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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

versión impresa ISSN 2184-0458versión On-line ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.10 no.2 Braga dic. 2023  Epub 28-Feb-2024

https://doi.org/10.21814/rlec.4681 

Leituras

Coordenadas Partilhadas: A Escrita da Herstory na Banda Desenhada Ibero-Americana

iInvestigadora independente, Livorno, Itália


Resumo

Este estudo centra-se no surgimento de uma sororidade transnacional através de três projetos que resultam da cooperação entre grupos de autoras de banda desenhada em Espanha e na América Latina. Após a exposição “Presentes: Autoras de Tebeo de Ayer y de Hoy”, em 2016, e a publicação do seu catálogo pelo coletivo Autoras de Cómic, surgiu uma necessidade comum de reivindicar o papel da autoria feminina, ou não masculina, e o seu envolvimento na produção e no negócio da banda desenhada. Este esforço foi rapidamente assumido pelo grupo argentino Feminismo Gráfico que, em 2019, produziu “Nosotras Contamos”, uma exposição itinerante e um catálogo, com uma abordagem temática e diacrónica. Aquando da pandemia de COVID-19, as instituições de cooperação e desenvolvimento espanholas e argentinas (Agencia Española de Cooperación Internacional y Desarrollo e Centro Cultural España Córdoba) iniciaram um diálogo sobre as experiências anteriores. O projeto deu origem a uma publicação e a uma exposição online intitulada Coordenadas Gráficas, que destaca o trabalho de autores não masculinos de Espanha, da Argentina, do Chile e da Costa Rica. A perspetiva transnacional deste último projeto ultrapassa as experiências nacionais anteriores e, mais importante, inclui uma seleção de histórias de banda desenhada que, independentemente da nacionalidade da autora, podem ser definidas como feministas. Sexismo, discriminação de género, violência de género e direitos sexuais e reprodutivos são as coordenadas comuns discutidas por este grupo alargado de autoras, que questionam a normatividade de género desde a sua própria composição. Ao apresentar as experiências associativas que deram vida aos projetos e ao analisá-las num contexto internacional, o estudo centrar-se-á na prática adequada de partilha de conhecimentos para obter um reconhecimento semelhante. Além disso, através das palavras das curadoras e das criadoras, o estudo pretende, em última análise, lançar luz sobre a produção e a circulação de obras de interesse coletivo, destinadas a recuperar o papel das mulheres na história da banda desenhada.

Palavras-chave: coletivo feminista; exposição; herstory; genealogia; história da banda desenhada

Abstract

This study focuses on the emergence of a transnational sisterhood under three projects originating from the cooperation between groups of female comic book writers in Spain and Latin America. After the 2016 exhibition “Presentes: Autoras de Tebeo de Ayer y de Hoy” and the publication of its catalogue by Autoras de Cómic, there was a shared need to claim back the role of female or non-male authorship, and its involvement in comic book production and business. The Argentinian group Feminismo Gráfico tapped into such endeavors, and in 2019 produced “Nosotras Contamos”, a travelling exhibition and a catalogue, with a thematic and a diachronic approach. When COVID-19 broke out, Spanish and Argentinian cooperation and development institutions (Agencia Española de Cooperación Internacional y Desarrollo and Centro Cultural España Córdoba) engaged in a discussion on the previous experiences. The project resulted in a publication and an online exhibition Coordenadas Gráficas (Graphic Coordinates), highlighting the work of non-male authors from Spain, Argentina, Chile, and Costa Rica. The transnational perspective of this last project extends beyond the previous national experiences and includes a meaningful selection of comic stories that, regardless of the nationality of the author, can be defined as feminist. Sexism, gender discrimination, gender violence, and sexual and reproductive rights are the shared coordinates discussed by this long list of authors, who question gender normativity from its very composition. By introducing the associative experiences that gave life to the projects and analyzing them in the international context, the study will focus on the appropriate practice of sharing knowledge to pursue a similar recognition. Moreover, based on the words of the curators and the creators, the study ultimately seeks to shed light on the production and circulation of works of collective interest, meant to recover the role of women in the history of comics.

Keywords: feminist collective; exhibition; herstory; genealogy; history of comics

1. Introdução

Em espanhol, presentes é a forma plural de “presente”, uma palavra com vários significados que transmite - tal como a sua tradução literal em inglês e português - tanto o conceito de algo existente no momento em questão como o de algo que está à vista ou em consideração. É também um substantivo, que significa uma prenda. Com todas as suas nuances de significado, Presentes é o título escolhido pelo Colectivo de Autoras de Cómic para o seu primeiro e importante projeto1. Em novembro de 2016, a exposição homónima foi inaugurada na Real Academia de Espanha, em Roma, e, desde então, foi apresentada em dezenas de cidades, tanto na Europa como na América Latina. A exposição “Presentes. Autoras de Tebeo de Ayer y de Hoy” foi originalmente organizada e promovida pelo grupo acima referido com o apoio da Agencia Española de Cooperación Internacional y Desarrollo (AECID), tendo sido posteriormente desenvolvida num catálogo (Berrocal et al., 2016). Presentes é, acima de tudo, o primeiro de três projetos semelhantes que iremos explorar nesta análise: Nosotras Contamos (2019), do Feminismo Gráfico, um coletivo de autoras feministas argentinas, e Coordenadas Gráficas (2020), que reúne experiências europeias e latino-americanas.

2. A Abordagem Genealógica

As três experiências apresentam vários aspetos em comum: os projetos foram desenvolvidos por mulheres curadoras ou por coletivos de mulheres. Em segundo lugar, exploram tanto o domínio expositivo como o editorial e, por último, estão abertamente interligadas entre si. Considerando a importância do elemento histórico como “uma espécie de acidente histórico, um produto de uma situação histórica específica” (White, 1978, p. 29), os projetos partem, de facto, do reconhecimento de que a história da banda desenhada em Espanha e nos países da América Latina tem sido contada e feita exclusivamente por autores e leitores do sexo masculino. O primeiro objetivo do projeto era “destacar o papel das mulheres artistas de banda desenhada espanholas na indústria da banda desenhada” (Berrocal & McCausland, 2017, p. 135), e isso seria conseguido através de um ponto de vista orientado para o género combinado com uma abordagem genealógica. Esta última tem sido definida como o “exercício de recuperação da memória socio-histórica como método de investigação” (Restrepo, 2016, p. 23).

A abordagem genealógica é posta em prática na produção das exposições e dos catálogos e, no caso de Presentes, está patente na indicação temporal, de ayer y de hoy (ontem e hoje). Como refere Alejandra Meriles (2019):

partindo da recuperação da história individual, o Colectivo de Autoras de Cómic conseguiu mostrar a genealogia entre as mulheres artistas de banda desenhada que trabalharam e as que trabalham atualmente na indústria da banda desenhada. As ligações intergeracionais são expostas como uma rede constituída por 52 obras, estruturadas por estilo ou tema, pares semelhantes ou opostos. ( ... ) As obras não estão expostas nem de forma cronológica nem linear ( ... ). Embora os painéis desenhados ou escritos por mulheres tenham sido expostos juntamente com textos informativos, a relação entre estilo, linha ou tema que unia cada autora não seguiu qualquer cronologia. Foi a frequência e a linha de questionamento, a forma como as histórias e os enredos narrativos foram tratados e resolvidos graficamente, que uniu mulheres artistas de banda desenhada pertencentes a diferentes momentos da indústria de banda desenhada espanhola, agora deslocalizada e mundialmente presente. (p. 135)

Esta mesma perspetiva genealógica pode, naturalmente, ser rotulada como feminista, não só pelas virtudes emancipatórias do ato de procurar, selecionar e compilar (McCausland, 2016), mas principalmente porque é aplicada à desconstrução de uma história da banda desenhada centrada nos homens e contada por homens, onde a ausência de mulheres é manifesta (Acevedo, 2020). Neste contexto, as autoras que figuram na exposição e no catálogo de Presentes prestaram grandes contributos no passado, mas foram esquecidas pela história. São agora recuperadas por uma nova perspetiva feminista e, finalmente, é-lhes dada a oportunidade de entrelaçar relações artísticas, pois este é um “tempo de sororidade, um presente mediado por ventos feministas, uma promessa de um futuro mais justo, horizontal e participado” (McCausland, 2016, p. 39). Os coletivos responsáveis pelas três experiências referidas - o Colectivo Autoras de Cómic, fundado em Espanha em 2013, o Feminismo Gráfico, sediado na Argentina, e, por último, mas não menos importante, a colaboração transoceânica, informal e espontânea formada pelas curadoras Elisa McCausland e Mariela Acevedo - partilham o objetivo de reclamar espaço e tornar o seu trabalho visível, resgatando a presença autoral feminina do passado, “sobre os ombros das nossas ancestrais”(Miralles, 2014, p. 6).

3. Presentes

De acordo com as curadoras Elisa McCausland e Carla Berrocal, em comparação com outras exposições organizadas anteriormente pelo Colectivo de Autoras de Cómic2, a estrutura da exposição e do catálogo leva mais longe a abordagem genealógica, destacando relações entre as obras das autoras tanto ao nível do conteúdo como da forma. Através da utilização de diferentes símbolos e cores, as curadoras estabelecem ligações entre as autoras apresentadas, cujas relações se baseiam em cinco eixos temáticos principais, tal como descrito na introdução do catálogo por McCausland, que podemos traduzir por “o que um corpo pode fazer”; “brincar, crescer, sonhar”; “há outros mundos e todos eles estão dentro deste mundo”; “do quiosque à livraria”; “da livraria para a internet”. O catálogo inclui dois ensaios. O primeiro é da autoria de Antoni Guiral3, que assina uma breve história da presença feminina na história da banda desenhada ao longo do século XX, desde meados dos anos 1930 e a Guerra Civil, até ao chamado boom das revistas. Guiral tenta responder à pergunta que ele próprio coloca sobre a razão pela qual houve tão poucas autoras na história da banda desenhada espanhola e começa por admitir que “esta é uma indústria masculina, editada por homens, produzida por homens e dirigida a leitores homens”. O outro ensaio é assinado pela crítica espanhola Ana Merino4, que salienta o papel importante das autoras de banda desenhada underground no estabelecimento de novas tendências de introspeção feminista nos Estados Unidos, sublinhando a diferença entre esse movimento e o recente movimento latino-americano. As mulheres artistas parecem ter estado ausentes num mundo dominado pelos homens durante muito tempo; a genealogia feminista aplicada à história da banda desenhada ajuda as ativistas envolvidas a escrever e a desenhar uma herstory completamente nova. Como salienta McCausland (comunicação pessoal, 2023):

o que é importante na genealogia feminista é o processo que é em si mesmo inclusivo. Como afirma Patricia Mayayo em Genealogia Feminista del Arte Español [Mayayo, 2013], inspirada em Teresa Alario e Ana de Miguel, reconhecer a genealogia, entrar nela, significa desafiar um dos códigos culturais básicos: a tendência patriarcal para conceber cada obra, cada reivindicação de uma mulher como se viesse do vazio, como algo de absolutamente extraordinário. Um conceito muito mais apelativo.

4. Escrever Herstory

Consideramos incompleta uma história que tenha sido construída sobre marcas não perecíveis. (Lonzi, 1970, p. 16)

Esta frase está incluída no Manifesto di Rivolta Femminile (Manifesto da Revolta das Mulheres): neste panfleto, a autora feminista italiana Carla Lonzi (1970) refere-se à ausência das mulheres no sistema produtivo e no processo de criação de riqueza tangível, para mostrar que as tarefas tradicionalmente femininas, como limpar a casa, educar os filhos e cuidar de modo geral, são “movimentos feitos de ar”, ações perecíveis que não podem ser consideradas como um produto real, apesar de serem ao mesmo tempo essenciais para que a produção seja criada e se torne uma realidade. Passando para a história de uma produção artística específica, as experiências aqui analisadas partem de uma situação semelhante. Segundo Antoni Guiral, como a igualdade de género não foi promovida pela política até aos anos de transição (desde a morte de Franco até ao final dos anos 1980), a presença das mulheres no mercado de trabalho e, consequentemente, na indústria da banda desenhada, era fraca. A historiografia oficial da indústria da banda desenhada nos países de língua espanhola incluiu muito poucas mulheres. Além disso, como salientado por várias autoras (Autoras de Cómic, 2017), a ausência de menção dos papéis femininos fez com que, indiretamente, tenham sido incorretamente atribuídos méritos aos artistas masculinos cuja presença foi sempre documentada. No entanto, estudos recentes - como o realizado por Arantza Argudo Martínez (2020) - centraram-se na presença de mulheres artistas na produção espanhola de banda desenhada e tentaram “preencher o vazio e o silêncio perpetuados pela bibliografia dos estudos de arte e banda desenhada em relação ao trabalho de autoras neste campo” (p. 10). É quase impossível pensar em qualquer forma de expressão cultural que possa desenvolver-se de forma independente de um contexto político. Esta afirmação é ainda mais significativa nos contextos ibérico e latino-americano, que assistiram a duras repressões durante o tempo das ditaduras. Enquanto as feministas norte-americanas e francesas se começaram a reunir em torno das experiências de banda desenhada autoproduzida dos anos 19705, as artistas espanholas ainda viviam sob o franquismo. Foi num passado recente, com a eclosão da quarta vaga de feminismo, que foi fundado o Collectif des Créatrices de Bande Dessinée contre le Sexisme (https://bdegalite.org/) para manter viva a luta contra o sexismo e a desigualdade de género no século XXI. Este coletivo francês inspirou as autoras espanholas a fundar o Colectivo de Autoras de Cómic. Como bem refere o manifesto francês, o feminismo é “a luta pela igualdade de género; uma postura anti-sexista que queremos replicar no nosso meio porque queremos que a banda desenhada seja um espaço mais igualitário” (“Sobre el Colectivo Autoras de Cómic”, n.d.). A abordagem genealógica das obras analisadas lança assim luz sobre uma história incompleta da banda desenhada, uma história sem ou com muito poucas autoras no feminino. Para reescrever não apenas uma história contada, mas uma história questionada, o coletivo optou por recuperar os nomes que foram cancelados ou tornados invisíveis (Acevedo, 2020). A herstory da banda desenhada argentina, proposta pelo coletivo Feminismo Gráfico, é tanto ética como estética e concretiza-se na sua exposição e catálogo Nosotras Contamos, que se estrutura sobre os mesmos critérios diacrónicos e temáticos definidos anteriormente pela experiência espanhola Presentes. Mais uma vez, o coletivo recorre a um título inteligente e alusivo, ampliando as potencialidades da língua, uma vez que o verbo contar significa em espanhol tanto relatar como importar. Como explica Acevedo (comunicação pessoal, 9 de março de 2023):

Presentes foi uma obra muito inspiradora. ( ... ) Foi o modelo que seguimos: quisemos criar um diálogo entre autoras pertencentes a diferentes gerações, registando conteúdos, estados de espírito e nuances de cada época considerada, tendo em conta que este deve ser sempre um sistema aberto, pronto a ser reformulado e a ligar-se a outras formas. A atual explosão de autoras está em dívida com colegas de diferentes épocas, incluindo aquelas que ainda não constam do catálogo porque foram obscurecidas pela sombra dos pais, irmãos e maridos, que ficaram na história. ( ... ) Muitas mulheres ilustradoras ou argumentistas foram excluídas da história. As nossas genealogias querem tornar visíveis essas ausências, embora saibamos que nunca serão listas exaustivas.

Num contexto geográfico em que “as narrativas gráficas se tornaram um importante espaço artístico de resistência feminista” (Wrobel, 2023, p. 166), o catálogo do Feminismo Gráfico herda a experiência espanhola. O catálogo insiste na perspetiva da herstory com uma linha cronológica geral que abre o livro e uma organização temporal clara da produção esquecida de banda desenhada feminina, dividida em quatro capítulos que apresentam as protagonistas da herstory da banda desenhada como “las pioneras” (as pioneiras), “las okupas” (as ocupantes), “las fanzineras” (as zinesters). É impossível ignorar como esta experiência contribuiu para a construção de uma “territorialidade feminina, expressão cunhada pela autora espanhola Ana Merino ( ... ) que ajudou a promover uma consciência da genealogia, historicidade e interconetividade do campo” (Wrobel, 2023, p. 169). O catálogo fornece uma espécie de legenda feita de símbolos a que a curadora se refere como “pontos temáticos” (Acevedo et al., 2019, p. 9). Estes tornam-se fundamentais para ligar o trabalho das artistas mencionadas e para criar uma rede conceptual e um diálogo virtual, aprofundando o significado da sua presença não reconhecida na história da banda desenhada de olhar masculino. A promoção da construção de um ambiente anti-sexista leva à criação de um espaço onde as identidades de género não estereotipadas são incluídas. As autoras argentinas pertencentes ao coletivo Feminismo Gráfico, que promoveram Nosotras Contamos (novamente como exposição itinerante e catálogo), afirmam o seguinte:

mulher como categoria é demasiado restrita para incluir colegas que não se identificam apenas como mulheres, mas também como lésbicas, não binárias ou dissidentes. Utilizamos o termo as autoras não para definir um espaço fechado onde catalogar as obras das nossas colegas, mas como uma fronteira frágil que temos vindo a desenhar em conjunto. (Acevedo et al., 2019, p. 6)

5. Unir Forças

O passo seguinte foi óbvio: o Centro Cultural España-Córdoba6 promoveu um diálogo entre experiências espanholas e argentinas dedicadas à construção de genealogias de autoras de banda desenhada. Elisa McCausland e Mariela Acevedo, que tinham estado entre as curadoras das experiências anteriores, uniram forças e, juntamente com Paloma Domínguez Jería e Isabel Molina do Chile e Iris Lam da Costa Rica, criaram uma “iniciativa da herstory transnacional” (McCausland et al., 2020). Coordenadas Gráficas. Cuarenta Historietas de Autoras de España, Argentina, Chile y Costa Rica (Coordenadas gráficas. Quarenta tiras de banda desenhada de autoras de Espanha, Argentina, Chile e Costa Rica) é a experiência em que a sororidade entre autoras mulheres e LGBT representativas da banda desenhada se torna transnacionalmente real, bem como “a primeira investigação mais ampla da produção de banda desenhada feminina na América Latina a partir de uma perspetiva transnacional” (Wrobel, 2023, p. 169). O livro é um sinal de uma herstory ainda por contar e, mais importante ainda, representa um espaço onde as artistas de banda desenhada se podem encontrar e falar umas com as outras, definindo-se como uma grande comunidade, uma rede que se expande para além das fronteiras de género e geográficas, uma construção genealógica contínua. O caráter híbrido dos grupos de autores de banda desenhada individuais - institucionais, académicos, ativistas - não é um limite, mas sim um impulso para o desenvolvimento deste terceiro catálogo. Ao invés das experiências anteriores, entre as páginas de Coordenadas Gráficas são incluídas e mostradas na exposição virtual historietas (tiras de banda desenhada) mais longas. Aliás, juntamente com o perfil da autora, são apresentadas uma ou duas histórias curtas de banda desenhada. O catálogo está dividido em quatro partes que correspondem aos diferentes países, começando com um foco na história da banda desenhada nacional argentina. A abordagem é agora abertamente feminista, uma vez que as curadoras consideraram e afirmaram nos seus trabalhos anteriores a forma como a presença masculina na indústria da banda desenhada determinou a ausência das mulheres. Nas suas introduções às recompilações, palavras como “desvalorização”, “omissão”, “legitimação”, “revelação”, “patriarcado”, “misoginia”, “resistência”, “pluralidade” e “autorreconhecimento” revelam uma nova consciência partilhada (McCausland et al., 2020).

6. A Comunidade Como um Corpo que Aprende a Lutar

Quando comecei a promover o Colectivo de Autoras de Cómic, não fazia ideia, não me considerava feminista. Para mim, foi apenas uma forma de responder à omissão que sofremos enquanto mulheres artistas de banda desenhada. Mais tarde comecei a tomar consciência enquanto lésbica e feminista. (Berrocal, comunicação pessoal, 21 de fevereiro de 2023)

Outra importante contribuição no âmbito da relação entre a narrativa da banda desenhada e o feminismo pode ser encontrada nos trabalhos de Hilary Chute (2015). Chute está interessada na representação do corpo e em demonstrar “como os textos de banda desenhada modelam uma metodologia feminista na sua forma” (p. 200). Nas narrativas gráficas, a proliferação de corpos e, em geral, o processo de personificação de diferentes “eus” no espaço de uma única página e, por vezes, sobrepostos no tempo, marca uma prática narrativa feminista. Nas suas palavras, “a forma da banda desenhada toca de forma poderosa as ligações entre a escrita de vida e a teoria feminista” (Chute, 2015, p. 200). Se passarmos do espaço da página de uma banda desenhada autobiográfica para o de uma exposição - real ou virtual - que apresenta a existência e o trabalho de mulheres artistas de banda desenhada que foram recuperadas da historiografia oficial do meio, talvez seja mais fácil compreender como estas reconstruções genealógicas de herstories diferentes e interligadas ultrapassam o simples objetivo didático, para acabarem por gerar autoconhecimento e consciência coletiva. Partilhamos a definição de Sánchez (2023) da “banda desenhada como modelo do território latino-americano ( ... ) uma leitura que concebe a memória como uma exposição, ( ... ) uma representação de factos, corpos e verdades, estabilidade corporal da testemunha e das personagens da banda desenhada” (p. 150). De acordo com esta interpretação, as exposições e os catálogos - bem como a banda desenhada - podem ser vistos e lidos como faíscas de uma nova sororidade, um corpus ao qual os leitores ou os visitantes podem atribuir o mesmo poder que a experiência de leitura de uma única banda desenhada pode ter a nível individual na criação de uma auto-narrativa feminista. Estudando o espetáculo Presentes como um “exemplo de montagem virtuosa”, Alejandra Meriles (2019b) comenta:

o efeito pedagógico desta conceção (expositiva) é duplo. Não só estão a escrever a história de uma comunidade que, até agora, não se conseguia reconhecer a si própria, como também estão a mostrar como o relato histórico escrito na parede de um museu hoje, já existia ontem, nas páginas de uma banda desenhada. (p. 1)

A abordagem genealógica inicial adquiriu agora uma dimensão geográfica sólida e mundial. As coordenadas partilhadas são tanto temporais como espaciais e os próprios projetos transmitem uma dupla natureza significativa que nos recorda a transversalidade da própria linguagem da banda desenhada, um meio em que somos convidados a ver imagens e a ler palavras, e vice-versa. Como observam as curadoras de Coordenadas Gráficas, “enquanto instrumentos genealógicos, os projetos enfatizam a relevância das mulheres na história da banda desenhada, mas, mais importante, promovem a expansão do meio e permitem que a sua protagonista se reconheça como uma sororidade, sem fronteiras” (McCausland et al., 2020).

Presentes, Nosotras Contamos e Coordenadas Gráficas são as partes principais de um corpo em constante evolução, aprendendo a entender-se como um “território em construção (...) que promove a visibilidade a partir da coletividade, contando com a sua tendência para criar comunidade” (McCausland et al., 2020, p. 10).

REFERÊNCIAS

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1Na página da Internet da Real Academia em Roma, o trocadilho vai mais longe com a afirmação de que “as autoras de banda desenhada estão presentes. As autoras de banda desenhada são o presente”. Encontram-se ecos do mesmo trocadilho na famosa performance alargada de Marina Abramovich intitulada “The Artist Is Present” (A Artista Está Presente).

2A exposição itinerante “Ellas Toman los Lapices, el Espacio y la Palabra” (Sevilha, Valência e Barcelona, 2016) e “Mujeres de Tinta” (Madrid, Expocomic 2014).

3Antoni Guiral é um escritor e especialista em banda desenhada que vive em Barcelona.

4Ana Merino é coordenadora do Mestrado em Escrita Criativa da Universidade de Iowa, é poeta, romancista, crítica e curadora. A sua produção inclui importantes ensaios sobre a banda desenhada espanhola, como El Comic Hispano (Catedra, 2003), e uma monografia sobre o cartoonista americano Chris Ware (Sinsentido, 2015).

5Um grupo de autoras reuniu-se em torno da experiência da Wimmen’s Comix, uma antologia de banda desenhada underground publicada entre 1972 e 1992, coordenada por Trina Robbins. Algo semelhante aconteceu em França com a revista Ah! Nana, fundada em 1976 pelas autoras envolvidas na edição da revista underground Metal Hurlant.

6Instituição mista formada pela Agencia Española para la Cooperación y el Desarrollo e pelo Município de Córdoba

Recebido: 30 de Março de 2023; Aceito: 12 de Junho de 2023

Tradução: Traversões, Serviços Linguísticos, Lda.

Virginia Tonfoni é professora e jornalista. Licenciou-se na Universidade de Pisa com um estudo comparativo sobre Tristana (1892), de Benito Perez Galdós, e a sua adaptação cinematográfica por Luis Buñuel (1970). Em 2006, conclui um mestrado na Universidade de Barcelona em Comunicação Cultural e trabalhou depois na indústria editorial e cinematográfica na mesma cidade catalã. Desde 2012, ensina língua e cultura espanholas na sua cidade natal, escreve regularmente para o Alias, o suplemento cultural de il manifesto, e colabora com vários festivais italianos de banda desenhada e literatura. Faz parte do júri do Prémio Boscarato do Festival de Banda Desenhada de Treviso, do Prémio Pozzale Luigi Russo e do Prémio Tuono Pettinato, e ainda do Prémio Strega Ragazze e Ragazzi (na categoria de narrativa visual). Em 2018, começou a participar em congressos internacionais como investigadora independente. É autora de Violeta. Corazón Maldito (Violeta. Coração Maldito; com Alessio Spataro, Bao Publishing, 2017) e de Tutti i Critici Sono Bastardi (Todos os Críticos São Bastardos; com Matteo Contin e Andrea Benei, Edizioni Sido, 2021). Email: virginia.tonfoni@gmail.com Morada: Via della Bassata 58, 57126, Livorno, Itália

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