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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

versão impressa ISSN 2184-0458versão On-line ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.10 no.2 Braga dez. 2023  Epub 28-Fev-2024

https://doi.org/10.21814/rlec.4696 

Artigos Temáticos

Tem um Monstro no Meu Espelho: Uma Análise do Romance Gráfico Autobiográfico Monstrans: Experimentando Horrormônios, de Lino Arruda

Camila Luiza Lelisi  , Conceitualização, metodologia, administração do projeto, visualização, redação do rascunho original, revisão e edição
http://orcid.org/0009-0003-2134-4523

Marcus Antônio Assis Limaii  , Revisão e edição
http://orcid.org/0000-0001-8407-1866

iPrograma de Pós-Graduação em Letras: Linguagens e Representações, Universidade Estadual de Santa Cruz, Bahia, Brasil

iiDepartamento de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Letras: Cultura, Educação e Linguagem, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Bahia, Brasil


Resumo

O presente artigo busca debater a construção de narrativas queer em outras formas de linguagem, como os quadrinhos, através do levantamento de bibliografias dentro dos escopos teóricos dos Estudos de Gênero, História da Arte e Quadrinhos. Uma autobiografia em quadrinhos pode apresentar inúmeras possibilidades de reflexão por se tratar de uma obra que permite que a imagem também seja parte da construção narrativa, pois, quando se trata de uma ilustração autobiográfica, temos a oportunidade de vislumbrar a imagem que o artista tem de si e se propõe a expor. Com o intuito de investigar as possibilidades de interpretação e análise de uma obra autobiográfica queer em quadrinhos, tal debate será construído por meio da análise do romance gráfico Monstrans: Experimentando Horrormônios, de Lino Arruda (2021), que traz, em sua publicação, traços disformes e aquarelados que constroem a narrativa das memórias do autor em seu processo de compreensão de sua identidade de gênero. Propõe-se refletir sobre a temática da monstruosidade presente nesta obra e como ela pode funcionar como recurso estilístico e crítica da autorrepresentação de corpos dissidentes, focando, especificamente, na relação do artista com o espelho, instrumento frequentemente visto em outras obras em quadrinhos de autoria travesti/trans também aqui mencionadas.

Palavras-chave: monstruosidade; autorrepresentação; transexualidade; quadrinhos

Abstract

This article seeks to debate the construction of queer narratives in alternative forms of language, such as comics, by compiling relevant literature within the theoretical scopes of gender studies, art history and comics. Autobiographical comics offer countless possibilities for reflection because they incorporate visual elements into the narrative construction. When it comes to an autobiographical illustration, readers have a glimpse of how the artist views themselves in their memories and what they propose to expose. To explore the potential for interpreting and analysing queer autobiographical comics, this discussion centres on the graphic novel Monstrans: Experimentando Horrormônios (Monstrans: Experimenting with Horrormones) by Lino Arruda (2021). This work features deformed watercolour lines that construct the narrative of the author's memories in his journey to understanding his gender identity. The intention is to reflect on the theme of monstrosity present in this work and how it can be a stylistic resource and a means of critiquing the self-representation of dissident bodies, focussing specifically on the artist's relationship with the mirror, a recurring element in other transvestite/trans comics also mentioned in this article.

Keywords: monstrosity; self-representation; transsexuality; comics

1. Introdução

Quadrinhos podem ser entendidos como uma forma de linguagem que utiliza palavras e imagens para transmitir um conteúdo. Através de uma história construída por desenhos e textos de maneira sequencial, é possível alçar discussões por meio de recursos narrativos como humor, suspense, drama e, até mesmo, por uma perspectiva de crítica social. Uma característica interessante dos quadrinhos é a pluralidade. Desde os clássicos super-heróis de grandes editoras estrangeiras, como Marvel Comics ou DC Comics, até produções independentes que exploram a livre criatividade, passando pela arte gráfica jornalística e pelo nicho infantojuvenil, como, por exemplo, a produtora brasileira Maurício de Sousa Produções, os quadrinhos mostram que existe espaço para todos dentro dessa categoria artística, tanto para quem produz quanto para quem consome. Afunilando a discussão, podemos considerar, por exemplo, a capacidade dos quadrinhos de recepcionar a diferença através da arte que se manifesta tanto pela escrita quanto pelas ilustrações, podendo ser um espaço para temáticas sobre sexualidade e identidades de gênero. É possível refletir, através da análise de publicações independentes e/ou autobiográficas, como tais temáticas podem circular nos quadrinhos, além de entender o alcance de seu impacto, percebendo de que maneira os temas são explorados.

A publicação de quadrinhos pode ser encontrada em várias culturas pelo mundo e suas produções, ainda que bastante diversificadas e até mesmo singulares, possuem o poder de se comunicar com o leitor através das mais variadas formas, por tratar-se de um campo de temáticas múltiplas. As definições sobre o que são os quadrinhos e como são construídos e classificados podem variar de acordo com a época ou o local em que os estudos teóricos acerca do tema foram produzidos, já que a categoria sofre variações em seu significado que oscilam por conta de idiomas, abordagens e, até, contextos políticos. Sobre isso, Alexandre Linck Vargas (2015) apresenta-nos, em sua tese, as mais variadas formas de tratar e entender os quadrinhos pelo mundo, mostrando como a nomenclatura, muitas vezes, vem definir a maneira como a categoria é considerada por aquele nicho social:

algo que já faz parte de certo charme que cerca as histórias em quadrinhos são seus muitos múltiplos nomes. Na França, chama-se bandes dessinées [ênfase adicionada], ( ... ). Comics [ênfase adicionada], por sua vez, é como as HQs são chamadas nos EUA até hoje devido à sua aurora no início do século XX pelo humor. Funnies [ênfase adicionada], por outro lado, caiu em desuso e desde os anos 1980 e 90, principalmente pela pessoa de Will Eisner, graphic novel e sequencial art [ênfase adicionada] têm ganhado terreno. No Japão, “o termo mangá data do século XVIII e foi usado pelo artista japonês Hokusai, em 1814, para designar seus livros de ‘rascunhos excêntricos’” (Gravett, 2006: 13). Mais especificamente, a palavra manga (sem o acento) deriva do chinês manhua [ênfase adicionada], nome pelo qual hoje são chamados os mangás da China. Hong Kong, Taiwan, assim como a Coréia do Sul utilizam-se da variação manhwa [ênfase adicionada]. Na Itália, o termo, por sua vez, é fumetti [ênfase adicionada], literalmente, “fumaças”, referindo-se aos balões. Em língua espanhola prevalecem historietas ou cómics [ênfase adicionada], sendo popular na Espanha o termo tebeos, em referência à famosa revista TBO de 1917, algo parecido com a palavra gibi no Brasil, ( ... ). Em Portugal, outrora histórias aos quadradinhos, hoje é mais comum banda desenhada [ênfase adicionada]. No Brasil, além de histórias em quadrinhos, é também bastante popular a palavra gibi, sinônimo de moleque, negrinho, que foi o nome da revista de 1939, do Grupo Globo, e tinha o desenho de um menino negro na capa como personagem-símbolo. (pp. 32-33)

Como Vargas (2015) mesmo citou, no Brasil, existem várias palavras e expressões que estão dentro do mesmo contexto de quadrinhos e que servem para diferenciar os estilos de produção e publicação. Classificações como “quadrinhos”, “romance gráfico”, “zine” ou “arte gráfica” podem ser utilizadas para que se especifique qual modalidade de narrativa estamos lendo. Já que neste artigo vamos abordar especificamente um romance gráfico1, cabe explicar que se trata de uma classificação específica de quadrinhos que vem ganhando força dentro do mercado editorial por mérito das inúmeras possibilidades de produção. Sua nomenclatura, no Brasil, é a tradução de graphic novel que, por sua vez, é utilizada nos Estados Unidos para categorizar os quadrinhos - ou comics - que apresentam características literárias em sua produção, apesar de que, assim como a totalidade da categoria, possui sua classificação, origem e definição localizadas muito mais em uma obscuridade de determinações do que em contextualizações definitivas:

não há consenso em relação ao surgimento das graphic novels. Na Espanha dos anos 1940, “novelas gráficas” [ênfase adicionada] eram HQs românticas (García, 2012: 33), contudo, foi em fanzines [ênfase adicionada] americanos dos anos 1960 que o termo ganhou maiores pretensões artísticas, sendo Um contrato com Deus [ênfase adicionada] e seu autor Will Eisner, em 1978, os grandes promotores dessa nova terminologia, que viria a se popularizar nas décadas seguintes. Eisner, em diversas entrevistas e em seus livros didáticos, nunca escondeu seu entendimento das HQs como uma forma de literatura no que tange sua leitura, uma linha semelhante à do espanhol Román Gubern em seu livro Literatura da imagem [ênfase adicionada], lançado originalmente em 1974. Graphic novel [ênfase adicionada], ou romance gráfico, dá aos comics ares de nobreza literária, tira os quadrinhos das bancas e os conduz às livrarias, algo que de fato aconteceu intensamente nas duas últimas décadas. Muitos são os críticos a este termo justamente por sua estratégia, um tanto óbvia, de conferir status aos quadrinhos a partir de sua pertença a tradições literárias validadas culturalmente nos espaços de “alta cultura”. (pp. 33-34)

Nota-se que a autobiografia é abundante nesse nicho específico, pois suas características de história única e de liberdade produtiva permitem que obras autônomas e de temáticas pessoais destoem dos regramentos e demandas artísticas de publicações seriadas, já que existem temas específicos de nossa atualidade que são desafiadores e/ou divergentes de toda uma norma canônica de publicações tradicionais e que encontram nos quadrinhos um espaço acolhedor para a expansão de ideias e liberdade de expressão. Tal qual afirma Santiago García (2010/2012), autor de A Novela Gráfica, o romance gráfico promove uma “consciência de liberdade do autor” (p. 305), o que pode ser um indicativo da abundância de publicações de cunho autobiográfico nesse meio.

Para Amaro Xavier Braga Jr. e Natania Nogueira (2020), assuntos relacionados à sexualidade, raça, classe e gênero presentes em publicações gráficas conseguem se destacar por conta das possibilidades que a ilustração proporciona, tal como a chance de se expandir, para outra forma de linguagem, uma narrativa que pode ser desenvolvida não apenas pela escrita, mas também pela expressão artística. Além disso, o imediatismo necessário para a narrativa de quadrinhos tem base no fato de que sua leitura é dinâmica e direta, o que faz com que a produção da narrativa precise ser mais incisiva.

As relações de gênero, a sexualidade e o feminismo encontraram nesta mídia centenária um espaço de expressão assim como de representações das mais variadas tribos que foram se formando na sociedade ocidental e oriental ao longo do século XX, incorporando aspectos sociais, políticos e comportamentais que refletem as mudanças e inquietamentos instigados pelos vários movimentos sociais que caracterizaram o século XX e cujos prolongamentos encontram-se presentes no século XXI. (Braga & Nogueira, 2020, p. 8)

Se olharmos para trás, a partir da segunda metade do século XX, podemos encontrar, especificamente nas produções norte-americanas, novos comportamentos narrativos influenciados por questões contemporâneas. Retornando a Alexandre Linck Vargas (2016), quando alguns quadrinistas começaram a adquirir um discurso mais anarquista e revolucionário que visava proliferar reivindicações e questionamentos sociais, além de quebrar paradigmas e provocar normas conservadoras políticas, os quadrinhos voltados para o público adulto tornaram-se um produto à margem da sociedade e foram classificados como underground2. “Na experiência americana, a autoria nos quadrinhos no seu grau máximo costuma ser associada aos quadrinhos underground, ao mundo das publicações ‘alternativas’” (Vargas, 2016, p. 28). Ou seja, a produção de quadrinhos underground, que começou nos Estados Unidos nos anos de 1960, tinha como motivação a fuga das normas, a provocação, o escárnio e o tema erótico - este último sendo classificado como comix. Partindo daí, foram surgindo os zines3, ainda muito populares até hoje, que são, para muitos artistas, uma forma de aprendizado no começo da carreira.

O que pode atrair muitos autores para o romance gráfico é também a possibilidade de não precisar de se ater às técnicas padronizadas da ilustração de quadrinhos clássicos, pois sua construção enaltece tanto o desenho quanto a narrativa, levando em consideração sua aproximação com elementos da literatura, fortalecendo as possibilidades autobiográficas e/ou de relatos de vivência e testemunho, como é o caso do objeto de estudo deste artigo. E, mesmo que as grandes editoras nacionais já tenham descoberto o potencial dessa categoria e estejam investindo nela, o romance gráfico independente brasileiro ainda pode ser considerado uma maneira de escapar do atrelamento monetário dos conjuntos editoriais e das limitações dos processos criativos dos quadrinhos, ao mesmo tempo em que abre portas para que artistas fora dos padrões heteronormativos possam ter maior visibilidade.

O objetivo deste artigo será analisar as publicações em quadrinhos de temática queer, em particular a obra autobiográfica Monstrans: Experimentando Horrormônios, do artista trans Lino Arruda (2021), afim de analisar os traços e a escolha de estilo do autor que optou por representar-se através de imagens grotescas, enquanto também se analisa outras obras em quadrinhos dentro do mesmo escopo - que se inserem em debates acerca de gênero, sexualidade e transexualidade e que contribuem para o crescimento e desenvolvimento da própria categoria, bem como também de nossa sociedade, tendo em vista que “os quadrinhos nos trazem elementos importantes para completar lacunas acerca do que foi, do que é e do que tem potencial para se tornar a sociedade humana do século XXI” (Braga & Nogueira, 2020, p. 12). Para tal intento, será utilizada uma metodologia de uma base bibliográfica que esteja dentro das abordagens de estudos de gênero, quadrinhos e história da arte.

2. Desenhando Gênero

No Brasil, a produção de quadrinhos com temáticas de gênero tem surgido com mais frequência, principalmente por influência do trabalho da renomada Laerte Coutinho, cartunista travesti que encontrou em seus desenhos uma maneira de entender a si mesma dentro de sua identidade de gênero, enquanto também elucidava seus leitores acerca da vivência trans. Estudos como os de Maria Clara Silva Ramos Cordeiro (2021) e Hadriel Theodoro (2016), permitem conhecer melhor as produções de Laerte e o seu impacto nos estudos de gênero. Maria Clara Carneiro analisa o corpo de Laerte desenhado em suas tiras como um corpo travesti encenado, analisando como Laerte, com as personagens Hugo e Muriel, acabou “criando uma constelação de personagens, em que seu traço e modo de fazer humor atuam como signos ou como fronteiras entre seu corpo de Autora e dos outros autores de quem se inspirou” (Carneiro, 2021, p. 64). Enquanto Hadriel Theodoro (2016) trata da visibilidade de vivências transgêneras na mídia como forma de consumo, buscando investigar “as articulações das visibilidades midiáticas das pessoas transgêneras com os modos pelos quais elas permeiam uma atuação política e cidadã para a legitimação de sua própria existência, de um reconhecimento social não assentado em estereótipos, preconceitos e discriminações” (p. 34). E no que se trata do caso da quadrinista Laerte, ele objetiva compreender:

como a experiência de Laerte pode conter uma inter-relação entre produção e consumo, voltada às visibilidades das pessoas transgêneras; averiguar se os enquadramentos midiáticos da transgeneridade de Laerte privilegiam marcos binários ou a multidimensionalidade das identidades transgêneras; e compreender como é construída a experiência da transgeneridade nas políticas de visibilidade derivadas da experiência ativista de Laerte. (p. 35)

A personagem Hugo/Muriel, por exemplo, conhecida por ser uma alegoria da transição de gênero de Laerte, surgiu no começo do século XXI. Por meio de tirinhas publicadas no jornal Folha de S. Paulo e na internet, a artista foi desenvolvendo a temática aos poucos e desenhando seu processo, permitindo que nós, seus leitores, pudéssemos acompanhar sua fase de descobertas. Vera Maria Bulla (2018), em análise de algumas tirinhas da artista, vai constatar que:

[as tirinhas] podem ser vistas como uma forma de autoentendimento por parte da cartunista que, ao mesmo tempo que aprende as questões de gênero, usa nas tirinhas seu conhecimento e, de forma espontânea, ensina o leitor, de maneira didática e humorística, a aprender com ela sobre o significado de ser transgênero. A maneira como Laerte relata ao leitor sobre seus descobrimentos é também uma forma de ensinar o público em geral a ter mais tolerância e, possivelmente, abrir espaço para diálogos sobre respeito e aceitação. (p. 32)

As tirinhas de Laerte Coutinho sobre sua transição de gênero exploram seus desejos, confidências e medos. São permeadas por bastante humor e uma boa dose de ironia, principalmente quando o foco é evidenciar as falhas da heterocisnormatividade na manutenção de gêneros dentro de uma sociedade ainda escorada em pautas binárias antiquadas.

As tirinhas têm o poder de remeter ideias e opiniões simultaneamente com as problemáticas que as acompanham. Estudar as tirinhas de Laerte, com o intuito de investigar como o processo de descoberta de sua própria identidade de gênero se deu através de seus personagens é enriquecedor por conta de esclarecimentos que dão quanto às inúmeras interpretações erradas sobre as questões que giram em torno de gênero e sexualidade. (Bulla, 2018, p. 47)

A potência de Laerte na produção de quadrinhos, somada à sua genialidade e coragem em se abrir ao público, destaca a capacidade que a narrativa autobiográfica tem de estar presente e funcionar em vários formatos e mídias diferenciadas. Não por acaso, o surgimento de uma voz que fale por muitos, utilizando como canais de comunicação tanto a narrativa quanto o desenho, é capaz de promover descobertas e transformações ao seu redor por estimular o debate sobre identidade e arte. Tal como disse a quadrinista Aline Zouvi (2020) com relação ao espaço autobiográfico nos quadrinhos queer:

este espaço autobiográfico vem para fortalecer uma narrativa identitária que não tange apenas ao seu autor, mas toda a uma comunidade à qual pertence e com a qual se identifica. A união entre imagem e texto proporciona, além de tal construção narrativa e discursiva, a presença e a visibilidade próprias da imagem. Podemos não nos dar conta disso, mas, para o autor e para o público LGBTQ+, é essencial, além de se ler, ver-se desenhado nos quadrinhos. A representatividade encontra, na narrativa autobiográfica, a chance de avançar as discussões sobre identidade de gênero e sexualidade através da análise de quadrinhos. Torna-se cada vez mais importante que não percamos essa potência de vista, buscando sempre, enquanto autores ou leitores, uma produção consciente de seu contexto social e cultural, mas também comprometida com sua qualidade artística. (p. 16)

O romance gráfico autobiográfico queer pode, dessa forma, construir realidades que estão à margem de um sistema social que exclui vidas que divergem dos padrões. Podemos contemplar, em várias obras inseridas nesta especificidade, que o traço, o desenho, a ilustração, enfim, o aspecto artístico da narrativa visual corporifica aquilo que a narrativa verbal, confinada nos balões e legendas, pode apenas sugerir, dada a opacidade da linguagem. Obras como a da artista brasileira Alice Pereira (2019), intitulada Pequenas Felicidades Trans, e da artista italiana Fumettibrutti (2022/2019), Minha Adolescência Trans, ambas autobiografias, conseguem apresentar enredos similares, mas, ao mesmo tempo, muito diferentes em suas construções. Alice Pereira (2019) aborda seu processo de transição de gênero por uma perspectiva íntima e autoanalítica através de linhas e cores suaves e com toques de ironia e humor ácido.

De acordo com Maria da Conceição Francisca Pires (2021), o objetivo de Alice Pereira “foi ilustrar como o amplo desconhecimento, alheamento ou não querer saber sobre as questões relativas à transgeneridade contribui para reforçar estereótipos, preconceitos, estigmas e tabus” (p. 2). Já Fumettibrutti (2022/2019) expõe a violência e as transfobias que sofreu durante seu processo de maneira direta e sem pudores, utilizando cores fortes e traços rústicos em uma narrativa mais realista. Aqui, o visual possuiria a capacidade de sobrepor bloqueios que tentam impedir que muitas vidas LGBTQIA+ tenham direitos ou sejam ouvidas. Como apontado no artigo “Transmediality Against Transphobia: The Politics of Transsexual Self-Portraiture in Fumettibrutti’s Work Between Comics and Photography” (Transmedialidade Contra a Transfobia: A Política do Autorretrato Transexual na Obra de Fumettibrutti Entre os Quadrinhos e a Fotografia) publicado por Nicoletta Mandolini. Em ambas as obras é possível ver um interlocutor que opera um processo de complexion4 do corpo que se mira, e até poderia funcionar, como nas “autohistórias teóricas” de Gloria Anzaldúa (2012), como uma possibilidade de cura e de subjetivação. Não se trata, portanto, de desabafos, mas da importância de se expor a experiência vivida.

3. Monstros e Hormônios

A partir da pergunta “como são representadas as experiências travesti/trans na cultura contemporânea (artes visuais, literatura, cinema, teatro, etc.)?” (Arruda, 2020, p. 15), Lino Alves Arruda introduz sua tese de doutorado, intitulada Monstrans: Figurações (In)humanas na Autorrepresentação Travesti/Trans Sudaca5. Autor, artista e quadrinista, Lino é transmasculino e pessoa com deficiência e tem dedicado suas pesquisas acadêmicas a sopesar sua experiência antes, durante e depois da transição de gênero, bem como outras existências LGBTQIA+ em uníssono à sua abordagem criativa. Em sua tese, Lino Arruda escolheu introduzir seu trabalho com várias indagações como essa acima, a fim de provocar uma reflexão sobre como várias das manifestações artísticas atuais, ainda que ancoradas (e aqui essa palavra encaixa perfeitamente) em uma iniciativa que pretende acolher a diversidade, podem ser capazes de proliferar discursos que permanecem suscitando “cistemas identitários e a vincular-se à produção de saberes, perspectivas e posições de sujeito hegemônicas” (Arruda, 2020, p. 15). Sua pesquisa gerou frutos e, um ano após sua defesa, Lino publicou, com o apoio do projeto Rumos Itaú Cultural - mas ainda de maneira independente - o romance gráfico Monstrans: Experimentando Horrormônios, sua autobiografia em quadrinhos.

Nesta obra, Lino Arruda relata sua infância, adolescência e fase adulta com foco nas intervenções médicas que experienciou quando criança, na descoberta de sua sexualidade e nas reflexões acerca de sua identidade de gênero e, ao desenhar-se, se utiliza de traços livres e disformes, compartilhando com o leitor a percepção de sua imagem tanto pelos olhos dos outros como por sua própria perspectiva. O autor dedica seu trabalho como quadrinista, tanto nesta obra como em zines publicados em outros anos6, a abordar temáticas como transexualidade, cotidiano, sexualidade e visibilidade. Este percurso contribuiu para que sua autobiografia fosse o relato de vivência de uma pessoa que cresceu sob fortes intervenções e julgamentos sociais de políticas sobre seu corpo e tentativas compulsórias (internas e externas) de normatização de sua imagem e identidade. Seu trabalho de pesquisa corroborou para que ele dedicasse seus estudos e abordagens artísticas e culturais dentro daquilo que abrange a comunidade trans e travesti, em especial através da temática da monstruosidade baseada em nossa cultura ocidental, como manifestação autorrepresentativa. Como ele mesmo afirma:

o principal objetivo desta pesquisa é identificar, organizar e analisar um arquivo literário e imagético autorrepresentativo, autônomo e contracultural travesti/trans, visando criar canais através dos quais essas vozes dissidentes possam estar em diálogo produtivo com outras, a fim de remodelar o repertório simbólico mainstream. Para tanto, desaquendar dos sistemas institucionais que consistentemente excluíram as autoenunciações e autorrepresentações travesti/trans é uma das prerrogativas deste projeto, especialmente considerando os imaginários e os discursos exotizantes e alienantes comumente figurados nos locais autorizados de produção de conhecimento acerca das subjetividades dissidentes. (Arruda, 2020, p. 15)

Ao traçar uma autorrepresentação, Lino desenha criaturas que muitos considerariam grotescas, às vezes em seu reflexo no espelho, às vezes olhando para nós, com o objetivo de ressignificar o que seria exatamente esta característica “assustadora”, essa monstruosidade, que reflete muito mais a hipocrisia social do que propriamente a maneira como ele se vê. Afinal, o que se chama de monstro é aquilo (aquele/a) de que não se tem identificação dentro da normatização, que não é reflexo no espelho do chamado “comum”, o que causa aviltamento, considerado abjeto. A filósofa Julia Kristeva (1980), em Poderes do Horror: Ensaio Sobre a Abjeção, conduz a nossa reflexão acerca da abjeção e compreende que o abjeto é o que provoca a estranheza, tremula as bases e ameaça uma ordem: a existência trans é a exposição do fracasso do sistema heteronormativo social.

Abjeto. Ele é um rejeitado do qual não dá para se separar, do qual não dá para se proteger como se faria com um objeto. Estranheza imaginária e ameaça real, ele nos chama e acaba por nos devorar. Não é, pois, a ausência de limpeza [propreté] ou de saúde que torna abjeto, mas aquilo que perturba uma identidade, um sistema, uma ordem. Aquilo que não respeita os limites, os lugares, as regras. O intermediário, o ambíguo, o misto. (Kristeva, 1980, p. 4)

O horror da abjeção pensada por Julia Kristeva aproxima-se das representações do corpo feminino na literatura e cinema, quando esse corpo é também visto como abjeto, como podemos entender pelos apontamentos de Barbara Creed (2007) em The MonstrousFeminine: Film, Feminism, Psychoanalysis (O Monstruoso-Feminino: Cinema, Feminismo, Psicanálise) que, guiada pelo ensaio de Julia Kristeva (1980), considera que a representação da mulher em filmes de terror passa pela abjeção através do olhar da masculinidade.

A presença do monstruoso-feminino no filme de horror popular nos conta mais sobre os medos masculinos do que sobre o desejo feminino de subjetividade. No entanto, essa presença desafia a visão de que o espectador masculino é quase sempre situado em uma posição sádica ativa e o espectador feminino em uma posição passiva e masoquista. (Creed, 2007, p. 7)

Ainda que a heteronormatividade, aqui, não esteja sendo abalada dentro de um sistema de controle da sexualidade, muito do que se tem da presença feminina em filmes de terror perpassa a narrativa da mulher em subjugação de uma tortura física e/ou psicológica projetada por uma personagem masculina, seja ela humana ou monstruosa. A abjeção do corpo feminino é, portanto, construída pela misoginia. Sobre esse aspecto, a filósofa Judith Butler, em entrevista dada ao Departamento de Estudos da Mulher do Instituto de Artes da Universidade do Utrecht7, na Holanda, debruça-se sobre o tema da abjeção e salienta que pensar os corpos diferentemente pode ser entendido como um pilar do feminismo enquanto questão de sobrevivência, e acrescenta: “a abjeção de certos tipos de corpos, sua inaceitabilidade por códigos de inteligibilidade, manifesta-se em políticas e na política, e viver com um tal corpo no mundo é viver nas regiões sombrias da ontologia” (Prins & Meijer, 2002, p. 157).

Mas, voltando a Lino Arruda, por quê a monstruosidade? Na verdade, a monstruosidade está presente no fazer artístico ocidental desde os longínquos tempos da Antiguidade, em poemas homéricos e epopeias heroicas. Seres como ciclopes, sereias, monstros de três cabeças e vários outros seres mitológicos são criações fantasiosas que serviram de algozes aos protagonistas humanos de aventuras literárias cheias de significados e moralidades. Porém, como afirma Ana Soares (2018), os monstros não fazem parte somente do campo imaginativo da literatura e nem sempre estão em uma posição antagônica. Ao se debruçar sobre a temática, Soares afirma que a monstruosidade - ou, como ela refere, “o monstruoso” - está presente em nossa cultura em circunstâncias que vão muito além da imaginação e da livre criação, sendo, inclusive, uma representação do medo do desconhecido ou um desafio à razão:

os monstros não são apenas obra da imaginação abstrata, nem a sua existência se expressa somente no discurso verbal: as encarnações em imagens pictóricas gráficas são muitas e vêm de há muito. O seu surgimento não se dá apenas com a sofisticação tecnológica (por exemplo, com o cinema).

Aliás, alguns dos monstros que mais representações gráficas tiveram em ilustrações do século XVI aparecem referidos em textos do século V a.C. A expressão discursiva e as contrapartidas visuais dos monstros não são novas: nem se descobriram só com as Descobertas, no contacto dos europeus com os seus diferentes. A etimologia de “monstro” parece estar associada ao verbo latino “moneo”, que significa “avisar”. De alguma forma, portanto, quando são assim designados, os monstros referem-se à sinalização, normalmente de algum receio, evento negativo ou ameaçador. (Soares, 2018, p. 55)

Ana Soares (2018) aprofunda-se em sua discussão refletindo sobre o que há no monstro que fascina ao humano que o criou, e conclui que o monstruoso é algo muito próximo, já que “o monstruoso, afinal, é humano como nós” (p. 56). Para a autora, o lugar em que se encontra a maior fonte de criação dos monstros que assombram e apavoram o ser humano é o local da razão, presente somente em nós, seres humanos, tidos como animais racionais e pensantes, qualidades que nos distanciam do que possa ser abominável.

O monstruoso está em nós sempre que o pensamos. Estejamos onde estivermos, é próximo e nada exotismo. Começa por ser descrito como o desumanizado, o sub- ou super-humanizado. A sua constituição na literatura ( … ), forma-se a partir do sublinhar das diferenças que o afastam de quem o descreve, do escritor - de uma humanidade, logo, de uma não monstruosidade do escritor. Porém, uma vez que só no pensamento humano são gerados, os monstros são, afinal, por natureza, tão humanos quanto nós. (Soares, 2018, p. 66)

Em uma gravura do artista espanhol Francisco de Goya y Lucientes, datada de 1799, a razão é entendida como a própria criadora da monstruosidade. A gravura, intitulada de Placa 43 (Figura 1), presente na coleção “Los Caprichos”8, possui o escrito “o sonho da razão produz monstros”:

Fonte. Retirado de “Plate 43 From ‘Los Caprichos’: The Sleep of Reason Produces Monsters (El Sueño de la Razon Produce Monstruos)”, por The Metropolitan Museum of Art, s.d. (https://www.metmuseum.org/art/collection/search/338473). Domínio público.

Figura 1 Los Caprichos, Placa 43 

Goya era um árduo crítico social e a Placa 43 foi uma tentativa do artista de provocar a camada social e intelectual da Espanha a atentar-se mais para os acontecimentos pertinentes de sua época que envolviam questões políticas entre o país e a França (Soares, 2018). Nesse caso, a monstruosidade, representada por animais que sobrevoam a figura de um homem deitado em uma mesa em que, aparentemente, ele estava a escrever, carrega a representação de que ela poderá surgir no momento que a razão sucumbir:

a própria legenda induz a ambiguidade de leitura: a palavra castelhana “sueño” tanto pode significar o “sono” da razão (ou seja, o momento em que a razão se permite um momento de paz e o homem é dominado pelo não racional); quanto pode ser o “sonho” da razão, entendido como projeção ou anseio, que seria o fruto da capacidade humana de criar ideias, ou resultado de um estado de vigilante produção em que se geram os monstros. Em qualquer uma das aceções, para Goya, o monstruoso, mesmo quando é representado fora do fisicamente humano, nasce daquele e poderá mesmo nascer da mais humana das qualidades, a razão. (Soares, 2018, p. 55)

Sendo assim, há muito que a representação da monstruosidade, no campo das artes, surge como uma forma de questionar o comportamento e a racionalidade do ser humano, bem como sua capacidade de criar e se deslumbrar pelo desconhecido, obtendo fascínio pelo que é novo, ao mesmo tempo em que o enlevo pela monstruosidade nada mais pode ser que um reflexo do que seja a própria razão humana quando se encontra livre ou em repouso.

E como a monstruosidade pode ser autobiográfica? Antes de introduzir esta explicação, é importante citar que o romance gráfico Monstrans: Experimentando Horrormônios, antes de ser finalizado e publicado como uma obra completa, surgiu através da publicação de um dos zines de autoria de Lino Arruda (2020): “combinando ilustrações e autoficções, Monstrans: experimentando horrormônios é um capítulo-zine no qual enveredo o não-humano em representações autobiográficas para recontar minhas experiências transmasculinas de ininteligibilidade” (p. 19). Lino salienta, ao falar desse capítulo-zine em sua tese, que as subjetivações monstruosas que ele utiliza em suas ilustrações são capazes de romper com as normas que definem o que seja representação e realidade, modificando a estética até que ela deixe de ser humana e se transporte para o não-humano, para a monstruosidade, tema recorrente em seu arcabouço teórico de pesquisa acerca de produções artísticas dissidentes em um contexto decolonial (Arruda, 2020). Ele prossegue afirmando que a imagem clássica do monstro (lobisomem, Frankenstein, ou mesmo um hibridismo animal/humano) utilizada em suas ilustrações retoma pautas existentes no Brasil desde o período colonial, que entocavam as existências travestis/ trans em associações à animalidade.

A desorientação da identidade é um tema presente na concepção de monstros durante a história, seja em culturas, religiões ou literaturas, como afirma João Carlos Firmino Andrade de Carvalho (2018):

ora o monstro para ser monstro, no pleno sentido da palavra/conceito, precisa de se situar nesse lugar de fronteira entre o ser e o não-ser, entre o possível e o impossível, paralisando e extasiando o olhar do ser humano perante algo de único e irrepetível e mostrando-lhe não tanto o que ele não é, mas uma singular possibilidade alternativa de ser. (p. 39)

Esse não-lugar de pertencimento pode estar relacionado, também, à dissociação da identidade humana que as pessoas travestis/trans sofrem por parte de uma sociedade que nega, para tais vivências, a cidadania, a dignidade e os direitos humanos: “o problema que o monstro coloca é, portanto, o da dialética da identidade e diferença, ou, dito de outro modo, o dos limites da humanidade do homem” (Carvalho, 2018, p. 40).

O filósofo Paul B. Preciado (2021) também se utiliza da ideia do monstro como referência à sua existência como um corpo não-binário em seu discurso “Eu Sou o Monstro que Vos Fala”. Este discurso foi escrito por Preciado em 2019 para ser lido por ele na “Jornada Internacional” da Escola da Causa Freudiana, quando foi convidado para falar em uma conferência de psicanálise no Palais de Congrès, na capital francesa, Paris. Acontece que o filósofo não conseguiu concluir a leitura de seu discurso, pois foi vaiado, ofendido e ridicularizado pelos 3.500 psicanalistas que ali estavam reunidos para discutir a temática “mulheres em psicanálise”, e que não aceitavam as indagações do palestrante:

o discurso causou um terremoto. Quando perguntei se havia um psicanalista gay, trans, ou não binário na sala, o silêncio foi quebrado por algumas risadas. Quando pedi às instituições psicanalíticas que assumissem a responsabilidade pela atual transformação da epistemologia sexual e de gênero, parte do público riu, enquanto outros gritaram ou me pediram para sair da sala. Uma mulher falou alto o suficiente para eu ouvi-la da minha tribuna: “Não o deixe falar, é Hitler2”. Outra parte do público aplaudiu. Os organizadores me lembraram que meu tempo tinha acabado, então tentei me apressar, pulei alguns parágrafos, só consegui ler um quarto do discurso que tinha preparado. (Preciado, 2021, pp. 278-279)

Preciado (2021) dedicou a publicação da íntegra do discurso a Judith Butler e, nas suas mais de 50 páginas de relato pessoal, podemos entender o quão equivocadamente a classe psicanalítica pode afetar a percepção generalizada sobre as vivências trans ao proferir diagnósticos de doenças mentais e distúrbios biológicos às questões de gênero e sexualidade:

eu, um corpo marcado pelo discurso médico e jurídico como “transexual”, caracterizado na maioria de seus diagnósticos psicanalíticos como sujeito de uma “metamorfose impossível”, situando-me, segundo a maioria de suas teorias, além da neurose, à beira ou mesmo na psicose, incapaz, segundo vocês, de resolver corretamente um complexo edipiano ou tendo sucumbido à inveja do pênis. Bem, é a partir dessa posição de doente mental da qual vocês me classificam, embora eu me dirija a vocês como o símio-humano de uma nova era. Eu sou o monstro que vos fala. O monstro que vocês construíram com seus discursos e suas práticas clínicas. Eu sou o monstro que se levanta do divã e fala, não como paciente, mas como cidadão, como seu monstruoso igual. (p. 281)

O autor afirma, em vários momentos de seu discurso, que prefere a sua nova condição de “monstro da modernidade” (Preciado, 2021), assim sendo entendido pela psicanálise, do que tentar se enjaular na condição binária de sentidos do mundo da cisgeneridade, já que existir dentro da vivência desse monstro é poder pertencer a um universo inexplorado. Como também podemos ver no romance gráfico de Lino Arruda pelos momentos de representação de sua disforme identidade, a transexualidade é um estado de movimento, um processo que acontece pelo período da própria vida e que desafia as normas incutidas em um sistema de controle por, justamente, atuar de uma maneira livre de consignações: “o monstro é aquele que vive em transição. Aquele cuja face, corpo e práticas ainda não podem ser considerados verdadeiros em um regime de conhecimento e poder determinados” (Preciado, 2021, p. 296). Temos aqui, provavelmente, a inspiração para o título Monstrans.

As modificações hormonais que acompanham a transição de gênero, o pejorativo estigma social sobre corpos dissidentes, as descobertas de um novo corpo e a busca por resquícios do que não existe mais estão presentes em muitas produções independentes e têm proporcionado identificações e reconhecimentos nos leitores9. A aproximação da narrativa com a realidade de quem consome as obras autobiográficas dentro dessas temáticas evidencia que há vivências diferenciadas que são animalizadas pelo (cis)tema (Arruda, 2020).

Observa-se que esse artifício representativo tem sido cada vez mais empregado em suportes contraculturais contemporâneos (como zines, livretos e outros materiais literais autônomos), especialmente em projetos que pretendem interpelar o/a observador/a (através do emprego da figura de um corpo que rápida e intuitivamente gera identificação) e, ao mesmo tempo, evadir o fardo de evocar compulsoriamente, através da representação do corpo, uma unidade identitária. (Arruda, 2020, p. 26)

Lino Arruda também salienta que, ao invés de lutar para sair de um rótulo marginal, ou underground, as publicações gráficas queer preferem abraçar o caos e assumir o fracasso que é inerente à própria heteronormatividade, já que é sempre necessário que haja uma falha de um lado para haver sucesso do outro. Portanto, se tais publicações evidenciam uma perda da identificação humana, da padronização linguística, do controle de corpos, entre outros, é por conta de um movimento de resistência que, assumindo a falha, permite que a contracultura travesti/trans tome para si o poder de seu tempo e espaço, ressignificando sua identidade a partir da exposição da monstruosidade, como podemos ver no quadrinho abaixo de autoria de Lino Arruda, publicado em um de seus zines (Figura 2).

Fonte. Retirado de Monstrans: Figurações (In)humanas na Autorrepresentação Travesti/ Trans Sudaca, por L. A. Arruda, 2020, p. 38. Copyright 2020 de UFSC.

Figura 2 Zine Quimer(d)a, Número 2, de 2017 

Os relatos dos processos da transição de gênero em quadrinhos, como os da figura acima, possuem um elemento em comum relevante para nossa discussão, posto que está sempre presente quando surge uma autorreflexão por parte do artista durante a narrativa: o espelho. A presença do espelho em Monstrans: Experimentando Horrormônios (2021) é, muito antes de ser um recurso cenográfico, uma ferramenta que permite que o leitor acompanhe o processo autorreflexivo de Lino Arruda sobre sua identidade, transição de gênero e os processos químicos hormonais que prejudicam sua pele enquanto o transformam. Além disso, o espelho também está presente em momentos de sua memória de infância e adolescência, atuando como um objeto que deixa evidente o que está fora do lugar, ainda que, mais tarde, também exerça a função de confrontamento, de busca por entendimento e identificação. Lino ilustra em sua narrativa que, durante sua infância e adolescência, ele percebia que havia ali no reflexo do espelho um corpo que não estava em seu espaço ideal, em seu lugar de verdade e é nítida a mudança de comportamento de Lino diante do objeto com o passar do tempo: antes, uma criança confusa que ficava apreensiva diante de seu reflexo, chegando até mesmo a dar as costas para ele; posteriormente, a contemplação das mudanças com um novo olhar, o de admiração e descoberta, culminando em autoconhecimento. É diante do espelho que a monstruosidade toma forma aos olhos de Lino e o faz enxergar o que há de extraordinário onde outros projetam abjeção.

A introdução da obra traz o autor se olhando no espelho e refletindo, junto ao leitor, acerca das consequências que surgem durante o tratamento hormonal com testosterona: erupções na pele, oleosidade, cicatrizes, entre outras. Na Figura 3 podemos ver que esse diálogo ocorre diretamente conosco, já que Lino desenha-se, primeiramente, olhando para fora do enquadro, para fora da obra, demonstrando a capacidade que o desenho tem de estabelecer uma conexão direta e concreta com o receptor. Isso fica claro já no primeiro quadro, em que o reflexo nos encara e ainda não há, na frente dele, um corpo que se olha, o que fica mais evidente no segundo quadro, quando a criatura monstruosa está de costas para o espelho e de frente para nós. Aqui temos a visão de um corpo nu modificado, com quatro tetas e uma cauda, um focinho e muitos pelos. A autorrepresentação construída nesta introdução pretende refletir acerca das modificações provocadas pelo hormônio e como Lino se sente ao passar por este processo - o processo da monstruosidade -, além dos novos cuidados que ele precisou aprender para cuidar de si e não deixar que os efeitos colaterais do tratamento sejam permanentes.

Fonte. Retirado de “Introdução”, por L. A. Arruda, 2021, Monstrans: Experimentando Horrormônios, p. 6. Copyright 2021 de Lino A. Arruda.

Figura 3 Sobre a acne  

Já na Figura 4, veremos que a criatura híbrida começa a se encarar no espelho e se analisar bem de perto por uma lupa, agora conversando com o leitor através do objeto e trazendo-o para junto da observação, incluindo um terceiro olhar - o nosso - em sua autoanálise. Lino, então, ensina-nos que os danos do surgimento de acne podem ser mais complicados do que o que ocorre na superfície da pele, já que, dentro das espinhas, morando no pus, há a presença de bactérias que podem se proliferar e gerar mais infecções. Partindo dessa informação, a introdução da obra também serve para que Lino reflita sobre a vida que vive dentro dele e como ela faz parte de seu corpo e de sua transição, ainda que possa gerar malefícios, afinal, são vidas bacterianas que surgiram quando ele deu início a sua transição, sendo elas, portanto, parte do processo.

Fonte. Retirado de “Introdução”, por L. A. Arruda, 2021, Monstrans: Experimentando Horrormônios, p. 6. Copyright 2021 de Lino A. Arruda.

Figura 4 Acne sob a lupa 

Sendo assim, Lino Arruda abraça as possibilidades de poder ver o lado menos pessimista de uma interpretação sobre seu processo e se encanta com o que o seu corpo é capaz de criar, como podemos ver na Figura 5.

Fonte. Retirado de “Introdução”, por L. A. Arruda, 2021, Monstrans: Experimentando Horrormônios, p. 6. Copyright 2021 de Lino A. Arruda.

Figura 5 Ressignificação  

No Capítulo 1 da obra, intitulado “Terapia de Conversão”, Lino Arruda retorna às suas memórias de infância e ao momento em que, enquanto se debatia com suas dúvidas sobre a descoberta da sexualidade, enfrentava um doloroso tratamento fisioterapêutico por conta de sua deficiência física. O autor nos conta que durante sua gestação sua mãe sofreu um acidente de carro que resultou em uma lesão na formação de sua coluna e membros inferiores. Portanto, desde a infância, Lino precisou lidar com um corpo que não está dentro dos padrões exigidos pela sociedade, mal sabendo ele que este seria só o primeiro de muitos processos médicos e invasivos que estariam por vir. Em entrevista dada à Revista Mina de HQ, em 2022, Lino conta que, em Monstrans, tratou de abordar todas as formas em que o seu corpo é capaz de existir e como ele se encontra na sociedade, rodeado pelos rótulos que começou a receber imediatamente ao nascer:

no Monstrans eu quis trazer esses momentos de convergência entre ser trans, ser deficiente, ter nascido visivelmente deficiente e visivelmente masculina, com o gênero visivelmente meio torto. É um dos momentos em que os discursos são muitos diferentes, como o discurso médico: essa ideia de que eu nasci trans ou de que nasci “no corpo errado”. São discursos convenientes, que trabalham com o objetivo de “arrumar o corpo”, de ter “o corpo correto”. (Vitorelo, 2022, p. 34)

O título do capítulo nos remonta à terapia de conversão da homossexualidade, a chamada “cura gay”, defendida por extremistas conservadores que acreditam que é possível curar a homossexualidade em uma pessoa como se fosse uma doença, tornando-a heterossexual. Sendo assim, o título funciona como um trocadilho quanto ao fato de que as sessões de fisioterapia também seriam uma forma de conversão do seu corpo divergente, tal qual ele narra na Figura 6 e na Figura 7.

Fonte. Retirado de “Terapia de Conversão”, por L. A. Arruda, 2021, Monstrans: Experimentando Horrormônios, p. 22. Copyright 2021 de Lino A. Arruda.

Figura 6 A fisioterapia 

Fonte. Retirado de “Terapia de Conversão”, por L. A. Arruda, 2021, Monstrans: Experimentando Horrormônios, p. 39. Copyright 2021 de Lino A. Arruda.

Figura 7. Intervenções médicas 

O próprio processo fisioterapêutico, que pretendia “consertar” o corpo de Lino, colabora para que o autor contemple sua imagem e enxergue ali a monstruosidade que ele, posteriormente, irá explorar como a potência de sua existência. Mas, como todo processo de mudança e descoberta, além de ser lento, é também doloroso, tanto física quanto emocionalmente, já que é uma criança que está enxergando suas peculiaridades através do discurso indolente da medicina. Portanto, até que chegue o momento da compreensão de si, Lino enfrenta uma batalha interna e, durante um tempo, o espelho, este objeto que revela a ele sua verdade nua e crua, passa a gerar muito desconforto. Na Figura 8, podemos ver um quadro do momento da narrativa em que Lino conta que foi matriculado em uma escola de ballet, a fim de exercitar sua coluna e alinhar a postura. Porém, para o autor, estar em um estúdio rodeado de espelhos somente agravou negativamente a relação com sua imagem.

Fonte. Retirado de “Terapia de Conversão”, por L. A. Arruda, 2021, Monstrans: Experimentando Horrormônios, p. 25. Copyright 2021 de Lino A. Arruda.

Figura 8 A sala de espelhos 

Com o tempo, a relação de Lino com o espelho muda do incômodo para a contemplação, pois o objeto acompanha a transformação do autor, agora como instrumento de estudo e descobertas de si. Na Figura 9, podemos ver que Lino passa a entender as nuances de sua imagem e as especificações de seu corpo que o tornam único, como se, neste momento, ele começasse a abraçar a monstruosidade e tê-la como metáfora de sua autorrepresentação.

Fonte. Retirado de ”Terapia de Conversão”, por L. A. Arruda, 2021, Monstrans: Experimentando Horrormônios, p. 40. Copyright 2021 de Lino A. Arruda.

Figura 9.  Um novo olhar  

O recurso do espelho em uma narrativa autobiográfica em quadrinhos tem a poderosa capacidade de permitir que nós, leitores, tenhamos a chance de observar o processo de autoconhecimento em movimento, narrado enquanto ele acontece ou como memória. Seja como um instrumento de contemplação ou enfrentamento, a verdade é que o espelho elimina as camadas de ilusão que, possivelmente, tenhamos criado sobre nossa imagem e nos escancara a realidade, ainda que sujeita a nossa interpretação. Retornando ao artigo de Vera Bulla (2018), a pesquisadora também fez apontamentos sobre o objeto em sua análise sobre as tirinhas de Laerte Coutinho, já que a personagem Hugo às vezes aparece interagindo com seu reflexo enquanto se monta de Muriel, como podemos ver na Figura 10.

Fonte. Retirado de “Capítulo”, por L. Coutinho, 2005, Hugo Para Principiantes, p. 49. Copyright 2005 de Devir.

Figura 10 Hugo diante do espelho 

Para a autora: “podemos então ponderar que Hugo enxerga, no espelho, a sua beleza feminina e admira uma nova forma de se mostrar ao mundo, vislumbrando uma nova possibilidade, contemplando-a enquanto observa a sua reflexão no espelho” (Bulla, 2018, p. 39). O que nos leva a pensar que esta pode ser mais uma função do objeto espelho, o vislumbre de uma expectativa, como podemos ver no quadrinho de Alice Pereira (2019; Figura 11).

Fonte. Retirado de “Capítulo”, por A. Pereira, 2019, Pequenas Felicidades Trans, p. 9. Copyright 2019 de Alice Pereira.

Figura 11. Pequenas Felicidades Trans 

Através do reflexo, a narrativa pode ser construída a partir, também, de um ponto de vista do futuro, já que o espelho em uma ilustração pode nos mostrar tanto a visão de autorrepresentação do artista quanto o que ele imagina que possa vir a ser o fim de seu processo. Assim sendo, podemos entender que a relação de Lino Arruda com o espelho também permanecia em constante evolução durante sua fase de amadurecimento. A visão monstruosa, que gerava confusão e até vergonha, transformou-se em uma visão monstruosa que fascina e seduz.

4. Conclusão

O uso da monstruosidade como recurso para a autorrepresentação no romance gráfico Monstrans: Experimentando Horrormônios pode vir a decepcionar aquele leitor que acreditou que essa seria uma história de superação de uma pessoa com deficiência, dos desafios da descoberta da transexualidade ou até de transtorno de imagem de um homem transexual. Lino Arruda, pelo contrário, frustra todas as equivocadas expectativas quando nos provoca com sua ousadia e atitude ao, orgulhosamente, desenhar-se disforme e em tons viscerais enquanto explora o estudo de seu corpo, sua imagem e sua técnica.

A cada ser transformado na frente do espelho ou na mesa de fisioterapia, Lino está um passo à frente de quem supôs que aqui encontraria uma narrativa LGBTQIA+ que começa trágica, com momentos de antes e depois da transição de gênero e com um final feliz. Isso porque, para o autor, cada momento de dor ou desafio narrado e desenhado por ele faz parte do processo de refletir sobre os fatos que marcaram sua vida e se mostraram cruciais para seu desenvolvimento. Por isso mesmo, Monstrans não nos dá um fim ou uma conclusão, mas, sim, tira o véu da romantização do sofrimento e nos convida a encará-lo diretamente e de forma honesta e sem rodeios nem lamentações. A cada página, o Lino Arruda criança, adolescente e adulto aprende com os problemas que surgem, os erros que comete e as dificuldades que se colocam em seu caminho, evidenciando a evolução de sua personalidade e o entendimento de si, tornando a trajetória o foco principal do enredo.

Obras como a de Lino Arruda, que apresentam um diferencial para além da tragédia na maneira de se narrar existências marginalizadas, oferecem a oportunidade de entender que as vivências que estão fora dos modelos heteronormativos sociais e dos padrões estéticos não são exceções, mas, sim, outras formas de se existir dentro da sociedade. Porém, ainda temos um longo caminho a percorrer quando o assunto é a abordagem de temáticas travesti/trans em qualquer mídia, quer seja nos quadrinhos, literatura, cinema, televisão, entre outros. Isso porque tais vivências estarão sempre à margem de um sistema opressor e determinante de normatizações. Artistas como Laerte Coutinho e Lino Arruda, que se destacam em seus lugares de fala, cooperam para que outras narrativas possam acontecer e serem ouvidas, ou, nesse caso, lidas e contempladas. A monstruosidade, empregada por Lino como forma de expressar sua autoimagem, surge como uma ação de ressignificação de perspectivas, tanto a dele sobre si quanto da sociedade que o condena, já que ele reivindica o poder de transformar o preconceito e a transfobia em motivações para sua arte, movimento que também acontece em outras manifestações artísticas, como ele mesmo nos apresenta em sua tese de doutorado.

O romance gráfico pode ser considerado uma categoria de acolhimento de dissidências, já que suas características podem ser atrativas para a livre criatividade e independência produtiva, acenando para artistas que buscam por um espaço democrático e libertador em que possam ir para além das formas dos quadrinhos mais tradicionais. Apesar dos desafios que se colocam no caminho de quem intenta pela liberdade de expressão, desde questões financeiras ou, até mesmo, questões pessoais, o romance gráfico vem crescendo no Brasil de maneira bastante positiva. Artistas como Lino Arruda, que abordam a temática queer em seus trabalhos, estarão sempre galgando um caminho desafiador em nome da luta pelo direito de existir. Cabe a nós, leitores, financiadores, pesquisadores e apreciadores da nona arte continuarmos nessa empreitada esperançosa para que mais artistas possam surgir a cada dia, fortalecendo a resistência e a defesa de vivências LGBTQIA+.

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1Neste artigo, a identificação da obra selecionada para análise será como “romance gráfico”, a fim de enfatizar a característica narrativa que tais produções assim classificadas apresentam, enquanto a palavra “quadrinhos” terá a função de classificar a totalidade da categoria.

2“O termo underground talvez tenha vindo da revista Time que usou a expressão para se referir a filmes de Andy Warhol e, depois, aos jornais que pipocaram na época. Como os quadrinhos apareceram nos jornais, ganharam essa alcunha” (Moreau & Machado, 2020, p. 441).

3Zines são produções editoriais de baixo custo utilizadas para publicação e distribuição de conteúdo independente, normalmente ilustrações, poesias, manifestos e uma sorte de vários temas, podendo ser distribuídos gratuitamente ou não. Podem ser de publicação particular ou coletiva, dependendo de sua proposta. Muito presentes no movimento punk nos Estados Unidos, logo ganharam o mundo por se tratar de produções de baixo orçamento que poderiam ser adquiridas facilmente, ainda que de maneira clandestina. Na América Latina, a produção de zines ainda é bastante comum, destacando-se, no Brasil, de forma mais efervescente dentro de círculos literários durante a época da chamada “Poesia Marginal”.

4O conceito de “complexion” refere-se à complexidade das injunções sociais que cada indivíduo carrega consigo. Segundo Chantal Jaquet (2014), a complexion é composta por múltiplas dimensões (como gênero, raça, religião, orientação sexual, etc.) que se sobrepõem e interagem entre si para moldar as trajetórias individuais. A complexion é dinâmica e pode mudar ao longo do tempo, à medida que novas injunções sociais são incorporadas ou antigas são abandonadas.

5“Termo que se refere, pejorativamente, à América Latina e a seus habitantes. Seu emprego se dá especialmente a partir dos fluxos migratórios dos anos 1990 no contexto espanhol, visando a interpelação negativa de imigrantes latino-americanos. Neste trabalho, a apropriação dessa terminologia visa evocar os tensionamentos xenofóbicos/raciais e ressignificar seu uso e sentido original” (Arruda, 2020, p. 15).

6São eles: Sapatoons (2011); Anomalina (2013); Quimer(d)a #1 (2015); Quimer(d)a #2 (2018) e Peitos (2018). Ver mais em https://www.linoarruda.com.

7Publicado originalmente como “How Bodies Come to Matter: An Interview With Judith Butler” (Como os Corpos Passam a Ter Importância: Uma Entrevista com Judith Butler), em Signs: Journal of Women in Culture and Society, em 1998, pela The University of Chicago Press. Traduzido para o português com permissão da University of Chicago Press em 2002.

8“Esta é a imagem mais conhecida da série de 80 gravuras em aquatinta de Goya, publicada em 1799, conhecida como ‘Los Caprichos’, geralmente entendida como a crítica do artista à sociedade em que viveu. Goya trabalhou na série por volta de 1796-98 e muitos desenhos para as impressões sobreviveram. A inscrição no desenho preparatório para esta impressão, agora no Museu do Prado em Madri, indica que foi originalmente concebida como a página de título da série. Na edição publicada, essa estampa passou a ser a chapa 43, número que podemos ver no canto superior direito” (The Metropolitan Museum of Art, s.d.).

9Exemplos de algumas produções brasileiras: Arlindo (2021), da artista Luiza de Souza (Ilustralu); Quadrinhos Queer (2021), organizado por Ellie Irineu, Gabriela Borges e Guilherme Smee; Sob a Luz do Arco-Íris (2020), organizado por Mário César Oliveira; Revista Mina de HQ (https://www.minadehq.com.br), publicação anual, organizada por Gabriela Borges.

Recebido: 01 de Abril de 2023; Aceito: 12 de Junho de 2023

Camila Luiza Lelis é doutoranda em Letras: Linguagens e Representações - Linha C: Linguagem e Estudos de Gênero, na Universidade Estadual de Santa Cruz - Bahia. Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). Mestra em Letras: Teoria Literária e Crítica da Cultura pela Universidade Federal de São João del-Rei - Minas Gerais (2016). Graduação em Letras pela Universidade Federal de São João del-Rei - Minas Gerais (2012). Pesquisadora nas áreas de: Semiolinguística; Quadrinhos; Estudos De Gênero; Estudos Queer; Estudos Decoloniais; Estudos Feministas; Produção Autobiográfica. Email: cllelis@uesc.br Morada: Universidade Estadual de Santa Cruz, Programa de Pós-graduação em Letras: Linguagens e Representações, Campus Soane Nazaré de Andrade, Rod. Jorge Amado, Km 16 - Salobrinho, CEP: 45662-900, Ilhéus - BA, Brasil.

Marcus Antônio Assis Lima possui pós-doutorados em Linguagens e Representações pelo Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagens e Representações da Universidade Estadual de Santa Cruz - Bahia (2018) e em Media & Communications (Goldsmiths College/University of London, 2013/2014). Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos (2008) em Análise do Discurso e mestrado em Comunicação e Sociabilidade (2000), ambos pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente é professor titular, dedicação exclusiva, do curso de jornalismo (2006) e do Programa de Pós-Graduação em Letras: Cultura, Educação e Linguagem (2012), na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. É coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras: Cultura, Educação e Linguagens - PPGCEL (2021- 2023) e do grupo de trabalho Homocultura e Linguagens da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (2021-2023). Foi coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras: Cultura, Educação e Linguagens (2014-2020). Foi coordenador da Área de Comunicação do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, entre 2007 e 2011, diretor sindical da Associação dos Docentes da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (2008-2012) e pesquisador-líder do Núcleo de Pesquisa em Jornalismo da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (2007-2019). Email: malima@uesb.edu.br Morada: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Departamento de Filosofia e Ciências Humanas, Colegiado do Curso de Comunicação. Estrada do Bem Querer, Km 4, Universitário. CEP: 45083900, Vitória da Conquista, BA - Brasil

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