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Political Observer - Revista Portuguesa de Ciência Política

versión impresa ISSN 1647-4090versión On-line ISSN 2184-2078

PO-RPCP vol.16  Lisboa dic. 2021  Epub 02-Mar-2022

https://doi.org/10.33167/2184-2078.rpcp2021.16/pp.191-196 

Artigo Original

Portugal na Era dos Homens Fortes: Democracia e Autoritarismo em Tempos de Covid

1 Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, Portugal.


Lima, B. (2020). Portugal na Era dos Homens Fortes: Democracia e Autoritarismo em Tempos de Covid. Lisboa: Tinta Da China

Bernardo Pires de Lima foi eleito a 15 de dezembro de 2020, Presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, é investigador associado do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, para além de ser colunista no Diário de Notícias e analista de política internacional na RTP e Antena 1. É para além disso, sócio da FIRMA- Agência Portuguesa de Negócios privada.

A sua obra Portugal na Era dos Homens Fortes apresenta uma visão profundamente analítica e opinativa, com um claro favorecimento ao cosmopolitismo e sociedade aberta, em detrimento do conservadorismo e nacionalismo. Dito isto, o livro começa com uma breve introdução e encontra-se dividido em duas partes. Na primeira trata-se a Reemergência autoritária e são referidos outros pontos como o populismo, despotismos digitais e a primeira pandemia da globalização. Na segunda parte fala-se na Democracia antecipatória, na qual menciona igualmente diversos temas, como o facto de toda a política ser internacional e importância de uma renovação política portuguesa.

O autor introduz que podemos associar ao nacionalismo político uma generosa dose de purismo identitário, isto é, um nacionalista dá grande importância a um forte sentimento de identidade e pertença e começa por fazer uma análise ao panorama que estamos a assistir atualmente. Com uma frequência alarmante, temos chefes de governo e Presidentes com discursos agressivos, populistas, nacionalistas e autoritários, frequentemente com um teor xenófobo, homofóbico e racista. Os partidos políticos, tanto de esquerda como de direita estão cada vez mais a recorrer a este tipo de discursos que seduz os extremos e os insatisfeitos com o governo atual, os anti-sistémicos.

O autor expressa a sua preocupação quanto ao discurso nacionalista e autoritarista que se está a propagar, tendo em conta a ordem internacional anárquica que vivemos, por ser de facto dividida e portanto fortemente desagregada e fragilizada em relação à sua capacidade de resposta perante este género de ameaças. Bernardo Pires declara que vivemos então, não só na era da ansiedade, mas também na era dos Homens Fortes, isto é da testosterona, representado na ascensão de homens como Bolsonaro, Putin, Trump, Organ, Salvini, entre outros. Surge, por isso, o velho dilema e debate: será que podemos acomodar estes regimes iliberais e autoritários que por natureza pretendem dividir e radicalizar a sociedade, mantendo por outro lado, uma sociedade cosmopolita, economia aberta e instituições/ poderes efetivamente democráticos e respeitadores dos Direitos Humanos? Nega afincadamente a compatibilidade destes regimes autoritários na democracia liberal, pois não é possível usufruirmos dos nossos direitos e liberdades individuais sob um poder castrador dos mesmos.

Podemos deduzir então que adota uma visão anti-maquiavélica na qual considera que a política deve continuar a contemplar e absorver em si mesma uma vertente moral e ética e que, se dispensarmos desta, arriscamo-nos a contemplar um fim da democracia liberal, mais iminente do que poderíamos esperar. Passa-se a identificar as principais razões pelas quais tem havido uma reemergência autoritária, destacando a corrupção da maioria dos nossos políticos, uma crescente divisão partidária e ideológica e o problema da comunicação social que contribuem para a insatisfação da população na qual se alimentam os populistas, nacionalistas e autoritaristas.

Por outro lado, a pandemia veio aumentar a desconfiança no sistema político vigente, alimentada pelo número cada vez mais expressivo de notícias falsas e excessivamente alarmistas acerca do covid, contribuindo para as teorias conspiracionistas. Deve-se também ao facto de haver uma maior dificuldade de imparcialidade política noticiária. Veio também impor um enorme desafio e teste à eficiência do sistema de saúde público e da economia e capacidade de resposta perante a falta de recursos médicos e crescente desemprego. Por ser algo para o qual os governos não estavam efetivamente preparados para lidar, quer logisticamente como política e socialmente, dá espaço para que discursos anti-sistémicos e extremistas ganhem voz.

Seguidamente, o autor afirma que a evolução da democracia liberal é anomalia Histórica, tendo em conta a sua rapidez e tenra existência, em termos históricos, podemos afirmar coloquialmente que ocorreu anteontem. É essencial haver uma consciencialização massiva da finitude da democracia, isto é, termos todos em mente que vivemos uma situação política e social que, por agora, funciona a nosso favor, mas que está e é por natureza fragilizada, para que possamos continuar a usufruir destes direitos e defender os valores democráticos perante o autoritarismo. A Freedom House declara que a democracia tem vindo a regredir, à medida que direitos e liberdades se vêm diminuídos ao longo da última década. No século XXI testemunhamos uma maioria autocrática, sendo que há atualmente 54% de regimes autocráticos e 46% de democracias (Lima, 2020,p.16-18).

De acordo com Lima, começa a haver um shift no quadro da democracia ocidental a partir de 2010, aquando da vitória de Viktor Orbán na Hungria, contudo este solidifica-se com o Brexit e a tomada de posse de Donald Trump em 2016, ambos acontecimentos fortemente influenciados por ideias nacionalistas. Diabolizam-se as organizações internacionais, sendo estas consideradas um obstáculo à concretização dos interesses nacionais, na forma de burocracia e perda de poderes políticos. Por isso podemos notar que algo que todos os líderes autocráticos têm em comum é de facto preferirem relações bilaterais a multilaterais e haver uma preferência pelo nacionalismo em detrimento do cosmopolitismo.

Seguidamente, é feita a seguinte definição de populismo: “Mais do que uma ideologia consolidada, o populismo é uma estratégia para ascender ao poder, normalmente utilizada por alguém carismático, confortável com a demagogia e com a instrumentalização de dois fatores mobilizadores de falanges: o medo e o ódio” (Lima, 2020, p.21) Assim temos como efeitos do populismo a desvalorização e até desprezo pela democracia representativa, descrédito a todas instituições governamentais, separação de poderes, canais de notícias, sendo a única verdade absoluta a que sai da boca do líder.

Muitos regimes autocráticos assumem uma perigosa face personalista, isto é, à imagem de uma pessoa específica, como Putin e Erdogan. Assumem diversas estratégias de autolegitimação, como eleições que não são verdadeiramente livres ou legítimas e que têm como principal propósito acalmar a crítica e pressão internacional e a revolta dentro do próprio país, contudo não serve de nada à democracia, na medida em que não respeitam os direitos e liberdades da população nem nada fazem para os aumentar. Outra estratégia é assumirem o papel de salvadores da Pátria, livrando a população do sistema corrupto que antes viviam, que impunha a sua agenda e valores liberais. Também aproveitam-se do discurso securitário, em especial países mais instáveis nos quais a população teme de facto pela sua segurança, transferindo esse medo para grupos errados, como os imigrantes ou refugiados ou outras raças e religiões, instigando a ideia de que são os culpados desta instabilidade, associando-os ao terrorismo e crime. Outro perigo com estes regimes personalistas é o favorecimento de um pequeno círculo de pessoas (oligarquia ou até nepotismo) nomeando-as para altos ou estratégicos cargos, de forma a facilitar a execução de poder do líder, como é o caso de Trump que nomeou membros familiares para cargos oficiais (Lima, 2020, p.24-26).

Durante o século XXI temos assistido a uma crescente capitalização e massificação da informação, particularmente devido às redes sociais que têm encaminhado a imprensa tradicional a um precipício. Esta velocidade e quase excesso de informação leva, ironicamente, a uma maior desinformação e torna as nossas fontes menos credíveis, já não sabemos o que é 100% verdade e onde podemos depositar a nossa confiança, para não falar do facto de vivermos com constante vigilância, ao cedermos tantos dos nossos dados online, ao partilharmos a nossa localização, entre muitas outras cedências que facilitam a manipulação de qualquer poder mal intencionado, “somos carne para canhão de máquinas sofisticadas de desinformação” (Lima, 2020, p.43).

As redes sociais estão a ser instrumentalizadas por populistas autocráticos contra os nossos interesses democráticos. São novas maneiras de governantes manterem o seu poder, como é o caso da vigilância através da inteligência artificial, tendo como exemplo o caso chinês cujo governo detém mais de 1 milhão de uigures em campos de concentração, aos quais o regime chama de campos de reeducação. Aqui a tecnologia dá jeito, pois as cidades estão equipadas por um sistema de reconhecimento facial que determina quem não pode passar e quem poderá ser preso imediatamente no local. Assim há acesso a diversos dados dos uigures, até a informações genéticas ou práticas religiosas. Através da vigilância digital é muito mais fácil identificar opositores. O microtargeting (adaptação de conteúdo para pessoas específicas, cujos algoritmos são criados de maneira a que regimes autocráticos microabordem indivíduos com informação favorável à sua imagem) e deepfakes (são falsificações digitais que impedem a verificação de legitimidade de um vídeo, imagem ou áudio que pode ser extremamente útil para descredibilizar ou até difamar os poderes opositores) vão tornar o trabalho de líderes autocráticos muito mais fácil. A China é o maior exemplo de repressão digital, seguindo-se a Rússia. Estamos a assistir a uma crescente deterioração da esfera privada da vida dos indivíduos, completamente dependente das informações cedidas a empresas globais como o facebook ou google (Lima, 2020, p.49-52), por isso é importante voltarmos a dar a devida importância à imprensa tradicional que, pelo menos numa democracia, é muito mais viável e menos suscetível a manipulações destas que a internet nos trouxe.

O autor volta a reforçar que esta pandemia só trouxe à tona problemas estruturais há muito existentes na nossa ordem internacional de natureza anárquica e interdependente significando isto que já não há um mal único, a catástrofe nunca mais será limitada geograficamente, criando o cocktail perfeito para as dimensões que o covid tem tomado. Os EUA e Brasil, como seria de esperar pelas atitudes e exemplos dos seus líderes, acabaram por se tornar os países com maior letalidade durante esta pandemia. Para combater os efeitos trumpistas e bolsonaristas, os cientistas têm lutado para participarem mais ativamente no processo de decisão política (Lima, 2020, p.61). “Os nacionalistas que tomaram conta da política internacional fazem gala em desdenhar a ciência, preferem a chacota sobre os especialistas e riem-se na cara de qualquer entidade credível quando o alarmismo e diagnosticado” (Lima, 2020, p.84). As tensões internacionais têm vindo a aumentar, particularmente devido à falta de transparência na Rússia e China, no que toca por exemplo à revelação de números de casos de covid-19. Alimentaram igualmente a desinformação que aumenta com a ansiedade que vem de mão dada com o confinamento obrigatório e excessivo consumo de fontes pouco fidedignas através das redes sociais.

Outra grave consequência apontada por Bernardo Pires foi a politização de organizações internacionais, em particular da OMS que agora mais que nunca deveria permanecer imparcial e objetiva, responsável pelas diretrizes e suposta resposta coordenada internacional ao covid, chegando ao corte de fundos da parte de Trump à organização, acusando-a de encobrir as ações da China (Lima, 2020, p.73). Sendo assim, a pandemia veio sublinhar a falta que fazem políticos sensatos, honestos, que oiçam a ciência e dêem valor à informação fidedigna, exaltando igualmente a imprensa tradicional e a liberdade da mesma, lutando contra o alarmismo e pânico causado pelas teorias de conspiração e acalmando os ânimos dos anti-sistémicos.

Na segunda parte do livro refere-se que “Os tempos em que dividíamos a política entre a nacional e a internacional acabaram” (Lima, 2020,p.91). As principais bases do poder de um país hoje centram-se basicamente nas suas relações externas, isto é, as suas alianças, organizações onde está inserido e a sua esfera de influência na arena internacional. Para além disso, com a Globalização enfrentamos problemas transnacionais, como as alterações climáticas que necessariamente têm vindo a influenciar as políticas internas de cada país. Portanto, verificamos que a política é formada e planeada tendo sempre em conta a resposta que vai criar internacionalmente e embora a política nacional vá sempre existir porque uma não existe sem a outra, tem vindo a perder a importância vital que antes tinha. Fala também da influência da UE na política portuguesa e como isso pode por um lado ajudar no combate à pandemia e por outro castrar-nos de liberdades legislativas e políticas. O autor apela a importância de desviarmos o nosso foco sobre a UE e a sua ausência ou não, e atentarmos na revisão de tratados para que estes possam ser adaptados consoante as novas necessidades e particularidades que a Globalização nos exige. Há que passar do nacionalismo para o comunitarismo. Assim sendo, tal como os problemas nacionais e internacionais, o covid-19 veio a desvendar e exacerbar as fragilidades e posições divisionistas já antes inerentes na UE (Lima, 2020, p.99-101)

Nos últimos três anos tem havido cada vez mais protestos de população frustrada e enraivecida de verem-se despidos dos seus direitos e liberdades civis e políticas e estes não irão acalmar enquanto não houver uma resposta multilateral organizada, tendo que se abandonar o poder vertical do nacionalismo e optar-se por um poder horizontal colaborativo. “Só a democracia salva a democracia. As democracias precisam de apoiar as democracias, caso contrário definhamos em dominó” (Lima, 2020, p.135).

Constitui-se um dilema os partidos clássicos não darem a atenção devida às alterações climáticas, aparentando ter agendas desatualizadas em relação ao mundo globalizado e interdependente que vivemos. Como portugueses, dependemos fortemente das nossas relações externas, portanto é essencial continuarmos a integrar-nos no âmbito da UE, mas também manter e fomentar relações fora dela (Lima, 2020, p.143-147). Lima apela que se forme uma política ambiciosa, sem receios, de forma a melhor prepararmo-nos à volatilidade do sistema internacional, sendo necessário renovarmos, sermos mais criativos e não nos fixarmos nos tradicionalismos cobardes. Não podemos resolver novos problemas com velhas estratégias e lentes desatualizadas do que foi a política internacional. O autor conclui, portanto, com a ideia de que as ditaduras não são para sempre, e embora as democracias também não o sejam, não significa que estejam condenadas a vergar-se perante autocracias. O populismo pode ser parado, porém para isso temos que estar mais atentos e críticos que nunca para sabermos identificar prontamente um discurso populista e não nos deixarmos levar na ignorância, especialmente tendo em conta que começam a surgir essas tendências em Portugal. Ambicionar-se-á então, não só fazer uma democracia sobreviver, mas também garantir-se que é uma democracia saudável e forte a estas ondas autoritárias que só surgem nas brechas da fragilidade, pobreza, desigualdade e revolta.

Referências

1. Lima, B. (2020). Portugal na Era dos Homens Fortes: Democracia e Autoritarismo em Tempos de Covid. Lisboa: Tinta Da China. [ Links ]

1. MARIA DA LUZ RILEY é Licenciada em Relações Internacionais pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da Universidade de Lisboa. Membro associado do Observatório Político. As suas áreas de interesse de investigação são: teoria política, política externa norte-americana e relações transatlânticas. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-2650-6352

2. MARIA DA LUZ RILEY has a degree in International Relations from the Institute of Social and Political Sciences, University of Lisbon. Associate member of the Political Observatory. Research interests: political theory, US foreign policy and transatlantic relations. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-2650-6352

Recebido: 07 de Abril de 2021; Aceito: 21 de Outubro de 2021

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