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Vista. Revista de Cultura Visual

versão On-line ISSN 2184-1284

Vista  no.11 Braga jun. 2023  Epub 30-Jul-2023

https://doi.org/10.21814/vista.4446 

Artigos Temáticos

A Atuação da Televisão Pública em Plataformas de Streaming: Uma Cartografia da TV Brasil e da TV Cultura no YouTube

Elton Bruno Pinheiroi  , Concetualização, investigação, metodologia, administração do projeto, supervisão
http://orcid.org/0000-0003-1465-1288

Paloma Ferreira Martinsii  , Curadoria de dados, análise formal, investigação, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-7038-8464

i Programa de Pós-graduação em Comunicação, Departamento de Comunicação, Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil

ii Departamento de Audiovisuais e Publicidade, Laboratório de Áudio, Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil


Resumo

Esta pesquisa apresenta uma reflexão analítica sobre a atuação de emissoras públicas de televisão brasileiras no ambiente mediático sociodigital de uma plataforma de streaming, nomeadamente, o YouTube, à luz dos princípios da radiodifusão pública preconizados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Bucci et al., 2012; Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura, 2001). Como eixo de articulação metodológica, o estudo adota também a abordagem cartográfica aplicada à pesquisa em comunicação (Kastrup, 2007; Rosário & Coca, 2018) e a perspectiva do estudo de casos múltiplos (Yin, 1994/2015) ao mapear a presença de duas emissoras públicas brasileiras, a TV Brasil e a TV Cultura, no YouTube. Sem desconsiderar o complexo momento político brasileiro, que impacta o Serviço de Radiodifusão Pública do país, especialmente por ocasionar a extinção do Conselho Curador (órgão de natureza consultiva e deliberativa) e, portanto, promover a exclusão da participação da sociedade na gestão da Empresa Brasil de Comunicação, a análise revela um momento específico do processo de plataformização (Poell et al., 2019) da televisão pública no Brasil, no qual é possível: verificar adequações e inadequações das emissoras estudadas ao ambiente da plataforma digital; registrar como as mudanças tecnológicas seguem a afetar a televisão enquanto meio e linguagem; e sublinhar alguns efeitos da comunicação via plataformas na sociedade.

Palavras-chave: televisão pública; plataformizacão; YouTube; TV Brasil; TV Cultura

Abstract

This research provides an analytical reflection on the performance of Brazilian public television broadcasters in the socio-digital media environment of a streaming platform, namely YouTube, under the principles of public broadcasting advocated by the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Bucci et al., 2012; Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura, 2001). As a methodological framework, the study also adopts cartographic approach applied to communication research (Kastrup, 2007; Rosário & Coca, 2018) and the perspective of a "multiple case study" (Yin, 1994/2015) in mapping two Brazilian public broadcasters, TV Brasil and TV Cultura, on the YouTube platform. Without disregarding the complex Brazilian political moment, which impacts the Public Broadcasting Service of the country, especially by causing the extinction of the Board of Trustees (an organ of consultative and deliberative nature) and, therefore, promote the exclusion of the participation of society in the management of the Empresa Brasil de Comunicação, the analysis highlights a specific moment of the platformisation process (Poell et al., 2019) of public television in Brazil, where it is possible to: verify adaptations and inadequacies of the studied broadcasters to the digital platform environment, note how technological changes continue to impact television as a medium and language and underline some effects of communication through platforms in society.

Keywords: public television; platformisation; YouTube; TV Brasil; TV Cultura

1. Apontamentos Introdutórios e Contextualização

Vivemos diante de um cenário notadamente marcado pela digitalização da informação e, mais recentemente, por um fenômeno multidimensional que conectase com as lógicas do contexto da convergência, da conexão e da articulação em rede e tensiona, em considerável medida, a sustentabilidade social e econômica da televisão, trata-se de um fenômeno que também pode ser considerado uma “telemorfose”, ou seja, mais uma fase do contínuo processo de transformação da televisão enquanto meio de comunicação: a “plataformização” (D'Andréa, 2020; Poell et al. 2019)1.

Movidas pela tentativa de alcançar espectadores/usuários do século XXI, cujos hábitos de consumo não estão mais arraigados à lógica imposta pelas grades de programação estáticas e nem da espectação sem interferência direta do espectador, as emissoras de televisão, de modo particular destacamos aquelas que compõem o serviço de radiodifusão pública, buscam, em alguma medida, adaptar-se ao “ambiente sociodigital” (Pinheiro, 2019) das plataformas, que neste estudo são compreendidas, em linhas gerais, “como infraestruturas digitais (re)programáveis que facilitam e moldam interações personalizadas entre usuários finais e complementadores, organizados através da coleta sistemática, processamento algorítmico, monetização e circulação de dados” (Poell et al., 2019, p. 3).

Assim, levando-se em consideração que “os recursos sociotécnicos das plataformas permitem e levam tanto produtores culturais quanto usuários finais a determinados tipos de atividades, conexões e conhecimentos” (Nieborg et al., 2019), este trabalho, que busca verificar a atuação da televisão pública - especialmente da TV Brasil e da TV Cultura -, em plataformas de streaming, faz uso da metodologia cartográfica para perceber: como tem se dado a atuação das emissoras de televisão pública no contexto da plataformização? Quais estratégias ou recursos têm sido mais recorrentes e quais têm sido, em alguma medida, recusados ou pouco explorados no contexto da atuação das emissoras de televisão pública do Brasil em tais ambientes? E entendendo que as atividades das televisões públicas devem respeitar fundamentos específicos - como universalidade, diversidade, diferenciação e independência (Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura, 2001) -, como esses princípios se refletem, ou não, na presença dessas emissoras na plataforma de streaming em que estão inseridas?

Entendendo a importância que as plataformas de streaming de vídeo possuem para a manutenção de emissoras de televisão num setor cada vez mais digitalizado, o presente trabalho procura levantar tais evidências por meio da investigação cartográfica dos processos de plataformização de duas importantes emissoras públicas brasileiras, a TV Brasil, gerida pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC), e a TV Cultura, gerida pela Fundação Padre Anchieta.

Visa-se, portanto, mapear estratégias, destacar práticas e refletir sobre caminhos para a melhoria da qualidade e do desempenho dessas emissoras em suas atuações na plataforma de streaming em que estão inseridas, o YouTube, podendo contribuir, em alguma medida, para a construção de políticas públicas de fomento e expansão do serviço de radiodifusão pública no Brasil, no ambiente mediático sociodigital contemporâneo.

Em relação à estruturação deste artigo, na primeira parte, apresentamos os eixos de articulação teórica, refletindo sobre os conceitos de “radiodifusão pública” (Bucci et al., 2012; Diniz, 2013; Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura, 2001; Pinheiro, 2019) e “plataformização” (D'Andréa, 2020; Poell et al., 2019). Na segunda parte, abordamos algumas reflexões sobre o método, que fez uso contextual do “estudo de caso” acionando a técnica da “observação direta” (Yin, 1994/2015), da “cartografia aplicada à pesquisa em Comunicação” (Kastrup, 2007; Rosário & Coca, 2018) e da interpretação “analítico-descritiva (Trivinos, 1987). Na terceira parte, está a análise da plataformização da TV Brasil e da TV Cultura; e, por fim, apresentamos nossas considerações finais como inferências que buscam lançar luzes à reflexão analítica realizada.

2. Eixos de Articulação Teórica: Leis da Mídia, Plataformização e Radiodifusão Pública

A respeito das dinâmicas de transformação pelas quais uma mídia passa ao longo de sua interação com a sociedade no decorrer da história e do surgimento de novas tecnologias, Marshall McLuhan e Eric McLuhan (1988) apresentam no livro Laws of Media: The New Science (As Leis da Mídia: A Nova Ciência), a tétrade dos efeitos midiáticos, uma espécie de representação dos impactos e implicações de uma nova tecnologia na sociedade. A referida representação seria melhor alcançada, segundo os mencionados autores canandenses, por meio de perguntas, a saber: o que a nova tecnologia vai aperfeiçoar? O que essa tecnologia vai tornar obsoleto? O que ela vai ajudar a recuperar de tudo que perdemos (sociedade)? Como essa tecnologia vai se reverter quando levada ao limite? Consideramos que as plataformas de streaming de vídeo também podem ser analisadas seguindo essa perspectiva, uma vez que a existência destas, possibilitada por novos avanços tecnológicos, tem promovido mudanças substanciais nas formas de produção e consumo de conteúdos audiovisuais.

Não obstante, os estudos das plataformas digitais têm se tornado populares nas mais diversas áreas do conhecimento, sobretudo pela relevância que esses ambientes sociodigitais apresentam na vida cultural e urbana contemporânea.

O professor e pesquisador Carlos D'Andréa (2020), em seu livro Pesquisando Plataformas Online: Conceitos e Métodos, explica que se torna urgente investir em perspectivas de pesquisa que compreendam as dimensões tecnopolíticas das plataformas digitais, assumindo como premissa que os artefatos tecnológicos e as práticas sociais se co-produzem.

Em seu trabalho pioneiro, Tarleton Gillespie (2010) apontou como o termo “plataforma” vinha sendo estrategicamente usado por serviços, como o Google e o YouTube, para se venderem como meros “intermediários”, isto é, como artefatos neutros que permitiriam uma circulação mais aberta e democrática de informações e serviços. Carlos D‘Andréa (2020) afirma que, ao desconstruir a estratégia discursiva das empresas, Gillespie (2010) contribuiu decisivamente para a formação de um olhar analítico, que considera o entrelaçamento entre os interesses comerciais, as escolhas computacionais e os posicionamentos políticos das plataformas.

Nessa direção, ressalta-se aqui que ao analisar a plataformização no âmbito de emissoras de serviço público não comercial, especialmente o caso da TV Brasil e da TV Cultura no YouTube, o presente trabalho não perde de vista a perspectiva dos estudos de plataforma que analisam que estas “não são meras intermediárias em que a sociedade se faz visível e a partir das quais interações sociais podem ser estudadas, mas sim ambientes que condicionam a emergência de um social” (D'Andréa, 2020, p. 19).

Como também assinala D’Andréa (2020), “de modo cada vez mais evidente e intenso, as plataformas online tornam mensuráveis e armazenáveis as diversas práticas sociais e rotinas computacionais que se dão nas suas interfaces e a partir de suas arquiteturas” (p. 26). Tem-se em conta, portanto, que o YouTube - assim como a Netflix, a Globoplay, a HBO, entre outros -configura-se a partir dos resultados também das múltiplas agências que abrigam, da sua estrutura empresarial político-econômica e de mecanismos técnicos internos de funcionamento que visam retorno financeiro. De todo modo, como já em alguma medida assinalado, este estudo tem como premissa, em diálogo com Pinheiro (2019), a ideia de que a atuação de emissoras públicas nesses ambientes mediáticos sociodigitais é potencialmente contributiva ao processo de “legitimação social” do sistema público de radiodifusão (tanto sonoro, quanto de sons e imagens), uma vez que plataformas como o YouTube estão cada vez mais presentes no cotidiano de camadas expressivas da população brasileira.

Van Dijck et al. (2018) afirmam que “uma plataforma é alimentada com dados, automatizada e organizada por meio de algoritmos e interfaces, formalizada por meio de relações de propriedade orientadas por modelos de negócios e regidas por acordos de usuários” (p. 9). Desse modo, na perspectiva dos estudos de plataforma, dois conceitos são muito importantes para descobrir as relações que viabilizam o funcionamento destas estruturas e a rede que elas estabelecem entre si: “sociedade da plataforma” e “plataformização”.

Vivemos em uma “sociedade da plataforma”, uma sociedade atrelada a um “ecossistema (esmagadoramente corporativo) de plataformas online e globais” (Van Dijck et al., 2018, p. 4), onde as pessoas organizam suas atividades rotineiras pela mediação de aplicativos e plataformas digitais, essa adequação é percebida em várias instâncias como saúde, educação, transporte e moradia. O fenômeno da “plataformização” emerge nesse cenário das relações de crescente dependência de diferentes setores da produção cultural cujos mercados foram profundamente transformados pela lógica das plataformas.

Isto posto, é importante perceber como o meio televisivo tem se comportado frente a essas mudanças de mercado e consumo cultural. Veja-se, contudo, que na perspectiva acadêmica, há autores que não reconhecem existir distinção entre televisão e vídeo, chegando a sugerir que serviços como a Netflix são um verdadeiro canal de televisão (Massarolo & Mesquita, 2016; Wolff, 2015/2015). Assim, a mídia digital teria se tornado parte do negócio da televisão e não uma ameaça para o setor televisivo.

Entretanto, isso não anula as diferenças entre o serviço de radiodifusão tradicional e as plataformas de streaming, distinções que não se limitam ao seu modo de produção e distribuição. Como características distintivas dos serviços de streaming, a Agência Nacional do Cinema (Ancine, 2020) indica que: (a) é um serviço de comunicação de conteúdos audiovisuais; (b) organizado em catálogo; (c) ofertado ao público em geral ou a assinantes de maneira não linear; (d) baseado na utilização de redes de comunicação eletrônica, dedicadas ou não, com finalidade comercial; e (e) com remuneração efetuada diretamente pelo usuário (por meio de compras avulsas ou assinatura) e/ou por venda de espaço publicitário, e que implica responsabilidade editorial do provedor, referente à seleção, organização e exposição dos conteúdos nos catálogos.

O YouTube é, atualmente, a plataforma de vídeos mais popular do mundo, conectando usuários e produtores de conteúdo de diversos países diferentes. Segundo o site oficial da plataforma, cerca de 500 horas de conteúdo é carregado nela a cada minuto (YouTube, s.d.-a). Esse território internacionalizado é compartilhado por pessoas de diferentes faixas etárias, entretanto, a idade média do público da plataforma é de jovens adultos entre os 18 e os 34 anos de idade, embora possa ser observado um aumento da audiência de canais direcionados ao público infantil e idoso na plataforma. De acordo com a companhia, a missão do YouTube é "dar a todos uma voz e revelar o mundo" e seus valores se baseiam na “liberdade de expressão, direito à informação, direito à oportunidade e liberdade para pertencer” (YouTube, s.d.-b), princípios aparentemente relacionados com os ideais democráticos, o que pode ser, de alguma forma, cotejado às ações de comunicação pública.

Retornando a ideia da plataformização, “a noção expandida de plataformização da produção cultural ajuda na compreensão do processo de adaptação de antigos modelos de produção e de negócios culturais” (Conviva, 2020, p. 22), um dos exemplos dessa ocorrência é o modo como se dão as práticas e negócios da televisão a partir das interfaces tecnocomerciais das plataformas de video on demand (vídeo sob demanda). Nos últimos anos, é possível observar um movimento urgente entre as emissoras brasileiras de televisão motivado, entre outras situações, pela emergência de um novo modelo de consumo de conteúdos audiovisuais, demonstrado por uma parcela significativa da sua audiência.

O ambiente televisivo, pautado na lógica de concessão de bem público (espectro de radiofrequências) lança mão de uma estratégia de sobrevivência e manutenção da sua relevância, tendo existido por décadas num modelo de produção já bem estabelecido, o broadcasting, integra-se a um movimento de mutação rumo a uma nova ambiência e modo de fazer conteúdo televisivo, o streaming (Souza, 2020). Ao longo das suas sete décadas de atuação no Brasil, a televisão conseguiu se adaptar aos movimentos e tendências de mercado que foram surgindo, o que garantiu longevidade e popularidade às empresas deste meio, sendo esta última mais evidente quando nos referimos às emissoras comerciais de televisão (Fagundes, 2020).

Com a consolidação do streaming como um modelo emergente de produção, circulação e consumo de conteúdo audiovisual, tudo isso acontecendo num único ambiente, essas empresas se viram mais uma vez compelidas a um movimento não de migração, mas de transformação midiática, uma vez que ocorrem rompimentos de características próprias do meio como o ao vivo, o fluxo programado (grade de programação) e a temporalidade da espectação (Marquioni, 2012; Oliveira & Marquioni, 2020), o que reconfigura de maneira profunda a própria experiência televisiva.

No Brasil, as emissoras de televisão aberta de maior audiência iniciaram seu processo de plataformização a partir de estratégias bem diferentes. A TV Globo se destacou neste mercado quando, em 2015, lançou a sua própria plataforma de video on demand, o Globoplay. A TV Record oferece seu conteúdo na plataforma Playplus e o SBT oferece suas obras no YouTube (Fagundes, 2020), bem como em sua recente plataforma própria, a SBT Vídeos.

Entendemos a plataformização da televisão como uma estratégia de resiliência, mecanismo de sustentabilidade e, mais do que isso, como um fenômeno comunicacional multidimensional (há aspectos culturais, sociais, políticos, tecnológicos e econômicos envolvidos nessa lógica das plataformas), processual (há mudanças contínuas nessa lógica) e em aberto (relativamente ainda pouco estudado) no Brasil. Também as questões tecnológicas precisam ser compreendidas a partir da ação/omissão da sociedade, ou mais especificamente, do comportamento humano (envolvimento de políticos, gestores, sociedade; Pinheiro, 2019).

Compreendemos, portanto, que a plataformização é importante não só para as emissoras que compõem o sistema comercial, mas também fundamental de ser assimilada pelas demais que compõem o sistema de radiodifusão de sons e imagens brasileiro: as emissoras de televisão estatais e, de modo particular, as emissoras públicas - objetos de análise do presente trabalho (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, 1988).

Em documento da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), redigido pelo Conselho Mundial de Rádio e Televisão, no trecho que se refere ao contexto da digitalização da televisão pontua-se:

o desafio dos próximos anos, para as emissoras de serviço público, é evoluir e adaptar à era digital os princípios que as sustentam. Isso porque, a grande maioria das emissoras de televisão pública estão atualmente presentes no universo dos canais especializados e na Internet . A necessidade que se impõe a elas é utilizar essas novas tecnologias para melhorar e completar sua missão de serviço público [ênfase adicionada]. Devem fazê-lo com prudência, elegendo setores que procedam logicamente da sua razão de ser. (Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura, 2001, p. 31)

Considerando que a digitalização da televisão vive os seus desdobramentos a partir da plataformização, com ainda maior individualização do consumo audiovisual, que acontece com mais controle da audiência, deve-se atentar que a digitalização e a fragmentação tenham efeito em como as pessoas percebem e se interessam pelos serviços que permitem manter um sentimento de pertencimento a uma comunidade política, percebendo-se como cidadãos (Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura, 2001, p. 32).

A televisão pública cumpre uma função singular no sistema de radiodifusão brasileiro, e uma possível alienação em relação a esse social que emerge, a sociedade de plataforma, geraria prejuízo ao ideal de missão do serviço público. Sendo assim, perceber como essas emissoras têm se inserido no contexto dos ambientes digitais, especificamente nas plataformas de streaming, significa verificar se tem cumprido a totalidade de sua função enquanto entidade pública e de, portanto, estar acessível a todos, a despeito das formas que dispõem ou elegem para consumir televisão.

3. Reflexões Sobre o Método: A Cartografia Como um Mapa Movente

Este trabalho faz uso contextual e compreensivo da abordagem de “múltiplos casos” (Yin, 1994/2015), sendo estes relacionados à atuação das emissoras de televisão pública, especificamente a TV Brasil e a TV Cultura, no YouTube. O estudo foi realizado a partir de uma cartografia dos canais utilizados pelas referidas emissoras na plataforma de streaming, num primeiro momento, a partir de uma “observação direta” (Yin, 1994/2015) dos canais, um “gesto de varredura do campo” (Kastrup, 2007, p. 18) e, posteriormente, a catalogação e organização dos dados, possibilitando o mapeamento desses ambientes sociodigitais (Pinheiro, 2019).

Após a finalização do mapeamento, foram utilizadas ferramentas de classificação, categorias e indicadores assinalados em dois documentos da Unesco (Bucci et al., 2012; Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura, 2001) que discorrem sobre os princípios da radiodifusão pública e seus indicadores de qualidade, essa classificação foi necessária para a realização de uma análise descritiva e analítica das informações que foram coletadas. Os “gestos cartográficos” (Kastrup, 2007) empreendidos por esse estudo resultam em um “mapa movente”, justificado tanto pelo que Rosário e Coca (2018) caracterizam como algo genuíno das “cartografias em comunicação”, quanto pelo próprio “caráter contingente das plataformas” (Nieborg et al., 2019). Dito de outra forma, pode-se dizer que os resultados desse estudo se apresentam como o retrato do objeto investigado no momento da observação cartográfica.

Tendo em vista que buscar compreender como televisões públicas, especialmente a TV Brasil e a TV Cultura, estão inseridas no contexto da plataforma YouTube envolve abraçar, no movimento de observação do corpus, um universo muito grande de informações, dado o grande volume de conteúdo e engajamento do público, gerados ao longo dos anos em que os canais das respectivas emissoras existem na plataforma. Para que essa pesquisa fosse possível, buscou-se fazer a construção de um retrato da realidade desses canais a partir de fragmentos/partes, as quais, como uma espécie de “mosaico” (McLuhan, 1972, como citado em Pinheiro, 2019, p. 42), uma vez unidas e analisadas, nos dão, em alguma medida, uma ideia geral e pertinente dos processos que estão acontecendo nesse ambiente e como as emissoras se comportam nesse cenário.

A plataforma da TV Brasil e da TV Cultura no YouTube foram inicialmente analisadasdurante um período de 15 dias, entre o final do mês de março e a primeira semana de abril de 2021. Para este artigo, revisitamos os mesmos canais, também por 15 dias (entre o final novembro e a primeira semana de dezembro), sendo durante esse novo período constatadas pouquíssimas alterações em relação à primeira análise.

4. Cartografia e Análise da Atuação da TV Brasil na Plataforma YouTube

O canal da TV Brasil no YouTube foi criado em junho de 2006 e apresentou, até o momento da coleta de dados realizada pela presente pesquisa, um fluxo de postagens diárias de vídeos. No primeiro momento da análise, a página estava assinada por 1.310.000 de inscritos, um número bem expressivo no contexto do YouTube e que permaneceu aumentando, sendo que na segunda observação direta (realizada em 2022), a página tinha o total de 1.980.000 de inscritos. O canal também apresentou um número de visualizações totais de seus vídeos bastante expressiva, ultrapassando, na primeira análise, em muito, 300.000.000 momentos de espectação dos 126.964 vídeos que ela oferece em seu canal. Na segunda observação direta empreendida (de 2022), o número de espectações registrado foi superior a 540.000.000.

Na definição do canal, que se encontra na aba "Sobre", situada na interface da página do canal no YouTube, verifica-se que a TV Brasil se posiciona como televisão pública e convida os espectadores a assistirem vídeos dos seus programas e “conteúdos exclusivos para a web”. Nesse mesmo espaço, são indicadas as demais plataformas digitais nas quais a emissora se faz presente, todas são plataformas de relacionamento: Facebook, Instagram e Twitter. Também é possível acessar o site da TV Brasil (https://tvbrasil.ebc.com.br/) por onde o usuário pode acompanhar a programação ao vivo por meio da transmissão on-line.

No referido canal do YouTube não ocorre a transmissão ao vivo da programação da TV Brasil, que seria uma ligação com a instância broadcasting da televisão, também não foi possível identificar, de fato, a existência de programas de produção exclusiva para a plataforma (com exceção dastransmissões ao vivo que acontecem eventualmente), apesar daquilo que o canal assinala em sua descrição, como mencionado no parágrafo anterior do presente texto.

O volume de conteúdo televisivo disponibilizado ao longo desses anos na plataforma seria muito difícil de precisar sem o acesso direto ao perfil da emissora no YouTube, mas o que podemos registrar ao observarmos a aba “Vídeos”, onde estão presentes todos os vídeos postados por aquele canal, sendo o último o mais recente, verificamos que são postados vídeos diariamente. No entanto, a maioria desses vídeos são notícias e/ou reportagens já exibidas nos programas jornalísticos da emissora, como o Repórter Brasil.

Quando esses dados foram recolhidos, o último vídeo postado pelo canal, cujo conteúdo não era jornalístico, datava seu envio de dois meses anteriores. Esse desequilíbrio pode ser categorizado como um indício de tensionamento do princípio da universalidade da programação da emissora, ou pelo menos na parte da sua programação que é ofertada a partir da plataforma, uma vez que limita a possibilidade de acesso a determinado tipo de conteúdo, nesse caso, o conteúdo não jornalístico produzido pela referida emissora.

Em seus canais de destaque, são apresentados três outros perfis que estão relacionados com o canal principal da emissora. Um deles é o canal TV Brasil Gov, que posta, em geral, notícias, reportagens e transmite eventos relacionados à presidência da República Federativa do Brasil. Esta é mais uma dicotomia ocasionada pela histórica dupla natureza da emissora, evidenciada durante o Governo Jair Bolsonaro, que fundiu oficialmente as duas respectivas emissoras, desrespeitando o princípio da “complementaridade” entre os sistemas público, estatal e comercial, previsto no Artigo n.º 223 da Constituição Brasileira de 1988 (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, 1988). Os dois outros canais são da Agência Brasil e da Rádio Nacional, emissoras públicas de comunicação que também integram o corpo da EBC.

Entre todos os canais da EBC presentes noYouTube, o da TV Brasil é o que apresenta o maior número de inscritos (Table 1) e volume de postagem de conteúdo, o que lhe garante a centralidade no território digital ocupado pela entidade pública, o que pode ser explicado pela natureza atrativa da televisão, em contraponto aos conteúdos da agência e da Rádio Nacional na plataforma em questão.

Tabela 1 Número de inscritos nos canais da Empresa Brasil de Comunicação no YouTube (2021/2022) 

Cada canal no YouTube possui uma aba “Comunidade”, que permite a postagem de imagens e textos que são enviados para as páginas iniciais dos inscritos. Não é certo que todos eles recebam essas postagens, mas é uma oportunidade de notificá-los sobre novos conteúdos, promover engajamento sobre algum programa, tema ou evento. No primeiro momento da pesquisa (2021), a última postagem da emissora havia ocorrido há duas semanas, com um engajamento de 781 curtidas e 16 comentários, um trânsito pequeno de usuários e pouca periodicidade, nota-se que esse é um recurso ainda pouco explorado nas estratégias de divulgação do conteúdo. No segundo momento da pesquisa (2022), a última postagem da emissora havia ocorrido há um mês, com um engajamento de 218 curtidas e apenas três comentários. Uma evidência tanto da permanência de um baixo engajamento quanto de uma baixa regularidade na frequência de conteúdos publicados na referida aba “Comunidade” da TV Brasil no YouTube.

Como já explicado anteriormente, todos os vídeos liberados no canal ficam disponíveis na aba “Vídeos”. Todavia, com o passar do tempo, o volume de conteúdo vai aumentando e torna-se impraticável encontrar um vídeo específico nessa geografia do canal. Portanto, faz-se necessária uma reorganização e especialização dos conteúdos do canal, o que por sua vez acontece por meio das playlists (lista de reprodução). Estas ficam disponíveis na aba “Playlists” na interface do canal, podem ser livremente criadas pelos administradores do perfil e funcionam como uma lista de vídeos que permite organizá-los por programa, temporada, ano, ou qualquer outra categoria. Isso facilita a busca pelo conteúdo desejado e permite que o espectador/usuário assista aos vídeos em sequência, o que também estimula a sua presença no canal por mais tempo. No entanto, esse tipo de catalogação requer alguns cuidados para que o espectador possa entender o seu funcionamento e navegue com facilidade pela página.

No caso da TV Brasil, essa organização por meio das playlists é largamente utilizada. Em 2021, somavam um total são 212 playlists criadas. Em 2022, este número passou para 254. Na aba desta seção do canal é possível colocar algumas playlists em destaque, as duas filas de playlists destacadas no Canal TV Brasil levam os nomes “Jornalismo” e “TV Animada”, onde, como os nomes sugerem, estão presentes conteúdos jornalísticos e conteúdo infantil. Essas escolhas de organização da página e dos vídeos demonstram que certos tipos de conteúdo são mais evidenciados em relação a outros.

As razões para essa referida ocorrência podem ser diversas: desde a alguma evidência em relação à resposta do público a esses gêneros e formatos, até a questões como os conteúdos produzidos pela emissora que naturalmente se refletem em quais são disponibilizados na plataforma, ou mesmo o interesse que a TV Brasil pode vir a ter de que certos programas e/ou temas sejam mais assistidos do que outros. Em qualquer uma dessas hipóteses estão tensionados tanto o princípio de universalidade da radiodifusão pública quanto o de independência, uma vez que o que motiva essas estratégias de circulação de conteúdo que, em alguma medida, excluem determinados gêneros, formatos e temas, parece atender a outro que não o interesse público. Esta reflexão leva em consideração, sobretudo, o alto número de vídeos com conteúdo noticioso, em formato de cobertura, de atos do então chefe do poder executivo federal brasileiro, Jair Messias Bolsonaro.

Um outro desafio que parece permear esse tipo de catalogação em plataformas digitais é o da classificação. A partir da catalogação das playlists criadas no canal da TV Brasil, percebe-se que apesar da maioria se organizar a partir de programas, sendo que programas muito antigos ou com muito conteúdo recebem mais playlists nomeadas pelo ano ou por temporada, também foram encontradas playlists temáticas e outras reunidas por formato e gênero como por exemplo “Documentário” ou “Receitas”. Outros equívocos menores também foram observados como playlists que se repetem e outras que possuem o mesmo nome, situações essas que dificultam a busca do espectador pelo conteúdo que deseja acessar.

Uma outra observação geral sobre o sistema de playlists da TV Brasil é o fato que muitos conteúdos mais antigos, principalmente os presentes em playlists criadas entre os anos 2010 e 2012, estão incompletos, com apenas as chamadas dos programas, mas sem o conteúdo na íntegra. Essas playlists de programas que não fazem mais parte da grade possuem relevância porque passam a constituir um acervo de livre acesso aos espectadores, que podem acessar a essa memória de produção televisiva da TV Brasil, que não pode ser encontrada em qualquer outro lugar com esse tipo de organização. Esse aspecto é, sem dúvidas, um grande benefício da presença da televisão pública em uma plataforma de streaming e poderia ser melhor aproveitado pela TV Brasil como feito, por exemplo, no caso das playlists “Musicograma” e “Revista do Cinema Brasileiro”.

Para melhor verificarmos a realidade do catálogo disponibilizado pelo canal da emissora TV Brasil e ser possível refletir analiticamente sobre a performance dessas playlists, fez-se necessário selecionar as 10 playlists mais assistidas do canal, com o objetivo analisar com mais profundidade, e a partir de ferramentas específicas, de que maneira esses conteúdos oferecidos na plataforma se organizam, quais as recorrências, divergências e lacunas que podem ser encontradas na atuação da TV Brasil no YouTube a partir dos conteúdos mais acessados pela audiência, como apresentado na Table 2.

Tabela 2 Playlist da TV Brasil mais assistidas no YouTube (2021/2022) 

A partir desse recorte das 10 playlists mais assistidas do canal, interessou também perceber “se” e “como” os princípios da radiodifusão pública se refletem na atuação da TV Brasil no YouTube, sendo eles: “independência”, “universalidade”, “pluralidade” e “diferenciação” (Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura, 2001), além da questão da performance no contexto da “plataformização”. Esses primeiros princípios mencionados são também trabalhados por outro documento encomendado pela Unesco, intitulado Indicadores de Qualidade nas Emissoras Públicas: Uma Avaliação Contemporânea (Bucci et al., 2012). As categorias e indicadores fornecidos pelos respectivos documentos são cotejados nesta presente pesquisa, adaptados e adotados como ferramentas de análise (Table 3).

Tabela 3 Elementos para análise da atuação de emissoras de televisão em plataformas de streaming segundo os princípios da radiodifusão pública 

A primeira categoria na qual se observou, portanto, os conteúdos das 10 principais playlists da TV Brasil foi a da “independência”. Para tanto, algumas dessas questões elencadas na Tabela 3 só podem ser completamente respondidas se forem analisados os processos internos da emissora quanto à criação dos programas, produção dos mesmos, montagem da grade de programação, financiamento da emissora e distribuição dos recursos. Entretanto, alguns indícios externos podem vir a evidenciar problemas nesse sentido, como o já citado fato de a grande maioria dos vídeos disponibilizados no canal serem de conteúdo jornalístico, sendo a maioria das notícias relacionadas à política nacional, mais precisamente à demasiada e enviesada divulgação de atos do, então, Presidente Jair Bolsonaro. Como é sabido, informar é função genuína de uma televisão pública, mas não a única. “Formar, informar e entreter” é apontado pela Unesco (Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura, 2001, p. 10) como o “mandato” das emissoras públicas. Sendo assim, ainda que possa existir uma administração estratégica no sentido de privilegiar um tipo de conteúdo que pode vir a ser muito buscado e consumido pela audiência, isto não justificaria que as outras funções de entreter, educar, incentivar a cultura, se mostrem negligenciadas.

Outro fator externo que atravessa essa pesquisa foi o anúncio feito no ano de 2021, pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro, sobre a intenção do governo de privatizar não apenas a TV Brasil como também a EBC, responsável por outras empresas públicas como a Rádio Nacional.

Essa não foi só uma promessa de campanha à reeleição do, então, Presidente brasileiro, medidas para o cumprimento desse plano foram tomadas, como o decreto assinado por Bolsonaro colocando a empresa no Programa Nacional de Desestatização e o início dos estudos para a privatização da EBC. Essa situação promovida pela extrema-direita brasileira buscou tensionar a importância do serviço de comunicação pública, taxando-o de gasto frívolo e desnecessário. Evidentemente, a EBC, bem como seus funcionários, colaboradores e espectadores, foram atingidos por esse cenário de instabilidade, abandono e risco de encerramento das atividades.

Retornando às categorias de análise, cotejando como indicadores os princípios da radiodifusão pública (Bucci et al., 2012; Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura, 2001) com a lógica das plataformas, pode-se dizer que à “universalidade” interessa: (a) se o acesso ao canal da emissora na plataforma (no caso dessa pesquisa, o YouTube) e os conteúdos ali disponibilizados são livres e gratuitos; (b) se os conteúdos estão dispostos na plataforma de uma maneira que programas, temas ou determinados formatos sejam mais facilmente encontrados/acessados pelo espectador/usuário; e (c) se os diferentes tipos de programas da emissora - jornalísticos, culturais, infantis, educativos, variedades - estão apresentados na plataforma com periodicidade, presença em volume de conteúdo e grau de importância igualitários.

Nos referindo à TV Brasil, percebe-se que o último indicador relacionado à “universalidade” não está em um nível ideal, uma vez que não há a mesma preocupação em liberar conteúdos na mesma quantidade e periodicidade de tipos distintos de programas televisivos. O acesso à plataforma e aos conteúdos no canal são gratuitos, o que serve à necessidade do serviço público alcançar a todos os cidadãos, uma vez que a plataforma permite que pessoas que não desejem ou não tenham acesso ao sinal de transmissão da emissora possam consumir os conteúdos se tiverem conexão à internet e acesso a dispositivos digitais. Esse acesso se estende também aos brasileiros que residem fora do território nacional e que não poderiam assistir a televisão pública de seu país, se esta estivesse associada apenas ao modelo broadcasting de transmissão.

Quanto à “pluralidade”, é relevante perceber: (a) se o conteúdo disponibilizado na plataforma reflete a diversidade de identidades - étnicas, religiosas, populares, etárias, de orientação sexual, de preferências estéticas - que estão presentes na sociedade brasileira; (b) se as playlists incluem programas destinados a públicos de regiões geográficas diversas; e (c) se esses conteúdos possuem diversos formatos e se trata de uma pluralidade de temas. Esses indicadores revelam uma das faces mais interessantes da televisão pública, a sua diversidade.

Não há, entre as 10 playlists mais assistidas e aqui analisadas, conteúdos de programas com temáticas muito diferentes, uma vez que a maior parte deles são programas jornalísticos tradicionais e programas de entrevistas cuja temática envolve atualidades. Uma maior variedade se encontra entre a programação infantil, onde figuram séries ficcionais, programas educativos/instrucionais e séries animadas, cujos formatos raramente são encontrados nas programações de televisões comerciais, principalmente depois que a publicidade infantil foi vetada nas emissoras de televisão brasileiras.

Esse indicador apresenta um obstáculo em sua verificação por meio do recorte feito nesta pesquisa, uma vez que uma seleção das playlists mais assistidas do canal diz mais a respeito dos gostos da audiência do que necessariamente da realidade da grade de programação da emissora. No entanto, a seleção dessas 10 playlists ainda constitui uma amostra válida uma vez que fazem parte do catálogo oferecido pelo canal e ainda representam, em alguma medida, quais gêneros e formatos de programas estão sendo oferecidos. A pluralidade também se relaciona com a próxima categoria de análise.

Quando tratamos da “diferenciação”, busca-se a resposta para: (a) a linguagem dos programas é original ou repete padrões conhecidos?; (b) há exemplos de programas ou de formatos de programa que foram gerados dentro dela e depois assimilados por outras emissoras?; e (c) a presença dessa emissora na plataforma pode ser considerada referência para suas emissoras similares ou concorrentes?

Como já observado, no canal da TV Brasil, a programação infantil, denominada “TV Animada” é um demonstrativo de programas direcionados a um público expressivo que tem sido ignorado por outras emissoras, a qual se constitui como uma audiência muito presente nas plataformas, não por acaso as playlists mais assistidas do canal também atendem a esse gênero.

Um outro destaque quanto à “diferenciação”, mas que também pode ser relacionado aos princípios de “universalidade” e da “plataformização” é a existência de playlists com audiodescrição e/ou janela de língua brasileira de sinais nos vídeos, acessibilizando o conteúdo televisivo a um público com diversidade sensorial, no caso específico para pessoas com deficiência auditiva. O canal da TV Brasil possui duas playlists com esse perfil, “Programa Especial”, uma coletânea de vídeos audiodescritos com entrevistas, programas com rodas de conversa e reportagens. E a playlist do programa Repórter Visual, um noticiário feito especialmente para o público com diversidade sensorial auditiva e, portanto, com linguagem completamente em língua brasileira de sinais. Essas medidas de acessibilidade do conteúdo não encontram similares em emissoras correspondentes ou concorrentes e representam uma inovação tanto de formato e linguagem de programas televisivos, quanto de posicionamento digital de emissoras públicas.

A última categoria de análise criada nessa pesquisa para verificar como as emissoras das televisões públicas se inserem nas plataformas digitais de streaming é a “plataformização”. Os seus indicadores correspondem às seguintes perguntas: (a) a emissora demonstra uma utilização hábil dos recursos disponíveis na plataforma, especialmente na distribuição de conteúdo e na interação com o público?; (b) a emissora produz conteúdo original para a plataforma?; e (c) há um procedimento claro em como o conteúdo da emissora é oferecido na plataforma, na capa dos vídeos, no padrão de organização (playlists, canais, temporadas, temas), na descrição das playlists? A categoria “plataformização” foi criada para essa pesquisa e não corresponde a um princípio específico da radiodifusão pública. Como um contributo nessa direção, foram reunidos os indicadores fornecidos pela Unesco (Bucci et al., 2012), os quais se referem à adaptação das emissoras públicas aos ambientes sociodigitais.

A partir de uma observação direta e da análise do canal da TV Brasil no YouTube, conclui-se que ela faz uso da maioria, senão de todos, os recursos oferecidos pela plataforma, ainda que alguns com pouca frequência, como no caso da aba “Comunidade”. Também chama a atenção o fato de ter poucos canais associados: apenas um de conteúdo televisivo e com um recorte governamental. Essa escolha por centralizar todo o conteúdo da emissora em um único ambiente digital requer uma organização cuidadosa e gerenciamento frequente desses conteúdos, o que não acontece. A grande parte das playlists do canal datam de muito tempo sua última atualização, e isso inclui algumas das playlists mais assistidas como as dos programas “O Teco Teco” e “Meu AmigãoZão” que estão sem ser atualizados e monitorados há mais de um ano.

Quanto à unidade na identidade visual do canal - capa dos vídeos, descrição das playlists, descrição dos vídeos, não existe um procedimento padrão. A maior parte dos vídeos não tem uma capa editada, a imagem exibida é um frame aleatório do vídeo, o que dificulta a identificação. Algumas playlists apresentam descrição, outras não, o mesmo acontece no caso dos vídeos, mas com menor frequência: a maioria dos vídeos apresentam descrição e links para mais informações.

Nas situações de playlists sem descrição, o espectador precisa assistir para descobrir do que se trata aquele conteúdo e não existem informações extras que possam situá-lo naquele programa ou mesmo incentivá-lo a continuar assistindo. O logotipo e a capa do canal seguem as cores e a identidade visual da emissora. Todos os vídeos também contém a marca contínua do logotipo da emissora no canto superior da imagem, como acontece na transmissão por broadcasting.

5. Cartografia e Análise da Atuação da TV Cultura na Plataforma YouTube

Agora, voltando-se para o canal da TV Cultura na plataforma YouTube, será possível observar os mesmos mecanismos sendo utilizados em uma dinâmica diferente. O canal da TV Cultura também foi criado no ano de 2006, no mês de março. Durante o primeiro período em que esta cartografia foi feita (2021), 1.550.000 de espectadores estavam inscritos e a página acumulava mais de 400.000.000 de visualizações dos conteúdos nela disponibilizados, um total de mais de 19.000 vídeos postados, sendo que a frequência de envio de novos vídeos era diária. Na segunda observação direta, em 2022, esses números passaram para 2.100.000 de inscritos, mais de 30.000 vídeos e quase 582.000.000 visualizações dos conteúdos nela disponibilizados; e a frequência de envio de novos vídeos continuou a ser diária.

A plataforma se descreve como o canal oficial da TV Cultura e afirma sua idealização digital, traz a sinopse de alguns dos programas disponíveis no canal, especificando quais são originais da plataforma e quais pertencem à grade de programação da emissora. Entretanto, essa descrição esteve e permanece defasada, uma vez que alguns desses programas estão disponíveis, mas não estão sendo mais produzidos. A natureza pública da emissora não foi explicitada em seu perfil.

Ainda na aba “Sobre”, onde está a descrição do canal, é possível encontrar hiperlinks para as demais plataformas digitais nas quais a emissora está inserida: Facebook, Instagram e Twitter. Também é possível acessar o site oficial da emissora (https://cultura.uol.com.br/), onde o espectador pode acompanhar a programação ao vivo por meio de streaming. Observou-se que a transmissão ao vivo, enquanto um recurso disponível no YouTube, só é utilizado pelo canal em casos específicos, como a transmissão de um evento, a estreia de um programa, isso no caso do canal principal, e, como veremos, a topografia (organização no espaço) do canal da TV Cultura é particular e os canais associados a ele podem vir a fazer um uso maior ou menor desse artifício.

Na aba “Vídeos”, ao analisar os tipos de programas cujos vídeos são enviados, é notável a diversidade de formatos e temas, apesar do grande volume de conteúdo jornalístico postado, que se justifica uma vez que esse é um tipo de conteúdo de produção diária e constante, mas em uma primeira observação não é notável uma desproporcionalidade de um determinado tipo de programa em detrimento de outros.

Nos períodos de observação sob o qual o canal foi submetido, um dos programas com envios mais constantes no canal era O Povo Fala, um formato inovador e inspirado no conhecido “fala povo”, utilizado no rádio, vídeos curtos com depoimentos de transeuntes da Avenida Paulista, falando sobre si mesmos e suas impressões da cidade de São Paulo. Programas curtos como O Povo Fala são comuns no canal.

A respeito dos canais associados ao canal principal da TV Cultura, é onde encontramos a maior complexidade na topografia desse dispositivo. Ao todo, são 23 canais, que levam os nomes dos principais programas que compõem a grade da emissora. Isso significa que os conteúdos foram segmentados e o trânsito dos espectadores/usuários interessados nos programas específicos da TV Cultura também foi hiperespecializado, permitindo que esses conteúdos sejam gerenciados de forma independente em perfis próprios, com identidade particular.

Como resultado disso, alguns dos canais apresentam a mesma quantidade, e em alguns casos superam o número de inscritos e visualizações em seus vídeos do que o canal oficial da emissora (Table 4), como os canais do programa Roda Viva, com 1.320.000 inscritos em 2021 e 1.610.000 inscritos em 2022; e o Quintal da Cultura, com 1.630.000 inscritos em 2021 e 1.780.000 inscritos em 2022. Esse tipo de segmentação da programação da emissora em seu processo de plataformização é uma lógica de organização comum a televisões brasileiras comerciais que estão presentes no YouTube, como o SBT e a Band.

Tabela 4 Canais da TV Cultura no YouTube 

A aba “Comunidade” parece ter sido inutilizada pelo canal, em 2021, sendo que a última postagem no mural do canal data de um ano antes dessa pesquisa (25 de maio de 2020), com um engajamento baixo de 188 curtidas e oito comentários. No entanto, não houve muitas tentativas de postagens anteriores a essa, o que sinaliza que, àquela época, a estratégia foi abandonada antes de ter sua competência atestada. Em 2022, constatamos o acionamento da aba “Comunidade”, com um engajamento ainda relativamente baixo na última postagens (98 curtidas e dois comentários), porém com uma atualização relativamente mais constante.

Reitera-se que esse é um mecanismo de divulgação dos conteúdos do canal e de fomento do engajamento da audiência. Por essa razão, é que o presente estudo considera que não é uma medida benéfica para o canal ignorar as oportunidades de interação proporcionadas pela aba “Comunidade”. Ainda que indícios mais evidentes de engajamento, como números de curtidas, visualizações e comentários nos vídeos, possam, num primeiro momento, ser considerados como os mais motivadores para o acionamento desse recurso, trata-se, sobretudo, de um espaço que estabelece uma relação entre os espectadores do canal, por isso o uso do termo “Comunidade” parece ser ainda mais interessante a longo prazo, quando laços, em algum nível, podem vir a ser construídos ali.

As playlists do canal da TV Cultura, que totalizam 69, se organizam por programas, e em casos de programas com uma grande quantidade de conteúdo, por ano ou temporada. Também existem algumas playlists temáticas e ainda coletâneas de programas históricos da emissora, listas de curadoria, como um acervo. Todavia, muitas dessas listas não contém uma descrição, ou ainda, quando existe, essa descrição não é compatível com o conteúdo dos vídeos ou clara o suficiente, o que dificulta muito a identificação, acesso e busca da audiência pelo o que assistir.

O problema é que esses processos em ambientes de streaming precisam ser fluídos e dinâmicos, com o menor risco do encontro com percalços, para que a audiência possa exercer sua espectação com autonomia e controle. Assim, como a grade de programação é estruturante na experiência do broadcasting, a organização do catálogo é uma das características vitais das plataformas de video on demand. Fica evidenciado que tão importante quanto o tipo de conteúdo que é inserido na plataforma é a maneira como isso é feito, e se ele é sinalizado de maneira adequada para que seja “encontrado” pelo público que tem interesse nele. Assim, cabe, então, à emissora intermediar esse processo.

Para uma melhor compreensão de como se dá a atuação da emissora pública TV Cultura na plataforma YouTube, foram analisadas as 10 playlists (ver Table 5) mais assistidas do canal, verificando as seguintes categorias: “independência”, “universalidade”, “pluralidade”, “diferenciação” e “plataformização”2. Sendo estas categorias submetidas aos mesmos indicadores em forma de perguntas aos quais foram as playlists do canal da TV Brasil.

Tabela 5 Playlists da TV Cultura mais assistidas no YouTube 

A respeito da categoria “independência” enquanto princípio da radiodifusão pública sendo observada por meio da atuação da TV Cultura no YouTube, percebe-se que não há indícios de restrição a certos programas, assuntos, ou um uso político-partidário - explícito - do espaço ocupado pela emissora na plataforma.

O canal demonstra relativa autonomia e o posicionamento da emissora TV Cultura enquanto entidade pública é sutil, mas está presente. Ao assistir os vídeos do canal há uma janela de texto notificando que a TV Cultura é uma emissora dirigida pela Fundação Padre Anchieta e que os conteúdos disponibilizados são completamente ou parcialmente financiados pelo governo do estado de São Paulo. Isso não quer dizer que não haja interferência entre a fonte de financiamento e a emissora, apenas que isto não foi identificável a partir da análise do canal.

A partir do princípio da “universalidade”, observando as playlists selecionadas, percebe-se um estado de equilíbrio entre os tipos de programas vinculados - formatos, gêneros, temas, faixa etária do público, e a periodicidade com a qual são liberados na plataforma. O acesso à plataforma e a todos os conteúdos presentes no canal são gratuitos. A organização do canal é facilitada tanto pelo fato de existirem canais específicos para os programas que possuem mais conteúdos, quanto pela catalogação em poucas playlists.

O maior desafio permanece sendo a administração de todos esses canais de forma a gerar trânsito dos espectadores e engajamento no conteúdo de todos eles, mas sem dúvidas os processos de manejo, organização e atualização dos conteúdos quando estes são segmentados e hiperespecializados facilita muito a integração da emissora de televisão à realidade de uma plataforma digital.

Na categoria “pluralidade”, percebe-se que existe uma grande diversidade nos programas identificados no canal da TV Cultura, programas de entrevistas, reality shows, séries documentais, programas de viagens, apresentações musicais, dentre outros formatos. Também foram identificados alguns conteúdos destinados a um público de geografia específica, a exemplo de campeonatos esportivos locais, como o Parazão 2021, campeonato desportivo do estado do Pará, no norte do Brasil.

Esses programas são direcionados a nichos de audiência que podem não interessar às emissoras comerciais, por exemplo, mas garantem que a programação da TV Pública comunique e interesse ao maior número de pessoas possível e permite que ela também seja um espaço de transformação da linguagem televisiva e valorize a questão da regionalização, para que ela seja mais democrática e inclusiva.

Também se observou a presença de programas com temáticas pouco comuns em produções televisivas brasileiras, como o programa Retratos da Fé, uma série documental que trata sobre religião e fé no contexto da sociedade brasileira a partir do olhar de diferentes religiões, e o programa Campos em Ação que se dedica a exibir e fazer conhecer ao espectador a produção cinematográfica universitária. Em ambos os casos as temáticas abordadas por esses conteúdos são de grande relevância social e cultural e obtiveram uma boa resposta de audiência na plataforma.

Destarte, algumas lacunas são percebidas no caso da TV Cultura: a inexistência de conteúdos voltados à acessibilidade multissensorial, uma centralidade exacerbada de conteúdos de temática paulista, o que não seria um problema se houvessem mais programas voltados a outras regiões específicas do país, uma vez que, apesar da projeção nacional, se trata de uma emissora de natureza local.

A despeito disso, a programação infantil da TV Cultura sempre foi um grande destaque de sua atuação no broadcasting, a exemplo de obras como Castelo Rá-Tim-Bum e Cocoricó, e isso permaneceu em sua atuação nas plataformas digitais. Como efeito disso, o canal da emissora especializado para o público infantil, chamado Quintal da Cultura, tem mais inscritos e uma maior quantidade de produções originais para a plataforma YouTube do que o seu canal principal. Diversos programas disponibilizados pela emissora TV Cultura em seu canal são de formatos originais, que inspiraram programas em outras emissoras ou que não possuem pares nas mesmas, são exemplos disso: Talentos, um reality show de uma competição para revelar talentos do teatro musical no Brasil, e Giro com William Corrêa, programa em que personalidades brasileiras são entrevistadas enquanto andam de carro pela cidade.

Portanto, o aspecto da “diferenciação”, categoria de análise que diz respeito a autenticidade na atuação da emissora de TV Pública, parece ser um aspecto levado em consideração não apenas na seleção dos programas e conteúdos inseridos no catálogo da emissora na plataforma, mas também no processo de criação e produção destes. Dessa forma, fica evidenciada a dependência entre as etapas produtivas da televisão, seja ela no modelo broadcasting ou streaming, uma vez que esse princípio precisa ser garantido antes da circulação do conteúdo.

E, finalmente, a respeito da “plataformização”, quando analisamos a atuação da TV Cultura no YouTube percebemos um desequilíbrio na utilização dos recursos oferecidos pela plataforma. Enquanto existe uma lógica clara em como o canal se organiza em canais e playlists, evitando o acúmulo de conteúdo e facilitando o trânsito dos espectadores, essas medidas deveriam possibilitar um manejo mais criterioso dos conteúdos, principalmente das playlists, mas isso ainda acontece de maneira tímida. Muitas playlists não possuem descrição, algumas contém apenas as chamadas dos programas, sem conteúdo na íntegra ou pelo menos com trechos significativos.

A produção de conteúdo original já esteve mais efervescente, com programas como Cultura nas Maldivas, mas atualmente envios desse tipo são bem limitados, sendo que a maioria deles segue um formato de live ou vlogs, fórmulas já desgastadas por sua reprodução em massa, sobretudo no período de pandemia da COVID-19.

Ademais, não há um procedimento claro em como o conteúdo da emissora TV Cultura é oferecido na plataforma, não há capa em todos os vídeos, os títulos das playlists seguem padrões de formatação variados, bem como as descrições dos conteúdos. Quanto à identidade visual do canal, essa segue as mesmas especificações da emissora broadcasting, mesma logotipo e cores, o que ajuda a estabelecer o vínculo de pertencimento entre a emissora e o canal da plataforma.

A partir dos resultados dessas análises, tanto da TV Cultura quanto da TV Brasil, partimos, com o aporte da tétrade dos efeitos midiáticos propostas em Laws of Media: The New Science, articuladas por Marshall McLuhan e Eric McLuhan (1988), para uma reflexão - exposta, a seguir, em nossas conclusões - a respeito das transformações promovidas pelo contato da tecnologia das plataformas de streaming, que possibilita a existência e a relação dos serviços de video on demand com a sociedade e como essas mudanças tecnológicas afetam a televisão enquanto meio e linguagem.

6. Conclusões

Antes de refletir sob os efeitos gerados a partir das plataformas digitais de streaming, deve-se observar que duas premissas são essenciais para a compreensão da epistemologia dos meios eletrônicos elaborada por McLuhan (1964/2000): a primeira é de que “nos convertemos no que contemplamos” e a segunda, é de que “criamos nossas ferramentas, e logo, elas nos modelam”. É com base nessas premissas que McLuhan examinou duas grandes revoluções tecnológicas que impulsionam transformações estéticas, culturais e sociais: a invenção da imprensa no século XV e as novas aplicações da eletricidade: o telégrafo, o telefone, a televisão, o rádio e o computador (Del Bianco, 2005). Os desdobramentos desta última revolução tecnológica, dada pela intercessão da televisão e do mundo digital (computadores), é o que nos interessa nesta presente reflexão. As implicações dessas duas premissas é de que a tecnologia cria uma ambiente por onde o humano transita, noção muito pertinente à lógica das plataformas digitais. O conceito de ambiente se traduz na atmosfera, ou seja, em algo invisível e intangível, mas que, no entanto, é atuante na atividade humana a ponto de contribuir para produzir estilos de vida, produção e consumo.

Esse ambiente é uma espécie de segunda natureza que forma o próprio ser humano e molda seus padrões e modos de perceber o mundo a partir da interação com o dispositivo e suas mensagens. Por intermédio dessa relação, os meios tornaram-se “extensões do homem” como se fossem prolongamentos do corpo, capazes de estimular os sentidos e que condicionam mudanças em nosso comportamento enquanto indivíduos e sociedade (McLuhan, como citado em Del Bianco, 2005, p. 154).

Nesse sentido, as plataformas de streaming, a exemplo doYouTube, envolvem as pessoas num sistema nervoso de circulação e produção de conteúdos e possibilidade de interação em tempo real; ou mesmo quando cria um ambiente de cumplicidade e intimidade com a comunicação afetiva do vlogger. Os efeitos da plataforma não estariam, portanto, na sua programação, assim como no caso da televisão e do rádio.

“O efeito de um meio se torna mais forte e intenso justamente porque o seu conteúdo é um outro meio” (McLuhan, 1964/2000, p. 33). Isso traduz a ideia de que o elemento fundamental para a compreensão dos efeitos sociais das plataformas reside na natureza mesma desse meio, nas suas características específicas, de estrutura e funcionamento que acabam por moldar seu conteúdo. O que mais interessa não é o que está na plataforma de streaming, mas o fato de existir e transformar a sociedade (Del Bianco, 2005, p. 155).

Dessa forma, por meio das perguntas propostas por McLuhan e MacLuhan (1988) para verificar os impactos de uma nova tecnologia na sociedade, a Table 6 foi construída na tentativa de imprimir uma representação das transformações ocasionadas pelas plataformas.

Tabela 6 Tétrade dos efeitos midiáticos aplicada a plataforma de streaming de vídeo 

Em considerável medida, podemos dizer que a plataforma de streaming de vídeo destacou-se em relação à televisão tradicional (broadcasting) por aperfeiçoar uma condição que já era possibilitada pelos aparelhos de videocassete e, posteriormente, pelos leitores de DVD nos domicílios, situações em que o espectador tem controle sobre a escolha do que assistir, quando e como fazer isso. No universo das plataformas, todos esses processos são facilitados por dispositivos mais rápidos, interfaces dinâmicas, catálogos muito maiores, conteúdos originais, além do potencial relacional e interativo do digital.

A condição de espectação limitada ao fluxo programado habitual na realidade broadcasting, também é rompida pelo meio das plataformas. As locadoras de vídeo físicas tornaram-se obsoletas, na exceção de localidades sem acesso à internet ou que sofrem de precariedade desse serviço. A indústria criminosa da pirataria também perde a sua força, surgem as questões de segurança das informações dos usuários, senhas de contas e assinaturas de acesso às plataformas. O modo de produção do streaming possibilita o resgate de formatos televisivos, como as sitcoms, as séries documentais, que haviam perdido espaço nas programações das emissoras televisivas. Devido à necessidade de constante expansão do catálogo, aumentando muito a demanda por conteúdo, é comum a inserção de produções antigas, fomentando a construção de espaços de memória para produções televisivas importantes.

Produções inviabilizadas pela televisão tradicional, geralmente por questões orçamentárias ou de queda de audiência, têm seus direitos de produção e distribuição comprados por plataformas, o que expande as possibilidades do mercado televisivo e audiovisual. Além da promoção da interatividade por meio do caráter relacional das plataformas digitais, que estabelecem um canal comunicação direta entre a audiência e o produtor de conteúdo.

Em último grau, as plataformas revertem na hipersegmentação do conteúdo, padronizando as produções a partir de fórmulas e inviabilizando produções com linguagens experimentais e de formatos inovadores. A hiperespecialização da audiência restringe a liberdade do espectador, porque uma vez que seu perfil é traçado pelo algoritmo da plataforma, ser introduzido ou receber ofertas de conteúdos que estejam de alguma forma dissociados das suas escolhas de consumo anteriores fica cada vez mais difícil.

A dispersão social também pode ser um efeito revertido, em algumas plataformas de streaming, como a Netflix, os conteúdos costumam ser disponibilizados por completo de uma única vez. Essa estratégia possibilita o que é chamado de binge-watching, termo utilizado para definir o hábito de assistir em sequência todos os episódios de uma série ou filmes de uma franquia, por exemplo, também conhecido como “maratonar”. Tal hábito pode causar dispersão de seus afazeres cotidianos, fazendo com o que o espectador assista os seus conteúdos na escola ou no trabalho, e até mesmo engatilhar comportamentos obsessivos e patológicos, como a dependência3.

McLuhan (1964/2000) entendia que todo meio novo trata, num primeiro momento, de um meio híbrido, que integra os meios precedentes e se refere a eles. É possível que essa perspectiva seja a mais adequada para entender os efeitos do meio plataforma de video on demand sob o meio que o precede, a televisão. O próprio termo “hibridização” foi criado na década de 60 para caracterizar as mudanças provocadas pela grande penetrabilidade da televisão, que absorvia elementos do rádio, do teatro e do cinema. Muitos anos depois, esse conceito permanece atual e oferece uma oportunidade especialmente favorável à observação dos componentes e das propriedades estruturais da dinâmica do processo em curso (Del Bianco, 2005) como, por exemplo, a plataformização da televisão.

McLuhan (1964/2000, p. 75), também pontua que a hibridização libera grande energia, como por fissão ou fusão (o meio antigo e o novo meio se separam após a colisão - os meios se unem para formar um novo meio), o que constitui o momento de verdade e revelação, do qual nasce a forma nova.

O momento do encontro dos meios é um momento de liberdade, e libertação do entorpecimento e do transe que ele impõe aos nossos sentidos. De forma que neste momento, não podemos determinar com precisão o futuro da televisão enquanto meio após seu encontro de hibridização com a plataforma de streaming, pode-se apenas assegurar que a linguagem televisiva e, certamente, parte do que caracteriza esse meio será perpetuado, seja qual for o resultado desse encontro. Por esse conceito é possível entender hoje que as mutações emergentes pela plataformização desencadeiam um realinhamento do sistema de comunicação, não apenas do setor televisivo, abrindo caminho para a convergência de processos e práticas, como pode ser observado também no contexto das emissoras de rádio (Pinheiro, 2019). Nesse ambiente de modificações e reciclagens das ecologias da comunicação, onde uma forma não subsiste sem a outra, é que estão sendo forjadas na contemporaneidade as bases do processo de convergência entre novos e velhos meios (Del Bianco, 2005). Assim como se abrem os caminhos de permanência da linguagem televisiva que resiste e sobrevive à mudança das eras, transmigrando por meios, dispositivos e cenários sociais.

Com a televisão, enquanto meio e linguagem, caminhando a passos largos em direção à sua completa digitalização, uma boa adaptação a esses processos pode significar a sobrevivência - ou não - de emissoras televisivas. No caso das emissoras estudadas neste trabalho, e provavelmente de outras emissoras públicas, a plataformização representa mais oportunidade de atualização dos modos de produção e da comunicação que elas estabelecem com seu público, isto é, com cidadãos e cidadãs. Ademais, as plataformas oferecem, em alguma medida, novas possibilidades para a sustentabilidade e (maior) legitimação sociais das televisões públicas, no sentido de torna-las mais presentes/relevantes, à medida em que passam a participar de parte tão importante da vida contemporânea, os ambientes sociodigitais.

A isso soma-se que, a partir da atuação nas plataformas digitais, as emissoras de televisão podem alcançar novas audiências (sobretudo de pessoas mais jovens); fortalecer a sua importância histórica, principalmente se tratando da TV Brasil e TV Cultura, que já desempenharam papéis muito importantes na história do Brasil, mas que precisam manter-se relevantes; e obter condições mais favoráveis para o cumprimento da missão, mandato e princípios da radiodifusão pública (Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura, 2001).

Por fim, este trabalho enseja que a plataformização das emissoras de televisão, especialmente as públicas, continue sendo estudada a partir de outras perspectivas; e a cartografia pode se mostrar uma boa ferramenta nesse sentido. Um grande desafio quando nos propomos a estudar plataformas on-line é o do acesso às informações ligadas diretamente ao funcionamento da plataforma, affordances, datificação, pesquisas de natureza quantitativa que trabalhem a partir desse tipo de dados podem chegar a resultados muito interessantes. A questão dos tensionamentos editoriais e enviesamentos da produção que podem ser causados pela lógica dos algorítimos e da datificação, aspectos inerentes às plataformas, também precisam ser ponderados e estudados de maneira mais específica.

Outrossim, a plataformização da mídia é um fenômeno global que atinge não apenas emissoras públicas de televisão, mas outros meios de comunicação estatais e comerciais, sendo que é preciso ressaltar aqui o caráter público que todos estes segmentos da mídia, o que oferece, portanto, muitas possibilidades de recortes de objeto de estudo para pesquisas futuras.

Agradecimentos

Investigação realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Distrito Federal - FAP/DF.

Referências

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Bucci, E., Chiaretti, M., & Fiorini, A. M. (2012). Indicadores de qualidade nas emissoras públicas - Uma avaliação contemporânea. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000216616Links ]

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1O presente artigo é uma versão revisada e atualizada de parte do trabalho monográfico intitulado: “A Atuação da Televisão Pública em Plataformas de Streaming: Uma Cartografia da TV Brasil e da TV Cultura no YouTube” (Martins, 2022), apresentada ao curso de graduação em comunicação social - audiovisual, da Universidade de Brasília, Brasil.

2A respeito das cinco dimensões da plataforma, propostas por Van Dijck (2013), este trabalho não as delimita enquanto categorias de análise diretas nos casos da TV Brasil e da TV Cultura, uma vez que estas se referem a questões como regulação, modelo de negócio, investimento e arquitetura da informação. Dimensões estas que podem servir para a continuidade de outras pesquisas correlatas, mais voltadas para a compreensão da estrutura do que do conteúdo da plataforma.

3Matéria jornalística fala sobre os malefícios do binge-watching para a indústria do audiovisual, especialmente as produções televisivas, e os danos causados à saúde mental dos espectadores (Coelho, 2016).

Recebido: 30 de Novembro de 2022; Revisado: 03 de Fevereiro de 2023; Aceito: 18 de Maio de 2023

Elton Bruno Pinheiro é professor e pesquisador permanente no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. É investigador visitante no Centro de Estudos em Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho. É pesquisador-líder do grupo de pesquisa Observatório da Radiodifusão Pública na América Latina (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/Universidade de Brasília) e pesquisador do Laboratório de Políticas de Comunicação - LaPCom (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/Universidade de Brasília). Email: eltonbruno@unb.br Morada: Campus Universitário Darcy Ribeiro - Instituto Central de Ciências Ala Norte. Sala ASS-615 (Subsolo). Brasília/DF, Brasil. CEP: 70.910-900

Paloma Ferreira Martins é bacharela em comunicação social - audiovisual, pela Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. Integra o grupo de pesquisa Observatório da Radiodifusão Pública na América Latina (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/Universidade de Brasília). Email: paloma.martins_16aud@fac.unb.br Morada: Campus Universitário Darcy Ribeiro, Instituto Central de Ciências Norte, Bloco A, 1º piso, sala A1-676/9, Brasília/DF, Brasil. CEP: 70.910-900

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