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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

versão impressa ISSN 2184-0458versão On-line ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.8 no.2 Braga dez. 2021  Epub 01-Maio-2023

https://doi.org/10.21814/rlec.3483 

Artigos Temáticos

Trabalhadores com Síndrome de Down: Autonomia e Bem-Estar no Trabalho

Alex Sandro Corrêa1 
http://orcid.org/0000-0002-6847-3563

José Leon Crochick2 
http://orcid.org/0000-0002-2767-3091

Rodrigo Nuno Peiró Correia3 
http://orcid.org/0000-0003-1929-0282

Fabiana Duarte de Sousa Ventura3 
http://orcid.org/0000-0003-2291-8149

1 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, São Paulo, Brasil

2Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, Brasil

3Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil


Resumo

Este artigo apresenta o relato de uma pesquisa que foi uma reaplicação na cidade de São Paulo (Brasil) da desenvolvida em Portugal por Veiga e Fernandes (2014). Reflete sobre alguns dados obtidos, os quais demonstram o papel, a importância e o impacto do ingresso no mundo do trabalho na vida de trabalhadores com síndrome de Down, incluindo o sentimento de bem-estar, de autonomia e as relações de amizade adquiridas. Foram entrevistados não apenas esses trabalhadores, mas também seus chefes imediatos, amigos e colegas de trabalho, e foram realizadas também observações nos locais de trabalho. Sabendo que a inclusão social não se concretiza de modo alheio ao mundo do trabalho, destacamos a importância das políticas públicas, quer na promoção de direitos, quer na defesa dos direitos já conquistados, inclusive o da participação de pessoas com síndrome de Down na sociedade. O resultado deste estudo evidenciou que a conquista do emprego possibilitou o aumento da autoestima, o desenvolvimento da autonomia e do bem-estar dos trabalhadores, proporcionando-lhes conquistas no campo afetivo-social (namoros e amizades), nos âmbitos familiar, econômico e profissional, ainda que com restrições. Além disso, o emprego propiciou a percepção de se sentirem mais úteis e aceitos pelos pares (“sensação de pertencimento”), bem como a possibilidade de poderem contribuir para a família e de traçarem planos para o futuro, com projetos semelhantes aos de qualquer jovem adulto, como viajar, casar e ter filhos.

Palavras-chave: autonomia; bem-estar; deficiência intelectual; mercado de trabalho; inclusão

Abstract

This article presents a research report that was replicated in the city of São Paulo (Brazil) of the one developed in Portugal by Veiga and Fernandes (2014). It reflects on some research data, which demonstrate the role, importance and impact of being admitted in the world of work in the lives of workers with Down syndrome, including the feeling of wellness, autonomy, and friendship acquired. These workers were interviewed, as were their immediate bosses, friends and co-workers, and the observations made at the workplace. Knowing that social inclusion does not occur outside work, we highlight the importance of public policies in promoting rights and defending the rights already achieved, including the active participation of people with Down syndrome in society. This study showed that the achievement of a job made it possible to increase self-esteem, to develop autonomy and wellness of workers, providing them with achievements in the affective-social field (dating and friendships), in the family, economic and professional spheres, albeit with restrictions. The job also provided the feeling of being more useful and accepted by peers (“a sense of belonging”). It also allowed the possibility of contributing to the family and making plans for the future, with the same projects as any young adult, such as travelling, getting married and having children.

Keywords: autonomy; wellness; intellectual disability; labor market; inclusion

Introdução

De início, é importante destacar que os dados apresentados neste artigo, bem como a análise dos mesmos, são derivados do capítulo “Autonomia e Bem-Estar Após o Ingresso no Mundo do Trabalho”, do livro Inclusão Profissional de Trabalhadores com Deficiência Intelectual na Cidade de São Paulo (Crochick, 2019), que relata a pesquisa desenvolvida entre os anos de 2017 e 2018 na cidade de São Paulo, com a participação de trabalhadores(as) com síndrome de Down. A respectiva pesquisa foi orientada e coordenada por José Leon Crochick, com participação dos membros do Laboratório de Estudos sobre o Preconceito do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Crochick, 2019).

Segundo Pereira-Silva et al. (2018), a inclusão de trabalhadores com deficiência no mercado de trabalho é um direito constitucional garantido; contudo, essa não é a realidade brasileira quando se verificam a qualidade e as condições de trabalho ofertadas a essas pessoas pelas empresas, bem como o alto número de desempregados que ainda existem no país. Mesmo com o aumento de práticas empresariais relacionadas à responsabilidade social, a adequação de ambientes corporativos com vistas à inclusão e ao respeito à diversidade é algo que deve ainda ser bastante aprimorado. Ainda assim, para Pereira-Silva et al. (2018), a inclusão profissional de trabalhadores com deficiência intelectual tem sido mais satisfatória que insatisfatória.

Neste artigo, organizamos os resultados da pesquisa, no que diz respeito às consequências da entrada no mercado de trabalho na vida dos sujeitos participantes, a partir de entrevistas e observações. Assim, verificamos se o emprego afetou suas vidas, incluindo o círculo de amizades, se trouxe mudanças nas relações de amizade já construídas e se promoveu novas relações. Com respeito à autonomia, analisamos se os participantes passaram a organizar, planejar e cuidar de suas vidas de forma mais ativa após o emprego, bem como se a entrada no mercado de trabalho promoveu mudanças no bem-estar do(a) trabalhador(a), ou seja, se, após o emprego, eles passaram a se sentir e a se considerar pessoas mais felizes e/ou satisfeitas.

Justificativa

Em relação aos trabalhadores com síndrome de Down, é, segundo Leite e Lorentz (2011), pequena a quantidade de pesquisas relatadas, o que por si só justifica o presente estudo.

Embora admitamos que o trabalho seja marcado pelas contradições próprias da sociedade capitalista atual, sendo sujeito a uma série de questionamentos, inclusive de ordem humanitária, é fato inegável que, nesta sociedade, ele também se constitui como um dos meios que possibilitam maior inclusão social e a possibilidade de se ter uma vida mais digna de ser vivida, o que também é indicado por Leite e Lorentz (2011) e por Pereira-Silva et al. (2018), que também ressaltam maior autonomia e novas possibilidades de atividades. O trabalho pode proporcionar a satisfação do reconhecimento da importância do trabalhador - com ou sem deficiência - pelas pessoas que lhe são significativas.

O trabalho, no entanto, pode também ser fonte de sofrimento, devido a frustrações que pode acarretar, tais como: hostilidade dos colegas; insatisfação com as condições de trabalho e/ou com os ganhos salariais; o sacrifício de um tempo de vida que poderia ser dedicado a atividades mais prazerosas ou mesmo o não reconhecimento de sua capacidade de trabalho. Em relação à pessoa com deficiência, pode ocorrer também a marginalização ou a segregação no próprio ambiente de trabalho, assim como ocorre na vida escolar (Crochick et al., 2013; Leite & Lorentz, 2011). De outro lado, nas pesquisas realizadas por Leite e Lorentz (2011) e por Pereira-Silva et al. (2018) verificou-se, como se verá mais adiante, muita satisfação para o trabalhador, seus colegas e familiares, proporcionando mais autonomia, mais bem-estar pessoal, como também o desenvolvimento de habilidades importantes para todas as esferas da vida - como a organização do tempo -, além de, não menos importante, em alguns casos, novas amizades.

Verificou-se também conforme os autores Alves et al. (2019), no capítulo “Autonomia e Bem-Estar Após o Ingresso no Mundo do Trabalho”, que, para as pessoas com síndrome de Down, essas vantagens e frustrações também ocorrem e podem ser amenizadas, conforme a formação escolar, o apoio familiar e, sobretudo, o apoio dos empregadores e colegas. A pesquisa desenvolvida por Pereira-Silva e Furtado (2012) também indica essas mesmas tendências para os trabalhadores que têm deficiência intelectual de uma forma geral: o trabalho melhora a qualidade de vida do trabalhador, dependendo do maior ou menor apoio de todos, e acrescentam que essa melhora também depende das capacidades individuais e dos obstáculos a serem enfrentados; ressaltam, ainda, a importância do suporte necessário dado pelas empresas. Esses autores verificaram a importância que esses trabalhadores atribuem às atividades decorrentes de seus empregos, por proporcionarem maior satisfação e autonomia individual, e citam estudos que mostram que a necessidade de se associar métodos ao cumprimento de objetivos fortalece a possibilidade de se pensar em projetos de vida.

Se as leis que favorecem a empregabilidade de trabalhadores com deficiência são importantes, Pires et al. (2007), assim como Leite e Lorentz (2018), argumentam, no entanto, que elas não são suficientes, pois é necessário o reconhecimento das capacidades desses trabalhadores, e que eles tenham, quando for o caso, acesso a cursos profissionalizantes e apoio financeiro quer das empresas, quer do governo.

A pesquisa de Veiga e Fernandes (2014), que foi por nós replicada no Brasil e teve como fruto o livro acima citado, trouxe diversas contribuições importantes para esta área. Entre elas, a necessidade de conscientização dos comportamentos adequados ao convívio social e o auxílio de equipes especializadas na mediação entre os trabalhadores com deficiência intelectual e seus colegas e chefes, uma vez que a formação escolar nem sempre os prepara para isso.

O objetivo da pesquisa relatada é verificar se o ingresso no trabalho de jovens com síndrome de Down acarretou uma vida social mais satisfatória, a ampliação de sua autonomia em relação a diversas atividades e o ensejo de formularem projetos para suas vidas.

Método

Participantes

A pesquisa que deu origem aos dados apresentados neste artigo, que foi uma replicação com adaptações, da pesquisa realizada em Portugal por Veiga e Fernandes (2014), adotou o seguinte método: definiu como participantes 20 jovens com síndrome de Down que estavam trabalhando no mesmo emprego ao menos por 1 ano; um deles perdeu o emprego ao longo da coleta de dados. Além desses participantes, também fizeram parte do estudo um colega de trabalho e um amigo de cada um, ambos indicados pelos participantes, a chefia imediata, familiares e um orientador educacional ou similar da instituição escolar na qual cada participante se formou.

A idade desses trabalhadores variou entre 21 e 37 anos, de ambos os sexos, e aproximadamente metade era formada por instituições especiais e os demais em escolas e salas de aula regulares. Além disso, 17 desses participantes moravam em bairros com índice de desenvolvimento humano (IDH) alto, e três em bairros com IDH médio. Para facilitar a exposição, esses participantes serão designados com a letra “P” seguida de um número.

Material

Foram utilizados os roteiros de entrevista na pesquisa desenvolvida por Veiga e Fernandes (2014), com algumas adaptações do vocabulário e no formato. O roteiro destinado aos trabalhadores com síndrome de Down continha questões, divididas em seis partes: (a) características gerais; (b) relações e interações sociais; (c) bem-estar psicológico e satisfação pessoal; (d) emprego; (e) competências pessoais; e (f) integração na comunidade. O roteiro de entrevistas aos amigos continha questões sobre a importância do trabalho e como esse contribuiu para a autonomia e bem-estar do amigo com síndrome de Down; os roteiros dirigidos aos colegas e chefes de trabalho destinaram-se a saber a satisfação com o trabalho, a autonomia e a autossatisfação do trabalhador com síndrome de Down. Para os familiares, perguntou-se, por meio de roteiro de entrevista, sobre a importância do emprego para a família e para o trabalhador e como esse trabalho contribuiu para a autonomia e felicidade de seu parente. Esses trabalhadores também foram observados pelos pesquisadores em seu local de trabalho, para se obter dados sobre sua autonomia, desempenho e satisfação no trabalho.

Procedimento

Coleta de Dados

Os trabalhadores com síndrome de Down foram indicados pelo Instituto Jô Clemente e pelo Instituto Simbora Gente; que oferecem atividades de diversos tipos para pessoas com deficiência intelectual. Os participantes e familiares foram convidados a participar da pesquisa por telefone; os participantes indicaram amigos para serem entrevistados, e foram obtidas as autorizações para entrevistar colegas e o chefe no local do trabalho, no qual também foram realizadas observações. As entrevistas com os trabalhadores com síndrome de Down duraram por volta de 1 hora e meia e as demais entrevistas, em geral, duraram 45 minutos. Os dados foram coletados presencialmente no lugar de trabalho e na casa dos familiares dos participantes durante os anos de 2017 e 2018.

Análise dos Dados

Os dados quantificáveis foram analisados por meio de estatísticas descritivas, como frequência, média e desvio-padrão, e mediante coeficientes de correlações de Spearman. Já para a análise qualitativa dos conteúdos das respostas às demais questões, foram utilizados dados das diversas entrevistas para que pudessem ser contrastados e complementados, para haver maior precisão do que foi pesquisado e para ampliar a discussão. A principal referência utilizada foi a teoria crítica da sociedade. Utilizamos também o IDH do local onde os participantes com síndrome de Down moravam para inferir seu nível socioeconômico.

Resultados

Expomos, na sequência, alguns dados quantitativos e qualitativos referentes à pesquisa feita com trabalhadores(as) com síndrome de Down, a fim de compreender se a inserção dessas pessoas no mercado de trabalho contribuiu para ampliar o seu círculo de amizades, a sua autonomia, bem-estar e projetos de vida.

Círculo de Amizades

Dos 20 participantes, 13 apontaram ter em seu círculo de convivência a maior parte de amigos do mesmo sexo e 11 sujeitos indicaram possuir amigos com idade próxima.

Em relação aos amigos com deficiência intelectual, 12 sujeitos indicaram ter, em seu círculo de convivência, amigos com deficiência intelectual e 13 indicaram amigos que não têm. Com relação a esse último dado, pode-se inferir que parte da amostra não é segregada do convívio com todas as pessoas - com e sem deficiência intelectual -, considerando que tem amigos que não apresentam essa deficiência; no entanto, é possível indagar - e, consequentemente, investigar - se os amigos citados sem deficiência intelectual são de fato amigos, ou simplesmente colegas, ou mesmo psicoterapeutas que se dedicam a eles, uma vez que, dos 41 amigos indicados pelos participantes, verificamos a seguinte configuração: nove estão relacionados ao trabalho, um deles é padrinho, outro instrutor de dança, e também uma psicóloga. Ademais, o fato de sair aos fins de semana em companhia dos familiares foi relatado por todos os participantes. Sob esse aspecto, verificamos ainda que 14 também saem com amigos, 12 em companhia dos colegas vinculados a projetos de lazer, nove saem com namorados e seis relataram sair com outros colegas.

Conforme a análise dos dados, uma parcela importante dos(as) entrevistados(as) admitiu que, concretamente, o acesso ao emprego contribuiu positivamente na ampliação do círculo de amizades. De fato, verificamos que nove das amizades indicadas pelos próprios trabalhadores estão relacionadas ao trabalho, conforme relatado nos seguintes depoimentos: “antes do emprego, tinha menos amigos” (P.4); e “antes eu era muito tímida, não conseguia falar direito com as pessoas. Conheci algumas no trabalho também” (P.17).

É importante salientar que esses novos relacionamentos, relatados pelos participantes, não ficaram restritos ao local de trabalho, mas foram ampliados, alcançando, inclusive, locais externos a este ambiente. Nesse sentido, observamos os seguintes da- dos: 14 dos trabalhadores participantes da pesquisa afirmaram sair com amigos, especialmente nos finais de semana, e 12 deles afirmaram acompanhar os amigos em locais ou atividades de lazer. Outro dado relevante diz respeito ao fato de 12 dos participantes também afirmarem buscar o apoio dos amigos, sobretudo quando estão aborrecidos e/ ou precisam de algum tipo de auxílio. Considerando que os demais amigos indicados pelos trabalhadores não são colegas do trabalho, pode-se notar que algumas das novas relações de amizade foram estabelecidas em função do trabalho e se estenderam para fora desse âmbito.

Com respeito à inserção e à atuação na sociedade, ampliadas e aprimoradas por meio das novas exigências oriundas do próprio trabalho, verificamos, de forma notável, a adoção de novos espaços frequentados e/ou percorridos pelos sujeitos. No momento em que eram indagados acerca de seus relacionamentos, particularmente os de natureza social, os participantes indicavam determinados locais que eram, supostamente, frequentados de maneira constante. Nesse aspecto, a participação em cultos religiosos, bem como em festas locais e as idas às compras foram as atividades que mais da metade dos participantes mencionou em comum. Considerando o lazer cultural, sobretudo teatro/cinema, 17 dos participantes afirmaram frequentar esses locais, normalmente acompanhados por seus familiares, mas também por amigos, inclusive do próprio trabalho. Assim, notamos que as amizades promovidas e fortalecidas no local de trabalho, quando devidamente articuladas ou integradas com relações anteriormente estabelecidas, contribuem para fortalecer e consolidar a autoestima, assim como para uma melhora considerável da qualidade e do padrão de vida.

No caso das entrevistas com os familiares dos trabalhadores, foi possível reconhecer um aumento importante das relações de amizade. Isso está representado no relato da mãe de um participante:

acho que o relacionamento dela em casa e fora de casa mudou bastante. O círculo de amizades, de colegas que ela conquistou, aumentou. ( … ) Passou a ter mais amigos, sobretudo colegas, mas sempre tem aqueles amigos que são mais apegados. ( … ) Então, eu percebo isso, o trabalho também proporcionou o aumento do círculo de amizades. (Mãe de P.1)

A mãe de um dos participantes (P.6) mostrou-se preocupada com os novos relacionamentos de seu filho; apesar de visar ao melhor desenvolvimento e à proteção dele, devemos ponderar em que medida essas preocupações contribuem para gerar conflitos e, até mesmo, atrapalhar o desenvolvimento dos filhos.

Os empregadores, colegas de trabalho e os amigos dos trabalhadores com síndrome de Down indicaram que esses ampliaram o número de seus amigos; vários disseram que valorizam suas relações com esses colegas e salientaram a importância dessas amizades, que ampliam suas relações afetivas e sociais. Apesar disso, alguns evidenciaram que, em alguns casos, essas novas amizades limitam-se ao ambiente de trabalho: “fez amizades no trabalho, inclusive aqui que nos conhecemos. ( … ) algumas vezes foi em festas, mas no dia a dia dificilmente saímos juntos” (amigo de P.2). Por outro lado, um dos empregadores enunciou: “acho que melhorou no sentido das amizades e da relação com outras pessoas. No começo, eu via ela muito inibida e desconfiada, que nem falei antes. E hoje ela tem mais desenvoltura, se relaciona com os outros mais facilmente” (empregador de P.3).

E um terceiro entrevistado, ligado à equipe de trabalho, observou: “fez amigos no trabalho e às vezes é convidado para ir ao cinema com uma colega. Está mais feliz. Mudou bastante desde que começou a trabalhar” (colega de P.9).

A citação mais acima (amigo do P.2) parece indicar uma limitação da amizade ao local de trabalho, o que nos leva a indagar se isso é devido à incompatibilidade de horários ou à existência de um convívio respeitoso e amistoso com esses colegas com deficiência intelectual, mas que não constitui um vínculo de amizade. Isso não elimina a importância do trabalho para a melhora do convívio social, tal como indicam Pereira Silva e Furtado (2012), para os quais a convivência com outras pessoas é fundamental.

Convém salientar que, para alguns dos participantes, o círculo de amizades não foi alterado ou ampliado mesmo após o ingresso no trabalho. Entretanto, ficou claro, nos depoimentos, que, mesmo não ampliando o círculo de amizades, o relacionamento dessas pessoas com os colegas de trabalho não é ruim. Como apontado pelo empregador do P.8, os participantes puderam manter suas relações anteriores significativas, apenas tendo que ajustar as saídas e os programas aos novos horários em decorrência da jornada de trabalho.

Observamos também que alguns entrevistados(as) apontaram a influência do emprego em suas relações de trabalho, ainda que tal influência não tenha, necessariamente, impactado de forma positiva as relações de amizade. Conforme alguns relatos: “ele tem amigos no trabalho. Às vezes não é amigo, mas colega de trabalho” (amigo de P.4); “tenho mais colegas no trabalho, não mais amigos, acho que porque muitas pessoas ainda têm preconceito com quem tem síndrome de Down” (P.3).

Essa tendência das respostas é coerente com o que Veiga et al. (2014) relatam:

as relações de amizade (apesar de para alguns ex-formandos terem aumentado após a inclusão profissional) são em baixo número, nem sendo estreitadas verdadeiramente nem entrando no mundo da partilha e da intimidade, apresentando muitas delas um caráter meramente superficial e circunstancial onde cada um dá apenas um pouco de si ao outro. (p. 230)

Autonomia

Além da ampliação das relações e círculos de amizade, o emprego pode, também, ser uma oportunidade importante para que as pessoas com deficiência intelectual desenvolvam a autonomia, uma vez que este desenvolvimento se vincula aos ideais de independência, liberdade e autossuficiência.

Uma das autonomias necessárias é a dirigida a questões políticas. É interessante notar que 16 dos 20 participantes votam nas eleições, e o fato de escolherem seus representantes políticos pode indicar que têm consciência da necessidade de optar entre vários destinos da sociedade; quando se observa que, e não somente no Brasil, a democracia corre risco de existir e que a quantidade de pessoas que deixam de votar é grande, chama a atenção o fato de que a maioria desses participantes vota nas eleições.

A autonomia devida à entrada no mercado de trabalho é ampliada: na organização de sua rotina em casa, na memorização do trajeto casa-trabalho, no uso do dinheiro e também no próprio cotidiano profissional. As habilidades exigidas aos sujeitos criam desafios que podem favorecer o desenvolvimento de iniciativa, responsabilidade, independência, permitindo-lhes planejar, decidir e cuidar melhor de suas próprias vidas, diminuindo progressivamente a necessidade do auxílio de terceiros para a realização de suas atividades.

Salientamos que 19 entre os 20 participantes se julgaram mais autônomos, seguros e confiantes após o trabalho. Nesse sentido, um dos relatos representa bem essa forte tendência: “meus pais me apoiaram e eu entrei no mercado de trabalho, e para mim foi muito bom, porque eu fiquei mais madura, amadureci dentro do trabalho, tive mais autonomia, independência. Eu sei me virar sozinha” (P.1).

A maior parte dos participantes respondeu que auxilia na manutenção da casa limpa e organizada; metade deles costuma cozinhar e poucos utilizam a máquina de lavar roupa. Ainda segundo seus familiares, 15 dos participantes ajudam nos trabalhos domésticos. Esses dados indicam que a participação dos trabalhadores nas tarefas do lar tende a se concentrar nas atividades que exigem menos domínio técnico e planejamento, como, por exemplo, a limpeza do quarto e da louça.

Além do empenho com as tarefas domésticas, verificamos também que muitos dos participantes, ao começarem a trabalhar, modificaram seus hábitos com relação aos cuidados de si. Mais da metade deles diz possuir autonomia para as atividades que indicam cuidado consigo próprio. Embora essa seja uma tendência geral, é importante destacar que ela parece mais consolidada na definição dos horários de sono nos finais de semana e na escolha do vestuário. Quanto à escolha e aos horários da alimentação, a maioria disse não ter autonomia, obedecendo, nesses quesitos, à instrução dos pais ou dos mediadores.

Apesar desses limites, nota-se que o desempenho de atividades em que são mais autônomos está ligado ao desenvolvimento significativo da independência e da responsabilidade após começarem a trabalhar. Estes ganhos apareceram na fala de muitos familiares. Duas respostas representam esta percepção: “percebo que ela se tornou uma pessoa mais independente, mais autônoma... isso eu atribuo ao trabalho” (mãe de P.1);

ela teve um crescimento espantoso desde que começou a trabalhar, ela ficou mais autônoma. Ela sabe se virar sozinha. Ela até já tinha trabalhado como jovem aprendiz antes, e desde então foi ótimo. ( … ) O emprego é importante para ela nessas questões que falei, do desenvolvimento da autonomia dela, de crescimento dela. (Mãe de P.7)

Como observado, vários dos trabalhadores com síndrome de Down obtiveram mais autonomia em relação a cuidar de tarefas da casa e de si mesmos, o que é fundamental para sua própria vida e para o convívio familiar. Os entrevistados também foram questionados a respeito dos hábitos de lazer e dos lugares que gostam de frequentar no seu tempo livre, verificando também se isso se alterou após a inclusão no mercado de trabalho.

Os participantes parecem possuir autonomia em relação ao lazer no momento de decidir a respeito do que fazer no tempo livre e no convite envolvendo amigos. Tendência esta semelhante às indicadas por Veiga et al. (2014), quando apontam que os trabalhadores apresentam autonomia “quanto a algumas questões ligadas à gestão doméstica de natureza mais íntima e pessoal, ao que querem fazer nos seus tempos livres e quanto às atividades que querem praticar” (p. 209).

Porém, 17 dos participantes disseram que precisam de autorização dos pais ou tutores para sair e se sentem obrigados a acompanhá-los quando estes saem, mesmo contra sua vontade. Cabe destacar, conforme Fernandes et al. (2014), que:

a estratégia da tutela parental não contribui para melhorar a sua qualidade de vida. Essa estratégia parece assentar sobretudo nos impedimentos colocados às saídas de casa sem controlo familiar, facto que impede ou dificulta a autonomia na criação de laços sociais e relações de amizade ou amorosas, incluindo as potencialmente significativas e duradouras. (pp. 209-210)

Dois empregadores, dois familiares, dois amigos e um colega de trabalho ainda indicaram a questão da organização dos horários, de compromisso e sociabilidade, como habilidades e mudanças de atitude importantes que foram desenvolvidas nos trabalhadores, sugerindo que o emprego pode ter trazido mais confiança, responsabilidade e independência.

Convém salientar que um empregador indicou como o aspecto relacionado ao aprendizado das regras hierárquicas pode ser compreendido como um meio que contribui para ampliar o respeito em relações distintas das do contexto familiar. A inserção em outro contexto de convivência, como o que se configura no emprego, põe ao trabalhador o desafio de compreender os códigos e as regras vigentes nesse contexto, o que inclui as relações hierárquicas, a diferença entre chefes e colegas. Se a hierarquia como um fim em si mesmo é criticável, como meio, pode ser necessária.

Aproximadamente metade dos participantes utiliza o dinheiro como quer, a grande maioria tem conta bancária e/ou cartão, mas somente cinco deles depositam e retiram seu dinheiro. Alguns dos entrevistados reconheceram que os ganhos de autonomia estão relacionados ao aspecto da remuneração do trabalho realizado. A mãe e a amiga do P.13 indicaram, por exemplo, que eles passaram a cuidar melhor do dinheiro e a gastá-lo melhor depois que começaram a trabalhar. A amiga de um dos entrevistados identificou de forma semelhante essa questão da renda e do poder aquisitivo que o emprego propiciou: “eu acho muito legal ela ganhar o seu próprio dinheiro para poder comprar as coisas dela, sair, viajar” (amiga de P.1). Comentando sobre o mesmo aspecto, a mãe de um dos trabalhadores relatou o seguinte fato:

ela pode fazer coisas que, talvez, a gente, com toda a despesa de casa - eu sou aposentada, ele também (se referindo ao marido), e eu, trabalhando na escola, sabe como é? Então ela faz coisas que ela pode assumir a vidinha dela. A aula particular, ela quis estudar, mas estudar só com uma professora e em casa. Então a professora vem e dá a aula aqui e ela que faz o pagamento. Quando ela faz um curso no próprio Serviço Nacional de Aprendizado Industrial e ela mesma paga. Isso dá uma segurança pra gente, pois, na hora que a gente não tiver mais aqui, ela tem um trabalho dela e a irmã pode ser só a rede de apoio dela, né? (mãe de P.19)

Reconhecendo os prós e contras que a autonomia salarial trouxe na vida de seus filhos, uma das mães também destacou o seguinte aspecto: “tem o lado positivo e o negativo. O positivo é que ela tem iniciativa, pode sair e comprar suas coisas, viajar. O lado negativo é que ela me questiona quando nego algo para ela, dizendo: ‘eu ganho meu dinheiro’” (mãe de P.16).

Assim, o dinheiro é um importante elemento da vida dos trabalhadores, pois representa uma via de fortalecimento de sua autonomia (seja pelo poder aquisitivo, seja pela possibilidade de colaborar nos gastos domésticos) e se destaca dos aspectos até então levantados, pois parece representar um importante desafio que tais sujeitos possam utilizar os seus recursos financeiros da forma mais autônoma possível e com o mínimo de apoio necessário.

Esses ganhos podem ser observados por meio do reconhecimento efetivo dirigido às pessoas com deficiência, quer por parte de seus familiares, quer por parte de amigos ou de outras pessoas consideradas importantes pelos trabalhadores. As análises de Pires et al. (2007) ratificam que o emprego pode influir positivamente na autoestima, na autonomia e no reconhecimento social desses trabalhadores, devido à forma com a qual passam a ser percebidos pelos outros e por si mesmos.

A questão da mobilidade levanta discussões interessantes sobre o desenvolvimento da autonomia após o emprego. Com relação à capacidade de se locomoverem individualmente (transporte), dois participantes e uma mãe relataram: “sempre vou de carro ( … ) se me deixassem ir sozinha para o trabalho, eu saberia voltar” (P.12). Já outro participante afirmou:

saio sozinho, às vezes eu saio com a minha mãe também. Porque, assim, a minha mãe quer que eu viaje junto com ela; tem vez que ela quer viajar comigo e a gente vai; tem vez que eu não posso porque tenho trabalho, tenho o grupo de convivência - Simbora, gente! (P.14)

A esse respeito, a mãe de um dos participantes também afirmou:

ele poderia ser mais (independente). ( … ) Ele poderia ir para a natação, por exemplo; ele poderia pegar um ônibus. Mas ele chega à noite, está cansado. Eu queria que (ele) tivesse mais autonomia. Aí o cara diz: “vai andar mais de metrô”. Mas para ir aonde? Ele tem uma namorada que tem que pegar um metrô? Não tem. (Mãe de P.15)

A maioria dos participantes não possui autonomia para se deslocar sozinho. Segundo os amigos, somente três dos participantes vão sozinhos para o trabalho ou aonde precisam; oito deles saem de noite, mas só com amigos, o que sugere pouca autonomia para se deslocarem. Esse dado é reiterado pelos familiares dos participantes, ao indicarem que somente três dos entrevistados vão sozinhos ao trabalho ou aonde precisam. Nove dos participantes saem à noite, em geral com uma mediadora de grupo de lazer.

Nota-se como a questão da mobilidade toma uma relevância grande tanto para os trabalhadores, quanto para suas famílias. Tomemos como exemplo o P.13, que, após o emprego, se tornou mais autônomo no manejo com dinheiro, na mobilidade, bem como no tocante ao vestuário e à alimentação, embora continue não saindo de casa desacompanhado para nada. Isso nos traz a questão do porquê esse ganho de autonomia parece ser mais delicado, ou até mais complicado.

Algumas vezes, as famílias julgam que seus filhos com síndrome de Down são menos autônomos do que eles próprios se julgam, pois sempre insistem em acompanhá-los em seus trajetos. Apesar dos vários ganhos de autonomia mencionados pelos entrevistados, a questão da mobilidade parece merecer destaque, talvez por implicar uma se paração maior entre os trabalhadores e seus familiares e cuidadores, sobretudo por se colocarem em situação vulnerável ao circularem por uma cidade grande.

Para tornar possível comparar os diversos tipos de autonomia, calculamos os indicadores para cada um dos que foram avaliados, e os apresentamos na Tabela 1. Esses in dicadores foram calculados a partir de questões sobre os diversos aspectos analisados; variando de 0 a 1,0: quanto mais próximos de 1,0, maior é a autonomia.

Tabela 1 Escores médios e desvios padrões das diversas formas de autonomia dos participantes 

Conforme os dados da Tabela 1, os participantes possuem boa autonomia em relação aos cuidados financeiros, de si próprios e ao lazer, mas pouca autonomia em relação ao deslocamento.

Para saber se há relação entre a autonomia para o deslocamento e IDH da região onde o participante mora, e entre essa autonomia e o salário ganho no emprego, calculamos correlações de Spearman. Encontramos correlação significante entre a autonomia para o deslocamento e o IDH (r = -0,50; df 18, p = 0,03), indicando que, quanto menor o IDH do distrito em que o participante mora, maior a autonomia de se deslocar; inversamente, quanto maior o IDH, menor a autonomia. De fato, P.9 e P.14 são os que têm os indicadores de autonomia mais elevados e ambos possuem histórias de vida que revelam dificuldades financeiras; isso parece indicar que, quando o nível financeiro da família é bom, pode haver proteção em demasia em relação a seus filhos com deficiência, dificultando o desenvolvimento desse tipo de autonomia. Além disso, obtivemos também correlação significante entre a autonomia para o deslocamento e o salário (r = 0,45; df 18): quanto maior o salário, maior o grau de autonomia para o deslocamento.

Bem-Estar e Projetos de Vida

Além dos círculos de amizades e da autonomia, a entrada no mercado de trabalho pode ter efeitos significativos no bem-estar das pessoas com síndrome de Down. Expomos a seguir, a partir das entrevistas realizadas, indicadores de que o fato dessas pessoas estarem trabalhando representa uma conquista, uma realização e uma satisfação pessoal, e o quanto isso impactou seu sentimento de bem-estar.

Inicialmente, salientamos que, nas respostas aos questionários, todos os participantes julgam que são pessoas alegres, bem-dispostas e que gostam da vida que têm. Dos trabalhadores entrevistados, 19 deles se dizem satisfeitos consigo mesmos e jul gam que o emprego os deixou mais felizes. Entre os familiares, o número é menor, mas, ainda assim, 12 familiares julgam que os trabalhadores são mais felizes após o emprego. Isso indica que, de modo geral, a inserção no mercado de trabalho traz consequências positivas para o sentimento de bem-estar dos trabalhadores.

Os depoimentos indicam que muitos familiares percebem os ganhos relacionados ao bem-estar, sobretudo os ligados à sensação de utilidade e inclusão social dos trabalhadores. Esses são aspectos fundamentais para a efetivação de uma política de inclusão que vá além da inserção das pessoas nos postos de trabalho, permitindo assim que o emprego (e todas as ampliações de autonomia e engajamentoa ele relacionadas) promova maior participação social.

Outro aspecto ligado ao bem-estar dos trabalhadores entrevistados é a forma como enxergam sua vida atual em relação à perspectiva de futuro. Essa perspectiva se coloca por meio de múltiplas visões, tais como planos de vida, projetos, sonhos, anseios e metas. Nesse sentido, notamos que esses trabalhadores têm ambições diversas, algumas das quais se modificaram após a inserção no trabalho. Os participantes almejam, com mais frequência: ganhar mais, ter casa própria, casar-se, namorar e ter filhos. Tais exemplos indicam não haver diferenças com relação aos desejos comumente atribuídos a jovens adultos, como podem ser caracterizados os nossos participantes, segundo a idade que apresentam.

Dessa forma, podemos concluir que a maioria tem sonhos e expectativas como todos têm, não se mostrando resignados. A esse respeito, chama a atenção a resposta da P.1, a saber, de que deseja uma vida “mais agitada”, o que sugere ao mesmo tempo a monotonia talvez ligada às poucas oportunidades oferecidas às pessoas com deficiência e também sua capacidade de percepção e crítica. À exceção de dois participantes, que acham que não irão conseguir cumprir essas expectativas, e de outro que julga já ter tudo de que precisa, todos os demais acreditam que conseguirão obter o que esperam para uma vida melhor.

Segundo as entrevistas com os familiares, 10 dos participantes querem casar. Nos depoimentos, duas mães de trabalhadores identificaram também que, após eles começarem a trabalhar, passaram a elaborar planos, a traçar metas e a considerar novos projetos para o futuro.

Nos relatos descritos de alguns participantes, podemos detectar como a inclusão no trabalho pode resgatar a participação social no sentido da ampliação dos horizontes e do desenvolvimento de sonhos e expectativas. É possível identificar de forma clara certa queixa a respeito do fato de a empresa em que trabalham não permitir que desempenhem outras funções, mesmo que essas funções façam parte do setor em que atuam. Do ponto de vista da inclusão profissional, as empresas poderiam repensar suas práticas e adotar ações no sentido de se tornar ainda mais inclusivas, aceitando os desafios que advêm com a ampliação dos desejos e ambições dos sujeitos, que passam a ser também trabalhadores.

Um dos participantes da pesquisa foi demitido enquanto coletávamos os dados. Disse que se considerava mais feliz quando estava trabalhando, relatando que, quando o mandaram embora, “foi um chute no estômago” (P.4).

Assim, a inserção no mercado de trabalho ofereceu oportunidades para que os(as) participantes se sentissem melhor em relação a muitos aspectos de suas vidas. Nos casos em que não houve muita influência do emprego, vimos como os participantes e os demais entrevistados avaliaram que eles já estavam satisfeitos consigo mesmos e com suas vidas, de modo que o emprego não trouxe consequências negativas ou positivas visíveis. Os pontos negativos do emprego apontados em três depoimentos pareceram estar ligados à rotina e aos horários, o que faz parte das condições de trabalho de todas as pessoas, constituindo frustrações legítimas, mas não específicas à inclusão de pessoas com deficiência.

Considerações Finais

Os dados encontrados na pesquisa relatada confirmam boa parte dos obtidos pela pesquisa de Veiga e Fernandes (2014).

Notamos que, com o ingresso no mundo do trabalho, as relações afetivo-sociais das pessoas com síndrome de Down foram enriquecidas e influenciadas por esse ingresso, o que também é realçado por Leite e Lorentz (2011). Em determinadas situações, encontros e vínculos converteram-se em amizades mais sólidas. Entretanto, também observamos relatos em que tais vínculos pautavam-se numa relação de carinho e respeito entre colegas. Esses apontamentos foram comprovados pelos depoimentos de 19 dos 20 participantes da pesquisa, que afirmaram estarem satisfeitos com suas relações de amizade.

Verificamos, em alguns depoimentos, certa relutância ou resistência por parte de alguns colegas com relação aos trabalhadores com deficiência; no entanto, foi possível observar, como outro dado relevante, o engajamento por parte de outros colegas, fato determinante no processo de integração física e social do empregado no local de trabalho.

Grande parte dos entrevistados indicou um desenvolvimento na autonomia dos sujeitos vinculado à inserção destes nos empregos. Conforme observamos, 19 participantes se consideravam mais autônomos, seguros e confiantes para lidarem com as situações do dia a dia. Os dados obtidos com a aplicação dos questionários indicaram que o trabalho trouxe uma maior independência financeira.

De acordo com os depoimentos dos familiares, a maioria dos participantes da pesquisa colabora com os afazeres em casa, sendo tais tarefas as que exigem menos planejamento e técnica. Verificamos, ainda, conforme os dados, uma correlação significante entre a autonomia para o deslocamento dos trabalhadores e o IDH do local onde moram: quanto menor o IDH onde residem, maior o grau de autonomia para propiciar deslocamento. A maioria dos depoimentos apontou, também, que o emprego propiciou ganhos ao bem-estar dos trabalhadores com síndrome de Down, no que diz respeito à sensação de felicidade e de participação social, como também pela percepção de se sentirem mais úteis, aceitos pelos pares, e de poderem contribuir com a família e traçarem planos para o futuro.

Com o emprego, houve um aumento da autoestima, da autonomia e do bem-estar dos trabalhadores com síndrome de Down entrevistados nesta pesquisa, devido às no vas experiências possibilitadas pelos empregos, o que também foi constatado na pesquisa de Veiga e Fernandes (2014) e na de Leite e Lorentz (2011). Ressalta-se que o apoio da família, dos colegas de trabalho e de seus chefes, assim como a formação anterior, são fundamentais para a inclusão dessas pessoas, proporcionada e concretizada pelo acesso ao trabalho, fato que se amplia para os demais âmbitos da vida social, o que é ressaltado no trabalho de Pereira-Silva et al. (2018).

Por fim, ressalta-se a importância do desenvolvimento de políticas voltadas à inclusão com vista ao fortalecimento de ações que favoreçam a entrada no mercado de trabalho de pessoas com deficiência, apesar das críticas cabíveis ao modo de produção capitalista e à exploração inerente a este regime.

Agradecimentos

Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, que custeou este estudo (Processo nº 2016/19807-0).

Referências

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Recebido: 16 de Junho de 2021; Aceito: 22 de Setembro de 2021

Alex Sandro Corrêa é graduado em geografia pela Universidade de Guarulhos (1993), mestre em educação no programa de educação: história, política e sociedade pela Pontifícia Universidade Católica (2005) e doutor em psicologia escolar e do desenvolvimento humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, onde atua como membro do Laboratório de Estudos sobre o Preconceito na mesma instituição. É professor concursado no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, em São Paulo. Tem experiência na área de ensino e com atuação nos cursos de licenciatura, cursos técnicos integrados ao ensino médio, orientação de estágio e coordenador voluntário no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência. Email: correa.alex2007@hotmail.com Morada: Av. Prof. Mello Moraes, 1.721- Cidade Universitária - São Paulo/SP - Brasil- CEP: 05508-030

José Leon Crochick é psicólogo (1979), mestre em psicologia social (1985), doutor em psicologia escolar e do desenvolvimento humano (1990) e docente associado em psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP; 1999). É professor credenciado do programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da Universidade Federal de São Paulo, professor visitante do curso de pós-graduação em educação da Universidade Estadual de Maringá e professor titular aposentado do Instituto de Psicologia da USP (2006). É bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico; auxílio regular à pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, para desenvolver projeto sobre inclusão profissional de jovens com deficiência intelectual. Autor do livro Preconceito, Indivíduo e Cultura (Editora Casa do Psicólogo), tem como referência teórica os trabalhos da teoria crítica da sociedade, a partir da qual analisa principalmente os seguintes temas de pesquisa: preconceito, bullying e educação inclusiva. Email: jlchna@usp.br Morada: Estrada do Caminho Velho, n.333, Guarulhos, São Paulo-Brasil-CEP: 07252-312

Rodrigo Nuno Peiró Correia é graduado em administração de empresas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1997) e graduado em educação física (bacharelado e licenciatura) pela Universidade de São Paulo (USP; 2003). Tem mestrado em educação física pela USP (2008) e atualmente doutorando em psicologia escolar e do desenvolvimento humano no Instituto de Psicologia da USP, como também, membro do Laboratório de Estudos sobre o Preconceito nesta mesma instituição. Tem experiência na área de administração de empresas (bancos e instituições financeiras) e na área de educação física, com ênfase em educação física escolar, condicionamento físico, treinamento esportivo e educação física adaptada. Atualmente é servidor público efetivo da Secretaria Municipal de Esportes e Lazer de São Paulo e conselheiro do Conselho Regional de Educação Física do estado de São Paulo. Email: rodrigonpc@hotmail.com Morada: Av. Prof. Mello Moraes, 1.721- Cidade Universitária - São Paulo/SP - Brasil- CEP: 05508-030

Fabiana Duarte de Sousa Ventura é psicóloga e pedagoga, pós-graduada em educação inclusiva e análise do comportamento humano, consultora na área de inclusão e diversidade. É a idealizadora do Instituto Simbora Gente e membro do Laboratório de Estudos sobre o Preconceito. Co-autora do livro Inclusão Profissional de Trabalhadores com Deficiência Intelectual na Cidade de São Paulo e é ainda, pesquisadora e palestrante. Email: fabiana.ventura@hotmail.com Morada: Av. Prof. Mello Moraes, 1.721- Cidade Universitária - São Paulo/SP - Brasil-CEP: 05508-030

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