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Gazeta Médica

Print version ISSN 2183-8135On-line version ISSN 2184-0628

Gaz Med vol.9 no.3 Queluz Sept. 2022  Epub Sep 30, 2022

https://doi.org/10.29315/gm.v1i1.663 

Artigo de Perspetiva

Tecnologias e Brincadeiras: Uma Infância a Mudar?

Technologies and Play: A Childhood in Change?

Sofia Rocha Teixeira1 
http://orcid.org/0000-0001-6113-908X

Sandrine Dias1 

Ana Rita Sousa1 

Joana Gomes Amorim2 

1. Interna de Formação Específica de Medicina Geral e Familiar, USF Alpendorada, Portugal.

2. Interna de Formação Específica de Medicina Geral e Familiar, USF Vila Meã, Portugal.


Resumo

Brincar é a forma mais natural e espontânea de a criança se expressar e assume um papel relevante no desenvolvimento infantil. O boom tecnológico e digital que vem marcando posição nos últimos anos está a mudar o modo de brincar das crianças, substituindo o tempo ao ar livre por horas em frente a ecrãs - televisão, tablets, smartphones, computadores.

Como potenciais riscos do uso excessivo das tecnologias contam-se não só o sedentarismo, excesso de peso e obesidade, mas também o comprometimento do desenvolvimento cognitivo e intelectual, da linguagem e até das interações sociais e relações. Já as brincadeiras interpares promovem uma aprendizagem ativa, baseada na aquisição de competências de interação social e emocional.

A informação aos cuidadores das nossas crianças é essencial e as mais recentes orientações vão no sentido de limitar o tempo diário de uso de ecrãs, desaconselhando o seu uso a menores de 24 meses.

Embora as opiniões não sejam totalmente consensuais em relação ao impacto positivo ou negativo no desenvolvimento das crianças, as tecnologias acabam por estar naturalmente presentes nas suas vidas e nas suas brincadeiras. Nesse sentido, o ideal será um equilíbrio entre a utilização de dispositivos eletrónicos e as brincadeiras tradicionais. Tais resultados só poderão ser atingidos com a íntima colaboração do médico assistente não só com as famílias e encarregados de educação, professores e educadores, mas também com a própria criança, constituindo o tempo de consulta uma oportunidade para esclarecimento de riscos e promoção de hábitos de vida saudáveis, para um desenvolvimento pleno e uma infância feliz.

Palavras-chave: Aprendizagem; Criança; Desenvolvimento da Criança; Jogos e Brinquedos; Multimédia; Tempo de Ecrã

Abstract

Playing is the most natural and spontaneous way for children to express themselves. That plays an important role in child development. The technological and digital boom that has been taking hold in recent years is changing the way children play, replacing time outdoors with hours in front of screens - television, tablets, smartphones, computers.

Potential risks of excessive use of technologies include not only physical inactivity, overweight and obesity, but also impairment of cognitive and intellectual development, language and even social interactions and relationships. On the other hand, peer-play promotes active learning, based on the acquisition of social and emotional interaction skills.

Information for caregivers of our children is essential and the latest guidelines advise to limit the daily screen time, not recommending its use to children under 24 months.

Although opinions are not entirely consensual on the positive or negative impact on children's development, technologies are naturally present in their lives and in their play. Thus, the ideal will be a balance between the use of electronic devices and traditional games. Such results can only be achieved with the close collaboration of the family doctor, not only with the families and guardians, teachers and educators, but also with the child himself. The time with the doctor is an opportunity to clarify risks and promote healthy habits, for a full development and a happy childhood.

Keywords: Child; Child Development; Learning; Multimedia; Play and Playthings; Screen Time

“A tecnologia digital já mudou o mundo; agora, está a mudar a infância”.1

Brincar é a forma mais natural e espontânea de a criança se expressar.

Brincar é de tão grande importância para o desenvolvimento infantil que consta, enquanto Direito, na Convenção sobre os Direitos da Criança.2) Mas o paradigma das brincadeiras infantis não é estanque. As brincadeiras dos nossos avós eram diferentes das dos nossos pais e as dos nossos pais diferentes das nossas. E hoje em dia, qual é o paradigma das brincadeiras infantis?

O boom tecnológico e digital a que o Mundo assiste desde a entrada no século XXI não tem precedentes. Poderá, quiçá, ser equiparado à Revolução Industrial, em livros de História futuros, se estes ainda não tiverem sido definitivamente substituídos por um dispositivo eletrónico.

As crianças nunca poderiam ser excluídas deste novo mundo. E como tal, seria de esperar que incorporassem estas novas ferramentas nas suas brincadeiras. As atuais brincadeiras e ocupação dos tempos livres incluem cada vez mais ecrãs: durante a refeição, na sala de espera, na creche, no intervalo da escola.

A dúvida premente que tem vindo a afligir os pais e cuidadores das nossas crianças é: será demasiado?

A publicação “Situação Mundial da Infância 2017: as crianças no mundo digital”, apresenta o primeiro olhar abrangente da UNICEF sobre as diferentes formas como a tecnologia digital está a afetar a vida das crianças e as suas perspetivas de futuro, identificando não só oportunidades e benefícios, mas também potenciais perigos e malefícios.1

Estima-se que, em todo o mundo, um em cada três utilizadores da Internet seja uma criança e, ainda assim, um terço das crianças a nível mundial não estão online.1 Em Portugal, estima-se que 90% das crianças dos 0 aos 18 anos utilize novas tecnologias e que 69% tenha uma utilização diária superior a 1 hora e 30 minutos.3

Porém, e apesar desta forte presença infantil no meio digital, pouco tem sido feito para que os mais novos sejam protegidos dos seus perigos, de modo a tornar o seu acesso a conteúdos online mais seguro.1

O frenético desenvolvimento digital e tecnológico que vivemos nos últimos anos tem transformado não só os estilos de vida como também os locais laborais dos progenitores.3 Saíram do campo para o escritório e do escritório para casa. Também as crianças alteraram os seus locais preferenciais para brincar. Do campo, do quintal, da rua, do ar livre, passaram para atividades confinadas ao interior das habitações, espaços exíguos onde os dispositivos eletrónicos e ecrãs estão ao seu dispor.4

Quando é que poderemos olhar para a tecnologia como um potencial problema para a criança?

Está descrito por vários autores que a utilização excessiva de tecnologias condiciona um maior sedentarismo, excesso de peso e obesidade.5,6 Por outro lado, o aumento da atividade física não compensa o efeito nefasto do tempo de ecrã excessivo.7 No campo do desenvolvimento cognitivo e intelectual, o aumento do número de horas despendido com ecrãs - smartphones, tablets, computadores e televisão -, tem mostrado reduzir a qualidade das interações entre pais e filhos, bem como a aprendizagem de habilidades sociais, cognitivas e emocionais por parte das crianças.6 A interação social e física com as outras pessoas e com o meio envolvente vai sendo substituída silenciosamente pela interação máquina-indivíduo, prejudicando o desenvolvimento da criatividade, da linguagem e das relações.8

Uma exposição diária a ecrãs superior a 3 horas aumenta o risco de perturbações de sono e a exposição precoce (antes dos 2 anos de idade) pode aumentar o risco de problemas de atenção.9 Já as brincadeiras interpares promovem uma aprendizagem ativa, baseada na aquisição de competências de interação social e emocional.9

Assim sendo, em que sentido nós, profissionais de saúde, podemos atuar para evitar uma mudança tão brusca de paradigma?

A informação aos cuidadores das nossas crianças é essencial.

Em 2016 a American Academy of Pediatrics atualizou as guidelines relativas ao tempo diário de uso de ecrãs, desaconselhando o seu uso para crianças com menos de 24 meses de idade e limitando o seu uso a 1 hora por dia para as crianças com idades entre os 2 e os 5 anos, idealmente acompanhados pelos pais ou cuidadores.10 A Organização Mundial da Saúde publicou, em 2019, orientações em relação ao tempo que idealmente deverá ser dedicado à prática de atividade física, uso de ecrãs e número de horas de sono para crianças com idade inferior a 5 anos, desaconselhando o uso de ecrãs a crianças com idade inferior a 1 ano e restringindo a uma hora diária, no máximo, para as maiores de 2 anos.11)

Seria, então razoável olharmos para a tecnologia como um entrave ao desenvolvimento das nossas crianças?

O problema não será a tecnologia em si, mas sim o desequilíbrio na utilização da mesma.

As crianças devem ter acesso primariamente a atividades que lhes permitam desenvolver a criatividade, o raciocínio e as competências sociais. Só assim é que, posteriormente, poderão utilizar livremente os dispositivos eletrónicos sem que se tornem dependentes dos mesmos.

A UNICEF reconhece também potenciais benefícios do acesso à tecnologia, nomeadamente: aumentar o acesso das crianças à informação, desenvolver competências necessárias ao mercado de trabalho digital e proporcionar-lhes uma plataforma para se conectarem com o mundo e partilharem as suas ideias.2

Embora as opiniões não sejam completamente consensuais sobre o impacto positivo ou negativo no desenvolvimento das crianças, as tecnologias acabam por estar naturalmente presentes nas suas vidas e nas suas brincadeiras,4 influenciando o seu desenvolvimento.6 O ideal será sempre a criação de um equilíbrio entre a utilização de dispositivos eletrónicos e as brincadeiras tradicionais.

Tais resultados só poderão ser atingidos com a íntima colaboração do médico assistente com as famílias e encarregados de educação, professores e educadores e, naturalmente, com a própria criança.

O Médico de Família está numa posição privilegiada ao ser, por excelência, um prestador de cuidados longitudinais, continuados e envolvendo toda a família, desempenhando um papel fundamental na abordagem do abuso de tecnologias nas crianças e jovens. Em cada consulta de Saúde Infantil e Juvenil, os pais ou cuidadores, as crianças e os adolescentes devem ser sistematicamente esclarecidos acerca dos limites de uso diário dos dispositivos eletrónicos. Os hábitos de vida saudável deverão ser incutidos, com a inclusão de atividades ao ar livre partilhadas em família ou com outras crianças, sendo alternativas promotoras do desenvolvimento cognitivo, da linguagem e raciocínio, da motricidade e locomoção e aquisição de importantes competências sociais e humanas.

Vivemos na era tecnológica e o papel influenciador que ela tem na vida de adultos e crianças é inegável. Não obstante, como médicos cabe-nos a tarefa de fazermos a diferença diariamente na vida dos pais e das crianças, contribuindo para um equilíbrio conducente a um desenvolvimento saudável.

Referências

1. UNICEF - The state of the world’s children 2017. Children in a Digital World. [consultado 2022 agosto 15]. Disponível em: Disponível em: https://www.unicef.pt/media/1700/110-situacao-mundial-infancia-2017.pdf . [ Links ]

2. Declaração dos Direitos da Criança, Proclamada pela Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas n.º 1386 (XIV). 1959. [consultado 2022 agosto 15]. Disponível em: Disponível em: https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/ECidadania/Docs_referencia/declaracao_universal_direitos_crianca.pdf . [ Links ]

3. Faria HdC, Costa IP, Neto AS. Hábitos de Utilização das Novas Tecnologias em Crianças e Jovens: Habits of Use of New Technologies in Children and Young People. Gazeta Médica. 2018;5:270-6. [ Links ]

4. Mendes R, Neves L, Lourenço A, Diogo M. Portugal a Brincar. Relatório do brincar de crianças portuguesas até aos 10 anos. Instituto Politécnico de Coimbra - Escola Superior de Educação. Instituto de Apoio à Criança - Sector da Actividade Lúdica. Lisboa: Estrelas & Ouriços; 2018. [ Links ]

5. Robinson TN, Banda JA, Hale L, Lu AS, Fleming-Milici F, Calvert SL, et al. Screen Media Exposure and Obesity in Children and Adolescents. Pediatrics. 2017;140: S97-S101. doi: 10.1542/peds.2016-1758K. [ Links ]

6. Radesky JS, Christakis DA. Increased Screen Time: Implications for Early Childhood Development and Behavior. Pediatr Clin North Am. 2016;63:827-39. doi: 10.1016/j.pcl.2016.06.006. [ Links ]

7. Saunders TJ, Chaput JP, Tremblay MS. Sedentary behaviour as an emerging risk factor for cardiometabolic diseases in children and youth. Can J Diabetes. 2014;38:53-61. doi: 10.1016/j.jcjd.2013.08.266. [ Links ]

8. Skaug S, Englund N, Wichstrøm L. Young children's television viewing and the quality of their interactions with parents: A prospective community study. Scand J Psychol. 2018;59:503-10. doi: 10.1111/sjop.12467. [ Links ]

9. Yogman M, Garner A, Hutchinson J, Hirsh-Pasek K, Golinkoff RM. The Power of Play: A Pediatric Role in Enhancing Development in Young Children. Pediatrics. 2018;142: e20182058. doi: 10.1542/peds.2018-2058. [ Links ]

10. Hill D, Ameenuddin N, Reid-Chassiakos Y, Cross C, Radesky J, Hutchinson J, et al. American Academy of Pediatrics. Council of Communications and Media: Media and Young Minds. Pediatrics. 2016;138:e20162591. doi: 10.1542/peds.2016-2591. [ Links ]

11. World Health Organization. Guidelines on physical activity, sedentary behaviour and sleep for children under 5 years of age. 2019. [consultado 2022 agosto 15]. Disponível em: Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/311664 . [ Links ]

Contribuição Autoral/Authors Contribution

AT, SD, AS e JA: Autores principais. Escrita e revisão do estudo

AT, SD, AS and JA: Main authors. Writing and reviewing the study

Responsabilidades Éticas

Conflitos de Interesse: Os autores declaram não possuir conflitos de interesse.

Suporte Financeiro: O presente trabalho não foi suportado por nenhum subsídio ou bolsa.

Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

Ethical Disclosures

Conflicts of Interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financial Support: This work has not received any contribution grant or scholarship.

Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer reviewed.

Recebido: 18 de Agosto de 2022; Aceito: 22 de Agosto de 2022; : 14 de Setembro de 2022; Publicado: 30 de Setembro de 2022

Autor Correspondente/Corresponding Author: Sofia Rocha Teixeira [arsteixeira@arsnorte.min-saude.pt] Rua da Carreira n.º 430, 3º andar, 2ª habitação, 4435-145 Rio Tinto, Portugal

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