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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

Print version ISSN 2184-0458On-line version ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.9 no.2 Braga Dec. 2022  Epub May 01, 2023

https://doi.org/10.21814/rlec.3989 

Varia

Lazer & COVID-19: Corpos Proibidos e Alterações nas Dinâmicas de Lazer nas Cidades da Maia (Portugal) e Curitiba (Brasil)

Fernanda Gonçalves de Castro1  2  , Concetualização, análise formal, investigação, metodologia, recursos, validação, visualização, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-0010-8463

Maria Manuel Baptista1  , Concetualização, investigação, metodologia, recursos, supervisão, validação, visualização
http://orcid.org/0000-0002-1465-4393

Simone Rechia3  , Concetualização, análise formal, investigação, recursos, supervisão, validação, redação do rascunho original
http://orcid.org/0000-0002-2145-252X

1Centro de Línguas, Literaturas e Culturas, Universidade de Aveiro, Aveiro, Portugal

2Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal

3Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil


Resumo

Este artigo pretende colocar no cerne de uma reflexão crítica, política e teórica as alterações nas dinâmicas de lazer urbano, nomeadamente, nas cidades da Maia (Portugal) e Curitiba (Brasil), fruto da pandemia de COVID-19. Consideramos, sob a lente dos estudos culturais, que a COVID-19 constitui uma oportunidade fundamental e única para compreender os fenómenos humanos em torno de uma situação sanitária limite que acionou e continua a acionar processos biopolíticos e mecanismos de controlo tecnológico na mobilidade e lazer dos corpos. Este artigo destaca a forma como a pandemia diluiu as fronteiras entre o doméstico, trabalho e lazer, muito em serviço e benefício do sistema neoliberal e capitalista. Recorrendo a uma recolha etnográfica (realizada entre março de 2020 e junho de 2021), à análise qualitativa de dados e aos contributos teóricos de Foucault (1979/1998, 1996/1999, 1975/2002, 1994/2006, 2010a, 1976/2010b), Deleuze (1992, 1995), Certeau (1980/1994, 1993/1995), Haraway (1997, 2018), Braidotti (2020) e Mbembe (2003/2018) numa articulação muito particular com o locus, o contexto social e político dos espaços e as consequências pandémicas que atuam de uma forma muito específica e insidiosa em cada um dos espaços, foi possível verificar que o lazer é, na pandemia, (re)valorizado e reivindicado como direito fundamental em face da regulação, controlo e disciplina dos corpos. Os dados indicam que os sujeitos reclamam a mobilidade e os espaços perdidos, desafiando a ordem, a lei e a autoridade implementadas. Evidenciou-se, igualmente, uma pertinente articulação teórica e empírica entre as políticas sanitárias implementadas e as performances disruptivas e subversivas observadas, que apresentam, no tempo e no espaço, uma gradação e progressão da subversão dos corpos nos parques de lazer, locus privilegiado da liberdade.

Palavras-chave: lazer; COVID-19; pandemia; corpo; políticas públicas

Abstract

This article intends to place, at the heart of a critical, political, and theoretical reflection, the changes in urban leisure dynamics, namely in the cities of Maia (Portugal) and Curitiba (Brazil), the fruit of the COVID-19 pandemic. We believe, through the lens of cultural studies, that COVID-19 constitutes an essential and unique opportunity to understand human phenomena around an extreme health situation that triggered biopolitical processes and technological control mechanisms in the mobility and leisure of bodies and continues to do so. This article highlights how the pandemic has blurred the domestic, work, and leisure boundaries, much to the service and benefit of the neoliberal and capitalist systems. Our methods combined ethnographic collection (conducted from March 2020 through June 2021), qualitative data analysis, and theoretical contributions by Foucault (1979/1998, 1996/1999, 1975/2002, 1994/2006, 2010a, 1976/2010b), Deleuze (1992, 1995), Certeau (1980/1994, 1993/1995), Haraway (1997, 2018), Braidotti (2020) and Mbembe (2003/2018) in a very particular articulation with the locus, the social and political context of the spaces and the pandemic consequences acting in a very specific and insidious way in each one. We were able to verify that, in the pandemic, leisure is (re)claimed and valued as a fundamental right in the face of regulation, control, and discipline over bodies. Data indicate that subjects reclaim their lost mobility and space, challenging the order, law, and authority put in place. A pertinent theoretical and empirical articulation was also evidenced between the sanitary policies in place and the observed disruptive and subversive performances, which show, in time and space, a gradation and progression of the subversion of bodies in leisure parks, which are privileged loci of freedom.

Keywords: leisure; COVID-19; pandemic; body; public policy

1. COVID-19: “A Praga Chinesa”

Nada faria prever que a entrada na segunda década do século XXI traria uma pandemia capaz de alterar e fazer estremecer, violentamente, o quotidiano de todos, sem exceção. O mundo conheceu, neste século, a segunda pandemia. No entanto, a mais grave e com maiores implicações sociais, económicas e políticas. A COVID-19 entra para o álbum das pandemias como uma das maiores provações e testes à humanidade, desde a peste bubónica, varíola, cólera, a gripe suína (H1N1) e a gripe espanhola, esta última à qual se atribuiu também uma nacionalidade.

Embora a origem do novo coronavírus seja ainda desconhecida, a guerra ideológica, o conflito político mundial, a influência hegemónica das políticas ocidentais e o movimento político de extrema-direita ditam o locus dos mais fortes e dos mais fracos, atribuem nacionalidades a vírus, veiculam informações que dão conta de teorias da conspiração, que envolvem a fabricação de vírus e menorizam a influência mortal e nefasta da COVID-19 na vida/morte da humanidade. Um “vírus democrático” que não olha à idade, profissão, estatuto social ou económico. Algumas agências noticiosas veicularam que o novo coronavírus surgiu num mercado popular situado na província de Wuhan, na China. À medida que os apelos de vozes confinadas, e esperançosas no futuro, ecoavam a partir do espaço doméstico e se disseminavam por bairros, cidades, países e pelo mundo, simbolizadas por um arco-íris postulando que “andrà tutto bene” (tudo vai ficar bem), brados dissonantes e ditatoriais atribuíam, numa intensa disputa geopolítica, uma nacionalidade estigmatizante ao novo coronavírus e às suas diversas variantes ou estirpes: “vírus chinês”, estirpe ou variante amazónica, britânica, sul-africana, californiana, mexicana, filipina e indiana1. Donald Trump (Trump Volta a Culpar China por “Deixar a Praga Escapar” e Troça de Biden por Usar Máscara, 2020), Mike Pompeo (Mike Pompeo Afirma que Existem “Imensas Provas de que Coronavírus Vem de Laboratório em Wuhan”, 2020), Aleksandr Lukashenko (Lopes, 2020), Jair Bolsonaro (“Da ‘Gripezinha’ à Imunidade do Brasileiro: Dez Momentos em que Bolsonaro Desvalorizou a Covid-19”, 2020) apelidaram, jocosamente, o coronavírus de “praga chinesa”2, “gripezinha” fanta- siosa, “vírus chinês” “criado num laboratório em Wuhan” que se cura com uma “vodka” ou com a “milagrosa” cloroquina. Compactuaram na propagação de desinformação e fake news, declinando, inclusive, qualquer responsabilidade pela gestão desastrosa, danosa e genocida da pandemia ou implementação de estratégias de combate à elevada mortalidade que se registou nos Estados Unidos da América (período Trump) e no Brasil (período Bolsonaro): uma estratégia necropolítica genocida, de deixar viver/ morrer, ou se quisermos ser mais cruamente teóricas, um homicídio indireto de que nos fala Rosi Braidotti (2020), Achille Mbembe (2003/2018) e Michel Foucault (1979/1998, 1976/2010b), que serve a interesses mais obscuros e menos humanos.

A atuação e (in)ação de países com uma governação negacionista perante o cenário pandémico é a clara expressão de uma prática de poder soberano, tecnologicamente mediado, “capaz de ditar quem pode viver e quem deve morrer ( ... ). Ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder” (Mbembe, 2003/2018, p. 5). No contexto pandémico, não se trata de eliminar inimigos do estado, mas, por via naturalmente biológica, eliminar, por inação, incompetência e/ou estratégia necropolítica, os sujeitos que menos interessam economicamente ou que não servem à engrenagem ou dinâmica neoliberal e capitalista dos estados.

Durante a primeira fase da pandemia, os efeitos da COVID-19 foram claramente devastadores, não só no corpo dos que foram atingidos pela enfermidade, como também nos seus entes queridos que choram, ainda, perdas irreparáveis, num processo de luto desumano, dor irracional e (ir)real, enquanto assistem a manifestações de negacionistas da pandemia.

Nos primeiros meses da pandemia, os efeitos sociais, pessoais, políticos e económicos do confinamento total dos corpos e das mentes dos sujeitos eram visíveis e de uma magnitude da qual não havia memória: recessão económica, instabilidade política, aumento abrupto do desemprego e da ajuda alimentar, obesidade, depressão, violência doméstica, aumento da carga de trabalho doméstico e stress associado a uma distribuição desigual de tarefas (Bonalume, 2020; Coelho et al., 2021; Instituto Nacional de Estatística, 2021; Teixeira et al., 2022; United Nations, 2020; World Health Organization, 2022a, 2022b).

O período de início e fim do estado de emergência, em Portugal, vigorou entre o dia 18 de março de 2020 e 30 de abril de 2021 e no Brasil entre o dia 4 de fevereiro de 2020 e 22 de maio de 2022. A COVID-19 provocou mudanças profundas não só pela forma como as políticas resguardaram, proibindo a mobilidade dos corpos dos sujeitos, mas também pela forma como estes sujeitos se apropriaram das medidas e as subverteram, a lei e as normas, em nome do direito fundamental ao lazer que, curiosamente, se distingue pela sua ausência enquanto direito fundamental na Constituição da República Portuguesa (1976) e a sua presença na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (1988). Com efeito, é nessa ausência, em Portugal, que nos apercebemos da necessidade do lazer como direito fundamental em pleno contexto pandémico e de confinamento. Entretanto, no Brasil este direito é assegurado constitucionalmente, mas, na prática, não se efetiva. Pretendemos, deste modo, lançar um olhar atento, crítico e político às profundas alterações nas dinâmicas do lazer em parques/ecocaminhos, praças e ruas (neste caso em particular com o exemplo do ecocaminho da Maia, Portugal, e o Parque São Lourenço/ciclovias de Curitiba, Brasil). Pretendemos igualmente analisar as medidas implementadas, expressões do poder público e do controlo regulatório sobre os corpos (Foucault, 1979/1998, 1976/2010b), bem como fenómenos de apropriação/negociação/implosão dessas mesmas medidas pelos sujeitos seus usuários. Sob o paradigma teórico foucaultiano, tencionamos interrogar o lazer no contexto pandémico e as suas implicações nas dinâmicas do lazer.

2. Metodologia

Esta pesquisa foi desenvolvida durante a vigência do estado de emergência em decorrência da pandemia de COVID-19 e, por esta razão, o contexto temporal em que este estudo decorreu ofereceu-nos, em tempo real, dados reveladores do impacto da COVID-19 e das políticas públicas de saúde nas práticas de lazer dos sujeitos. O facto de captarmos, in loco e em tempo real (sem contacto direto - entrevista - devido ao elevado risco de contágio vigente no período em que foi realizado o estudo), as práticas dos sujeitos diante das políticas sanitárias na altura vigentes e das proibições fundamentadas científica e legalmente, e que influenciam diretamente a sua mobilidade, permitiu-nos:

  • revelar a exposição e as práticas dos sujeitos face a um lazer que é atravessado e afetado por uma pandemia;

  • compreender o impacto de processos e mecanismos de controlo (necessários, no caso da pandemia de COVID-19) nos corpos e que eram, a priori, profundamente naturalizados e subtis, dada a ausência de um contexto limite, instável e incerto;

  • compreender o contexto marcado pelo seu ineditismo, magnitude e exacerbação, colocando os sujeitos numa matriz de desnaturalização face aos novos e evidentes mecanismos de controlo sanitário e tecnológico

A realidade pandémica, contexto de crise que potencializa práticas excecionais ou atípicas, ofereceu uma espécie de lente de aumento que revela práticas disruptivas que, segundo a articulação entre os dados recolhidos e a teoria disponível, coloca em evidência a atuação de mecanismos de poder sobre os corpos e práticas sanitárias necessárias que revelaram, consequentemente, processos de resistência às mesmas em defesa e reivindicação do direito ao espaço público e ao lazer. Contudo, embora não defendamos estas mesmas práticas disruptivas ou resistências à lei e não nos posicionemos contra a obrigatoriedade ao confinamento, como cientistas culturais seria imprudente descurar esta problemática ou negligenciar a existência destas práticas. As práticas observadas diante das medidas sanitárias adotadas não representam o posicionamento e a opinião pessoais das autoras. Esta investigação, servindo-se de uma metodologia de observação etnográfica com análise qualitativa posterior, estuda o lazer atravessado por uma situação limite e inédita.

Para a realização deste estudo empírico, recorremos à recolha etnográfica e análise qualitativa dos dados (Bardin, 1977/2007; Guerra, 2010), que integrou uma seleção de fotografias captadas, por nós, no período de observação entre março de 2020 e junho de 2021, e que abarca três contextos distintos: o pré-estado de emergência, a vigência do mesmo, o pós-estado de emergência e período de vacinação, na sequência da pandemia de COVID-19. Aliado ao levantamento fotográfico no ecocaminho da cidade da Maia/ Portugal e na cidade de Curitiba/Brasil, procedeu-se à mobilização de um aporte teórico proveniente dos estudos culturais, que interroga o que as fotografias expressam (ditos) e ocultam (não-ditos).

A recolha de material fotográfico foi realizada entre março de 2020 e junho de 2021. Captámos as performances dos corpos e as marcas deixadas por eles no locus do lazer: o ecocaminho da Maia, um troço do antigo caminho de ferro de Guimarães, cuja extensão é de cerca 3.300 m, num contexto de restrições extremas à mobilidade. Já em Curitiba, a opção foi perceber tais práticas no Parque São Lourenço, com uma área de 203.918 m2 e nos 9 km de ciclovias, que saem do referido parque até ao centro da cidade.

Procedemos à organização e divisão cronológica do material recolhido, articulando-o com as políticas e decisões adotadas no contexto pré-, durante e pós-estado de emergência. Evidenciou-se a importância desta articulação e configuração não só pela organização do manancial de dados recolhidos, mas também porque a hipótese inicial sugeria a possibilidade de encontrarmos resultados teoricamente relevantes e pertinentes no que à pandemia de COVID-19 diz respeito, permitindo-nos explorar teoricamente o lazer como necessidade, direito e subversão à ordem imposta de confinamento, tal como observado neste estudo. Os dados recolhidos em 15 meses de observações, durante a pandemia, permitiram-nos atingir a saturação teórica e empírica (Guerra, 2010; Schnapper, 1999/2000), evidenciando uma clara e inegável articulação entre as performances observadas, a gradação ou progressão da subversão dos corpos, as políticas pandémicas e a exploração teórica de conceitos chave como a “biopolítica”, “biopoder” e “extensões tecnológicas” (Braidotti, 2020; Deleuze, 1992; Foucault, 1979/1998, 1996/1999, 1975/2002; Haraway, 1997, 2018; Haraway et al., 1985/2009).

3. Entre Dois Mundos: COVID-19 no Brasil, um Caso de Destruição e Precariedade

Conscientes de que há muitas diferenças entre o Brasil e Portugal, entre elas políticas, económicas, culturais, intitulamos esta secção “Entre dois mundos”. Partimos da ideia geral de que a crise é global, mas gera impactos diferenciados a nível local: “trata-se de distinguir operações quase microbianas que proliferam no seio das estruturas tecnocráticas e alteram o seu funcionamento por uma multiplicidade de ‘táticas’ articuladas sobre os ‘detalhes’ do quotidiano” (Certeau, 1993/1995, p. 41). Tais operações distinguem-se entre países e, neste sentido, questionamos como é que as diferenças entre os sujeitos, cidades, nacionalidades, territórios, no espaço público praticado se estabelecem, convivem, tensionam ou se combinam dentro do caldeirão globalizante das culturas. Para o autor precisamos de interrogar “como é que uma sociedade inteira não se reduz a este processo ( ... ) que procedimentos populares (minúsculos e quotidianos) jogam com estes mecanismos e não se conformam com eles a não ser para alterá-los” (Certeau, 1980/1994, p. 41).

Neste momento contamos com um vírus em “mutação”, com casos a ocorrer indiscriminadamente, com diferentes impactos que afetam de forma um pouco mais branda alguns países que já detinham políticas públicas avançadas no âmbito estrutural e cujo impactos são solucionados rapidamente. Já em outros países mais periféricos e desestruturados, tais impactos adquirem efeitos perversos, como é o caso do Brasil, com o número médio de mortes diárias a ascender as 2.390 vítimas por COVID-19 (Marins et al., 2021). Estes dados fazem-nos refletir até que ponto esta drástica experiência mundial da COVID-19 nos separa em dois “mundos”, isto é, o mundo dos países ricos e centrais, com mais acesso à prevenção e vacinas versus países pobres e periféricos sem acesso às estruturas urbanas básicas e às vacinas para todos e todas. Estamos, portanto, diante de mundos desiguais em termos de bem-estar social, onde em alguns casos se escolhe entre os que devem viver ou morrer, pobres ou ricos, velhos ou jovens, informação ou desinformação, verdades ou mentiras, cuidado ou falta de atenção, democracia ou autocracia, controle ou liberdade, entre tantas outras ambiguidades e tensões trazidas à tona com a atual crise sanitária mundial.

O Brasil depara-se com precariedades agudas, as quais geram transformações sucessivas e radicais em diferentes cidades e corpos, alterando as práticas quotidianas e afetando de forma perversa os já dramáticos problemas sociais do país. Tais problemas sociais exigem análises relacionadas à política, educação, saúde, ciência, hábitos, costumes, normas sociais e morais, saneamento básico, moradia, planeamento urbano, lazer e cultura, entre outras. Há, portanto, um claro agravamento dos problemas, acentuados pela atual crise sanitária, os quais ampliam e potencializam as (micro)resistências e apropriações dos diferentes espaços públicos de lazer (Neca & Rechia, 2020).

Atualmente, no Brasil, percebe-se em determinadas ações e práticas políticas o uso de uma narrativa, em dadas ocasiões, ancorada no negacionismo do fator letal do vírus, induzindo determinadas populações, especialmente a classe trabalhadora, com menor acesso a informação e com marcadores sociais da diferença como raça, género, idade, etnia e poder sócio económico, a uma falsa ideia de segurança e controle sobre os seus corpos. Ocorre que, por vezes, os discursos utilizados para validar tais políticas negacionistas podem acabar reforçando alguns estereótipos, segregações, empobrecimento e até mesmo a morte em determinados grupos. Observamos o conceito de “necropolítica” materializado no Brasil. Questionamos: será que o estado possui ou não legitimidade para decidir quem deve viver e quem deve morrer em prol da manutenção de ordem económica do país (Mbembe, 2003/2018)?

Vale ressaltar também que agregados a este conceito estão os conceitos de “biopolítica” e “biopoder”, cunhados por Foucault (1975/2002), que serão apontados e desenvolvidos nas seções posteriores, que demonstram que o poder sofreu “mutações” durante o processo civilizatório, fragilizando as relações sociais nas cidades modernas e, principalmente, nas narrativas oficiais. Para o autor supracitado, a civilização moderna foi impactada por várias transformações nas suas estruturas de poder e saber, pois, os conhecimentos, as leis e políticas transformaram-se no transcorrer da história, impactadas ainda mais após a revolução industrial e aceleradas na atualidade com mudanças radicais nas “maneiras de fazer” nos grandes centros urbanos, resultando em estratégias governamentais questionáveis. A partir deste marco, a tecnocracia gerou saberes e estratégias que visam controlar mazelas urbanas, como por exemplo: a aglomeração, higienização dos espaços públicos, epidemias, organização da economia, manutenção da ordem, regulação das experiências de lazer, organização sistemática das cidades e das suas infraestruturas básicas. Tais aspetos geraram simultaneamente uma crise política, económica e democrática, as quais se influenciam mutuamente, especialmente no Brasil atual, não colocando fim aos conflitos entre mundos desiguais.

A higienização urbana a partir do controle dos corpos e das atividades quotidianas da população evidenciam a supremacia de um determinado grupo sob outro, ou seja, os mais estabelecidos definem quem deve sair para trabalhar, quais atividades são entendidas como essenciais, os dias e horários de funcionamento, regulando a vida do trabalho, social e cultural a partir de decretos, que geralmente atingem a classe trabalhadora de forma mais cruel, com os seus corpos sempre em risco. Para Mbembe (2003/2018), fica evidenciado que a “necropolítica é o poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer. O corpo ‘matável’ é aquele que está em risco de morte a todo instante” (p. 18). Neste sentido, no Brasil, alguns factos da história reforçaram a ideia de que em nome do poder de alguns é possível retirar vidas de certos grupos, através da desqualificação da pessoa, dos seus corpos, das comunidades mais vulneráveis (como por exemplo, no Brasil, banalizando e normalizando os 21 anos de ditadura, os 300 anos de escravatura, a guerra do tráfico, a violência urbana, criminalidade, femicídio, entre outros). Esta realidade fortalece a visão de que existem lugares subalternizados e que algumas vidas, que “valem menos”, podem ser extintas ou desumanizadas e os seus corpos descartados.

Estas políticas estão em pleno curso no Brasil e, infelizmente, amplamente aceites, com base no poder exercido pelo estado e pelas suas estruturas administrativas (Castilho et al., 2021). Desta maneira, por meio do discurso oficial, tais práticas tornaram-se aceitáveis, mesmo induzindo a exclusão de determinados grupos.

A BBC News Brasil, a 7 de julho de 2020, publicou uma reportagem intitulada Relembre Frases de Bolsonaro Sobre a Covid-19, onde aponta os discursos do estado a partir de algumas categorias de análise como: “a questão do vírus está superdimesionada”; é uma “gripezinha”; “vamos todos morrer um dia”; “e daí?”; “cobre do seu governador”; “não precisa de entrar em pânico”, entre outras. Tais discursos deixam claro que desde o início da pandemia do novo coranavírus, o Presidente Jair Bolsonaro tem vindo a minimizar e a desconsiderar a gravidade da COVID-19, passando à população mensagens que contradizem as orientações mundiais das autoridades da saúde. Assim, mais do que os problemas causados pela COVID19 em si, a pandemia traz questionamentos sobre problemas políticos, sociais e de infraestruturas, cujo debate e reflexão são fundamentais.

Vale ressaltar que mesmo estando sujeitos a determinadas estratégias, os sujeitos articulam astúcias - elaboram outras maneiras de subverter os mecanismos que lhes são impostos os quais, para Certeau (1980/1994) são “maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem económica dominante” (p. 91).

4. COVID-19 e Biopolítica: Corpos e Palcos Proibidos

A pandemia de COVID-19 demonstrou, de forma clara e evidente, que o lazer é fulcral na manutenção das mentes e corpos dos sujeitos e de uma certa dinâmica social. Aliás, o trabalho/emprego sempre foi hipervalorizado, conferindo uma importância essencial e até definidora dos próprios sujeitos, situação que não pode deixar de se articular à influência neoliberal e capitalista do mercado, que compreende os sujeitos não só como objetos produtores de riqueza, mas também consumidores de produtos. Para Baptista (2016),

o tempo livre, tempo de não-trabalho, só passa a ter interesse para o sistema económico contemporâneo, enquanto pode ser uma atividade também económica, estando os sujeitos eterna e constantemente convocados para participar do mercado, quer enquanto consumidores, quer enquanto produtores de bens. (p. 28)

Na gestão do seu tempo útil e ativo, a humanidade circula num processo vicioso e insidioso, fomentado pelo sistema económico e capitalista, que se divide entre produção e consumo. Segundo Baptista (2016), “a razão ocidental dedicou-se a promover o trabalho como um valor indiscutível, desvalorizando o outro tempo que se lhe opõe: o tempo do lazer” (p. 21).

O tempo livre permite aos sujeitos o retemperar de energias para que, logo, o homem/corpo-máquina, explorado e amestrado intensivamente (Foucault, 1976/2010b; Lafargue, 1977/2011), regresse à produção e que, nessa fração de tempo, possa ele próprio gastar o fruto do seu mister, o que constitui, inclusive, uma benesse do sistema. A pandemia de COVID-19 e o confinamento regulatório a ela associada originou a supressão de hábitos e dinâmicas de lazer retemperadoras do esforço braçal e intelectual dos sujeitos, oprimindo-os, como se, uma vez que não dispõem de trabalho, ou não se encontram nas habituais condições de produção no contexto do mercado, não tivessem qualquer direito ao lazer (Figura 1 e Figura 2).

Créditos. Fernanda de Castro e Maria Manuel Baptista

Figura 1 Ecocaminho da Maia (Portugal), 16 de março de 2020, em período de pré-estado de emergência (primeiro confinamento geral) 

Créditos. Simone Rechia

Figura 2 Parque São Lourenço (Curitiba/Paraná/Brasil), em maio de 2020. Sob bandeira vermelha (alto risco para contágio da COVID-19) 

Com a pandemia do coronavírus, a tensão entre capital, trabalho e lazer, não só através da soberania política, mas também da influência do poder do capitalismo, mostra nitidamente a forma como as relações de poder afetam as nossas vidas. Entendemos que num contexto opressivo das liberdades individuais, os sujeitos agem como se, consciente ou inconscientemente, reconhecessem a importância do lazer nas suas vidas e nos seus corpos: suspender o lazer constitui uma agressão concreta à dinâmica da vida dos sujeitos, no fundo, à sua própria humanidade. Foi necessário viver com o corpo as restrições à mobilidade para entender e valorizar a importância do lazer e a forma como o biopoder e as dinâmicas de poder regulam a vida (Foucault, 1979/1998, 1976/2010b), uma vez que a clivagem entre trabalho e lazer se diluiu com o teletrabalho e o confinamento obrigatório, por exemplo. A ideia de que o ócio e o lazer eram sinónimos de preguiça, vadiagem ou moralmente condenáveis contribuiu para esta desvalorização e a imagem negativa que o tempo livre ainda representa (Baptista, 2016).

Embora se possa pensar no lazer como direito fundamental e indiscutível, sobretudo depois de um confinamento total longo e com demasiadas consequências e implicações sociais, económicas e culturais, a verdade é que o direito ao lazer, ao contrário do que postulam Gorz (2013) e Doistua (2006), não parece ser um direito universal quando analisamos a Constituição da República Portuguesa (1976) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), em que se exclui do direito ao lazer, especificamente no que se refere aos desempregados, grupos sociais frágeis, idosos, que não têm lugar na engrenagem produtiva, desenfreada e exploradora da estrutura capitalista, uma vez que o trabalho se constitui como valor absoluto neste sistema.

As relações de poder que atravessam a sociedade através de conceções e discursos hegemónicos docilizam, policiam, domesticam os corpos para explorar e extorquir, ao máximo, os seus recursos produtivos (Foucault, 1979/1998; Hall, 1992/2006). O direito ao lazer, especificado no primeiro ponto do artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa (1976) e no Artigo 24 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) são, assim, apenas reservados aos trabalhadores, particularmente aos que produzem, colaboram e contribuem para o mercado capitalista.

1. Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito: ( … ) d) ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas. (Constituição da República Portuguesa, 1976, Artigo 59)

“Toda a pessoa tem o direito ao repouso e aos lazeres e, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e a férias periódicas pagas” (Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948, Artigo 24).

Embora o direito ao lazer não tenha um caráter universal na Constituição Portuguesa, a verdade é que nos vários decretos e orientações da Direção-Geral da Saúde, no contexto pandémico, o lazer está presente e encontra-se essencialmente articulado com a atividade física, o que, segundo a Direção-Geral da Saúde, acarreta grandes riscos e potencialidade de transmissão vírica elevada. Embora controlado e, por vezes, proibido nos locus específicos por apresentarem grande potencial de transmissão do vírus (parques, jardins, passadiços, ecocaminhos), o tema do lazer encontrou expressividade nas políticas e medidas adotadas, mesmo dentro de um regime de medidas de restrição de direitos, liberdades e fiscalização dos comportamentos e corpos:

os cidadãos ( ... ) só podem circular em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, para algum dos seguintes propósitos: Deslocações de curta duração para efeitos de atividade física, sendo proibido o exercício de atividade física coletiva. (Decreto n.º 2-A/2020, 2020, pp. 2-3)

“Passa a ser admitida a atividade física e a prática desportiva ao ar livre que não envolva contacto físico, desde que no respeito de regras de higiene e sanitárias” (Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, 2020, p. 10).

Consideram-se deslocações autorizadas aquelas que visam: ( ... ) h) Deslocações a bibliotecas e arquivos, bem como a espaços verdes e ao ar livre em museus, monumentos, palácios e sítios arqueológicos ou similares; i) Deslocações para efeitos de atividade física e prática desportiva individual e ao ar livre. (Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, 2020, p. 13)

Já no Brasil o direito ao lazer está garantido no Artigo 6 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (1988): “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (Capítulo II dos Direitos Sociais, Artigo 6), mas a descentralização, democratização e o acesso ainda são barreiras para o exercício pleno desse direito, sobretudo, nas comunidades económica e socialmente mais frágeis e vulneráveis.

A 16 de março de 2020, Curitiba encontrava-se em situação de emergência em saúde pública, confirmado pelo Decreto Nº 421 (2020). Também em Curitiba, no Diário Oficial do Município, as determinações, suspensões e proibições são semelhantes às portuguesas:

onde há portões, eles ficarão totalmente fechados. Nas unidades não gradeadas, os estacionamentos continuam restritos. É o caso dos parques Barigui, Tingui e Náutico, São Lourenço por exemplo. O acesso a esses locais e o estacionamento irregular serão monitorados e fiscalizados por agentes de trânsito e guardas municipais. ( ... ) Nos parques está permitida exclusivamente a prática de atividades individuais ao ar livre, com uso de máscaras, sem contato físico entre as pessoas e com distanciamento social. (Decreto Nº 520, 2021, p. 7)

“Espaços de prática de atividades desportivas coletivas localizados em praças e demais bens públicos e privados, estendendo-se a vedação aos condomínios e áreas residenciais” (Decreto Nº 520, 2021, p. 5).

Para Foucault (1994/2006), o poder emerge através dos discursos: “o poder é alguma coisa que opera através do discurso, já que o próprio discurso é um elemento num dispositivo estratégico de relações de poder” e “estabelece e regula o que pode ser dito em determinadas condições sociais e culturais” (pp. 253-254), mas também a autoridade de quem pode falar. Durante a pandemia, o corpo foi e continua a ser regulado e disciplinado por orientações higiénicas e disciplinares, medidas e decretos produzidos pelo governo com a ajuda e assessoria da tecnologia (Deleuze, 1992; Haraway, 2018; Haraway et al., 1985/2009) que, ao mesmo tempo que contém e protege “alguns” corpos, também os aprisiona em nome da saúde e bem coletivos, seguindo uma gestão biopolítica (Foucault, 1979/1998, 1996/1999, 1975/2002, 1994/2006): etiqueta respiratória, lavagem recorrente das mãos seguindo um ritual temporizado, a preferência por espaços com pouca movimentação de pessoas (Direção-Geral da Saúde, 2020b); o recolhimento ou confinamento obrigatório ou profilático dos corpos, especialmente os mais frágeis e idosos, a prática do distanciamento social, as sucessivas renovações do estado de emergência com objetivo de mitigar a transmissão da doença e objetivo último de conter a propagação do vírus (Decreto-Lei n.º 20-A/2020, 2020; Figura 3 e Figura 4).

Créditos. Fernanda de Castro e Maria Manuel Baptista

Figura 3 Ecocaminho da Maia, 16 de março de 2020, em período de estado de emergência (primeiro confinamento geral) 

Créditos. Simone Rechia

Figura 4 Bosque do Papa (Curitiba), julho de 2020, bandeira laranja (risco médio para contágio da COVID-19) 

Em Curitiba, face ao agravamento da COVID-19 e à iminente falta de camas na rede de saúde, a Prefeitura de Curitiba ampliou as restrições de atividades na capital: prosseguiram em funcionamento apenas atividades essenciais como supermercados, padarias e postos de gasolina, com horários restritos e exigência de cumprimento do Protocolo de Responsabilidade Sanitária e Social; sob a bandeira vermelha no nível de alerta, foram vetadas e suspensas as atividades nos parques da cidade, bem como as aulas no sistema de ensino; o consumo de bebidas alcoólicas foi proibido em espaços de uso público (Decreto Nº 565, 2021).

Os corpos passam a estar reféns de extensões tecnológicas médicas (Deleuze, 1992; Haraway, 2018; Haraway et al., 2009) que determinam uma maior influência da medicina nos espaços públicos e privados (Foucault, 1976/2010b). Se, para Foucault, o corpo é, nos séculos XVIII e XIX, historicamente construído e resultado da convergência e cruzamento de variadas práticas discursivas de cariz disciplinar (Foucault, 1979/1998; 1975/2002; 1994/2006), para Deleuze (1992) o corpo, nos tempos modernos, passa a constituir-se como fonte de dados tecnologicamente obtidos e socialmente controláveis e monitorizáveis.

Segundo Deleuze (1992), a sociedade de controlo moderna criou sujeitos que são controlados pelos dados que os seus corpos produzem, uma forma mais eficaz e refinada de controlo e vigilância do que a disciplinarização e docilização dos corpos levadas a cabo por uma sociedade da disciplina, teorizada por Foucault (1979/1998). Para Deleuze, os indivíduos transformaram-se em fontes, amostras, mercados ou bancos (de dados), operando com máquinas tecnológicas de energia que alimentam o capitalismo ao passo que o homem disciplinar foucaultiano era um sujeito que fazia uso, nos séculos XVIII e XIX, de máquinas simples e de exigência tecnológica menor ou quase nula. Assim, estes corpos modernos, que já não são, em parte, docilizados, constituem-se como fontes de informação (Deleuze, 1992), digitalizados e dataficados. Aliás, é impossível pensar nas sociedades de controlo sem o contributo foucaultinano das sociedades disciplinares, justamente porque o controlo nasce da articulação entre a disciplina e a biopolítica (Deleuze, 1992). O aprofundamento do conhecimento da sociedade do controlo nasce, a par dos contributos foucaultianos, de um contexto em que se verifica o desenvolvimento exponencial das novas tecnologias, uma nova arma capaz de gerar, armazenar dados, gerir, manipular e controlar os sujeitos.

Se, no século XIX, o capitalismo baseia-se na concentração, produção e propriedade, sendo a fábrica o espaço de trabalho privilegiado e o capitalista o proprietário dos meios de produção, no século XXI, com a pandemia e os recursos tecnológicos ao serviço do mercado, a “fábrica” ou o locus estático do trabalho é desterritorializado para o ambiente doméstico. O controlo, ao contrário da disciplina, desterritorializa-se e o seu poder irradia-se por fluxos, potencializando o controlo dos sujeitos a partir de qualquer lugar: o controlo tecnológico é, assim, o novo meio pelo qual se executa o poder (Deleuze, 1992).

Neste sentido, a pandemia permitiu uma instalação progressiva de um novo sistema de trabalho à distância que constitui um sistema de controlo, docilização, vigilância e dominação dos corpos tecnologicamente mediados, alimentando-se a possibilidade de, mesmo após a pandemia, normalizar este modo de produção. Aliás, o medo, a insegurança e a instabilidade levam os sujeitos a aceitarem condições e medidas de controlo que põem em causa a sua privacidade, sem questionarem quem controla e em que condições de segurança são armazenados os dados biométricos dos seus corpos como ocorre, por exemplo, com as aplicações móveis de monitorização da COVID-19 ou bases de dados criadas para o efeito. De facto, as medidas de controlo e de combate à COVID-19 assentam e dependem, em grande parte, da tecnologia, estando fortemente articuladas com métodos de vigilância dos cidadãos.

Neste sentido, e para Deleuze (1992), as sociedades de controlo já não se baseiam em estruturas que privilegiam um espaço físico em particular, mas em espaços móveis, fluxos, formas e ambientes de vigilância tecnológica, que se encontram em clara articulação com a engrenagem capitalista. Com a pandemia, é inegável o contributo e a proliferação das tecnologias que permitem a vigilância e a produção mediada dos sujeitos. Embora Deleuze (1995) considere que as sociedades de controlo não mais operam através do confinamento físico dos sujeitos a um espaço (o espaço fechado da disciplina teorizado por Foucault, 1979/1998), pois a monitorização passa a ser realizada através de fluxos que atravessam os espaços, sem restrições, e do controlo contínuo de comunicação possibilitado pelo desenvolvimento das tecnologias, a verdade é que a pandemia proporcionou uma articulação insidiosa entre a produção, o controlo e o confinamento dos corpos a um espaço doméstico, articulação esta aproveitada e capturada pelo mercado e pelas instituições.

Em contexto pandémico, uma situação limite e sem precedentes nesta geração, não estamos perante uma transição evolutiva, tal como afirmou Deleuze (1992) e Foucault (1979/1998), da sociedade disciplinar para a sociedade de controlo, mas sim uma coexistência insidiosa dos dois tipos de sociedades: o indivíduo que é obrigado a autodisciplinar-se em nome de um bem maior, caso contrário será disciplinado pelas autoridades, e, simultaneamente, é biopolítica e tecnologicamente controlado. Em tempos pandémicos, os governos tentam consciencializar e controlar os sujeitos, evocando o exemplo do “bom cidadão”, cumpridor de regras e medidas sanitárias, sugerindo e aconselhando a autodisciplinarização dos seus corpos.

No tempo e palco pandémicos, o corpo vê-se desapossado, temporariamente, do seu exercício de direito de circulação, podendo, inclusive, ser confinado compulsivamente, por decreto, no domicílio ou noutras instalações, por exemplo, com o objetivo de reduzir o risco de contágio e executar as medidas de prevenção e combate à pandemia.

São fixadas regras de proteção da saúde individual e coletiva dos cidadãos. Os corpos, suspeitos e tendencialmente subversivos, são sensibilizados nas vias públicas por todos os meios, inclusive por drones persecutórios, para o cumprimento do dever cívico de recolhimento obrigatório e distanciamento físico (Resolução do Conselho de Ministros n.º 38/2020, 2020) dentro de um “regime em que uma das finalidades da intervenção estatal é o cuidado do corpo, da saúde corporal, a relação entre as doenças e a saúde” (Foucault, 1976/2010b, p. 171).

Os corpos veem-se em rituais viciosos, caóticos, ansiogénicos e cíclicos que implicam lavar constantemente as mãos, colocar repetidamente a máscara na cara, usar luvas, manter uma atenção ininterrupta no que concerne ao toque físico e o distanciamento relativo a ele. Não se trata apenas de uma disciplina que é imposta ao corpo pelo poder central e governativo, mas também de um processo de autocontrolo e memória quase maquínico, no entanto, necessário: o corpo é público e político, até e sobretudo, na pandemia (Butler, 1990). Deste modo, o corpo é regulado pelo poder central e pelo sujeito numa espécie de biopoder de responsabilidade partilhada (Foucault, 1979/1998) ou biotecnopoder (Haraway, 1997). Ao mesmo tempo que o corpo repele a ordem, consente-a por necessidade, sobrevivência e, sobretudo, por via do medo e receio que dociliza. Trata-se, segundo a conceção foucaultiana, de uma espécie de biopoder e docilização dos corpos e das mentes, ou seja, de técnicas, controlos e poderes disciplinares sobre os comportamentos (Foucault, 1979/1998, 1975/2002, 1994/2006): assistimos ao controlo da vida e ao (auto)policiamento do corpo pandémico, por se constituir um agente transmissor ou um corpo ameaçado ou ameaçador.

5. Monitorização dos Corpos

Olhar para o corpo monitorizado conduz-nos a pensar sobre o interdito, que, para Certeau (1980/1994), é aquilo que não é dizível, mas é visível, esclarecendo sobre os paralelismos, transferências e tensões entre as realidades urbanas do Brasil e Portugal. A crise desencadeada pela pandemia da COVID-19 permitiu-nos perceber a importância da relação entre as esferas pública e privada, nas nossas vidas.

Para Eva Illouz (como citada em Rodríguez, 2021), “a casa sem a esfera pública” pode transformar-se numa experiência “extremamente opressiva” (para. 1). A autora sugere que concebemos as nossas casas não tanto para viver, mas “como um lugar para o qual voltamos” (para. 2). Ressalta que tal relação gera “essas forças (que) nos fazem o que somos: tanto dentro quanto fora das nossas casas, somos quem somos porque participamos de uma cultura pública” (para. 21). Portanto, esta crise revelou-nos que somos seres sociáveis pois, a partir do distanciamento social, notou-se a impossibilidade de substituirmos, por muito tempo, os encontros presenciais pelos virtuais. A busca hoje é por mais espaços de sociabilidade, mais lazer.

Estas situações colocam em xeque as conceções de vida e de como viver nos grandes centros urbanos. Há um controlo sanitário necessário, que inclui controlar os espaços de lazer proibindo a sua fruição, no entanto, não parece haver controlo ou regulação dos horários de trabalho dos trabalhadores essenciais e do regime de teletrabalho. Não existe equilíbrio, a balança está favorável à economia, mas só de alguns setores da sociedade. Tais aspetos geram um movimento de exposição ao risco em ambas as dimensões, principalmente através do desejo pela vida em sociedade, pois se as suas vidas e os seus corpos são para o trabalho, também o são para o lazer. Desta maneira, vivemos a tensão entre adotar os decretos oficiais de isolamento ou resistir buscando brechas e táticas para o cuidado de si, do outro e do lugar onde vivemos. A tensão fica entre dois polos, ou seja, fruir o tempo e o espaço de lazer em situações mais arriscadas ou menos arriscadas? Trabalhar ou se arriscar? Morrer ou comer?

Consideramos que não se trata de escolhas, mas de necessidades biológicas, sociais e económicas, restando as “obrigações”, só para alguns - aqueles que não têm acesso digital, educacional, à saúde, moradia ou condições económicas favoráveis, o que no Brasil representa a maioria. Sob o discurso de “fique em casa e só saia para o consumo e trabalho”, orientação do estado às comunidades, tem funcionado, nos termos de Certeau (1980/1994), como “bricolagem”, pois o cidadão adota algumas orientações, adapta, descarta e reinventa outras.

Talvez o sujeito não se submeta, mas sintetize e subverta a ordem, realizando uma mudança de lugar, ou seja, de um sujeito passivo, recetor de mensagens, para um sujeito ativo que estabelece a bricolagem; que opera com várias informações que recebe e produz uma coisa nova, portanto do sujeito individual - “sujeito insubmisso” no tempo e espaço de lazer (Certeau, 1980/1994).

Vale salientar que as pessoas mais vulneráveis, que não podem consumir os “divertimentos”, subvertem essa ordem buscando experiências de lazer das formas que lhes são acessíveis e possíveis e, aos poucos, expandem-se da casa para os espaços públicos. Precisamos considerar que a moradia destas pessoas mais vulneráveis, no Brasil, não é adequada. Muitas famílias brasileiras vivem em divisões pequenas, superlotadas, sem saneamento básico, distantes dos grandes centros urbanos e sem condições mínimas de permanência. Além disso, o confinamento dentro dos espaços domésticos tem aumentado a recorrência de outros problemas sociais atrelados ao risco de morte como o suicídio e a violência doméstica (Marques et al., 2020).

Outro fator alarmante das condições de vida dos brasileiros é revelado pelos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (BRK Ambiental, 2018): apenas 41,5% dos municípios brasileiros beneficiava do Plano Nacional de Saneamento Básico em 2017. Tal realidade expõe a falta de planeamento com reflexos na saúde pública. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, um em cada três municípios regista a ocorrência de epidemias ou endemias provocadas pela falta de saneamento básico.

Observa-se que os decretos municipais da cidade de Curitiba exigem o isolamento social e indicam o teletrabalho como alternativa, assim como proíbem as experiências de lazer em espaços públicos. Tais orientações visam deter deslocamentos para evitar aglomerações, o que não é possível para os mais vulneráveis economicamente já que ocupam atividades que não poderiam ser executadas à distância (serviços essenciais). Já no entorno das moradias, em bairros de vulnerabilidade social, não há espaços qualificados para experiências no âmbito do tempo/espaço de lazer.

A COVID-19 gerou, assim, o agravamento de uma crise já existente no país. As suas consequências revelaram a altíssima desigualdade social de algumas regiões onde o isolamento é praticamente impossível. Tal realidade desvela e evidencia a necropolítica em locais de alta vulnerabilidade social com reflexos em toda a sociedade brasileira, pois somos confrontados com a existência de vários mundos num único país.

Neste cenário já caótico, há também o debate, à semelhança do cenário português, sobre qual deveria ser a prioridade política neste momento: salvar vidas ou salvar a economia. Assim, no Brasil, apesar da monitorização de “alguns” corpos - os monitoráveis- os brasileiros jogam com as peças que têm, com a insubordinação possível, com “retórica e práticas quotidianas que são igualmente definíveis como manipulações internas a um sistema, o da língua, ou ao de uma ordem estabelecida” (Certeau, 1980/1994, p. 80). Marcadas nos interstícios do tempo entre estratégias, culturas, corpos e decretos.

6. O Corpo COnVIDa: Nos Corpos Subversivos e em (Des)opressão

É no contexto pandémico de confinamento total dos corpos que o lazer se configurou não só como necessidade imperativa e indiscutível, mas também como um direito que veio, tal como constatado nas imagens recolhidas, a ser reivindicado através da invasão e reapropriação do espaço público (Figura 5 e Figura 6) pelos sujeitos, ávidos de mobilidade e de liberdade durante o estado de emergência e no estado de calamidade, em que subsistiram fortes restrições ao uso dos espaços destinados à prática de exercício físico.

Créditos. Fernanda de Castro

Figura 5 Ecocaminho da Maia, 17 de maio de 2020, em período de pós-estado de emergência e a vigorar o estado de calamidade  

Créditos. Bruno David Neca Rodrigues

Figura 6 Praça no Bairro Tatuquara (Curitiba), março de 2020, sob bandeira vermelha (alto risco para contágio da COVID-19)  

Com efeito, no período pré-pandémico era frequente ouvirmos os relatos sobre a alta dependência da tecnologia nos jovens, o tempo excessivo despendido pelas crianças nos videojogos e no computador, os convívios nos cafés e restaurantes em que tanto as crianças como os adultos intervenientes passavam a maior parte do tempo em silêncio, fitando um ecrã de um telemóvel ou de um tablet, numa comunicação presencial interrompida e tecnologicamente mediada.

Com a pandemia de COVID-19, a tecnologia deixou de ser apenas um recurso de uso voluntário e facultativo e passou a ser, obrigatoriamente, um recurso constantemente presente, sem pausas, na vida dos sujeitos, contribuindo para a implementação de um paradigma e organização do trabalho distinto do que havia anteriormente. O teletrabalho, um modo de vida tecnológico, relegou e conduziu a uma reconfiguração do tempo e trabalho, conduzindo os trabalhadores a uma produtividade tóxica, com riscos de exposição a longas jornadas de trabalho sem regulação e implicações psicológicas e de sociabilidade (Agência Europeia para a Segurança e Saúde no Trabalho, 2021; Durães et al., 2021): “é obrigatória a adoção do regime de teletrabalho, independentemente do vínculo laboral, sempre que as funções em causa o permitam” (Resolução do Conselho de Ministros n.º 38/2020, 2020, p. 7).

Afinal de contas, o futuro tecnológico prometido garantia um menor esforço físico e até um menor compromisso emocional com o desenvolvimento tecnológico. A ficção deu-nos de beber à imaginação, prometendo carros voadores, teletransporte, entre outras maravilhas da tecnologia. Foi-nos presenteado o teletrabalho em contexto doméstico, que nos trouxe maleitas de igual gravidade vírica: menor humanidade; menor contacto social; função maquínica que não está ao alcance da mão de obra infoexcluída; obesidade; problemas musculares, nervosos e cervicais; extensão do tempo em trabalho; conflitos familiares; tensão física e corporal no espaço doméstico, por vezes, ínfimo; maior pressão, violência e stress familiar e emocional através da concentração e manutenção de sujeitos no interior do mesmo lar durante 24 h por dia, 7 dias por semana.

O exercício físico, o teletrabalho, as aulas, o convívio familiar, as tarefas domésticas realizaram-se dentro do mesmo espaço, entre as mesmas paredes, levando mentes e corpos ao esgotamento, muitas vezes não só pelo confinamento, mas também pela dependência tecnológica para ser e estar: “a atividade física pode ser boa para si e para a sua família. Procure aulas online que o ajudem a fazer exercício em casa” (Direção- Geral da Saúde, 2020a, p. 9). Com a pandemia as relações de poder no cerne do lar articularam-se com um modo e organização de vida tecnocrática, onde a biopolítica, como mecanismo regulatório, é influenciada por dinâmicas económicas, neoliberais e capitalistas, assistindo-se, frequentemente, a uma tomada de consciência relativamente a uma dualidade pandémica: a vida/saúde ou a economia? O que é mais importante?

Cremos que estes factos levaram aos resultados que obtivemos na captação de imagens no espaço público: uma revindicação subversiva do lazer enquanto necessidade e direito, sobrepondo-se, inclusive, à obrigatoriedade do cumprimento das medidas governamentais. O desejo pela eliminação das limitações físicas e dos elementos tecnológicos e simbólicos que aprisionam os corpos são visíveis: confinamento para o lixo, nenhuma ordem para parar será cumprida (Figura 7 e Figura 8).

Créditos. Fernanda de Castro e Maria Manuel Baptista

Figura 7 Ecocaminho da Maia, 17 de maio, em período de pós-estado de emergência e a vigorar o estado de calamidade  

Créditos. Simone Rechia

Figura 8 Ciclovia lotada no entorno do Parque São Lourenço (Curitiba), em junho de 2021, sob bandeira vermelha (alto risco de contágio da COVID-19)  

Presenciámos in loco, durante o primeiro e segundo confinamentos gerais, a práticas disruptivas, de subversão da ordem imposta e performances de resistência ao estado de emergência, que decretou o encerramento temporário dos espaços de passeio, desporto e lazer nos dois países em questão, uma medida de prevenção da disseminação da doença que implica, necessariamente, o controlo das liberdades e mobilidades dos corpos por meio de performances controladas, domiciliadas e domesticadas (Foucault, 1979/1998).

Apesar da autorização para a realização de passeios higiénicos curtos, dentro da zona de residência, durante o estado de emergência, a verdade é que os ecocaminhos, e o da Maia incluído, os parques e ciclovias de Curitiba, se encontravam interditos ao público, de forma a evitar aglomerações.

Embora o desrespeito pelas medidas resultasse na incorrência no crime de desobediência, o facto é que durante vários dias observámos corpos insubordinados e com um potencial subversivo, 1 mês depois da declaração do estado de emergência, nomeadamente abril e maio, a resistir à ordem e a reconquistar, reapropriar-se e reterritorializar-se (Deleuze & Guattari, 1980/1997) no espaço público, frequentemente com violência, contestando a disciplina imposta aos seus corpos (Foucault, 1979/1998, 1976/2010b). Presenciámos, inclusive, a uma intervenção sisífica das autoridades que fecharam quotidiana e ininterruptamente os ecocaminhos, parques e jardins na tentativa de controlar os possíveis agentes transmissores da doença que anseiam por mobilidade e o regresso a uma pretensa “normalidade” e, por isso, desafiam o estado e a ordem imposta (Figura 9 e Figura 10).

Créditos. Maria Manuel Baptista

Figura 9 Ecocaminho da Maia, 14 de fevereiro de 2021, em período de estado de emergência (segundo confinamento geral) 

Créditos. Gabriela Resende Cardoso

Figura 10 Crianças ocupando escola fechada no bairro Tatuquara para brincar (Curitiba), em outubro de 2020 

Percebe-se nestas imagens uma desobediência, relativamente às proibições e normativas sociais, muito sorrateira e criativa, que rompe com as barreiras impostas (Certeau, 1993/1995). Mesmo incorrendo no crime de desobediência dentro da dinâmica de vigiar e punir, os corpos (des)obedientes, docilizados, domesticados e medicalizados (Foucault, 1979/1998, 1976/2010b) fizeram do exercício, do passeio ou da contemplação da natureza uma resistência política. Para estes sujeitos, todos os subterfúgios são válidos para contornar a lei e fazer da regra exceção, incluindo sujeitos, ávidos pelo movimento, que simplesmente passeiam a trela ou alugam ou pedem, por empréstimo, animais para passeios higiénicos (Dias, 2021).

Dia sim, dia não as fitas e as barreiras que contiveram os corpos à entrada do ecocaminho da Maia e também nos espaços públicos em Curitiba foram arrancadas ou derrubadas e logo colocadas de volta, para serem de novo subvertidas pelo corpo, que precisa de espaço e tempo de lazer ao ar livre. Desafiou-se na Maia e em Curitiba a ordem, a imposição da disciplina e a obediência:

fica impedido todo e qualquer ato de resistência ativa ou passiva exclusivamente dirigido às ordens legítimas emanadas pelas autoridades públicas competentes em execução do presente estado de emergência, podendo incorrer os seus autores, nos termos da lei, em crime de desobediência. (Decreto-Lei n.º 17/2020, 2020, p. 30)

“A desobediência às ordens legítimas das entidades competentes, quando prati- cadas durante a vigência da situação de calamidade e em violação do disposto ( ... ) constituem crime e são sancionadas nos termos da lei penal” (Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, 2020, p. 12).

Apesar dos corpos pandémicos internalizarem discursos de poder (Foucault, 1979/1998) estes corpos performam práticas de resistência e subversão, conferindo importância concreta e vital ao lazer numa práxis política e performática relevante (Baptista, 2016; Figura 11 e Figura 12).

Créditos. Fernanda de Castro e Maria Manuel Baptista

Figura 11 Ecocaminho da Maia, 27 de abril de 2020, em período de estado de emergência (primeiro confinamento geral) 

Créditos. Bruno David Rodrigues Neca

Figura 12 Adolescentes jogando voleibol na rua do Bairo Tatuquara (Curitiba), em março de 2021, sob bandeira vermelha (alto risco de contágio da COVID-19 

A adaptação às normas, que para Certeau (1980/1994) são chamadas de estratégias, gera também “táticas” e “astúcias” empregadas pelos sujeitos para produzir novas formas de lidar com as normas que lhes são impostas. Isto manifesta-se, por exemplo, na criação de uma nova forma de jogar, brincar ou usar as estruturas das cidades (ruas, gramados, muros, escadas) em função de alguma proibição. Neste sentido, estas criações são formas de subversão às ordens impostas na apropriação de um espaço.

Embora fosse possível exercitar-se durante o estado de emergência nas proximidades do lar, atividade fundamental ao corpo e à mente, o que as imagens revelam é que estes corpos necessitam do locus específico do exercício, da ambiência que oferece e redireciona um certo contexto de normalidade do quotidiano pré-pandémico: uma falsa sensação de normalidade e liberdade. Na prática, a resposta destes corpos consistiu em transgredir as normas sanitárias inscritas simbolicamente nas barreiras e fitas de contenção social.

Aliás, saliente-se que o exercício físico breve foi uma das atividades permitidas durante o estado de emergência e não requeria o uso obrigatório de máscara. Desapossar- se e desapropriar-se da máscara através do lazer físico conferia a possibilidade de ser, estar e sentir o corpo sem amarras e extensões tecnológicas (máscaras, álcool em gel, luvas ou aplicações móveis; Deleuze, 1992; Haraway et al., 1985/2009), que censuram e vigiam performances humanas em contexto de lazer, e que logo retornam ao corpo depois do exercício.

Esta resistência à inércia do movimento corporal, não é a única “arte do fraco”, ou seja, “na ordem organizada pelo poder do saber sempre é possível práticas desviacionistas (golpes, trampolinagens, jogos, contos)” (Certeau, 1980/1994, p. 90).

7. Considerações Finais

A pandemia de COVID-19 e as suas consequências nefastas constituem uma oportunidade única para compreender as dinâmicas de lazer no meio urbano e os processos e mecanismos que normalizam, operam e reforçam os métodos de controlo tecnológico sobre os corpos dos sujeitos. Os meios teóricos e epistemológicos de Foucault (1979/1998, 1996/1999, 1975/2002, 1994/2006, 2010a, 1976/2010b), Deleuze (1992, 1995), Certeau (1980/1994, 1993/1995), Haraway (1997, 2018), Braidotti (2020) e Mbembe (2003/2018) parecem particularmente pertinentes e acutilantes para pensar os tempos pandémicos atuais.

As medidas implementadas, em Portugal e no Brasil, pelo poder central, durante a vigência da pandemia, constituem expressões do poder público e político com o claro e nítido objetivo de regulação, controlo e disciplina dos corpos (Foucault, 1979/1998, 1976/2010b) em face de um inimigo biológico desconhecido e em prol da coletividade. Neste sentido, o lazer, atividade profundamente humana e até hoje sob o jugo simbólico da preguiça e vadiagem, parece emergir e ganhar, com a pandemia, novos sentidos na sociedade, ou seja, levou os sujeitos a agirem contra a lei e em favor do lazer como necessidade, direito e resistência. Esta aprendizagem, perpassada por um intenso e temporalmente longo processo de consciencialização, é realizada através do corpo que impele e estimula os sujeitos a práticas que desafiam a ordem (sanitária e política implementada) e a lei.

Evidenciámos, neste estudo, uma clara e inegável articulação teórica e empírica entre as performances observadas, a gradação ou progressão da subversão dos corpos dentro do espaço público e em estreita correlação com a progressão temporal, as políticas pandémicas e a exploração teórica de conceitos e temas relacionados com a biopolítica/biopoder, biotecnopoder e necropolítica (Braidotti, 2020; Deleuze, 1992; Foucault, 1979/1998, 1996/1999, 1975/2002; Haraway, 1997, 2018; Haraway et al., 2009; Mbembe, 2003/2018).

Em relação ao lazer, estes corpos sedentos percorreram um processo que vai da passividade e indiferença à subversão: são corpos com potência subversiva na apropriação que fazem do espaço do lazer, encetando, neste sentido, uma práxis política e performática relevante (Baptista, 2016). Levantar a bandeira do lazer é, para estes corpos, tentar recuperar e reivindicar o seu mundo, a liberdade e “normalidade” que gozavam a priori, mesmo que isso signifique ir contra a lei. É também lutar a favor do direito à cidade, compreendendo a apropriação dos espaços públicos, considerando-os o pulsar da vida urbana, pois é através deles que se estabelece o vínculo entre participação ativa e vida nos centros urbanos (Rechia, 2018).

Mais do que produzir respostas, importa-nos refletir e interrogar um período inédito e conturbado, que alterou drasticamente o quotidiano, fazendo com que os sujeitos, na tensão entre os seus direitos e deveres/limitações de ir e vir, performassem práticas disruptivas e infratoras à luz da norma, tal como verificadas nos dados recolhidos nos parques. Parece-nos decisivo, sob a lente dos estudos culturais, questionar e refletir as alterações nas dinâmicas de lazer nos espaços públicos não só durante a vigência da pandemia, mas também num contexto pós-pandémico gozando, futuramente, de um distanciamento necessário, porém com potência no âmbito da sociabilidade e do exercício da cidadania.

Para Certeau (1980/1994), o combate tático contra a ordem produtiva e social dá-se entre o fraco (sujeito “ordinário”) e o forte, mesmo que o fraco não cesse de construir, reconstruir e produzir a sua cultura, a partir de uma resistência ativa pelos seus corpos em movimento no meio urbano. Afigura-se fulcral a possibilidade de pensar o mundo a partir de outra economia, onde os sujeitos não se definem somente a partir do seu emprego ou em função do mercado capitalista e neoliberal.

Santos (2005) alerta-nos que se “desejarmos escapar à crença que este mundo assim apresentado é verdadeiro, e não quisermos admitir a permanência da sua percepção enganosa, devemos considerar a existência de um outro mundo possível” (p. 20), onde o exercício dos direitos de lazer passem a ocupar um lugar de destaque nas políticas públicas do Brasil e Portugal.

O que ficará desta experiência pandémica num mundo pós-pandémico? Quais são as implicações de um regresso à tão almejada “normalidade”? Qual será o lugar das tecnologias na nossa vida? Voltar ao normal implicará esquecer ou menosprezar todas as práticas que vivemos psicológica e corporalmente durante a pandemia? Haverá tempo, espaço e oportunidades para uma reflexão sobre o lazer enquanto direito efetivo que vá além do direito ao lazer apenas para quem integra o mercado de trabalho?

Agradecimentos

Agradecemos ao Grupo de Estudos e Pesquisa em Lazer, Espaço e Cidade, da Universidade Federal do Paraná, nas pessoas de Bruno David Neca Rodrigues e Gabriela Resende Cardoso, pela cedência de algumas fotografias que estão incluídas no artigo.

Este trabalho é apoiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDP/04188/2020 (financiamento programático). Agradecemos à Fundação para a Ciência e a Tecnologia e ao Centro de Línguas, Literaturas e Culturas, da Universidade de Aveiro, pelo financiamento obtido para a produção e tradução deste artigo científico. A primeira autora agradece o apoio da FCT através da atribuição da bolsa de doutoramento (SFRH/BD/124507/2016).

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1Depois de mais de 1 ano do aparecimento da COVID-19, as novas variantes do SARS-CoV-2 foram renomeadas pela Organização Mundial da Saúde, em maio de 2021, justamente para evitar articulações estigmatizantes e discriminatórias. Deixam de ser usadas as referências aos locais geográficos onde as variantes e sublinhagens foram encontradas e passam a ser nomeadas com recurso ao alfabeto grego: alpha (britânica), beta (sul-africana), gamma & zeta (brasileira), delta & kappa (indiana), epsilon & iota (norte-americana), theta (filipina), eta (em vários países; Alpha, Beta, Gamma. Alfabeto Grego Passa a Designar Variantes do Coronavírus, 2021). Os crimes de ódio (físicos e verbais) contra pessoas de origem asiática aumentaram exponencialmente, nos Estados Unidos e no Brasil (e um pouco por todo o mundo), durante a pandemia, em função dos discursos xenófobos, racistas, de ódio e fanatismo do ex-presidente norte-americano, Donald Trump, e do presidente brasileiro Jair Bolsonaro, responsabilizando a China e, consequentemente, as pessoas de origem asiática pelo aparecimento e disseminação do vírus a nível mundial. Inflamados pelos discursos e tweets presidenciais, os agressores despoletaram dezenas de ataques violentos (alguns fatais) a pessoas de origem asiática, sobretudo chinesas, e na sua maioria, mulheres, demonizando-as e responsabilizando-as pela existência da COVID-19 (“Biden Condena Ódio Contra Asiáticos: ‘O Nosso Silêncio É Cumplicidade. Não Podemos Ser Cúmplices”, 2021; Nakamura & Terao, 2021; Salcedas, 2021). Em resposta aos ataques, realizaram-se manifestações e emergiu uma onda de resistência nas redes sociais que viralizou a hashtag #StopAsianHate. Segundo o relatório da organização Stop Asian Americans and Pacific Islanders Hate, entre 19 de março de 2020 e 28 de fevereiro de 2021, foram denunciados 3.795 crimes de ódio contra a comunidade ásio-americana nos Estados Unidos, por exemplo (Correia, 2021). Em maio de 2021, Joe Biden, atual presidente dos Estados Unidos, assinou uma lei que reforça o combate contra crimes de ódio e violência racial, promovendo uma maior proteção aos cidadãos com origem ou ascendência asiática, face ao aumento de crimes contra esta comunidade (Estados Unidos Registam Milhares de Ataques a Asiáticos Durante a Pandemia, 2021).

2Nas palavras de Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos da América: “construímos a maior economia da história, fechamo-la por causa da praga chinesa” (Kapur, 2020, para. 15).

Recebido: 30 de Março de 2022; Aceito: 24 de Maio de 2022

Fernanda Gonçalves de Castro é mestre em estudos linguísticos e culturais pela Universidade da Madeira, com a dissertação de mestrado intitulada “Utopia e Distopia: Testemunhar o Mundo em Pepetela (Estórias de Cães, Montanhas e Predadores)”. É doutoranda do programa doutoral em estudos culturais, na Universidade de Aveiro, e bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BD/124507/2016) e investigadora e colaboradora no Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, da Universidade de Lisboa, e no Centro de Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade de Aveiro. É coordenadora da coletânea Género e Performance: Textos Essenciais que já conta com cinco volumes publicados e financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Email: castrofernanda@live.com.pt Morada: Universidade de Aveiro, Departamento de Línguas e Culturas, Campus Universitário de Santiago, 3810-193 Aveiro, Portugal

Maria Manuel Baptista é professora catedrática no Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, com agregação em estudos culturais, pela Universidade do Minho (2013). É presidente da Rede Internacional em Estudos Culturais e da Rede Nacional em Estudos Culturais. É doutora em cultura pela Universidade de Aveiro, mestre em psicologia da educação pela Universidade de Coimbra e licenciada em filosofia pela Universidade do Porto. Tem uma obra diversa e extensa publicada nacional e internacionalmente, com ênfase na área dos estudos culturais. É presidente da Associação de Investigação, Prevenção e Combate à Violência e Exclusão e investigadora integrada no Centro de Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade de Aveiro, coordenadora do grupo de Género e Performance e do Núcleo de Estudos em Cultura e Ócio da Universidade de Aveiro e coordenadora da coletânea Género e Performance: Textos Essenciais. Email: mbaptista@ua.pt Morada: Universidade de Aveiro, Departamento de Línguas e Culturas, Campus Universitário de Santiago, 3810-193 Aveiro, Portugal

Simone Rechia é professora titular da Universidade Federal do Paraná, atuante no Programa de Pós-Graduação em Educação e no Programa Interdisciplinar de Pós- Graduação em Estudos do Lazer na Universidade Federal de Minas Gerais. É doutora em educação física e mestre em educação. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa em Lazer, Espaço e Cidade, é também membro da Rede Internacional em Estudos Culturais, colaboradora no Centro de Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade de Aveiro e membro do grupo de Género e Performance/Núcleo de Estudos em Cultura e Ócio da Universidade de Aveiro. Email: simonerechia@hotmail.com Morada: Universidade Federal do Paraná, Rua XV de Novembro, 1299 - Centro Curitiba - Paraná, 80060-000, Brasil

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