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População e Sociedade

Print version ISSN 0873-1861On-line version ISSN 2184-5263

População e Sociedade  no.32 Porto Dec. 2019  Epub July 01, 2022

 

Dossier Temático

Do Diario Official do Imperio do Brazil e Diário Oficial da União ao e-Diário Oficial: conjunturas e sentidos (1862-2019)

From the Diario Official do Imperio do Brazil and Diário Oficial da União to the e-Diário Oficial: conjunctures and meanings (1862-2019)

Lená Medeiros de Menezes1 

Márcia de Almeida Gonçalves1 

1UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil


Resumo

A criação de um «Diário Oficial» no Brasil, dedicado à divulgação e, portanto, à legitimação dos atos governamentais, é obra dos idos de 1862, quando um periódico, com essas características, passou a circular, de forma ininterrupta, até o tempo presente, mais atualmente, em seu formato digital. Antes do aparecimento desse veículo oficial, a publicização dos atos governamentais era feita através de jornais diversos, alguns deles com vínculos com os poderes instituídos, outros de caráter totalmente privado, considerando-se, como origem, o ano de 1808, quando o Brasil se tornou sede da monarquia portuguesa e foi criada a Imprensa Oficial, que ensejou a publicação da Gazeta do Rio de Janeiro, aos moldes da Gazeta de Lisboa. Esse artigo propõe-se a analisar esse processo histórico, que atravessou conjunturas diferenciadas, mas com forte dose de permanências políticas, sociais e culturais. Nessa perspectiva, busca relacionar conjunturas e sentidos, analisando não só a questão da informação, mas também fatores relativos à inteligibilidade por parte do leitor e à transparência do processo político-administrativo. Importante fonte histórica, o Diário da União (nome atual do veículo informativo) é ainda terreno virgem de pesquisa e não restam dúvidas que sua contemplação, considerando-se o dito e o não-dito, colaborará, decisivamente, para a reescrita da história do país.

Palavras-chave: Diario Official do Imperio do Brazil; Diário Oficial da República do Brasil; Diário da União; Informação, inteligibilidade e transparência no ato comunicativo; Brasil

Abstract

The creation of an «Official Gazette» in Brazil, dedicated to the dissemination and, therefore, the legitimation of governmental acts, dates from 1862, when a journal with these characteristics began to circulate uninterruptedly until the present time, currently in digital format. Prior to the appearance of this official vehicle, the publication of governmental acts was done through various newspapers, some of them with ties to the instituted powers, others of a totally private nature, considering, as its origin, the year 1808, when Brazil became the headquarters of the Portuguese monarchy and was created the official press, which led to the publication of the Gazeta do Rio de Janeiro, following the Lisbon Gazette. This article aims to analyse this historical process, which went through different conjunctures, but with a strong dose of political, social and cultural permanencies. From this perspective, it seeks to relate conjunctures and meanings, analysing not only the issue of information, but also factors related to readability and to the transparency of the political-administrative process. An important historical source, the Diário da União (current name of the publication) is still a virgin ground for research and there is no doubt that its study, considering the said and the unsaid, will decisively contribute to the rewriting of the history of Brazil.

Keywords: Diario Official do Imperio do Brazil; Diario Oficial da República do Brasil; Diário da União; Information, intelligibility and transparency in the communicative act, Brazil

Introdução

Ainda que a imprensa seja tema relevante para os historiadores - com vasta produção reconhecida - o Diário Oficial da União (DOU), veículo de divulgação oficial no Brasil, é campo virgem de investigação, quer como objeto de análise quer como fonte para a escrita da história do país. Os maiores aportes e reflexões sobre o tema emanam não da História, mas das áreas do Direito e da Comunicação, com as quais estabelecemos, neste ensaio, os diálogos possíveis.

O desafio em que se constituiu tornar o DOU objeto de análise, com a impossibilidade de diálogos no campo da História, num país marcado, em longa duração, pela recorrência de governos autoritários, fruto de uma cultura política enraizada em formas de atuação de um poder de Estado de viés classista e de tendência patrimonialista, implica tecer algumas considerações iniciais, com implicações diretas concernentes ao papel desempenhado por um instrumento privilegiado de divulgação pública. Algumas dessas considerações têm um alcance de maior universalidade; outras, porém, são resultado de características próprias à história do país1.

Bem sabemos que a ideia de divulgar e tornar conhecidos atos governamentais é antiga, remontando às sociedades em que a escrita se tornou veículo para registrar e monumentalizar leis2. Na modernidade europeia, na esteira das heranças do Iluminismo e da Revolução Francesa, impuseram-se novos sentidos para tais práticas, à medida que a democracia adquiriu, segundo palavras de Bobbio (1986, p. 84), um sentido pleno de «governo do poder público em público». Em outras palavras, a consagração de um movimento destinado a inserir a administração pública no domínio público, implicando, consequentemente, o fim do «segredo de Estado», ou, pelo menos, relegando-o ao estatuto da exceção. Entre o ideal e o real, entretanto, muitos tendem a ser os distanciamentos, apesar do controle popular sobre os líderes políticos ter adquirido o sentido de «mito sustentador da democracia», como menciona Almond e Powell (1996, p. 186).

No contexto dos Estados Liberais, é possível dizer que a publicidade dos atos oficiais deixou de ser simples afirmação de poder, para se impor como forma possível de diálogo do Estado com a Sociedade, tornando-se, assim, «atributo essencial de um regime democrático-constitucional institucionalizado» (BOBBIO, 1986, p. 84). Insere-se aqui a constituição do que veio a ser denominado de espaço público e de opinião pública (HABERMAS, 2003), sendo esta última considerada, cada vez mais, força sustentadora e/ou demolidora de governos e governantes, possuindo como locus principal os embates da palavra impressa, por meio de periódicos e folhetos.

Publicidade, entretanto - nem no passado nem no presente -, implica, necessariamente, transparência, conceito muito mais amplo, tendo em vista que a informação, para além de pública, necessitar caminhar no sentido da relevância, da confiabilidade e da inteligibilidade (NETO, CRUZ & ENSSLIN, 2009). Tomando-se a última das dimensões citadas, cabe lembrar que muitos juristas, pelo início dos Novecentos, já demonstravam preocupação com a dificuldade de compreensão, pelo homem comum, dos textos oficiais. Em sentido próximo, Habermas apontaria mais tarde para a necessidade de um processo permanente ‘de tradução’ das informações, com vistas à garantia da inteligibilidade (HABERMAS, 2003).

Em um país como o Brasil, com 11,3 milhões de analfabetos entre os que têm mais de 15 anos, numa população estimada de 210,1 milhões de habitantes, aos quais se somam milhões de analfabetos funcionais (dominam apenas a leitura e escrita mecânicas), a inteligibilidade da informação encontra muitos limites. Dessa forma, parte considerável da população brasileira está excluída do «espaço público criado pela mídia impressa». Problema enraizado na escravidão, o analfabetismo, passados 131 anos da Abolição, não foi superado, em um país de dimensões continentais, no qual convivem diversas temporalidades.

Acrescente-se, por fim, para grande parte da população, o agravante representado pela identificação entre público e governamental, que se expressa nas entrelinhas de discursos muito recentes, como comprova o texto de apresentação do e-diário: «Ele registra e reúne publicações de interesse público […] e é utilizado por empresas, partidos políticos, igrejas, agências de publicidade e outros órgãos. Até mesmo uma pessoa física pode consultar ou realizar uma publicação» (Diário Oficial da União, portal).

Através de uma rápida análise textual, é possível constatar que o conceito de «interesse público» é restringido quando é mencionado que «até mesmo uma pessoa física pode consultar ou realizar uma publicação». Nesse caso, a utilização de uma partícula de inclusão, «até mesmo», acaba por limitar o âmbito do interesse público, tornando-se registo da dissociação entre Estado e Sociedade.

Consideradas as questões aqui levantadas, fica fácil compreender o porquê do Diário Oficial, no Brasil, tendeu a permanecer, na longa duração, como ‘veículo de comunicação governamental’, com objetivos de afirmação e/ou de legitimação do poder, sendo muito recente a ocorrência de uma ‘virada’ no sentido do mesmo assumir a configuração plena de instrumento de «comunicação pública», no penoso e contraditório processo de construção democrática, após o fim dos governos militares, em 1985. Nesse sentido, é importante dizer que o conceito de transparência e o direito de amplo acesso à informação, tornaram-se parte das disposições constitucionais apenas em 1988, com a chamada «Constituição Cidadã», ainda que sua regulamentação, através de lei específica de acesso à informação (decreto n.º 12.527/2011) só tenha sido feita 23 anos depois, em 18 de novembro de 2011.

A publicização dos atos governamentais: primeiros tempos (1808-1862)

Com a chegada da Família Real portuguesa ao Brasil e a transformação da antiga colônia em sede do governo do Império Português foi criada a Imprensa Régia, tornando-se possível a publicação da Gazeta do Rio de Janeiro, nos moldes gerais da Gazeta de Lisboa. A Gazeta do Rio de Janeiro contava com uma junta diretora, composta por homens de confiança do regente D. João, circulando semanalmente, de 10 de setembro de 1808 a 31 de dezembro de 1822.

Segundo Juliana Meirelles (2007):

não fazia sentido haver uma corte sem uma gazeta, já que esta cumpria um importante papel na instituição monárquica: era, antes de tudo, um instrumento de afirmação da realeza perante todo o corpo social, uma vez que, através da palavra, o rei circularia sua imagem com toda plenitude para os seus súditos.

Durante algum tempo, os historiadores definiram a Gazeta como Diário Oficial. Desde cerca de dez anos, entretanto, o entendimento tem sido outro, a partir de pesquisas que melhor analisaram as relações entre editores, redatores, tipógrafos e os meios de financiar ou buscar financiadores para a elaboração de folha impressa que possuísse regularidade de publicação, demonstrando, por exemplo, como a secção de notícias do periódico era bastante ampla, incluindo não só informes relativos ao governo e à realeza, como, também, artigos selecionados em jornais europeus, cartas de pessoas de relevância, peças de teatro, além de contar com uma secção de avisos cujo enfoque era a prestação de serviços. O sentido ‘oficial’ do periódico, inclusive, aparece negado em nota publicada na 1.ª edição do próprio jornal: «N.B. Esta gazeta, ainda que pertença por privilégio aos Oficiais da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, não é com tudo Oficial; e o governo somente responde por aqueles papéis que nela manda imprimir em Seu Nome» (Gazeta do Rio de Janeiro, 10.9.1808)3.

Como argumenta Meirelles:

Fonte: BR. Biblioteca Nacional, Hemeroteca

Fig. n.º 1  Primeira página da 1.ª edição da Gazeta do Rio de Janeiro (10/09/1808).  

A Gazeta não sobreviveu às lutas pela independência. Por outro lado, a eclosão da Revolução Liberal do Porto, em 1820, desdobrou-se, entre outros efeitos, na decretação da liberdade de imprensa, decisão que afetou sobremaneira a produção e circulação de periódicos e folhetos, assistindo-se, no Reino do Brasil, à proliferação significativa de folhas impressas, configurando espaços ampliados de debate político por meio de verdadeiras batalhas discursivas. Como analisa Marco Morel (2006), em livro referencial relativo às décadas de 1820 e 1840, particularmente na cidade do Rio de Janeiro, capital do Reino e depois do Império do Brasil, constituiu-se, por meio da palavra impressa, a arena onde se manifestava a opinião pública.

Durante as décadas de 1820 a 1860, houve periódicos cuja função primordial foi registrar e assim tornar públicas decisões e atos governamentais. Todos eles traziam o símbolo do governo do Império do Brasil, denotando, para os leitores, sua conexão direta com o poder estatal. Para além dos atos de governo e do expediente das secretarias, incluíam notícias sobre acontecimentos em outros países, por vezes designados na rubrica «variedades».

Fonte: BR. Biblioteca Nacional, Hemeroteca

Fig. n.º 2  Brasão do Império do Brasil constante dos periódicos ‘oficiais’.  

Entre as folhas citadas, merecem destaque: o Diário do Governo (1824-1833), o Diário Fluminense (1825-1831), o Correio Official (1833-1841), a Gazeta Official do Império do Brazil (1846-1848) e o Diário Official do Império do Brasil (1862), este último considerado o periódico fundador, do qual se originou a série ininterrupta de publicações dessa natureza.

Fonte: BR. Biblioteca Nacional, Hemeroteca

Fig. n.º 3  Primeira página da 1.ª edição do Diario do Governo e do Diário Fluminense. 

Fonte: BR. Biblioteca Nacional, Hemeroteca

Fig. Nº 4  Primeira página da 1.ª edição do Diario do Governo e do Diário Fluminense. 

Fonte: BR. Biblioteca Nacional, Hemeroteca

Fig. n.º 5  Primeira página da 1.ª edição do Correio Official e da Gazeta Official do Imperio do Brasil. 

Fonte: BR. Biblioteca Nacional, Hemeroteca

Fig. nº 6  Primeira página da 1.ª edição do Correio Official e da Gazeta Official do Imperio do Brasil. 

Publicados em conjunturas distintas, as primeiras edições dos jornais mencionados permitem identificar algumas especificidades. Ainda que não seja nosso objetivo aprofundar essas discussões, considerados os limites desse texto, é importante destacar que, de modo geral, eles permitem acompanhar como determinadas contradições inerentes ao processo de construção e consolidação do Estado Imperial, entre as décadas de 1820 e 1850, se manifestam nas entrelinhas ou em menções diretas, concernentes, por exemplo, às dificuldades de arcar com os custos de publicação diária, ou às alusões relativas à oposição de grupos e personagens críticos do projeto monárquico unitarista, ao fim vitorioso entre os embates ocorridos4.

Nos catorze anos transcorridos entre agosto de 1848 (quando a Gazeta Official deixou de circular) e setembro de 1862 (data de criação do Diário Official do Império do Brazil, «instrumento exclusivo de divulgação governamental»), inexistiram jornais ‘oficiais’, sendo os atos do governo publicados em outros periódicos, como o Diário do Rio de Janeiro (1821-18785) - por volta de 1850, quando publicava atos oficiais, apresentava-se formatado de forma a contemplar uma parte oficial e uma parte comercial. Publicou atos do governo entre 24 de agosto de 1848 e 31 de dezembro de 1854 -, o Correio Mercantil (1848-18686) - publicou atos do governo entre 1 de agosto e 23 de outubro de 1848 - e o Jornal do Commercio (1827-20167) - publicou atos do governo entre 1 de janeiro de 1855 e 30 de setembro de 1862.

Fonte: BR. Biblioteca Nacional, Hemeroteca

Fig. n.º 7  Primeira página da 1ª edição do Diário do Rio de Janeiro e do Correio Mercantil.  

Fonte: BR. Biblioteca Nacional, Hemeroteca

Fig. nº 8  Primeira página da 1ª edição do Diário do Rio de Janeiro e do Correio Mercantil.  

O Diario Official do Imperio do Brazil (1862-1889)

A primeira edição do Diário Official do Império do Brasil circulou em 1 de outubro de 1862, a partir do decreto datado de 9 de setembro de 1862, por iniciativa do Marquês de Olinda (LIMA, 1978). No primeiro exemplar (detalhe em destaque na imagem), na matéria de abertura, assinada pelo redator, o leitor é apresentado aos objetivos do novo periódico, onde o mesmo procura demarcar a continuidade com a Gazeta Official (1846-1848), reforçando a importância desta última e suas funções específicas:

A cessação da Gazeta Official foi um mal sentido por todos os Governos que se tem sucedido, por todos os homens políticos, por todos os particulares que reconhecem a máxima conveniência de encontrarem reunidos na mesma folha, além do expediente das Secretarias do Estado, todos os documentos que interessam a política e principalmente à administração do País (grafia atualizada) (Diario Official do Imperio, 1.10.1862).

Fonte: BR. Biblioteca Nacional, Hemeroteca

Fig. n.º 9  Primeira página da 1.ª edição do Diario Official do Império do Brasil.  

Segundo Rui Lima, a partir de sua criação, o Diário Official circulou ininterruptamente. Com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, o jornal assumiu a denominação de Diário Official da República Federativa do Brasil, tendo a edição de 16 de novembro publicado o Decreto Federal n.º 1, que, no primeiro de onze artigos, estabelecia a República Federativa como forma de governo da Nação brasileira, o que viria a impor a criação de diários oficiais nos diferentes estados da Federação.

O jornal, dessa forma, vem se mantendo em circulação, entrelaçado com a própria história político-administrativa do país. Nem todos os números publicados, porém, estão disponíveis para consulta, em virtude de um incêndio, ocorrido em 15 de setembro de 1911, que destruiu documentos, publicações e o acervo da biblioteca da Imprensa Oficial.

O Diário Oficial da União (1889 aos dias atuais)

Em uma análise de longa duração, é importante dizer que a República brasileira, ao longo do tempo, se caracterizou pela alternância de períodos de autoritarismo e de reconstrução democrática, com a recorrência de golpes de estado. Por outro lado, fruto de golpe militar, a República conheceu um processo no qual desgastes do poder civil corresponderam, inevitavelmente, à subida dos militares ao poder, implicando a construção de uma res-publica a ser construída na longa duração, com a «estadia» - conceito criado por Murilo de Carvalho (1987) - superpondo-se à cidadania. Expressão desse processo contraditório e conflituoso está relacionada às mudanças no texto constitucional, e por conseguinte, na ordem política republicana, com a censura desdobrando-se, em algumas conjunturas, na ampliação do sigilo e, portanto, na opacidade na veiculação das informações. Entre 1889 e a atualidade, o Brasil conheceu seis Constituições: 1891 (a primeira republicana, sendo a imperial datada de 1824), 1934 (após a subida de Vargas ao poder), 1937 (quando Getúlio Vargas implantou o Estado Novo), 1946 (que modelou o período de redemocratização), 1967 (durante o período de ditadura militar) e 1988 (que consagrou a volta da democracia ao país).

Entre 1889 (Estabelecimento do Governo Provisório) e 1893 (eleição do primeiro presidente civil), o país foi governado por dois marechais: Deodoro da Fonseca (que renunciou em 23 de novembro de 1891) e Floriano Peixoto, vice-presidente que deu seguimento ao mandato. Durante o seu governo, o chamado «Marechal de Ferro» estabeleceu a primeira ditadura dos tempos republicanos, tendo como justificativa a Revolta da Armada e a situação de instabilidade do país. A eleição de Prudente de Moraes, em 1894, deu início à chamada «Política do Café com Leite», na qual se alternavam no poder presidentes apoiados pela oligarquia do Estado São Paulo (região importante pela produção de café) e presidentes apoiados pelas oligarquias do Estado de Minas Gerais (dentre as quais aquelas associadas à pecuária leiteira). Durante esse período, o estado de sítio (regime de exceção previsto na Constituição de 1891) foi instaurado por diversas vezes - na capital ou em todo o país -, tornando-se, após 1920, praticamente permanente, com a consequente imposição de limites à informação pública8.

Em 1930, novo golpe (revolução para alguns) possibilitou a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, que governou, em caráter provisório e sem os limites dados por uma constituição, até 1934, por imposição da Revolução Constitucionalista, ocorrida em São Paulo, em 1932. A segunda constituição republicana foi promulgada em 1934, e Vargas, por voto indireto, tornou-se presidente empossado. A nova Constituição alterou significativamente as disposições políticas e os procedimentos administrativos, em uma ‘nova’ República, que pretendia passar a limpo o país, razão pela qual a fase anterior passou a ser chamada de «República Velha». Com relação aos novos procedimentos administrativos, deve ser dado destaque à exigência de mecanismos imparciais para o provimento de cargos públicos, o que levou à adoção de concursos e à divulgação de provimentos e demissões do funcionalismo público pela imprensa oficial.

A Carta de 1934 só teve vigência por três anos, substituída por nova constituição, datada de 1937. Essa mudança acompanhou o fim de um período democrático que só durou três anos, substituído por nova ditadura: o Estado Novo, findo apenas em 1945. Pelo decreto-lei n.º 1915, de 27 de dezembro de 1939, foi criado o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), diretamente subordinado ao Presidente da República. O novo departamento passou a ser responsável pela imprensa oficial e pelo seu órgão de publicidade: o Diário Oficial. Apesar da censura e de uma propaganda direcionada, não houve interrupção na publicação do diário, inexistindo, porém, trabalhos dedicados à análise do jogo político do dizer e o do não-dizer. O jornal, entretanto, cedeu espaço para o rádio, como veículo privilegiado de divulgação dos atos do governo. Era através dele que o presidente falava diretamente ao povo, firmando as tendências ‘populistas’ do novo governo.

Entre a destituição de Vargas, em 1945, e o golpe civil-militar de 1964 transcorreram menos de vinte anos, durante os quais o país reviveu a democracia, apesar da conjuntura ser marcada por crises sucessivas, expressas, dentre outras, no suicídio de Getúlio Vargas (que voltou ao poder, eleito democraticamente, em 1950), nas pressões sofridas por Juscelino Kubistchek, na renúncia de Jânio Quadros (segundo ele, por pressão de «forças ocultas» e no golpe contra João Goulart, em 1 de abril de 1964. Este, há muito vinha sendo gestado, e, em última instância, representou, com o apoio norte-americano, uma resposta à transposição da Guerra Fria para o continente americano, a partir da virada comunista da Revolução Cubana, em 1960. Seguiram-se, então, vinte anos de uma ditadura que incluiu a tortura nos jogos de poder.

Em todo esse conturbado processo também não houve interrupção na publicação do Diário Oficial, registando acontecimentos cruciais da história brasileira, como por exemplo, o Ato Institucional n.º 5 (AI-5), de 13 de setembro de 1968, que oficializou a censura e deu início a um período no qual a repressão rompeu todas as amarras. Da mesma forma que no Estado Novo, não há análises sobre as formas pelas quais a vida política brasileira foi transcrita no jornal.

Novo processo de redemocratização iniciou-se em 1982, e após 126 anos de existência, o Diário Oficial da União teve, afinal, a sua importância reconhecida como veículo de consecução do ‘princípio da publicidade dos atos da administração pública’, pela Constituição de 1988: «Art. 37. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade».

Segundo Hely Lopes Meirelles (2006):

a publicidade, como princípio da administração pública abrange toda atuação estatal, não só sob o aspecto da divulgação oficial e seus atos, como também de propiciação de conhecimento da conduta interna de seus agentes. Essa publicidade atinge, assim, os atos concluídos e em formação, os processos em andamento, os pareceres dos órgãos técnicos e jurídicos, os despachos intermediários e finais, as atas de julgamento das licitações e os contratos com quaisquer interessados, bem como os comprovantes de despesas e as prestações de contas submetidas aos órgãos competentes.

O acesso universal e a transparência dos atos governamentais - princípios recentemente incorporados à vida política brasileira - são processos que caminham pari passu à vitória de uma democracia plena no país, capaz de deixar no passado as marcas autoritárias e excludentes da cultura política brasileira.

Do diário impresso ao diário digital (e-diario)

Impresso durante 155 anos, o Diário Oficial da União passou a ser veiculado - apenas e integralmente - em formato digital, a partir de 1 de dezembro de 2017. Como fatores para a mudança foram apontadas a necessidade de desburocratizar a administração pública e o objetivo de redução de custos que, segundo a Casa Civil, teriam atingido o total de 204 mil reais mensais e 2,5 milhões de reais anuais em 2017 (cerca de 550 mil euros pelo câmbio atual), quando mais de 90 000 exemplares eram impressos diariamente9.

Em termos de forma, o portal do e-diario é bem construído e permite uma fácil navegação. As mesmas características podem ser apontadas no caso do portal da Imprensa Oficial, que também dá acesso ao jornal. Ambos têm linguagem acessível e apropriada, embora não excluam a necessidade de algum tipo de ‘tradução’, levando-se em consideração as reflexões anteriormente apontadas com relação à literacia no país e determinados ‘vícios’ da própria linguagem administrativa.

Com relação à organização das matérias, o jornal apresenta-se dividido em três secções: Atos normativos, com destaque para leis, decretos, resoluções, instruções normativas, portarias e outros (Secção 1); Atos de Pessoal, de interesse dos servidores da Administração Pública Federal (Secção 2); Contratos, Editais e Avisos - Atos do governo e de terceiros, que requeiram publicação por determinação legal (Secção 3)10.

Fonte: https://www.diarioooficial.com.br

Fig. n.º 10  Home page do Diário Oficial.  

Fonte: http://www.in.gov.br

Fig. n.º 11  Homepage da Imprensa Nacional 

Os limites à plena informação, porém, estão postos não só pela questão dos limites existentes à literacia de parte considerável da população, derivada das disparidades económico-sociais e da ausência de investimentos reais na Educação, mas, também, pelo interesse pela política manifestado por muitos, resultado de uma consciência de cidadania ainda em formação. Acrescente-se, ainda, a concorrência feita aos veículos de comunicação tradicionais pelas redes sociais, como veículos de difusão da informação/desinformação, com a revisitação da estratégia de ‘falar diretamente ao eleitor’, assumida por alguns governantes pelo mundo.

Numa cenografia de verdadeira subversão no tocante à informação pública, o homem comum - não só no Brasil, mas com grande força no Brasil -, recorre às redes sociais como forma privilegiada de se manter informado, sujeitando-se a processos e estratégias que sabotam a transparência e criam obstáculos ao exercício da reflexão e depuração das informações. Nesse processo, ainda carente de análise, amplia-se a vigilância e a possibilidade de controlo da sociedade e de cada indivíduo de per si pelo Estado. Nas palavras de Carmem Batista, recordando Bobbio (1986 e 2004), que aqui incorporamos:

O Estado é proprietário de grandes memorizadores artificiais, o que sinaliza uma tendência oposta à que deu vida à democracia como ideal do poder visível: a orientação não é mais rumo ao máximo controle do poder por parte dos cidadãos, mas ao máximo controle dos cidadãos por parte de quem detém o poder. Dessa forma, se é verdade que num Estado democrático a sociedade “vê” o poder estatal mais que num Estado autocrático, também é verdadeiro que por meio da tecnologia o Estado democrático pode “ver” o público bem melhor do que em tempos passados. Dessa forma, os avanços tecnológicos podem representar novos modos para o Estado exercer o que Bobbio denomina de “poder invisível”, uma capacidade de ver sem ser visto (BATISTA, 2010; BOBBIO, 1986 e 2004).

Diário Oficial, fonte para a pesquisa: epílogo

Não restam dúvidas sobre as múltiplas possibilidades do Diário Oficial como fonte de pesquisa, passíveis de contribuir para uma escrita enriquecida da História Política de qualquer país. Para tanto, consideramos, em primeiro lugar, a necessidade de não o considerar um ‘espelho’ da administração pública, principalmente em países sujeitos, como o Brasil, a períodos de exceção, nos quais ficam prejudicados princípios como a transparência dos atos governamentais. Se a obrigatoriedade da divulgação das ações do poder público foi consagrada no âmbito dos Estados liberais, pressupondo o fim dos ‘segredos de Estado’, bem sabemos que entre o ideal e o real - em todo e qualquer processo político e/ou administrativo - se interpõem muitos distanciamentos, que variam segundo condições específicas.

Por outro lado, a linguagem administrativa torna-se impermeável ao homem comum e, porque não dizer, enlouquece os pesquisadores. Isso reflete-se nas informações publicadas pelo Diário Oficial. Trata-se aqui, principalmente, de decretos e leis que modificam ou anulam determinações anteriores. Em geral, a matéria em pauta nunca é objetivamente transcrita, mas referenciada por números referentes a artigos, parágrafos e itens a serem modificados ou anulados, concernentes a decretos e leis também identificados por registos numéricos. Acrescente-se que a mesma estratégia é adotada no caso exemplar de interpelações feita pelo Judiciário ao Executivo. Nesse caso, a necessidade de resguardar o inquirido impõe estratégia semelhante, mais opaca ainda, devido à referência numérica ser a de processos em tramitação.

Considerados esses pressupostos, tornar o Diário Oficial objeto de pesquisa implica ir além da simples análise de conteúdo, para mergulhar na análise do discurso, capaz de relacionar o intra e o extralinguístico. No Brasil, em especial, impõe-se a necessidade de estabelecer o diálogo entre texto e não-texto, principalmente durante a vigência das ditaduras que, recorrentemente, interromperam o aprendizado democrático.

Bibliografia

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OLIVEIRA, Ivan Carlo Andrade de & BARBOSA, Paulino Rocha, 2012 - Diário Oficial: um instrumento de cidadania ou de manipulação. Disponível em: <https://www2.unifap.br/c-regional/files/2012/12/DI%c3%81RIO-OFICIAL.pdf>. [ Links ]

1Para Ivan Carlos Oliveira e Paulino Barbosa, por exemplo, uma boa maneira de começar qualquer discussão sobre os objetivos da publicação de um diário oficial é perguntar se seriam eles «um instrumento de cidadania ou de manipulação». Essa pergunta, que dá título ao trabalho dos autores, baseia--se na constatação de que «ao longo da humanidade, governos buscaram maneiras de divulgar seus atos, seja com vistas ao controle da informação e manutenção no poder; seja como forma de propaganda ou para tornar legítimos atos do governo» (OLIVEIRA & BARBOSA, 2012).

2Cite-se como exemplo, o caso das estelas de pedra onde se gravou o Código de Hamurabi, no Império Babilônico, bem como as heranças de de-terminadas práticas de legislar e divulgar atos de jurisprudência, com o Império Romano tornando-se referência histórica para sociedades europeias no medievo e na modernidade.

3A Biblioteca Nacional só disponibiliza, na hemeroteca, o primeiro número da Gazeta.

4Na BN Digital, por meio de sua Hemeroteca, estão disponibilizados todos os primeiros exemplares desses periódicos oficiais. Em especial, o Correio Official (1833-1841) e a Gazeta Official (1846-1848) possuem séries praticamente completas, constituindo-se em férteis fontes de pesquisa, praticamente inexploradas.

5O Diário do Rio de Janeiro circulou de 1821 a 1878. Por volta de 1850, quando publicava atos oficiais, apresentava-se formatado de forma a contemplar uma parte oficial e uma parte comercial. Publicou atos do Governo entre 24 de agosto de 1848 e 31 de dezembro de 1854.

6Publicou atos do Governo entre 1 de agosto e 23 de outubro de 1848.

7Publicou atos do Governo entre 1 de janeiro de 1855 e 30 de setembro de 1862.

8Lima Barreto refere-se a este uso e abuso do estado de sítio de forma mordaz, ao dizer: «Tenho para mim que nossa engraçada República só devia andar em permanente estado de sítio. É o estado que lhe convém e lhe vai às mil maravilhas. A primeira vantagem do estado de sítio é que todos nós nos abstemos de falar em política». Texto publicado postumamente, pela Editora Brasiliense, em 1956 e 1961.

9Observe-se que a edição de 19 de dezembro de 1997 vem sendo considerada pela imprensa oficial como o tabloide com maior número de páginas que circulou no mundo (https://www.in.gov.br).

10Nessas secções, o e-diario, para além de decretos, leis e atos normativos leis emanados dos três poderes, orientado pelos princípios impostos pela Cons-tituição de 1988, publica: balanços patrimoniais; atas de reunião e assembleias; editais de convocação; avisos para acionistas e detentores de obrigações; declarações de roubo ou extrato de documentos (tanto para pessoas físicas quanto jurídicas); abandono de emprego; resoluções; leilões e licenças; regula-mentos; tarifas remuneratórias; avisos e ofertas de compra e venda de ações, notas promissórias e obrigações; resultados de exames e concursos; notícias referentes a concorrências públicas, aditamentos, tomada de preços ou licitação; tratados, convenções e outros atos internacionais; atos dos ministros de Estado; pareceres do advogado-geral da União; dispositivos e emendas das ações diretas de inconstitucionalidade, das ações declaratórias de constitucio-nalidade e das arguições de descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição; julgamentos do Tribunal de Contas da União e outros

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