SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número10Lucia Marcucci: Poesia Visual Contra a Violência SocialA Banda Desenhada Como Ferramenta Para Investigação Sobre Violência de Género. Entrevista com Nayanika Mookherjee Sobre o Romance Gráfico Birangona. Para Testemunhos Éticos de Violência Sexual Durante Conflitos (2019) índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Vista. Revista de Cultura Visual

versão On-line ISSN 2184-1284

Vista  no.10 Braga dez. 2022  Epub 01-Maio-2023

https://doi.org/10.21814/vista.4132 

Secção Temática. Artigos

Descrição Densa e Análise Integrada de Artefactos Visuais Digitais: O Repertório Visual de #IrmãEuAcreditoEmTi

Patricia Prieto Blanco, Concetualização, curadoria dos dados, análise formal, aquisição de financiamento, investigação, metodologia, visualização, redação do rascunho original
http://orcid.org/0000-0001-6283-3129

Elisa García-Mingo, Concetualização, curadoria dos dados, investigação, metodologia, visualização, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0001-8448-1849

Silvia Díaz Fernández, Concetualização, metodologia, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-9118-8090

1Department of Sociology, Faculty of Arts and Social Sciences, Lancaster University, Lancaster, United Kingdom

2Facultad de Ciencias Políticas y Sociología, Universidad Complutense de Madrid, Madrid, Spain

3Departamento de Comunicación, Facultad de Humanidades, Comunicación y Documentación, Universidad Carlos III de Madrid, Madrid, Spain


Resumo:

Neste trabalho, exploramos a relação entre o afeto e o uso que ativistas feministas digitais fazem da estética para comunicar as suas ideias e protestar contra a violência sexual. Assim, o nosso foco incide sobre a cultura visual do protesto digital. Entendemos os artefactos visuais como um repertório visual de protesto (Jenzen et al., 2020, p. 420) que pode ser articulado num contexto local específico e, simultaneamente, ecoar sentimentos globais. Neste artigo, analisamos o repertório visual de protesto do ativismo digital feminista espanhol contra a violência sexual. Para tal, foram analisados 696 artefactos visuais associados ao hashtag #HermanaYoSíTeCreo (#IrmãEuAcreditoEmTi) partilhado no Twitter entre 1 de maio de 2018 e 31 de agosto de 2020. O nosso quadro metodológico incorpora uma análise triangular colaborativa baseada na semiótica social (Ledin & Machin, 2018; Van Leeuwen, 2005), na análise sócio-hermenêutica (Knoblauch & Schnettler, 2012; Serrano Pascual & Zurdo Alaguero, 2010), na etnografia hashtag (Bonilla & Rose, 2015) e na descrição densa interpretativa (Geertz, 1973, pp. 3–30). Desenvolvemos ainda uma sensibilidade etnográfica em relação ao corpus, o que nos envolveu num diálogo constante para superar a tendência positivista da análise visual digital a partir de dados.

Palavras-Chave: análise visual; afeto; protesto; etnografia hashtag; estudos feministas dos média

Abstract:

In this work, we explore the relationship between affect and the use of aesthetics by feminist digital activists to communicate their ideas and protest against sexual violence. Our focus, therefore, lies on the visual culture of digital protest. We consider visual artefacts a visual repertoire of protest (Jenzen et al., 2020, p. 420) that can both be articulated in a specific local context whilst simultaneously echoing global sentiments. In this paper, we analyse the visual repertoire of protest of Spanish feminist digital activism against sexual violence. To do so, we analysed 696 visual artefacts linked to the hashtag #HermanaYoSíTeCreo (#SisterIDoBelieveYou) shared on Twitter between May 1, 2018, and August 31, 2020. Our methodological framework incorporates a collaborative triangled analysis based on social semiotics (Ledin & Machin, 2018; Van Leeuwen, 2005), socio-hermeneutic analysis (Knoblauch & Schnettler, 2012; Serrano Pascual & Zurdo Alaguero, 2010), hashtag ethnography (Bonilla & Rose, 2015), and interpretative thick description (Geertz, 1973, pp. 3–30). Additionally, we also developed an ethnographic sensibility towards the corpus, which engaged us in a constant dialogue to overcome the positivist trend of data-driven visual digital analysis. Our work here addresses the understanding of how visual discourses can create the affective unification of social media users (Stage, 2013) as a key feature of feminist politics and online activism (Keller et al., 2018). We analysed the use of visual artefacts by the "virtual" community of sisterhood and concluded that these processes served as a basis for (a) establishing distinctive while versatile visual branding; (b) weaving an affective community; (c) articulating the desire to connect and to gather through love, hope, outrage and disgust; and (d) linking past and present as well as geographically distant feminist struggles.

Keywords: visual analysis; affect; protest; hashtag ethnography; feminist media studies

Abordagem da Complexidade Através da Epistemologia Feminista

Na madrugada de 7 de julho de 2016, em Pamplona, Espanha, cinco rapazes levaram uma jovem embriagada para o átrio de um edifício, violaram-na, fotografaram e filmaram o acontecimento. O caso ficou conhecido como "La Manada” (a matilha), o apelido que os cinco violadores usavam num grupo do WhatsApp para se gabarem do assédio sexual a mulheres e de outros comportamentos delinquentes. O caso suscitou um intenso escrutínio público, e o processo judicial recebeu ampla cobertura mediática desde o início e desencadeou uma autocrítica dos intervenientes em Espanha, incluindo juízes, políticos, intelectuais e ativistas. Em abril de 2018, o Tribunal Provincial de Navarra considerou os cinco agressores culpados por um crime menor de abuso sexual, alegando que a violação em grupo não tinha sido um ato de violência. Milhares de pessoas imediatamente sairam às ruas e aos espaços digitais para mostrar o seu apoio à vítima e a sua indignação contra o que consideravam justiça patriarcal. Durante meses, faixas, cartazes e cânticos encheram as ruas, e o Twitter foi inundado com hashtags como #HermanaYoSíTeCreo (#IrmãEuAcreditoEmTi) e #JusticiaPatriarcal (#JustiçaPatriarcal). O imenso protesto público chegou ao Parlamento Europeu e às Nações Unidas e motivou uma revisão do Código Penal espanhol. Após 1 ano, o Supremo Tribunal espanhol considerou os cinco agressores culpados de violação e condenou cada um a 15 anos de prisão. Em outubro de 2021, a Câmara dos Comuns votou a favor da Lei de Garantia Integral da Liberdade Sexual, conhecida coloquialmente como a lei "sim-é-sim”.

Os artefactos visuais digitais em análise são em si complexos. Foram partilhados com textos (hashtags e outros), muitas imagens também continham texto (na sua maioria hashtags), muitos são bastante semelhantes, muitos são repetições, todos eles partilhados publicamente, alguns são vestígios de demonstrações offline e alguns foram concebidos especificamente para protestos virtuais. Estes processos coletivos de remixagem e convergência geraram visualizações, imaginações e olhares que se tornaram comuns e foram partilhados por uma comunidade "virtual" de irmandade, ampliando o próprio movimento social e apoiando a emergência de públicos afetivos (Papacharissi, 2015).

A partilha de imagens e a reação às mesmas são ações essenciais e simples nas redes sociais. Tanto a partilha como a reação mobilizam afeto, dando assim origem a identidades afetivas e significados partilhados (Nikunen, 2019; Wetherell, 2012). De facto, o ato de partilhar imagens online assemelha-se muito ao que Assmann e Czaplicka (1995) designaram como "concretização da identidade" (p. 128). Este processo consiste numa organização e objetivação da memória quotidiana que permite a um grupo reproduzir a sua identidade (Assmann & Czaplicka, 1995) recorrendo a objetos (por exemplo, cartazes, faixas, publicações nas redes sociais). A memória comunicativa e o quadro de memória (Erinnerungsrahmen) materializam-se em objetos comunicativos e impulsos formativos e normativos resultam deste processo. Por outras palavras, após um processo de concretização da identidade, os membros de um grupo detêm um conhecimento tácito que lhes permite participar em ações comuns. Acreditamos que os objetos comunicativos representam recipientes de memória e de afeto, que podem ser dinamizados enquanto o objeto é encontrado e incorporado, inserido e compreendido afetivamente, tal como aqueles proporcionados por utilizadores do Twitter em torno do #HermanaYoSíTeCreo.

Para explicar a complexidade dos artefactos visuais ligados ao #HermanaYoSíTeCreo desenvolvemos uma sensibilidade etnográfica em relação ao corpus, que pragmaticamente falando, implicou trabalhar através do diálogo e da repetição, e incorporar um processo constante de autorreflexão sobre os posicionamentos e formas de realização das investigadoras. Esta abordagem de investigação assenta em princípios feministas de exploração e disrupção dos modos habituais de produção de conhecimento, sobretudo (a) situando o conhecimento através de um lugar, corpo e poder (Collins, 1990; Haraway, 1988; Harding, 1993; Hekman, 1997); (b) reconhecendo e permitindo a presença da incerteza da experiência durante o processo de investigação (Bell & Bell, 2012; Squire, 1995); (c) alternando contextualização e especificidade na análise (Bach, 2007); e (d) permitindo que nos percamos nos dados (Lather, 2007).

Importa referir que enquanto Elisa viveu o estudo de caso pessoalmente e experienciou em primeira mão multidões de protestos tanto digitais como analógicos, e Silvia conseguiu acompanhar o fim do movimento quando regressou a Espanha em 2019, Patricia observou todo o processo à distância no Reino Unido. Foi apenas através do diálogo com Elisa e Silvia que Patricia pôde também compreender estes artefactos visuais digitais como parte de práticas afetivas mais abrangentes (Wetherell, 2012) e como catalisadoras de um amplo processo de educação feminista das massas e transformação da sociedade através da nova lei "sim-é-sim". Este processo demonstra também os traços autobiográficos esclarecedores que nós, investigadoras, deixamos nas nossas investigações (Valles Martínez, 2009, p. 106) e destaca a necessidade de entender a investigação como um trabalho colaborativo em todas as suas fases. Acreditamos que o conhecimento intersubjetivo e tácito só é possível através da colaboração e do diálogo, necessários para superar a tendência positivista da análise visual digital a partir de dados. Neste sentido, o modo de trabalho colaborativo que propomos inclui uma cuidadosa atenção e integração de mal-entendidos e falhas de comunicação mútuas, uma vez que estas dão frequentemente origem a uma produtiva "verbalização e transformação da experiência implícita como e em conhecimento explícito" (Loenhoff, 2011, p. 62). A abordagem colaborativa dos 696 artefactos visuais permitiu também considerar as regras implícitas dos códigos percetuais, representacionais e epistemológicos (Serrano Pascual & Zurdo Alaguero, 2010, p. 222) presentes na atual cultura audiovisual do feminismo hashtag em Espanha, bem como do emergente machismo hashtag.

A nossa operacionalização do afeto parte de uma definição funcional de afeto como o social, o material e o psicológico, envolvidos numa força que atinge altos e baixos (Ahmed, 2004). Tenta ser transversal na medida em que entendemos o afeto como uma força que existe tanto em relação a um contexto sociocultural como independentemente dele. Incorpora atenção a práticas afetivas (Wetherell, 2012) e a atmosferas afetivas (Anderson, 2009). As práticas afetivas referem-se à forma como as emoções e os afetos influenciam a ação política enquanto reconhecem o papel das normas culturais, das estruturas sociais e da tecnologia na formação dessas práticas. É nas práticas afetivas que reside a primazia das emoções humanas e a chave para criar e manter um sentido de pertença coletiva. Considerando que as práticas afetivas emergem e se consolidam em formações sociotécnicas (ou sócio-materiais) concretas, é importante considerar os meios onde esses processos ocorrem. Assim, além de analisar tweets e artefactos digitais visuais, entrevistámos ativistas feministas envolvidas no protesto “La Manada”.

A nossa análise visual privilegiou ainda as condições contextuais da difusão e receção destas imagens. Numa outra fase, considerámos o potencial destas imagens para mobilizar afetos e deixar marcas profundas a nível individual e coletivo (Sontag, 2003). Nas redes sociais, serão ativados recursos específicos para que pessoas, agentes não humanos e discursos se reúnam e gerem sentimentos coletivos, através de corpos, imagens e textos portadores de uma carga afetiva (Nikunen et al., 2021, p. 169). Embora seja importante ter em conta os recursos específicos das plataformas de redes sociais, na medida em que estas ajudam à formação e continuidade das comunidades de prática — para o melhor e para o pior —, é fundamental abstrair as práticas afetivas das plataformas. A nossa investigação deve ser suficientemente específica e ampla para um contexto sócio-tecnológico em constante mudança (Lobinger & Schreiber, 2017, p. 17).

Ao privilegiar as condições contextuais da circulação de artefactos visuais digitais na nossa análise, visamos esclarecer o papel das práticas afetivas visuais na formação da pertença social e política. Para tal, partimos da investigação de Jenzen et al. (2020) sobre o valor cultural e simbólico dos processos comunicativos nas redes sociais. Trabalhar com o Twitter e a etnografia hashtag permitiu-nos olhar para uma linha temporal de objetivação de grupo, por assim dizer, para um registo de práticas afetivas visuais relacionadas com este processo. Além disso, ao analisar as condições sob as quais o feminismo hashtag do #HermanaYoSíTeCreo se desenvolveu (Kettrey et al., 2021), conseguimos demonstrar a eficácia deste movimento específico no desmantelamento de elementos-chave da misoginia em Espanha, revertendo sobretudo o paradigma da culpabilização da vítima. Acreditamos que as práticas de comunicação digital de protesto, como a que está associada ao #HermanaYoSíTeCreo, revelam memória em ação, resistência através do envolvimento ativo e a formação de um imaginário político concreto.

Análise Visual Colaborativa e Incorporada

Aqui, descrevemos uma análise visual colaborativa de 696 imagens digitais com base numa análise triangular que requer pelo menos dois investigadores: um que tenha incorporado a dimensão afetiva do fenómeno social em estudo; e um segundo investigador que não o tenha feito, mas que esteja familiarizado com o mesmo. Todas as 696 imagens digitais foram partilhadas no Twitter com o hashtag #HermanaYoSíTeCreo entre maio de 2018 e agosto de 2020. Esta tarefa foi acelerada pelo facto de, nesta altura do processo de investigação, já termos completado uma etnografia hashtag desse mesmo hashtag (García-Mingo & Prieto Blanco, 2021). Assim, retirámos manualmente as imagens e procedemos à sua análise utilizando uma combinação de ferramentas digitais e analógicas (e.g., Image Sorter), codificação por cores e colagem de fotos. Importa salientar que este trabalho pode ser interpretado como uma continuação do nosso anterior trabalho, pois foi apenas através do anterior envolvimento com o hashtag que conseguimos obter uma interpretação densa destas 696 imagens. Contudo, este trabalho destaca-se por si só na medida em que visa expandir a definição de etnografia hashtag proposta por Bonilla e Rose (2015), (a) argumentando a necessidade de analisar artefactos visuais digitais ligados a hashtags; (b) apelando à necessidade de realizar investigação qualitativa no terreno para aprofundar os conhecimentos adquiridos através da análise de artefactos textuais/visuais; (c) reconhecendo e traçando a nossa própria relação incorporada, inserida e afetiva com o objeto de estudo; e (d) exercendo e revelando o diálogo permanente, a crítica, a reflexão e a retrospeção que a investigação feminista exige.

Nas páginas seguintes, apresentaremos em primeiro lugar uma perspetiva geral dos dados, seguida de uma secção na qual aprofundaremos momentos concretos que galvanizaram uma intensidade afetiva reforçada — protestos relacionados com os casos Manresa e Arandina — e refletiremos sobre as razões pelas quais outros não o fizeram.

Imagens e Hashtags: Uma Dupla Bem Conseguida

O primeiro passo do nosso compromisso com os 696 artefactos visuais foi conhecê-los, analisando-os individual e sequencialmente. É importante notar que os resultados da nossa etnografia hashtag de #HermanaYoSíTeCreo estiveram sempre na nossa memória enquanto navegávamos incessantemente através das imagens. Em seguida, procedemos à organização das imagens conforme o seu conteúdo. Trabalhámos com categorias descritivas (ver Tabela 1 abaixo) e verificámos a relevância de (a) imagens de protestos offline; (b) aquilo a que chamámos media graffiti, ou seja, imagens criadas para serem partilhadas nas redes sociais como se fossem uma pintura em spray numa parede analógica; e (3) imagens a partir de lentes. Verificamos ainda o elevado número de repetições do retrato dos violadores, em que baseámos o nosso trabalho anterior (García-Mingo & Prieto Blanco, 2021). Associamos aqueles a ações sincronizadas de capacidade de resposta (Rentschler, 2014) e à frequente transformação de hashtags em peças de caligrafia esteticamente agradáveis, que acreditamos contribuir para a textura do hashtag e visa aumentar a propagação e visibilidade do hashtag.

Tabela 1 Categorização descritiva do conjunto de dados 

Todas as 696 imagens tinham sido identificadas com #HermanaYoSíTeCreo, mas à medida que as folheámos, reparámos que as próprias imagens apresentavam outros hashtags. Portanto, o nosso segundo passo foi encontrar todos os hashtags mencionados no conjunto de dados, anotar a frequência das menções e identificar eventuais repercussões. Não foi com surpresa que verificamos que #HermanaYoSíTeCreo foi não só o hashtag mais destacado, mas também aquele com mais hashtags da família usados conjuntamente (234) e o relacionado com mais hashtags não pertencentes à família: #SiNoNosMatanNoNosCreeis (#SeNãoNosMatamNãoAcreditamEmNós) e as suas diversas variações: #JusticiaParaDiana (#JustiçaParaDiana); #cuentalo (#Conta; o equivalente espanhol de #MeToo); e #mirame (#OlhaParaMim). Contudo, fomos surpreendidas pela frequência com que o #FueViolacion (#FoiViolação) surgia ao lado de outro hashtag da mesma família, em média, 1,58 das vezes. Atribuímos o facto ao desenvolvimento dos protestos com o passar do tempo, incluindo as diferentes sentenças, e sobretudo, a ligação do caso “La Manada” a casos subsequentes de violação e abuso sexual em Espanha. A grande surpresa surgiu quando nos apercebemos da ausência de hashtags relacionados com o caso #LaManada (#AMatilha), porque isso não aconteceu na etnografia hashtag que realizámos anteriormente (García-Mingo & Prieto Blanco, 2021). Acreditamos que este facto se deve à linha temporal alargada deste conjunto de dados. A última descoberta significativa deste passo foi a constatação da força do feminismo em cada hashtag (exceto no #LaManada). Enquanto em #HermanaYoSíTeCreo e #FueViolacion, as palavras "feminismo" e "feminista" aparecem com parcimónia, no caso de #JusticiaPatriarcal, não só a sua presença aumentou, como também evoluiu para o hashtag #AlertaFeminista e o par "resposta feminista" (embora sem o #).

Comparado com os hashtags mais usados na semana de 21 de junho de 2018, período abrangido na nossa análise anterior (García-Mingo & Prieto Blanco, 2021), é possível perceber a persistência dos hashtags. Famílias de hashtags populares, mas atuais, como "La Manada fora da prisão", "La Manada livre, justiça desfeita", ou "carta da vítima" não estão presentes no conjunto de dados de imagem, enquanto as versáteis, "é violação, não é abuso" e "feminismo" ganham relevância. Curiosamente, a palavra “feminismo” aparece em 65 imagens, mas não foi usada como hashtag. Contudo, encontramos um novo hashtag relacionado, nomeadamente #AlertaFeminista. Como a nossa análise abaixo destacará, e à semelhança das conclusões do nosso trabalho anterior (García-Mingo & Prieto Blanco, 2021), acreditamos que esta é uma prova não só da crescente sofisticação e diversificação do movimento mas também do carácter durável da unificação afetiva alcançada através da harmoniosa — e muitas vezes sincronizada — série de protestos offline e online. Por outras palavras, o conjunto de imagens (Tabela 2) revela um sentimento de pertença que ultrapassa as efervescências coletivas em torno de questões temáticas e exibe a formação de uma consciência feminista socialmente difundida que entende a violência contra as mulheres como um problema sistémico.

Tabela 2 Comparação de conjuntos de dados imediatos e a médio prazo  

A ampla presença de hashtags no conjunto de dados de imagem evidencia a profunda ligação entre os protestos offline e online. Quando incorporados em imagens, as possibilidades intrínsecas dos hashtags são anuladas à medida que se tornam ilegíveis pelos algoritmos das redes sociais. No entanto, é-lhes concedida uma funcionalidade diferente, nomeadamente a ligação entre as áreas de atividade offline e online e a fusão de protestos e manifestantes em ambos os domínios. Outra funcionalidade que se refere à ligação através da diferença é a diversidade linguística das imagens, que inclui textos em castelhano, basco, galego, catalão, inglês, asturiano, espanhol latino-americano e árabe. Na próxima secção, exploraremos como essas conexões foram estabelecidas ao longo do tempo e como acreditamos que a sua persistência demonstra a resistência do #HermanaYoSíTeCreo como hashtag e movimento social.

Acreditar na Sobrevivente/Vítima: Uma Ação Performativa Modular, Mas Integrada

Cerca de três quartos das imagens partilhadas online foram imagens a partir de lentes, incluindo fotografias (364), fotografias com texto sobreposto (80), capturas de ecrã (35) e cartazes com conteúdo fotográfico (29). A natureza probatória dos artefactos visuais partilhados no Twitter é ainda reforçada pelo número total de fotografias de protestos offline, designadamente 289 (41,5%), que apresentam sobretudo pessoas a protestar nas ruas, seguidas de faixas e cartazes. Existem também fotografias tiradas em eventos realizados em recintos fechados, tais como três imagens relacionadas com a peça de teatro Jauria, criada a partir das transcrições do tribunal do caso “La Manada”, que estreou em abril de 2019. Outro evento em recinto fechado que gerou muitas fotografias partilhadas foi o encontro do Partido Comunista espanhol durante a feira anual em Almeria, que se realiza sempre no final de agosto. Na edição de 2018, os hashtags #HermanaYoSíTeCreo e #NoEsNo (#NãoÉNão) foram transformados em slogans que decoram uma moldura fotográfica roxa com o logótipo do partido político.

Foi nesta fase inicial do movimento, de junho a setembro de 2018, que o roxo se tornou a principal estratégia do "[p]urposeful visual branding" (imagem de marca intencional; Jenzen et al., 2020, p. 420) do ativismo visual relacionado com os protestos de “La Manada”. Enquanto 93 imagens apresentam, completa ou predominantemente, a cor roxa, muitas outras contêm elementos roxos, tais como faixas e cartazes, que evidenciam a prevalência do roxo online e offline. Além disso, outro grupo considerável de imagens apresenta cores próximas do roxo, como o magenta, rosa e fúcsia em diferentes tonalidades. Enquanto as Figura 1 e Figura 2 oferecem uma visão geral e uma ilustração da prevalência da cor roxa e das cores próximas em todo o conjunto de dados, a Figura 3 (e, em menor escala, a Figura 4) fornece provas da importância crescente do roxo ao longo do tempo, que atinge o seu pico em julho de 2019 (caso Manresa) e novamente em dezembro de 2019 (caso Arandina).

Nota. Imagens retiradas de https://twitter.com/hashtag/HermanaYoS%C3%ADTeCreo entre 1 de maio e 31 de agosto de 2020

Figura 1 Os 696 artefactos visuais identificados com #HermanaYoSíTeCreo (#IrmãEuAcreditoEmTi) no Twitter entre maio de 2018 e agosto de 2020 e organizados por cor  

Nota. Traduções da esquerda para a direita na linha superior: “acalma-te irmã, aqui está a tua matilha”; “#IrmãEuAcreditoEmTi”, “#SeNãoNosMatamNãoAcreditamEmNós”; “11 de julho, 21:00 Colunas: não foram ataques sexistas! Praça dos touros → praça do castelo”; “foi violação. A manada, condenada”; “eu acredito em ti”. Traduções da esquerda para a direita na linha inferior: “#IrmãEuAcreditoEmTi”; “campanha contra o TSJCyL sobre o caso Arandina: TSJCyL protege o violador, condena a menor"; "parem a cultura da violação"; "queremos estar vivas". Imagens retiradas de https://twitter.com/hashtag/HermanaYoS%C3%ADTeCreo entre 1 de maio e 31 de agosto de 2020

Figura 2 Amostra representativa da prevalência do roxo no conjunto de dados  

Nota. Tradução da esquerda para a direita: “26/04/18 primeira sentença”; “21/06/18 saída da prisão”; “27/07/18 carta da vítima"; "5/12/18 TSJ confirma o abuso"; "03/19 trabalhadoras dos morangos”; “21/06/19 sentença de violação”; “8/7/19 Manresa”; “11/19 sentença Manresa”; “12/19 Arandina”; “03/20 nova lei”; “03/21 Rocio Carrasco”. Imagens retiradas de https://twitter.com/hashtag/HermanaYoS%C3%ADTeCreo entre 1 de maio e 31 de agosto de 2020

Figura 3 Fotografias dos protesto offline identificadas com #HermanaYoSíTeCreo no Twitter entre maio de 2018 e agosto de 2020 

Nota. Tradução da esquerda para a direita: “26/04/18 primeira sentença”; “21/06/18 saída da prisão”; “27/07/18 carta da vítima"; "5/12/18 TSJ confirma o abuso"; "03/19 trabalhadoras dos morangos”; “21/06/19 sentença de violação”; “8/7/19 Manresa”; “11/19 sentença Manresa”; “12/19 Arandina”; “03/20 nova lei”; “03/21 Rocio Carrasco”. Imagens retiradas de https://twitter.com/hashtag/HermanaYoS%C3%ADTeCreo entre 1 de maio e 31 de agosto de 2020

Figura 4 Cartazes de protesto identificados com #HermanaYoSíTeCreo no Twitter do DATES  

Para além da cor, a presença do punho feminista é bastante expressiva (presente em 128 imagens; Figura 5), mas argumentamos que não pode ser considerado um símbolo inconfundível dos protestos #HermanaYoSíTeCreo porque (a) a sua utilização não foi generalizada nem suficientemente consistente; (b) a sua utilização mais frequente está ligada a logótipos de organizações feministas, e (c) partilhou as atenções com outros símbolos como a mão estendida e um triângulo formado com as duas mãos no ar.

Nota. Traduções da esquerda para a direita: "eu acredito em ti"; "Assembleia Feminista de Aranda"; "#IrmãEuAcreditoEmTi"; "sexta-feira, 21 de junho às 10 da manhã. Concentração na Cidade da Justiça: nós acreditamos em ti! Estamos fartas da justiça patriarcal! Apelo: Movimento Feminista de Valência". Imagens retiradas de https://twitter.com/hashtag/HermanaYoS%C3%ADTeCreo entre 1 de maio e 31 de agosto de 2020

Figura 5 Amostra representativa da presença de diferentes símbolos de protesto no conjunto de dados  

Acreditamos que a variedade de símbolos de protesto encontrados no conjunto de dados atende ao facto de que a principal forma de protesto não foram atos estéticos, políticos, mas atos performativos de apoio e confiança na vítima (García-Mingo & Prieto Blanco, 2021, p. 11). Os atos foram realizados de forma individual e coerente, muitas vezes em sincronia. Portanto, ao contrário da análise realizada por Jenzen et al. (2020), acreditamos que as repetições devem ser consideradas na nossa análise. Com isto, não nos referimos apenas a uma exploração de cores/tonalidades repetitivas, motivos e hashtags, proporcionando uma visão da estratégia de marca do movimento, mas sim um olhar atento a essas imagens repetidas, muitas vezes com pequenas ou nenhumas modificações.

Ao voltarmos a nossa atenção para o uso repetido de imagens, particularmente aquelas apenas ligeiramente alteradas e partilhadas novamente, identificamos conjuntos de artefactos que encapsulam questões particularmente significativas para o momento #HermanaYoSíTeCreo com um certo estatuto na comunidade. A figura abaixo (Figura 6) apresenta as imagens mais repetidas com algumas alterações. Ou seja, outras imagens foram repetidas com mais frequência, mas sem alterações. Por que razão salientamos a alteração? Porque intervir na imagem sinaliza um maior investimento do que simplesmente partilhá-la. Por vezes, como nas imagens nas duas primeiras colunas (do lado esquerdo), também pode sinalizar uma maior literacia digital. Mais importante ainda, as ligeiras alterações nestas duas imagens dos perpetradores permitem uma maior contextualização e acrescentam apelos concretos à ação que não podem ser separados do visual. Por exemplo, ao colar a imagem de um dos juízes com os retratos dos cinco violadores, a ligação entre eles torna-se vinculativa; da mesma forma que o abraço fraterno emerge como um ato feminista indiscutível quando colado com o punho feminista. Assim, sugerimos que estas ligeiras alterações de texto-visuais contribuam para a sofisticação do repertório visual do #HermanaYoSíTeCreo, e para a ampliação do âmbito do movimento. Além disso, a imensa repetição de imagens e hashtags pode ser interpretada como uma tentativa de tornar visível o alcance, a força e a coesão dos protestos. Este último ponto torna-se mais claro quando consideramos cartazes de protesto, fotografias de protesto e artefactos digitais.

Nota. Traduções da primeira coluna: "foi violação"; "eu também vou espalhar a fotografia dos 5 homens que violaram uma rapariga em São Firmino. Principalmente porque eles pediram para não ser publicada, e como eles não percebem um 'não', eu também não". Traduções da segunda coluna: "enquanto, a La Manada exige respeito pela sua privacidade e que os seus nomes e caras não sejam disseminadas nas redes sociais. Seria uma pena se esta imagem virasse viral, não seria?"; "#Violadores. La Manada: com os nomes e apelidos, violadores em grupo, covardes #TuNãoEstásSozinha". Traduções da terceira e quarta coluna: "#SeNãoNosMatamNãoAcreditamEmNós, #IrmãEuAcreditoEmTi". Traduções da quinta coluna: "na cultura de violação: se não nos matam, não acreditam em nós". Traduções da sexta coluna: "eu acredito em ti". Imagens retiradas de https://twitter.com/hashtag/HermanaYoS%C3%ADTeCreo entre 1 de maio e 31 de agosto de 2020

Figura 6 Imagens mais repetidas com ligeiras variações no conjunto de dados 

É revelador o número de imagens que retratam os corpos indexados existentes, revertendo uma observação anterior das comunidades virtuais. Na comunidade que aqui abordamos, os corpos não são deixados para trás à la Howard Rheingold. Pelo contrário, são mostrados com muita frequência. A frequência do ato de partilhar, gostar e republicar estas fotografias dos protestos de rua permite ativar a possibilidade de indexação, transferindo uma espécie de agência para as imagens a partir da qual as pessoas começam a tratá-las "como se estivessem vivas" (Lehmuskallio, 2012, p. 164). As fotografias fazem a ponte entre o espaço "entre o visível e o invisível" (Edwards, 1997, pp. 58–59), comunicando de forma expressiva, levando o observador para fora da moldura e revelando o que não foi visualizado na imagem. A força probatória do índice reconhece e valida as experiências retratadas e partilhadas, enquanto a partilha frequente atribui valor e significado temporário e contextual às imagens, que efetivamente se convertem numa forma de moeda afetiva (Ahmed, 2004). A força afetiva das fotografias dos protestos de rua, de pessoas que se reúnem para se fazerem ouvir, reside na sua frequência e semelhança. Funcionam a um nível fático à medida que evidenciam, reforçam e mantêm relações sociais (Rose, 2014, p. 12). Assim, sugerimos aqui que o carácter indexado da fotografia demonstra não só a presença, mas também medeia a presença (a reunião física e a reunião digital) e estabelece uma forma ética de olhar primeiro descrita por Azoulay (2005) como o contrato civil da fotografia, ou seja, como um acordo para representar e olhar em conjunto.

"O contrato civil de fotografia não é um contrato específico feito com um fotógrafo específico, mas a expressão de um acordo sobre certas regras entre os utilizadores de fotografia, e a relação desses utilizadores com a câmara" (Azoulay, 2005, p. 43). Confiar que as fotografias sejam provas do que "estava lá" é o resultado deste acordo. Deve ser aplicado ao nível da receção também pelo envolvimento, passando "da posição do destinatário para a posição do remetente, levando-o ainda mais longe, transformando-o no foco de uma emergência, num sinal de perigo ou aviso, transformando-o numa mensagem de emergência" (Azoulay, 2005, p. 44). Trata-se de despertar e mobilizar um olhar de solidariedade construído a partir e em torno de uma comunidade que está consciente e usa a sua capacidade política para responsabilizar alguém. Infelizmente, a celebração de tal contrato civil não se limita ao ativismo feminista. Pelo contrário, como explicado abaixo, tornar-se parcial ao olhar para imagens de #HermanaYoSíTeCreo também engloba olhares heteropatriarcais reacionários e pode ter levado à apropriação do hashtag (talvez falemos de espoliação forçada já que os seus métodos e pontos históricos de referência reproduzem lógicas coloniais de opressão).

De qualquer forma, toda e qualquer fotografia partilhada com #HermanaYoSíTeCreo é um ato de parcialidade, escolhendo lados, acreditando no que aconteceu e transformando esta convicção em algo visível, disseminável, e mesmo tangível até certo ponto. Partindo desta perspetiva, as imagens que não derivam de lentes, tais como desenhos e caligrafia, também obedecem ao contrato civil da fotografia. Como observa Azoulay (2012), a par das fotografias existentes, algumas desapareceram, algumas não foram tiradas, algumas não podem ser mostradas, e algumas permanecem invisíveis, mas são vistas. Sugerimos que a maioria das imagens partilhadas com #HermanaYoSíTeCreo contrariam as imagens invisíveis segundo o paradigma da culpabilização da vítima presente na memória coletiva da sociedade espanhola. Afirmamos isto porque temos observado ênfase na imagem de pessoas na rua, faixas e cartazes, e uma forte tendência para representar os perpetradores e não a vítima.

A seguir às fotografias dos protestos de rua, o segundo artefacto visual mais comum identificado com #HermanaYoSíTeCreo no Twitter são os cartazes de protesto (77 de um total de 696). Quando os colocámos numa linha temporal (ver Figura 3 e Figura 4), os discursos associados a práticas afetivas começaram a tornar-se visíveis, bem como o seu alcance.

Os primeiros cartazes apresentam referências à condenação da sentença de abuso ("não é abuso, é agressão”), ao início do processo de recuperação de “La Manada” como símbolo de irmandade feminista e de apoio (#Estaesnuestramanada [#Estaéanossamanada]); e à violência de género sistémica no sistema judicial espanhol, tal como, "justicia española" (justiça espanhola), "(in)justicia" ([in]justiça), #justiciapatriarcal. A condenação da misoginia sistémica no sistema judicial consolida-se e sofistica-se ao longo do tempo com o #justiciapatriarcal o #bastayadejusticiapatriarcal (#BastadeJustiçaPatriarcal) surgindo em mais cartazes e faixas (como mostra a Figura 3), além do cântico "se eles não me matarem, vocês não vão acreditar em mim", e, num passo tardio, incorporando o racismo sistémico à condenação das instituições patriarcais (por exemplo, #justiciaracista [#JustiçaRacista], "patriarcado e capital, aliança colonial”).

Apesar dos protestos para condenar a violência sexual sofrida por trabalhadoras temporárias na apanha do morango no sul de Espanha terem ocorrido já em março de 2019, a expansão de #HermanaYoSíTeCreo à opressão colonial e capitalista só se materializou numa ação coletiva maciça e sincronizada de confiança e apoio em dezembro de 2 0 19. Houve alguns protestos de rua em março de 2019, mas protestos alargados e intensivos condenando a violência sexual a que estas trabalhadoras temporárias sofreram só aconteceram 6 meses depois (como mostrado na Figura 3).

Contextualizando, protestos de rua massivos contra a sentença do caso Arandina só aconteceram 9 dias após a sentença ter sido tornada pública, e as reverberações digitais são as mais fortes que observamos, embora seguidas imediatamente do caso Manresa, que também viram mobilização offline e online acontecer muito rapidamente. É de notar que tanto o caso Manresa como o caso Arandina envolveram crianças (14 e 16 anos, respetivamente), enquanto as trabalhadoras temporárias na apanha do morango eram todas adultas. Mais importante ainda, este último caso exigiu uma extensão do quadro da irmandade e confiança na vítima para incluir a violência sexual no trabalho e para reconhecer as mulheres racializadas como irmãs.

Além disso, o uso da cor introduziu uma diferença clara entre as questões das trabalhadoras temporárias na apanha do morango e outros casos de violência sexual (Manresa, Arandina, Pozoblanco, "o violador és tu"). A maioria dos cartazes de protesto partilhados relacionados com os primeiros casos eram cor-de-rosa em vez de roxo (provavelmente para se assemelharem à cor dos morangos); no entanto, os mais partilhados sobre os últimos casos eram predominantemente roxos (ver Figura 7 abaixo).

Nota. Tradução da esquerda para a direita: "8/7/19 Manresa"; "11/19 sentença Manresa"; "12/19 Arandina"; "03/20 nova lei"; "03/21 RocioCarrasco". Imagens retiradas de https://twitter.com/hashtag/HermanaYoS%C3%ADTeCreo entre 1 de maio e 31 de agosto de 2020

Figura 7 Cartazes de protesto para os casos de Manresa e Arandina e das trabalhadoras temporárias na apanha do morango  

Curiosamente, enquanto os protestos para apoiar as trabalhadoras temporárias na apanha do morango se galvanizavam, as fitas roxas nas varandas e automóveis tornaram-se mais tarde símbolos de apoio contra a violência sexual em Espanha, no entanto, quando se trata de violência sexual no trabalho, há pouco espaço para o roxo. O caso anterior de #JusticiaParaDiana no Equador é um exemplo disso (ver Figura 8). Assim, por muito que nos custe levantar esta questão quando nos envolvemos criticamente com os artefactos visuais, torna-se claro que houve menos pressão social e coesão quando #HermanaYoSíTeCreo foi mobilizado contra o racismo e a exploração laboral, para além da violência sexual. Por outras palavras, a atmosfera afetiva de #HermanaYoSíTeCreo não estava preparada para incorporar o discurso do anticolonialismo no seu repertório visual.

Nota. "Junta-te ao Twitazo 14h00: o abuso sexual ocorre através do exercício de relações de poder, tais como no local de trabalho. É isso mesmo! Violência! #IrmãEuAcreditoEmTi #MSPSançãoParaAgressor #JustiçaParaDiana. Audiência, sexta-feira, 27 de abril de 2018, às 15h00 em Quito". Imagem retiradas de https://twitter.com/hashtag/HermanaYoS%C3%ADTeCreo entre 1 de maio e 31 de agosto de 2020

Figura 8 Cartaz de protesto online e offline sobre #JustiçaParaDiana 2018 

Considerações Finais

#HermanaYoSíTeCreo reverberou através de corpos físicos e digitais, mentes e máquinas durante anos (Kunstman, 2012), evidenciando assim uma clara perseverança e determinação em denunciar a violência sistémica de género em Espanha, bem como uma crescente resiliência, força e alcance do feminismo no estado espanhol. Contudo, infelizmente, o ativismo hashtag não se limita ao feminismo, e as práticas comunicativas usadas pelo movimento #HermanaYoSíTeCreo para precipitar uma memória comunicativa e um quadro de memória podem ser — têm sido e são — usadas para fomentar a misoginia, desacreditar a comunidade feminista e estabelecer práticas afetivas de ódio. No nosso conjunto de dados, encontramos exemplos iniciais da apropriação do #HermanaYoSíTeCreo por um movimento antifeminista. Símbolos-chave de protesto e ações online do movimento feminista foram redirecionadas para fomentar práticas afetivas de ódio e desprezo (ver Figura 9). As imagens resultantes espalham raiva, ressentimento e ódio a par da ideologia do antifeminismo.

Nota. Traduções da esquerda para a direita na linha superior: "puta feminazi"; "além disso, se nos vendem que aos 8 anos são responsáveis para ''mudar de sexo'' e para receber palestras de educação sexual (lixo que encoraja a promiscuidade), também são responsáveis para dar consentimento aos 15, quase 16 anos"; "se o teu namorado controla o teu telemóvel, conta: há uma saída para a violência baseada no género". Traduções da esquerda para a direita na linha inferior: "excepto nas baleares e outros municípios do Podemos: as raparigas não são tocadas, violadas ou mortas"; "irmã, eu acredito em ti. Irmã, provas, não fé". Imagens retiradas de https://twitter.com/hashtag/HermanaYoS%C3%ADTeCreo entre 1 de maio e 31 de agosto de 2020

Figura 9 Imagens identificadas com #HermanaYoSíTeCreo confirmam o trabalho ideológico do movimento antifeminista. Note-se a apresentação do roxo, do hashtag original, e do feminismo, bem como referências claras ao partido político de esquerda Podemos 

A atual investigação de García-Mingo et al. (2022) explora o funcionamento interno da manosfera espanhola, um crescente movimento antifeminista online que luta pelo reconhecimento dos direitos dos homens e nega a existência da violência de género. No seu trabalho empírico, jovens homens espanhóis referiram frequentemente “aquelas do #HermanaYoSíTeCreo" de uma forma claramente depreciativa, em parte porque acreditam firmemente que a violência de género é uma invenção ideológica, um embuste.

Este trabalho para desacreditar e desprezar o #HermanaYoSíTeCreo também suavizou ou despolitizou o movimento, traduzindo-se numa mudança na marca visual, principalmente através da cor. A força feminista associada ao roxo escuro suaviza-se em tons mais claros de roxo e rosa, e a caligrafia assume maior importância (Figura 10). Chamamos este processo de instagramação para assinalar a prevalência da estética sobre o resto.

Nota. Traduções da esquerda para a direita na linha superior: "não foi abuso, foi violação"; "foi violação, a matilha, condenada"; "foi violação". Traduções da esquerda para a direita na linha inferior: "foi violação (a matilha finalmente condenada)"; "foi violação". Imagens retiradas de https://twitter.com/hashtag/HermanaYoS%C3%ADTeCreo entre 1 de maio e 31 de agosto de 2020

Figura 10 Amostra ilustrativa da instagramação do #HermanaYoSíTeCreo  

Em suma, os hashtags são facilmente apropriados, e #HermanaYoSíTeCreo não é exceção. As práticas afetivas são poderosas na promoção de um sentido de identidade coletiva e pertença, mas podem ser usadas para qualquer trabalho ideológico. O mesmo comentário pode ser feito sobre as infraestruturas das redes sociais. É importante notar que as políticas pouco rigorosas da maioria das plataformas, que assentam essencialmente na comunicação individual e em evitar à priori a restrição de qualquer expressão, não estão a servir as necessidades de um espaço público seguro e equilibrado. Embora seja difícil imaginar pessoas a sufocar com amor e fraternidade, o ódio e o abuso online têm consequências muito reais e significativas.

Agradecimentos

Queremos agradecer ao Centre for Transforming Sexualities and Gender da Universidade de Brighton; e à rede de pesquisa Transformative Bildlichkeit da DFG: Zum Spannungfeld von Bild und Gesellschaft (Imagens transformativas: Campos controversos de imagem e sociedade; https://bild-netzwerk.net/) por proporcionar uma plataforma de colaboração e visitas de estudo de curta duração.

REFERÊNCIAS

Ahmed, S. (2004). Affective economies. Social Text, 22(2), 117-139. https://muse.jhu.edu/article/55780Links ]

Anderson, B. (2009). Affective atmospheres. Emotion, Space and Society, 2(2), 77-81. https://doi.org/10.1016/j.emospa.2009.08.005 [ Links ]

Assmann, J., & Czaplicka, J. (1995). Collective memory and cultural identity. New German Critique, (65), 125-133. https://doi.org/10.2307/488538 [ Links ]

Azoulay, A. (2005). The ethics of the spectator: The citizenry of photography. Afterimage, 32(2), 38-44. https://www.proquest.com/scholarly-journals/ethic-spectator-citizenry-photography/docview/212110881/se-2Links ]

Azoulay, A. (2012, March 29). Un-photographs (Keynote lecture). Photomedia 2012, Helsinki, Finland. https://blogs.aalto.fi/mediatutkimus/2012/02/16/the-keynote-lectures-in-helsinki-photomedia-conference-march-28-30-2012-aalto-arts/Links ]

Bach, H. (2007). Composing a visual narrative inquiry. In D. J. Clandinin (Ed.), Handbook of narrative inquiry: Mapping a methodology (pp. 280-307). SAGE Publications. [ Links ]

Bell, M. E., & Bell, S. E. (2012). What to do with all this "stuff"? Memory, family, and material objects. Storytelling, Self, Society: An Interdisciplinary Journal of Storytelling, 8(2), 63-84. https://doi.org/10.2307/41949178 [ Links ]

Bonilla, Y., & Rose, J. (2015). #Ferguson: Digital protest, hashtag ethnography, and the racial politics of social media in the United States. American Ethnologist, 42(1), 4-17. https://doi.org/10.1111/amet.12112 [ Links ]

Collins, P. H. (1990). Black feminist thought: Knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. Routledge [ Links ]

Edwards, E. (1997). Beyond the boundary: A consideration of the expressive in photography and anthropology. In M. Banks & H. Morphy (Eds.), Rethinking visual anthropology (pp. 53-80). Yale University Press. [ Links ]

García-Mingo, E., Díaz Fernández, S., & Tomás-Forte, S. (2022). (Re)configurando el imaginario sobre la violencia sexual desde el antifeminismo: El trabajo ideológico de la manosfera española. Política y Sociedad, 59(1), e80369. https://doi.org/10.5209/poso.80369 [ Links ]

García-Mingo, E., & Prieto Blanco, P. (2021). #SisterIdobelieveyou: Performative hashtags against patriarcal justice in Spain. Feminist Media Studies. Advance online publication. https://doi.org/10.1080/14680777.2021.1980079 [ Links ]

Geertz, C. (1973) The interpretation of cultures. Basic Books. [ Links ]

Haraway, D. (1988). Situated knowledges: The science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, 14(3), 575-599. https://doi.org/10.2307/3178066 [ Links ]

Harding, S. (1993). Rethinking standpoint epistemology: What is "strong objectivity"? In L. Alcoff & E. Potter (Eds.), Feminist epistemologies (pp. 49-82). Routledge. [ Links ]

Hekman, S. (1997). Truth and method: Feminist standpoint theory revisited. Signs, 22(2), 341-365. [ Links ]

Jenzen, O., Erhart, I., Eslen-Ziya, H., Korkut, U., & McGarry, A. (2020). The symbol of social media in contemporary protest: Twitter and the Gezi Park movement. Convergence, 27(2), 414-437. https://doi.org/10.1177/1354856520933747 [ Links ]

Keller, J., Mendes, K., & Ringrose, J. (2018). Speaking 'unspeakable things': Documenting digital feminist responses to rape culture. Journal of Gender Studies, 27(1), 22-36. https://doi.org/10.1080/09589236.2016.1211511 [ Links ]

Kettrey, H. H., Davis, A. J., & Liberman, J. (2021). "Consent is f#@king required": Hashtag feminism surrounding sexual consent in a culture of postfeminist contradictions. Social Media + Society, 7(4), 1-11. https://doi.org/10.1177/20563051211062915 [ Links ]

Knoblauch, H., & Schnettler, B. (2012). Videography: Analysing video data as a 'focused' ethnographic and hermeneutical exercise. Qualitative Research, 12(3), 334-356. https://doi.org/10.1177/1468794111436147 [ Links ]

Kunstman, A. (2012). Introduction: Affective fabrics of digital cultures. In A. Karatzogianni & A. Kunstman (Eds.), Digital cultures and the politics of emotion (pp. 1-20). Palgrave McMillan. [ Links ]

Lather, P. (2007). Getting lost: Feminist efforts toward a double(d) science. State University of New York Press. [ Links ]

Ledin, P., & Machin, D. (2018). Doing visual analysis: From theory to practice. SAGE Publications. [ Links ]

Lehmuskallio, A. T. (2012). Pictorial practices in a “cam era” - Studying non-professional camera use (Doctoral dissertation, University of Tampere). Trepo. https://trepo.tuni.fi/handle/10024/66918Links ]

Lobinger, K., & Schreiber, M. (2017). Photo sharing. In K. Lobinger (Ed.), Handbuch Visuelle Kommunikationsforschung (pp. 1-22). Springer VS. https://doi.org/10.1007/978-3-658-06738-0_19-1 [ Links ]

Loenhoff, J. (2011). Tacit knowledge in intercultural communication. Intercultural Communication Studies, XX(1), 57-64. [ Links ]

Nikunen, K. (2019). Media, emotions and affect. In J. Currand & D. Hesmondhalgh (Eds.), Media and society (pp. 323-340). Bloomsbury. https://doi.org/10.5040/9781501340765.ch-017 [ Links ]

Nikunen, K., Hokka, J., & Nelimarkka, M. (2021). Affective practice of soldiering: How sharing images is used to spread extremist and racist ethos on Soldiers of Odin Facebook site. Television & New Media, 22(2), 166-185. https://doi.org/10.1177/1527476420982235 [ Links ]

Papacharissi, Z. (2015). Affective publics and structures of storytelling: Sentiment, events and mediality. Information, Communication & Society, 19, 307-324. https://doi.org/10.1080/1369118X.2015.1109697 [ Links ]

Rentschler, C. (2014). Rape culture and the feminist politics of social media. Girlhood Studies, 7(1), 65-82. https://doi.org/10.3167/ghs.2014.070106 [ Links ]

Rose, G. (2014). Visual culture, photography and the urban: An interpretive framework. Space and Culture India, 2(3), 5-12. https:// doi.org/10.20896/saci.v2i3.92 [ Links ]

Serrano Pascual, A., & Zurdo Alaguero, A. (2010). Investigación social con materiales visuales. In M. Arroyo & I. Sadaba (Eds.), Metodología de la investigación social: Innovaciones y aplicaciones (pp. 217-250). Síntesis. [ Links ]

Sontag, S. (2003). Regarding the pain of others. Penguin Books. [ Links ]

Squire, C. (1995). From experience‐centered to socioculturally‐oriented approaches to narrative. In M. Andrews, C. Squire, & M. Tamboukou (Eds.), Doing narrative research (pp. 47-71). SAGE Publications. [ Links ]

Stage, C. (2013). The online crowd: A contradiction in terms? On the potentials of Gustave Le Bon's crowd psychology in an analysis of affective blogging. Distinktion: Scandinavian Journal of Social Theory, 14(2), 211-226. https://doi.org/10.1080/1600910X.2013.773261 [ Links ]

Valles Martínez, M. S. (2009). Metodología biográfica y experiencia migratoria: Actualidad del enfoque de los testimonios anónimos y de autor en el legado de Juan F. Marsal. Papers: Revista de Sociología, 91, 103-125. https://doi.org/10.5565/rev/papers/v91n0.724 [ Links ]

Van Leeuwen, T. (2005). Introducing social semiotics. Routledge. [ Links ]

Wetherell, M. (2012). Affect and emotion: A new social science understanding. SAGE Publications. [ Links ]

Recebido: 15 de Setembro de 2022; Revisado: 09 de Novembro de 2022; Aceito: 09 de Novembro de 2022

Tradução: Anabela Delgado

Patricia Prieto Blanco leciona prática dos média digitais no Departamento de Sociologia, Universidade de Lancaster. As suas áreas de especialização são métodos de pesquisa visual, práticas fotográficas e migração. É vice-presidente da Associação Europeia de Investigação em Comunicação e Educação em Culturas Visuais, faz parte do conselho da Associação Internacional de Sociologia Visual como conselheira tecnológica, e é cogestora do grupo Pesquisa Biográfica Narrativa do Curso de Vida da Associação de Sociologia da Irlanda. Participa atualmente na rede de pesquisa Deutsche Forschungsgemeinschaf "Transformative Bildlichkeit", bem como no projeto de pesquisa DIVISAR: Violência sexual online. Estudar a relação entre as tecnologias digitais e as práticas de violência sexual entre jovens espanhóis. Patricia defende a investigação interdisciplinar, assente na prática e colaborativa. Email: patriciaprietoblanco@gmail.com. Morada: Sociology, Bowland College, Lancaster University, Lancaster, United Kingdom, LA1 4YT

Elisa García-Mingo é professora associada de métodos de investigação social na Faculdade de Sociologia e Ciências Políticas, na Universidade Complutense de Madrid (Espanha). Concluiu o seu doutoramento em 2011 na Universidade de Deusto com uma dissertação intitulada “Ondas de Paz. O Ativismo das Mulheres Jornalistas Congolesas Contra a Violência Sexual". Foi bolseira visitante na Universidade Católica do Chile, Universidade McGill, Universidade de Brighton, Universidade de Aarhus. Pertence a um grupo de investigação sobre agressões sexuais e outro grupo de investigação sobre tecnoculturas e mutilações sociais na Universidade Complutense de Madrid. É membro associado do Centre for Transforming Sexualities and Gender da Universidade de Brighton. Email: elisgarc@ucm.es. Morada: Campus de Somosaguas, s/n, 28223 Pozuelo de Alarcón, Madrid, Spain

Silvia Díaz Fernández é bolseira Marie Sklodowska-Curie no Departamento de Comunicação da Universidade Carlos III de Madrid. Concluiu o seu doutoramento na Universidade de Coventry (2020) com uma tese que explora as culturas misóginas do campus. É investigadora visitante na Universidade Complutense de Madrid (2021). Integra a rede de investigação de intimidades pós-digitais. O seu trabalho atual envolve cultura digital, violência sexual e discriminação de género com base em algoritmos. Email: elisgarc@ucm.es. Morada: Facultad de Humanidades, Comunicación y Documentación, Calle Madrid, 126. 28903 Getafe (Madrid) España

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons