de classe tinha a sua sede, naquele momento da história (1914 - 1918), na Rua Passos Manuel, no nº211 no seu 1º andar estando bastante próxima do centro da cidade.

Introduzindo a problemática deste subcapítulo, as dinâmicas demográficas em 1911, a população portuguesa aproximava-se dos 6 milhões de habitantes, com a sua grande maioria a habitar no campo, apenas 20% vivia nas cidades, sobretudo em Lisboa ou no Porto. O crescimento populacional da cidade invicta era intenso, mas um pouco mais limitado quando comparado com o da capital, com 194 mil habitantes em 1911 para nove anos depois em 1920 ser de 203 mil (Marques, 2010). As taxas de crescimento populacional eram de 4,6% e 14,2% respetivamente (Marques, 1978).

A cidade do Porto e de Lisboa eram as únicas cidades com mais de 100 mil habitantes e representavam em conjunto 68% da população no país (Pereira, 2012).

No vizinho concelho de Vila Nova de Gaia, a população também vivia um importante processo de crescimento: em 1911 o seu número era de 16 mil pessoas para em 1930 ser de mais de 30 mil pessoas. No espaço temporal de 19 anos a sua população iria dobrar (Marques, 1978).

O crescimento populacional foi muito significativo, o que obviamente fez aumentar a pressão sobre os circuitos comerciais e nesse sentido é de primordial importância compreender como estes aumentos de população alteraram as dinâmicas funcionais dos mercados e também dos estabelecimentos em estudo.

O aumento da pressão nos mercados, poderá encaminhar a procura de soluções de matérias-primas para o mercado externo e a partir do último quartel do século XIX os britânicos começaram a constatar que existia uma grande quantidade de cereais que tinha boa qualidade e era vendido a um preço baixo provenientes do mercado do continente americano, concretamente: Estados Unidos da América, Argentina, Canadá e Austrália (Rossum, 2011).

A contestação dos britânicos também foi concretizada pelos comerciantes portugueses e rapidamente as importações de trigo daqueles mercados em Portugal cresceram em grande escala.

Relativamente ao preço do trigo importado dos Estados Unidos da América se for analisado desde a década de sessenta do século XIX, é notória a baixa de preço até próximo ao final do século XIX, iniciando-se em 69,48 o valor médio do litro importado em mil reis, para ir descendo praticamente de forma consecutiva até se fixar em 1887 nos 27 (Pereira, 1983). Uma descida abrupta do seu preço de compra que esmagaria as margens de venda dos produtores nacionais.

A existência de mercadorias de qualidade aliado ao seu baixo preço, facilmente poderá encaminhar os industriais das moagens e das padarias para a sua importação, seguindo os passos dos congéneres ingleses, mas as leis nacionais cerealíferas procuravam sobretudo proteger a produção nacional, causando entraves a essa prática.

Indagando pelo preço do trigo que era praticado nos mercados do Porto, procurando se aproximar cronologicamente do estudo, em 1900 um alqueire custava 902 reis, para em 1911 o seu preço subir ligeiramente para os 1162 reis, uma subida pouco expressiva, se considerarmos que nesse espaço temporal em 1903 e 1906 o seu preço de venda foi inferior a 900 reis (Pereira, 1983).

A contestação de produtos mais baratos noutras paragens, rapidamente motiva a contestação que a Europa não era autossuficiente, quer em produtos alimentares, quer em matérias-primas, existindo uma grande dependência de outros continentes e com o deflagrar do conflito mundial as comunidades/populações veriam a sua vivência diária alterada por completo, faltando matérias-primas e alimentos em virtude dos bloqueios que foram concretizados pela Alemanha à livre circulação de mercadorias (Rossum, 2011).

Circulação de mercadorias

A marinha mercante era o principal meio de transporte utilizado por Portugal no seu comércio externo, contudo, chegou a atingir um grande declínio com proporções inimagináveis, limitando-se a fazer pequenas viagens junto à costa, com a marinha inglesa a assumir as funções de principal transportadora de mercadorias portuguesas e também das mesmas que eram importadas (Rossum, 2011)

A marinha mercante era capaz de transportar apenas 10% dos fretes necessários para a concretização do abastecimento nacional, agravando o cenário quando já foi explicada a elevada dependência do exterior (Pires, 2011).

Um apontamento deve ser concretizado, não é somente no período da República que a marinha sofreu com graves problemas; as suas contrariedades eram anteriores à mudança de regime, estando no momento de proclamação da República em plena decadência, não conseguindo competir os estaleiros nacionais, com os estaleiros dos restantes países (Oliveira, 1978).

Urgia resolver a situação, com o intuito de a aquisição de mais capacidade de carga para satisfazer os movimentos de mercadorias. No mês de março de 1916, foram apresados vários navios alemães, fazendo no seu total uma capacidade de carga de 240 mil toneladas, com a Grã-Bretanha a estar por detrás desta decisão atendendo que estava a perder inúmeros navios com o bloqueio que a Alemanha tentava implementar (Oliveira, 2011).

Após o confisco dos navios estava definitivamente oficializada a entrada de Portugal na guerra, apesar de existirem alguns conflitos em Angola e Moçambique provocados pelo assédio alemão nos meses e anos anteriores.

Ana Paula Pires sobre o atraso da entrada oficial de Portugal na guerra, afirma que essa situação era provocada pelas limitações da produção nacional e também da dependência externa que era crónica no que toca às subsistências, aos combustíveis e aos transportes (Pires, 2011).

O ciclo negativo iria continuar, sobretudo se recordarmos a situação de deficit cerealífero que era constante na história agrícola nacional e que se ira agravar com o impacto da Grande Guerra, aliando às reconhecidas dificuldades de transporte, os maus anos agrícolas iriam continuar, com o ano de 1916 a ser sinónimo de uma péssima colheita de cereais panificáveis. A referida situação provocou o aumento da importação de cereais e obviamente um cenário mais negro para a sociedade (Rossum, 2011).

Os primórdios do conflito

Nas primeiras semanas de conflito, na Associação de Classe Auxiliadora dos Proprietários das Padarias do Porto, discutia-se a forma de combater os boatos que a farinha utilizada na confeção do pão era de fraca qualidade, como também os boatos de que iria surgir uma nova companhia de panificação (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN Ata da Direção 09.10.1914).

A resolução tomada para tentar diminuir estes boatos e sobretudo transmitir confiança ao consumidor era de realizar várias diligências em muitas das padarias para tentar compreender se havia de facto farinhas em mau estado, encontrando numa das várias diligências, farinhas que cheiravam a petróleo (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN Ata da Direção 28.10.1914).

Aparentemente nos primeiros momentos a produção de pão e o normal funcionamento das padarias parecia estar assegurado, não se denotava grandes problemas no seu funcionamento como no seu abastecimento de matéria-prima, à exceção da possível existência de matéria-prima em fracas condições a situação aparentava ser de alguma tranquilidade e também de expectativa.

Uma situação que em parte contradiz a historiografia tradicional que colocava praticamente no imediato o setor sobre enorme pressão e sem capacidade de responder aos desafios que lhe eram colocados.

Importação de cereais - falta de matéria-prima

O país era rico em alguns produtos agrícolas, referência para o vinho, cortiça e também para alguns tipos de fruta que permitiam exportações em bom número, mas o seu solo era pobre e pouco adequado à cultura do trigo. A solução para ultrapassar essa situação era complexa e envolvia os esforços de vários governos (Marques, 2010). Algo aparentemente impossível de se concretizar se referirmos as constantes mudanças governativas e a existência de um projeto aglutinador.

Porém, o sentimento de crise relativamente à economia agrícola nacional era constante desde fases primordiais da história, com os vários atores políticos e até agrícolas a continuarem com tal argumentação sem a questionar (Marques, 1978). Assistia-se a uma atitude de resignação perante aquela condicionante.

Aprofundado a falta de condições para a produção de trigo, essa situação estava relacionada com o clima irregular, agreste, as chuvas a serem excessivas no inverno e a ocorrência de seca em vários momentos do ciclo produtivo, o que não vai permitir a acumulação de reservas de água. A fertilidade do solo também ocorria apenas em locais pontuais, como por exemplo nos concelhos alentejanos de Beja, Cuba, Ferreira, Serpa e Moura (Marques, 1978).

A falta de farinhas fez-se notar sobretudo no início do ano de 1915, em que na ata das reuniões desta comissão é descrito o seguinte cenário: “Falta de farinha, dirigentes dirigem-se às fábricas e não conseguem a quantidade pretendida. A fábrica de moagem Harmonia recusa a venda e como tal não é possível levantar farinha”. A solução num primeiro momento foi a criação de uma comissão com três elementos que iriam tentar junto do Governo Civil colocar um termo a essa situação (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 22.01.1915)

O Governador Civil do Porto detinha uma grande importância para a solução dos problemas que afligiam a sua comunidade, esperando que fosse possível construir várias pontes de entendimento com a população, ou até mesmo com outros grupos que queriam ver as suas reivindicações atendidas, exigindo possivelmente a intervenção da governação central.

Indagando por um possível cenário relativamente à indústria das moagens e panificadora no decorrer do conflito, o historiador Rui Ramos refere:

No princípio de 1916 o preço da guerra já era enorme. Portugal importava grande parte do pão que consumia. Ora, com os riscos de navegação, o transporte de um carregamento de trigo dos Estados Unidos para Portugal custava mais do que por ele se pagava na América. Para que o pão não encarecesse, o Estado subsidiava-o (Ramos, 1994, p. 516).

Neste momento da história, perante a afirmação de Rui Ramos verificamos que a solução existente até aquele momento, a importação de trigo do continente americano, deixava de ser uma solução viável, devido aos elevados custos dos fretes do transporte.

A compra de pão pelo Estado foi uma das várias soluções encontradas no imediato para tentar resolver a carência do referido produto e iria manter-se até ao final do conflito.

Outras medidas seriam colocadas em prática: importação direta por intermédio do Estado, quando as entidades autorizadas por lei não o fizerem; garantir que haja sempre pão no país; não sobrecarregar com impostos o trigo nacional nem o estrangeiro, cobrando apenas o imposto mínimo para se conseguir colocar o preço do pão com um valor baixo (Pires, 2011).

A falta de farinhas justificava-se através das dificuldades no transporte da matéria-prima, como também a produção anual de trigo ser irregular. Na baliza temporal de 1912 a 1923, os seus resultados foram bastante inconstantes, não conseguindo perspetivar a produção a curto, médio e muito menos a longo prazo (Marques, 1978).

Relativamente à falta de farinha naquele momento da história era também notícia na imprensa:

Uma comissão delegada da associação de classes auxiliadora dos proprietários de padarias do Porto, foi ontem à tarde ao Governo Civil a fim de solicitar ao sr. Capitão Pinto Osório a sua interferência junto do Sr. Ministro do Fomento no sentido de se adotarem providências quanto a sensível falta de farinha trigo pois os industriais receiam ter em breve de fechar as suas padarias (O Comércio do Porto, 11.02.1915)

A sua carência não ocorria somente em 1916, como refere Rui Ramos, mas já se fazia sentir em anos anteriores. não sendo uma situação passageira, mas contínua. Nas semanas a seguir continuavam os problemas de abastecimento na fábrica Harmonia, recusando-se a servir todos os pedidos de farinha, respondendo os seus funcionários/proprietários quando seria alterada essa situação com uma resposta bastante vaga, afirmando que o fariam quando tivessem farinha.

A comissão que tinha sido constituída anteriormente para diligenciar com o Governador Civil esta situação, acabava por dar como encerrada a sua atividade, possivelmente porque não encontrava uma solução para a situação para a qual tinha sido criada.

O Ministro do Fomento em exercício era José Nunes da Ponte, que tinha uma forte ligação à cidade do Porto, tendo sido vice-provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, presidente do Hospital de Santo António, provedor da Ordem Terceira e presidente da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras portuense. Ocuparia ainda o cargo de Governador Civil em dois momentos distintos, 1911 e entre 1917 - 1918, sendo vice-presidente e também presidente da Câmara no ano de 1918. Relativamente à sua passagem pelo Ministério do Fomento, ocuparia o cargo durante pouco tempo, entre 28 de janeiro até 14 de maio de 1915 (Marques & Guinote, & Mesquita & Dias, 2000).

Porém, essa ligação afetiva não era capaz de mover as influências necessárias para a resolução dos problemas que afetavam a população e os problemas continuavam a estender-se no tempo.

A falta de mercadoria, durante semanas a fio conduz com naturalidade à suspensão da produção e era o que era afirmado nas reuniões desta associação: “Um elemento afirmava que a falta de farinhas ia continuar, teriam algumas casas de parar com a panificação. A associação tinha de se unir e manifestar a sua preocupação com aquele problema e evitar que o mesmo acontecesse”. (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 09.02.1915)

Nessa mesma assembleia de associados, seria discutida a forma de atuação para lidar e resolver a situação, expedindo o seguinte telegrama para o Ministro do Fomento:

Associação de Classe Auxiliadora dos Proprietários de Padarias do Porto, pede a v.ex.ª. providências imediatas sobre a grande crise das farinhas, que é assustadora, se não remediar o mal de pronto, serão muitas padarias obrigadas muito brevemente a encerrar as suas portas. Uma comissão para o caso o sr. governador civil e lhe expresse a crise das farinhas, pedindo-lhe a sua interferência como intermediário perante o governo no fim de que se ponham em prática medidas energéticas no sentido de haver a farinha necessária para o consumo. Que essa comissão ficasse o comportamento de todos os presentes. Que destas resoluções fosse informada a imprensa (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 09.02.1915).

Atendendo a tudo que foi explicado, o recurso ao trigo importado, tornou-se normal e também indispensável. A importação que passou das 70 mil toneladas por ano em média no espaço temporal entre 1906 - 11, iria atingir as 182 mil em 1916, para diminuir ligeiramente em 1921 para pouco mais de 173 toneladas (Marques, 2010).

No escrutino dos dados mencionados no parágrafo anterior, no espaço de apenas cinco anos, esse valor iria duplicar, comprovando a extrema dependência dos mercados internacionais para garantir o funcionamento do nacional.

Nesse sentido é importante referir que apesar de Portugal estar afastado dos locais fulcrais de conflito, onde seria expectante que os problemas fossem mais intensos, ocorreram apenas alguns bombardeamentos esporádicos nos Açores, Madeira e Cabo Verde que foram concretizados pelos submarinos alemães a economia iria sofrer imenso com a desarticulação das vias de abastecimento que dificultaria também o escoamento de mercadoria para o exterior (Oliveira, 2011).

A importação de trigo era desmedida, mas a concretização do abastecimento deste produto era de difícil execução conforme foi descrito nos parágrafos anteriores, fazendo com que aumentasse a ansiedade nos mercados, nos consumidores e também nos produtores.

Nas páginas da imprensa diária, os relatos relacionados com o mercado do pão eram carregados de grande dramatismo:

Ao povo trabalhador que mais diretamente sente a atual carestia de todos os géneros de primeira necessidade devemos a exploração que seguem para o juiz supremo saiba a quem cabe a responsabilidade de um tão grave assunto, como é o da falta de pão de trigo que em breve se dará e a quase se podia ter obstado se os governos cuidassem melhor deste assunto de uma importância máxima e que a todos vitalmente interessa. Em setembro do ano passado fez a moagem notar aos dirigentes… que os manifestos de trigo não tinham sido preenchidos como aliás sucede quando há abundância de trigo nacional e por isso era de recear a falta deste cereal devido ao estado da guerra a não ser que aqueles estivessem açambarcado para negócios que num momento como o atual seria criminoso (O Comércio do Porto, 21.01.1915)

A dificuldade na importação ocasionava a permanente falta de matéria-prima para a produção de pão, os meses passavam e em novembro de 1915 pelas atas da assembleia percebia-se que a situação continuava permanentemente a degradar-se:

Falta de fa0rinha no Porto, vários colegas se iam queixando de que as fábricas de moagem não entregavam os pedidos feitos, mas sendo a necessidade de se tratar do assunto com os moageiros não esperou para os dias da sessão convidou o senhor Barbosa a irem visitar algumas fábricas e requisitar farinhas tendo os senhores Figueiredo e irmão declararem terminantemente que não havia ordem nenhuma em vista desta declaração foi nomeada uma comissão para ir falar com o Governador Civil expondo-lhe o procedimento dos moageiros uma vez mais atendeu-nos amavelmente e tratou logo do assunto. Convidou o gerente da fábrica da Senhora da Hora para ir falar com a sua ex.ª onde teve uma conferência conjunta ficando assente que todas as ordens seriam avaliadas. Em vista desta declaração já foi dada as notícias de os jornais para todos os colegas fazerem as suas requisições (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 04.11.1915).

Atendendo a toda a argumentação da citação é percetível que os impedimentos de abastecimento de matéria-prima para o fabrico eram constantes, porventura não se deviam somente à fraca produção nacional, às dificuldades de importação, mas também, à tentativa de inflacionar os mercados por parte da indústria moageira através do condicionamento do abastecimento dos seus clientes.

Os industriais das padarias para tentar evitar a influência das indústrias moageiras na sua atividade, tentaram mudar o local de locação das farinhas para as padarias e não para as moagens (O Comércio do Porto, 27.02.1915). Ficariam com acesso à farinha em maior quantidade reduzindo as tentativas de concretizar a sua compra que redundava normalmente em fracasso.

Os meses passavam e a falta de cereais era um assunto cada vez mais discutido nas assembleias e um dos apelos que era realizado para diminuir a falta de cereais era tentar impedir a saída da farinha do Porto (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN Ata da Direção 23.02.1917). Uma atuação protecionista, assistindo-se ao individualismo que é tradicional em períodos de carência económica.

Nas semanas e meses seguintes, não sabendo se era uma medida para reduzir o impacto da saída das farinhas, a Câmara Municipal do Porto irá oferecer farinha aos filiados desta organização, para conseguir atenuar as faltas de matéria-prima (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 07.07.1917).

A discussão relativa à importação de farinhas estava presente nas reuniões da associação e no dia 19 de julho de 1917, quando foi enviado ao Ministro do Trabalho uma missiva a pedir que fosse possível a importação de milho e outros cereais na quantidade de 10 wagons, sendo a importação oriunda de Espanha para posteriormente ser distribuída aos associados da agremiação (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 19.07.1917).

Se considerarmos a falta de produto e a necessidade permanente de produção, torna-se indispensável referir o aumento dos preços, embora esse assunto não fosse amplamente abordado nas reuniões, somente em novembro de 1917 que se apela à informação nas padarias dos aumentos dos preços e também das condicionantes de venda (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 08.11.1917).

O país vizinho depois daquele suposto pedido de envio de farinha torna-se a referência primordial para o abastecimento do mercado, afirmando-se nos inícios de 1918 que era aguardada uma enorme quantidade de farinha que vinha daquele território, em que a sua venda devia ocorrer no Porto, como também era questionado se a farinha importada pagaria ou não imposto (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 22.01.1918).

Perante a argumentação do parágrafo anterior, o mercado americano deixou de ser o mercado primordial para o abastecimento de cereais, essa alteração muito provavelmente foi provocada pela dificuldade de concretizar os circuitos normais de abastecimento com o agravamento do conflito no Oceano Atlântico que seguramente motivavam o aumento dos fretes.

Nessa mesma reunião era declarado que para regularizar o fornecimento de farinhas que deveria partir todos os dias um comboio para o Porto com pelo menos 8 wagons. Uma quantidade enorme, demonstrando a dificuldade que os mercados e produtores atravessavam.

A falta de matéria para venda e a intensa procura faz aumentar obrigatoriamente o preço de venda, as regras básicas do mercado é isso que acabam por provocar, afirmando-se:

Pedido pelo Governo um preço para a venda da farinha importada de Espanha, devendo informar que nos revendedores já não há farinha e que na 1.ª quinzena de março estava nos 480 e 490, agora está nos 520 por quilo e a farinha estrangeira não tem havido, nem há por preço algum. Lembrou também de fazer-se o pedido ao governo que a farinha de milho está quase esgotada faltando assim pão para a população mais pobre (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN Ata da Direção 22.03.1918).

Assistimos a um aumento dos preços de forma exponencial, como também a ausência de farinhas vindas do estrangeiro, o que conjuntamente com outros fatores anunciados anteriormente fazia com que não houvesse pão para os elementos da população com menos recursos financeiros.

A indústria da panificação estava refém dos mercados abastecedores que não conseguiam cumprir a sua missão com sucesso, impedindo no patamar seguinte que os padeiros pudessem fabricar o seu pão e vender à sua comunidade.

Funcionamento das padarias

Na concretização de uma inquirição sobre os Industriais de Padarias do Porto, obviamente que é necessário perceber como era o funcionamento daqueles estabelecimentos: as suas dificuldades, a quantidade de matéria-prima disponível, os seus horários de funcionamento, o seu tipo de clientes, as reivindicações dos seus operários, os dias de laboração, etc.

O funcionamento das padarias nesta fase da história sofreu algumas alterações, nomeadamente no seu horário de atendimento ao público e também de fabricação. Apelando os industriais de panificação junto das autoridades municipais para que o horário de funcionamento fosse fixado com abertura às 7 horas da manhã e encerramento às 19h.

Analisando esse pedido é notória que haveria uma redução no tempo de funcionamento, essa circunstância poderia trazer problemas para os funcionários que ficavam impedidos de trabalhar no campo (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 07.05.1915).

Relativamente os funcionários era notória as constantes pressões dos manipuladores de pão para que houvesse um aumento dos seus salários (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 28.04.1916). Se a situação referida no parágrafo anterior, da alteração do horário dos funcionários se tivesse confirmado era natural que a dificuldade para a vida do comum operário aumentasse e fosse necessário fazer reajustes na sua economia doméstica.

Os operários mantiveram-se durante várias semanas a apelar ao aumento dos salários, sendo o mês de junho de 1916 extremamente difícil para os proprietários de padarias que além das lutas laborais, tinham de lidar com a falta de farinhas, as encomendas nas moagens que ficavam por cumprir e com a permanente ameaça que a produção cerealífera não chegava para corresponder às necessidades do mercado.

Restava pedir o abastecimento de trigo para evitar como se escrevia na ata das assembleias “a maior calamidade” que era a falta de pão (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 05.06.1916).

A falta de pão iria acontecer no mês de abril de 1916, declarando-se na imprensa que em alguns pontos da cidade existia essa carência, sobretudo a de pão de milho. Motivando o assalto de algumas vendedoras ambulantes, obrigando à colocação de agentes policiais na porta das padarias (O Comércio do Porto, 04.04.1916).

O problema da falta de farinhas era uma situação que se arrastava há várias semanas no Porto, os operários manifestavam-se e alguns padeiros iam até ao Governador Civil para reclamar devido à falta de farinha de milho para ser produzido (O Comércio do Porto, 01.03.1916).

Aparentemente o pedido de abastecimento de farinhas foi atendido, as moageiras conseguiam aumentar os fluxos de provimento, mas havia uma nova batalha para as padarias, concretamente a hora de laboração na segunda-feira, porque se apelava ao seu funcionamento mais cedo para conseguir colocar com antecipação o pão nos mercados e nas lojas, algumas padarias já estavam a alterar o seu funcionamento para conseguir cumprir com esse intento, mas estavam a infringir o horário de funcionamento (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 15.06.1916).

A necessidade de regularizar o horário de funcionamento foi tema central durante algumas reuniões, tentava-se que o dia de trabalho começasse pelas 4 horas da manhã, sendo importante referir que existiam vários industriais da padaria que não pertenciam à organização (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 18.08.1916).

O crescente número de industriais que não eram membros da organização poderá estar relacionada com vários motivos, a falta de ligação com a associação, os constantes problemas com que a corporação se deparava e a impossibilidade de aparentemente se encontrar soluções, como também o plausível aumento das padarias.

No mês de novembro de 1916, várias foram as padarias autuadas pelas autoridades com o pretexto de praticarem irregularidades no regime do peso e também no preço de venda que supostamente não estava a ser praticado com rigor, ordenando a associação profissional que fosse contratado um advogado para conseguir ser possível contestar aquelas multas (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 22.11.1916).

O funcionamento das padarias foi difícil em praticamente todo o conflito, ocorrendo a escassez de pão constantemente, fundamentando-se em novembro de 1917 que essa situação era provocada pela Câmara Municipal do Porto que apreendia o milho e a farinha que os industriais compravam na província para assegurar o funcionamento das suas padarias.

A Comissão de Subsistências recebia uma visita desta organização em que se pedia que terminasse com essa situação porque estava a causar um grande embaraço para o funcionamento dos seus estabelecimentos (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 24.11.1917).

As padarias viam a sua importância a crescer desmedidamente, confirmando essa situação com a instituição do pão barato que era fornecido pelas autoridades municipais ao público, em que o poder político cedia farinha às padarias com a condição de ser fabricado pão e posteriormente vendido a preços mais baixos. Uma lista seria fornecida à comissão de abastecimentos para ocorrer uma melhor distribuição de farinhas (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 10.12.1917). Aliás essa situação surge referida anteriormente nesta arguição, no capítulo da “importação de cereais - falta de matéria - prima”.

Sobre o pão que era fabricado com o auxílio do poder político, em concreto da Câmara Municipal, rapidamente a situação iria gerar problemas, nomeadamente ao nível da sua qualidade:

Informado que a farinha fornecida pela Câmara Municipal tem farelo remoído e que as consequências disso o industrial tem de se defender de uma campanha de acusações que a outros pertencem. Todos os presentes manifestaram o seu desgosto. Os próprios referem que a queixa tem razão por que há farinhas que não deviam prestar-se a ser pão (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 18.09.1918)

Os industriais de panificação estavam reféns do poder local e do seu fornecimento de matéria-prima para conseguir satisfazer os mercados, sobretudo o mercado dos menos abastados, mas, a matéria que era disponibilizada para confecionar o produto era de péssima qualidade e eram pedidas explicações ao fabricante e não ao fornecedor da matéria-prima.

Nesse mesmo momento da história foi anunciado nas assembleias desta associação de classe que estava a ocorrer a abertura de padarias ilegais e que deveriam ser tomadas medidas (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata Da Direção 18.09.1918).

Relativamente à abertura de padarias ilegais, as informações são escassas, todavia, devem ser encaradas com uma circunstância que poderia fragilizar a organização e que seguramente o fez, perdendo importância em todo aquele processo e setor económico.

A abertura de várias padarias clandestinas, pode ser fundamentado com o valor financeiro que o mercado gerava, tornando-se altamente apetecido por várias razões: a facilidade com que o produto era escoado, o aumento constante do preço, a falta de respostas dos organismos instituídos e também não deve ser descorado que a situação era altamente desgastante porque arrastava-se há vários anos e não parecia ter término próximo, motivando a bonança económica deste setor.

Por último, relativamente a este assunto, a ausência de respostas no mercado, encaminha com alguma naturalidade e também expectativa o consumidor para o mercado clandestino.

O incremento económico nos setores em estudo, catapultavam o desenvolvimento do capitalismo agrário que navegava sobre a economia de guerra (Medeiros, 1978).

Relação com a indústria moageira

No sentido de ser mais fácil o entendimento da dimensão deste setor da economia na cidade do Porto, recuando meio século, em 1854 das 124 unidades industriais existiam apenas três que se dedicavam à moagem, contudo, entre as doze máquinas existentes, três delas eram pertença de moagens (Ferreira, 1999).

Um setor com poucas unidades industriais, mas as existentes demonstravam um elevado nível de mecanização, podendo afirmar que lideravam a modernização do setor industrial.

Nos anos de 1870 ocorreria um crescimento elevadíssimo de moagens na cidade invicta, surgindo por exemplo nessa fase da história, a Fábrica de S. Jerónimo, localizada na rua de Santos Pousada. Nos anos seguintes surge também a empresa Manuel José Barreto, entre muitas outras até ao final do século (Ferreira, 1999).

As moagens viam a sua importância económica e por arrasto política a crescer a um ritmo elevadíssimo nos anos de conflito mundial, afirmando Oliveira Marques que esse crescimento só foi possível devido às diversas fraudes que foram praticadas em tempos de guerra e com a importância concedida ao abastecimento de trigo e de outros cereais às grandes cidades nesse referido espaço temporal (Marques, 1978).

A moagem que dominava o mercado da cidade invicta era o da Sociedade Industrial Aliança que estendia a sua influência para outros mercados, tanto da matéria-prima como também do próprio produto acabado (Marques, 1978).

Nos anos seguintes ao conflito, concretamente na década de 1920, na tabela para o rateio do trigo nacional e exótico, várias eram as moagens localizadas no Porto que estavam no topo da lista, a Companhia Industrial de Portugal e Colónias que estendia a sua influência até este território, recordando que era das empresas mais importantes do país, surgindo ainda: Fábrica de Moagem “A Portuense” Lda., Empresa Industrial do Ouro, Lda., etc. (Marques, 1978).

Todavia, retornando ao espaço temporal em análise a relação entre proprietários de padarias e a indústria moageira, nem sempre era simples e obrigava à realização de contactos com elementos governativos, concretamente o Ministro do Fomento: “Um grupo de padeiros do Porto representando o maior número de elementos da classe vem protestar perante v.ex.ª. contra a maneira como algumas fábricas de moagem fazem a distribuição das farinhas aos padeiros. Algumas fábricas estão a fazer extração só de farinha de 1º em detrimento da lei, da classe e consumidores” (O Comércio do Porto, 17.06.1916).

No final do conflito, a indústria das moagens era paralelamente com a indústria das conservas os setores das indústrias alimentares que mais funcionários empregava. Acabariam por sair duas grandes empresas deste setor em consequência do processo de concentração ocorrido durante a guerra que controlaram grande parte da capacidade produtiva, uma em Lisboa, a Industrial de Portugal e Colónias enquanto no Porto era a Sociedade Industrial Aliança (Medeiros, 1978).

Dependência de Lisboa

A centralidade política/administrativa em Portugal é notória ao longo da história, com a sua capital, Lisboa, a ser o local central da sua administração. No seguimento da implantação da República essa centralidade ficaria ainda mais reforçada.

O centralismo político-administrativo seguramente ajudou a fortalecer a importância económica da capital: grande parte dos negócios fazia-se naquele território porque os intervenientes queriam estar próximos dos centros de decisão político, judiciais, fiscais, etc.

A supramencionada importância económica vai motivar o ininterrupto crescimento do porto de Lisboa que desde os inícios do século XX também tinha um papel decisivo, fundamentalmente quando o país era extremamente dependente do que era essencial para o seu processo produtivo e até mesmo bens de consumos essenciais, desde combustíveis sólidos e líquidos, ferro, aço, máquinas, aparelhos industriais, adubos, algodão, cereais, açúcar, com cerca de 90% destes artigos a chegarem por via marítima e serem descarregados no porto de Lisboa (Rosas, 2018).

Relativamente à investigação que está em curso, era notória a dependência relativamente a Lisboa com os constantes envios de comissões e também de comunicações para a capital, deixando presente a ideia que somente o Governador Civil era capaz de quebrar essa influência.

As viagens a Lisboa eram múltiplas, no mês de novembro de 1915, uma comissão de elementos dessa associação partia para Lisboa, procurando receber uma quantidade maior de farinha de 2ª qualidade, que segundo a estrutura era a farinha que mais se gastava (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da direção 26.11.1915).

A centralidade em Lisboa, numa época em que as comunicações tinham uma grande dificuldade para a sua concretização faz com que por vezes se tomem decisões erradas e surjam os esperados protestos. Em fevereiro de 1917 os proprietários de padarias estavam bastante descontentes pelos seguintes motivos:

Qualquer medida que decrete seja extensiva o país, exceto o que respeita ao pão com mistura de milho que no Norte é conhecido como “broas”, que no Norte não se deve pagar as farinhas mais caras que no Sul, desde que o pão tenha de ter o mesmo preço; o custo das farinhas não deve ser superior em mais de 5 reis o quilo no preço que fixa ao quilo do pão, em princípio não lhe repugna o trigo no pão. (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da direção 11.02.1917)

Os lapsos das decisões são evidentes, os padeiros situados no Norte saíam prejudicados, pagavam mais pela matéria-prima, como também se denota um alheamento da especificação da produção, em que havia nessa região um tipo de pão específico, a legislação pelo todo não conseguia dar atenção às especificidades de cada região.

A dependência e sobretudo a uniformização de práticas tenta ser quebrada pela instituição em escrutínio quando pedem às autoridades para que nas leis que estavam a ser preparadas no verão de 1917, o Porto e a sua região ficasse com uma situação especificamente adequada nas palavras dos próprios aos seus usos e também aos tipos existentes de pão (PT/ADPRT/AC/GCPRT-ACIPN, Ata da Direção 19.07.1917).

Conclusão

A importância do pão para a alimentação do cidadão menos abastado financeiramente durante várias décadas é inegável e Jaime Alberto do Couto Ferreira (1999) relativamente a essa situação refere:

É sabido que a questão das subsistências ou para sermos mais precisos, do pão, se bem que durante séculos teve na alimentação popular portuguesa um papel crucial, é sócio politicamente melindrosa. O naco de pão foi até há pouco tempo um símbolo da justiça social e de uma boa governação, e na ausência de estruturas religiosas ou políticas que de algum modo o facultem aos humildes, a componente cooperativa do pensamento social contemporâneo tem procurado substituí-las, organizando as capacidades materiais e espirituais das pessoas com consciência cívica, para que o pão não falte nas suas modestas mesas. Estávamos num tempo em que a crónica insuficiência da produção nacional de cereais e o aumento da população urbana afirmavam a moagem e a panificação como um negócio onde se tinham acumulado grandes capitais e organizado grandes companhias. (Ferreira, 1999, p. 201-202).

O referido autor é claro, assevera de forma evidente que o naco de pão foi durante muito tempo um símbolo de justiça social e também de boa governação. Na prática assistimos à confirmação que para ocorrer a acalmia da população que seria igualmente sinónimo de boas políticas, a existência de pão na mesa dos populares era obrigatória.

A situação social/económica nos primeiros anos de República era algo que ainda primava pela expectativa, sobretudo junto dos operários que ansiavam pelo cumprimento das inúmeras promessas efetuadas pelos agentes políticos republicanos em tempos de monarquia.

O abastecimento de cereais era um processo já complexo ainda antes do principiar da guerra e com as constantes mudanças que iriam surgir nos anos seguintes, relativamente ao poder concretizadas pela República faziam com que o problema do abastecimento de cereais continuasse (Marques, 2010).

Anos antes do iniciar do conflito bélico, as padarias na cidade do Porto iam surgindo com alguma facilidade, por exemplo em 1911 existiam pelo menos 115 padarias que tinham a sua atividade, controlada por organismos governativos (Marques, 1978).

Um sinal evidente de que até momentos antes do deflagrar do conflito este setor ia mantendo a sua normal atividade económica e prosperava, embora tivesse a supervisão do poder estatal.

Os referidos problemas de abastecimento iriam se avolumar com a chegada do conflito, com os cortes nas cadeias de fornecimento provocados por múltiplos fatores, sendo por exemplo as dificuldades de circulação entre continentes um desses motivos, conforme foi referido anteriormente.

Relembra-se o estado caótico em que se encontrava a nossa marinha marcante que obrigava a que navios estrangeiros concretizassem os fretes que eram da sua responsabilidade.

As medidas de política agrícola que a I República adotaria seriam naturalmente um fator determinante para a melhor ou pior prestação desse setor. A economia agrícola teve na estrutura governamental um parceiro que primou entre a maior e também pela menor importância (Soares, 2005). Revela-se neste ponto uma ausência de uma política concertada que poderia ser elementar para a governação.

No que concerne aos momentos de falta de importância, Pedro Aires de Oliveira é claro, refere que apesar de existir um esforço perpetrado pelas autoridades republicanas, esforço esse mais intenso desde 1916 para ser possível evitar a escassez e até mesmo a rutura de abastecimentos, não existiria vontade política suficiente para tentar impedir com o necessário vigor os fenómenos negativos do açambarcamento e também da manipulação de preços (Oliveira, 2011).

Atendendo à informação dos parágrafos anteriores, é notória que com o eclodir do conflito, aliada à falta de capacidade de lidar com o conjunto de situações que estava a ser gerada, em que a resposta das autoridades era dúbia, estavam reunidas as condições para o agravamento das condições de vida dos elementos da população como veio a verificar-se.

Uma argumentação comprovada pelo aumento da variação do custo de vida na cidade do Porto que em 1914 era de 103,5 para em apenas dois anos esse valor ter um crescimento elevado para se fixar nos 141,8 (Pereira, 2012).

O custo de vida aumentava desmesuradamente em dois anos e seguramente o preço de venda do pão e de outros artigos alimentares terão contribuído de forma decisiva para isso acontecer.

O avolumar desta situação débil e cada vez mais complexa está evidentemente relacionada com a circunstância dos governos possivelmente tentaram fugir à aplicação de medidas impopulares sobre os sectores influentes da agricultura, concretamente: os seus grandes proprietários agrícolas, os industriais de moagem e também os grupos importantes do comércio de produtos agrícolas (Oliveira, 2011).

Os referidos grupos económicos/profissionais tinham demasiado influência para com o poder político, não conseguindo criar relações de concordância com os mesmos, preferindo ficar na expectativa e procurar soluções não contrárias aos interesses destes grupos económicos.

A I República também não será capaz de estabelecer uma aliança estável com o operariado, não conseguindo corresponder às expectativas populares (Rosas, 2018). Sendo exemplo a longa luta dos operários deste setor económico por aumentos salariais e regulamentação do seu horário de trabalho, como foi possível de observar nas várias atas de reunião.

A instabilidade social entre o operariado e a República foi claramente apoiada na falta de capacidade de respostas a problemas elementares do dia a dia. O garante da alimentação atendendo a tudo que foi descrito estava longe de ser uma certeza, entre outros motivos.

No seguimento da argumentação deste labor é de fácil perceção que ao contrário do que a historiografia e até a própria imprensa da época afirma, culpando os interesses menos claros dos industriais de panificação, os problemas da falta de pão não eram unicamente motivados por elementos desta classe, até porque em determinados momentos a própria associação tentava resolver essa situação, mas os moageiros pura e simplesmente não entregavam a matéria-prima necessária à sua laboração.

Todavia, atendendo possível saída de associados e à abertura de padarias em que os seus proprietários não eram membros da própria associação, as padarias referidas anteriormente como clandestinas, demonstra a sua perda de influência e inclusivamente poderia ter havido divisões no seu interior, situação não esclarecida na documentação consultada.

Uma circunstância que poderá ter contribuído para o acumular de problemas que não seriam resolvidos com a brevidade necessária e que poderiam contribuir para a estabilidade social e política/económica.

A perda de coesão dos elementos desta classe, contribuiu de forma indúvia para a redução da sua capacidade de resolução dos problemas deste setor, podendo também ter havido um esgotamento da expectativa e da resolução dos mesmos nos intervenientes.

Os circuitos comerciais ficaram fortemente abalados, a entrada de cereais e farinhas em território nacional ficou ameaçada, condicionando a produção de farinhas nas fábricas de moagem, embora, as notícias relativamente a paragens dessas instalações industriais não foram possíveis de encontrar no decorrer desta inquirição, mas seguramente veriam a sua produção afetada, considerando tudo o que já foi explicado.

Uma última e importante referência também para a ausência de reformas profundas no setor que poderiam ter contribuído de forma decisiva para uma melhoria do cenário (Pires, 2011).

Fontes e Bibliografia

Arquivo Distrital do Porto (ADPRT) Fundo do Governo Civil do Porto, Associação de Classe dos Industriais de Padarias no Porto, livro 142. [ Links ]

“O encarecimento do pão”. O Comércio do Porto, 1915. [ Links ]

“Falta de farinha de trigo”. O Comércio do Porto, 1915. [ Links ]

“A questão das farinhas”. O Comércio do Porto, 1915. [ Links ]

“Subsistências - Falta de pão de milho”. O Comércio do Porto, 1916. [ Links ]

“Subsistências - Falta de pão”. O Comércio do Porto, 1916. [ Links ]

“Subsistências - A questão das farinhas”. O Comércio do Porto, 1916. [ Links ]

Ferreira, J. A. C. (1999). Farinhas, Moinhos e Moagens. Lisboa: Âncora Editora. [ Links ]

Marques, A. H. O. (1978). História da I República Portuguesa: As estruturas de base. Lisboa: Iniciativas Editoriais. [ Links ]

Marques, A. H. O. (2010). A Primeira República Portuguesa. Lisboa: Texto Editora. [ Links ]

Marques, A. H. O.; Guinote, P.; Mesquita, P. T.; & Dias, J. J. A. (2000). Parlamentares e Ministros da 1.ª República (1910-1926). Porto: Edições Afrontamento. [ Links ]

Medeiros, F (1978). A sociedade e a economia portuguesas nas origens do Salazarismo. Lisboa: A Regra do Jogo. [ Links ]

Oliveira, P. A. (2011). A República e a Guerra, 1914-1918 in L. Amaral (org.), Outubro: a Revolução Republicana em Portugal (1910-1926) (pp. 185-225). Lisboa: Edições 70. [ Links ]

Pereira, D. (2011). A sociedade, in M. F. Rollo & F. Rosas (coord.), História da Primeira República Portuguesa (pp. 79-92). Lisboa: Tinta da China. [ Links ]

Pereira, D. O. R. (2012). As políticas sociais em Portugal (1910-1926) (Unpublished doctoral dissertation). Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. [ Links ]

Pereira, M. H. (1983). Livre-Câmbio e Desenvolvimento Económico. Lisboa: Sá da Costa. [ Links ]

Pires, A. P. (2011). Portugal e a I Guerra Mundial - A República e a Economia de Guerra. Lisboa: Caleidoscópio. [ Links ]

Ramos, R. (1994). As Guerras da República (1911-1917) in J. Mattoso (dir.), História de Portugal vol. I. (pp. 435-527). Lisboa: Círculo de Leitores. [ Links ]

Rosas, F. (2018). A Primeira República 1910-1926: como venceu e porque se perdeu. Lisboa: Bertrand Editora. [ Links ]

Rossum, A. A. V. (2011). A questão das subsistências no Porto, no período da Grande Guerra (Unpublished master´s thesis). Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto. [ Links ]

Soares, F. B. (2005). A Agricultura, in P. Lains & Álvaro Ferreira da Silva (orgs.), História Económica de Portugal 1700-2000 vol. III (pp. 157-183). Lisboa: Instituto de Ciências Sociais. [ Links ]

Recebido: 02 de Novembro de 2021; Aceito: 19 de Dezembro de 2021

Correspondência: José Pedro Reis Email: josepedroreis88@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons