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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

versão impressa ISSN 2184-0458versão On-line ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.8 no.1 Braga jun. 2021  Epub 01-Maio-2023

https://doi.org/10.21814/rlec.3323 

Entrevistas

Entrevista com Hildegard Westerkamp: “Quando Começamos a Ouvir o Mundo Estamos a Tratar da Vida Toda”

1Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga, Portugal


Os postais ilustrados são em parte responsáveis pela relação visual que ainda hoje temos com os lugares urbanos. Costumavam fixar imagens de vilas e cidades e chamar a nossa atenção para o que se pode ver. As cidades são, no entanto, locais que também podem ser vividos e descritos em termos auditivos. São uma espécie de auditórios, onde o ruído do trânsito se combina com o canto dos pássaros. A experiência de ouvir conscientemente - que vem sendo analisada de forma mais intensa desde a década de 1970- é uma forma de conhecer o ambiente, bem como uma forma de preservar a natureza sentiente do corpo. Nesta entrevista - que foi gravada em janeiro de 2021 no âmbito do projeto “AUDIRE. Repositório Áudio: guardar memórias sonoras” --, Hildegard Westerkamp explica quão original e único pode ser um passeio sonoro e quão inspirador ou perturbador pode ser a experiência acústica urbana hoje em dia. O conceito de paisagem sonora e a noção de escuta consciente são aqui considerados fundamentais para a compreensão da nossa relação com o meio ambiente.

Com formação académica em música e comunicação, Hildegard Westerkamp é compositora, radialista e ecologista sonora. Nasceu na Alemanha, mas está, desde 1968, radicada no Canadá. Como pesquisadora, participou na equipa do “World Soundscape Project”, que foi coordenada por R. Murray Schafer. Em meados dos anos 1970, liderou o projeto de redução de ruído da Society Promoting Environmental Conservation (SPEC; Sociedade de Promoção da Conservação Ambiental), em Vancouver, e alguns anos depois criou um programa de rádio pioneiro, o Soundwalking, na Vancouver Co-operative Radio. Lecionou comunicação acústica na Simon Fraser University durante quase uma década, entre 1982 e 1991, e foi investigadora do projeto “Women in Music”. Entre 1991 e 1995, Hildegard Westerkamp editou o boletim The Soundscape Newsletter e, em 2000, fundou o Soundscape: The Journal of Acoustic Ecology, de que foi editora principal até 2012.

Entusiasta promotora de passeios sonoros, que descreve como excursões cujo objetivo principal é ouvir o meio ambiente, Hildegard Westerkamp é membro fundador do Fórum Mundial de Ecologia Acústica. De acordo com a Canadian Encyclopedia (Enciclopedia Canadiana; Bazzana, 2007), Westerkamp é membro de muitas associações e vários dos seus trabalhos artísticos têm sido premiados e reconhecidos em competições americanas e europeias.

Os sons do ambiente são os recursos “musicais” das suas composições. Como artista, Hildegard Westerkamp é uma espécie de poetisa sonora. A sua excecional experiência na transformação de sons do quotidiano em práticas artísticas e o seu entendimento claro, mas emotivo, do som como uma linguagem são os motivos que a tornam hoje uma das referências mais distintas para os investigadores dos estudos do som.

Não haverá hoje investigador na área de estudos sónicos que não se refira, de uma forma ou de outra, à palavra soundscape (paisagem sonora). Na sua opinião, por que é que esse conceito é tão especial?

Quando comecei a trabalhar com Schafer em 1973 e no “World Soundscape Project” (WSP), a palavra soundcape (paisagem sonora) era nova. Aparentemente, a palavra tinha sido usada por outra pessoa antes, mas foi Schafer quem pegou nesse conceito e realmente o desenvolveu.

A maneira simples de falar sobre isso é referir-se à palavra paisagem. Na língua inglesa, esta é uma conexão muito óbvia. Quando pensamos em paisagem, pensamos em tudo, desde a sua geografia, a sua vegetação, os seus habitantes e o seu conteúdo cultural, ou seja, a interação entre os seres vivos e o ambiente específico em que vivem. O mesmo se aplica à paisagem sonora, que, segundo Schafer, deve ser entendida como um lugar sonoro que nos comunica e que comunicamos internamente. É um lugar percebido auditivamente. O interesse de Schafer pela paisagem sonora teve origem na preocupação de que não estávamos a prestar atenção suficiente a esta dimensão da paisagem, de que estávamos a começar a ter muitos problemas sonoros, principalmente no ambiente urbano.

Quando falamos sobre paisagem sonora, não falamos apenas sobre os sons que estão a acontecer no ambiente. Estamos a falar também, e mais importante, sobre o nosso relacionamento com esse ambiente, na verdade, o de qualquer ser vivo, e como o ouvimos e emitimos som nele. Qual é a interação? O que estamos a fazer com o ambiente sonoro? Que vozes estamos a colocar aí? E como é que os sons ocupam um ambiente? Como é que um ambiente reflete o som de volta? Um ambiente, uma paisagem, um lugar urbano, uma sala moldará qualquer som por meio de reflexos, ecos e ressonâncias, e dar-lhe-á as suas características únicas.

Há sempre uma relação entre o modo como um ambiente recebe um som e o modo como colocamos som nele. Muitas vezes esse tipo de relação ecológica de que estamos a falar aqui é esquecido quando a expressão paisagem sonora é usada hoje em dia. Mas, historicamente, o termo paisagem sonora implica sempre - e isso é de facto a sua essência - que falemos sobre a relação entre os seres vivos e o meio ambiente. Hoje em dia, muitas vezes, ouvimos as pessoas falarem sobre uma paisagem sonora, mesmo quando se trata de uma peça musical, uma composição, e não necessariamente uma composição que usa som ambiental. Na verdade, às vezes uma peça musical também pode ser uma paisagem sonora. Mas muitas vezes, nesses contextos, a ênfase seria numa compreensão ecológica dessa paisagem sonora, como nos relacionamos com ela, como ouvimos, que significados os sons têm para nós e assim por diante.

Provavelmente por causa da sua conotação com a ecologia sonora e as paisagens naturais, a palavra é frequentemente usada para significar uma audição agradável...

Isso é um mal-entendido. Lembro-me de quando estive no Japão há alguns anos, tivemos uma intensa discussão exatamente sobre isso. O termo paisagem sonora na cultura japonesa tendia a significar um ambiente sonoro agradável, como os belos jardins tradicionais. Não, na tradição do “World Soundscape Project”, estamos a falar de qualquer ambiente sonoro. A ideia da época, nos anos 1970, de começar a ouvir conscientemente todos os aspetos do ambiente sonoro baseava-se muito no facto de o am biente sonoro estar cada vez mais poluído. E, precisamente por isso, precisávamos de o ouvir, especialmente porque, como Schafer intuía, as pessoas envolvidas no combate à poluição sonora não incluíam a escuta nas suas lutas anti-ruído. Fizeram-se muitas medições e estudos de ruído a fim de entender a poluição sonora e fazer alterações, mas a única coisa que faltava era ouvir o ruído. Schafer afirmou que ouvir conscientemente nos ajudaria a entender visceralmente o que realmente está a acontecer lá fora. A ideia dele era que, no nosso estudo de toda a paisagem sonora, também precisávamos de inserir a perceção na abordagem ao ruído, por mais incómodo que fosse.

Na verdade, pode ser francamente desconfortável ouvir a paisagem sonora se um passeio sonoro passar por uma rua barulhenta por muito tempo. Nesse contexto, a escuta é consciente! Aí não estaremos apenas a bloquear o ruído; estaremos a fazer o oposto, estaremos a abrir-nos para isso. E isso pode tornar-se muito desconfortável e cansativo. Uma experiência como essa é uma verificação da realidade. Revela o que acontece ao nosso corpo e à nossa psique, mesmo que não prestemos atenção a isso. Se bloquearmos esse som, como costumamos fazer na vida diária, enquanto caminhamos pela rua, geralmente também não temos consciência do que esse som está a fazer connosco. Portanto, a essência do motivo pelo qual gostaríamos de ouvir paisagens sonoras dessa maneira é entender o seu impacto em nós mesmos e em qualquer ser vivo, especialmente quando estamos expostos a esse tipo de ruído na vida quotidiana. Qual é a realidade disso? Complementar a experiência auditiva com medições e pesquisas acústicas era o ideal que estava por detrás do trabalho do “World Soundscape Project”: trabalhar com cientistas que estudam o ambiente sonoro e reunir as informações que vêm tanto de dados quantitativos quanto de pesquisas qualitativas. Se combinarmos essas abordagens, podemos obter uma compreensão mais ampla do que estamos a fazer com os nossos ambientes sonoros.

No entanto, essa abordagem abrangente para estudar o ambiente sonoro abre enormes e complexas arenas de trabalho. Antes de começar a trabalhar com o “World Soundscape Project”, quando ainda era estudante de música, nunca tinha ouvido falar em pesquisa de som, medições de ruído, acústica ambiental e coisas do género, e certamente nunca imaginei entrar nessa área de estudos. De repente, começamos a lidar com dados quantitativos, desejamos compreender termos como decibel, reverberação, ressonância e assim por diante; queremos entender como as condições ambientais influenciam a qualidade do som, por que algo é perturbador ou não; aprendemos sobre a psicologia da audição, a fisiologia do ouvido, para citar apenas alguns aspetos do estudo do mundo do som. Aí não estamos apenas a entrar em áreas multidisciplinares de som e acústica, mas, num nível pessoal, também começamos a entender como ouvimos, que tipo de ouvinte somos. Esta é uma tarefa de vida realmente, começar a entender como ouvimos, como reagimos ao som, por que algumas pessoas são mais sensíveis a ruídos e sons em volume elevado do que outras, por que certas culturas são muito mais sonoramente expressivas e extrovertidas do que outras. Costumo dizer que Schafer nos deixou um grande legado, porque quando começamos a ouvir o mundo, estamos a tratar da vida toda.

Como descreveria os nossos ambientes acústicos do dia a dia, pensando especial- mente nas pessoas que vivem nas cidades? Falou sobre o ruído. David Hendy (2013) diz que a modernidade é barulhenta. Também é essa a sua ideia?

É um assunto complicado. Tem havido uma resistência em comparar a cidade e a vida urbana ao ruído. Não é uma questão de preto e branco. Schafer foi criticado por apresentar uma dualidade entre natureza/bom/tranquilo, cidade/barulhento/ruim. Superficialmente, sim, isso é o que se pode ler no seu livro (The Soundscape. Our Sonic Environment and the Tuning of the World; A Paisagem Sonora. O Nosso Ambiente Sonoro e a Sintonização do Mundo>, que foi escrito nos anos 1970, quando a poluição sonora se tornou um ímpeto fundamental para que ele prestasse atenção à qualidade da paisagem sonora. Mas quando se lê realmente o seu trabalho em profundidade, a premissa de ouvir o mundo e pesquisar o ambiente sonoro revela profundas complexidades sobre como as paisagens sonoras são vivenciadas e interpretadas. Nunca é preto e branco. Por exemplo, como as pessoas em culturas mais antigas sabem, os ambientes urbanos podem ter lugares silenciosos incrivelmente bonitos - os recantos e os becos de pequenas ruas, onde os sons motorizados não podem penetrar. Na América do Norte, é um pouco diferente: as cidades tendem a ser locais extensos, onde o som da banda larga do tráfego pode invadir grandes territórios. O ronco de baixa frequência de sons motorizados e de ar condicionado de prédios altos, por exemplo, pode viajar para longe e ser penetrante.

Em contraste, na minha própria cidade natal na Alemanha, foi decidido nos anos 1970, eu acho - eu já tinha emigrado -, esvaziar o centro antigo da cidade de todo o trânsito motorizado. É o espaço urbano mais bonito que posso imaginar, porque tudo o que se ouve são passos, músicos e vozes, basicamente. Os prédios não têm saídas de ar-condicionado como acontece nas cidades norte-americanas. Claro que se pode experimentar isso em muitas outras culturas, nas quais se pode encontrar esta combinação interessante de uma paisagem sonora silenciosa (desprovida de sons motorizados) e ainda socialmente uma atmosfera muito animada - belos ambientes urbanos que podem ser muito mais silenciosos do que algumas partes do campo onde se ouvem máquinas agrícolas ou grandes artérias de trânsito. Se realmente começarmos a ouvir todos esses detalhes da paisagem sonora, não poderemos mais insistir em interpretações dualísticas do ambiente sonoro.

As autoridades também se estão a tornar mais sensíveis à qualidade acústica das cidades e dos edifícios…

Exatamente. Peter Cusack escreveu recentemente um livro intitulado Berlin Sonic Places. A Brief Guide [Lugares Sónicos de Berlim. Um Guia Breve>, no qual ele destaca como, quando nos movemos por uma cidade, “passamos por uma sucessão contínua de paisagens sonoras que se fundem, muitas vezes despercebidas, de uma para a outra”. Cada parte da cidade tem as suas próprias características sonoras. Quando o “World Soundscape Project” estava a estudar a paisagem sonora de Vancouver no início dos anos 1970, essa era uma abordagem muito nova. Isso não havia sido feito de forma abrangente antes. Estávamos a tentar obter uma espécie de “imagem” auditiva global - por falta de palavra melhor! - de Vancouver, gravando a cidade, estudando diferentes aspetos. Só nesse processo é que começamos a entender o quão impossível isso realmente é, quão complexo é um ambiente urbano, quão inspirador ou também absolutamente opressor pode ser. Temos praias em Vancouver e lindos espaços abertos. Isso não significa que não ouvimos um zumbido urbano o tempo todo, dependendo do clima, do vento, da pressão do ar. Isso muda todos os dias. E temos também o oposto, o Downtown East Side. As pessoas que moram lá têm de lidar com ruídos que podem ser assustadores, ruídos que não são apenas de trânsito intenso, mas também de sirenes, vozes de pessoas que sofrem de dependência e sem-abrigo e, sim, há trânsito contínuo, construção e por aí fora. Entre esses extremos, temos tudo o resto, incluindo o centro comercial e financeiro mais chamativo do centro da cidade com os seus prédios altos.

Durante os primeiros meses da covid, de repente tivemos muito pouco trânsito. Foi particularmente interessante entrar naquelas áreas de arranha-céus quando a circulação automóvel praticamente parou. De repente, podia-se realmente ouvir os parâmetros acústicos de um lugar como aquele. Andava-se por aquelas ruas agora vazias rodeadas por vidro, paredes altas, superfícies duras e percebia-se que, quando se faz um único som ali, ele reverbera fortemente ou até mesmo ecoa. Mas quando essas mesmas ruas estão cheias de som de trânsito contínuo, é muito difícil discernir o quanto esse som é amplificado e reverberado por aquelas paredes de vidro. As ruas do centro são basicamente túneis acústicos de sons de motores amplificados. É o chamado efeito de ravina. A covid destacou muitas dessas características da paisagem sonora e, idealmente, pode encorajar e possibilitar mudanças no design de som urbano no planeamento futuro da cidade.

É um desafio experimentar a natureza polifónica das cidades?

A polifonia, para mim, representa a união de muitas vozes interagindo entre si, e de uma maneira ideal ouve-se todos os seus aspetos. Numa fuga de quatro partes de Johann Sebastian Bach, ouve-se cada nota. Quando se está numa rua no centro da América do Norte, como descrevi antes, há um som que domina, que é o trânsito. Sim, pode-se ouvir uma polifonia de carros a passar, de autocarros e camiões, e pode-se ouvir isso claramente. Ouve-se os passos das pessoas que caminham na calçada? Ouve-se as suas vozes? Ouve-se vozes do outro lado da rua? Ouve-se o vento nas árvores que podem estar lá? Ouve-se os pássaros cantando ao mesmo tempo? Sim, mas qual é a relação entre tudo isso? Se retirássemos o trânsito, ouviríamos aqueles sons mais baixo claramente. Quando o trânsito está lá, pode-se ainda ouvir alguns aspetos, mas não têm a mesma transparência e clareza que teriam numa paisagem sonora verdadeiramente polifónica equilibrada, onde todas as vozes são claramente discerníveis. O trânsito cria uma parede de som, como Schafer lhe chamou, que nos impede de ouvir à distância ou as subtilezas da voz humana. Numa conversa numa rua barulhenta, ouve-se a entoação subtil da pessoa que está a falar connosco? Precisamos de falar mais alto por causa do trânsito e isso afeta a nossa entoação? Algumas espécies de pássaros ficaram mais barulhentas devido ao ruído do tráfego. Então, podemos ouvi-los, e podemos ouvi-los porque ocupam uma faixa de frequência maior do que o trânsito. As altas frequências ainda continuam a penetrar, mas eles estarão a ouvir-se com clareza suficiente? Por que é que eles cantam mais alto? Para se ouvirem uns aos outros. Por uma questão de sobrevivência.

Sim, existe uma polifonia de muitas vozes em ambientes urbanos densos. Isso pode ser muito inspirador, pode ser estimulante, como num ambiente de mercado, onde há muita coisa a acontecer, onde ouvimos vendedores e muitas vozes animadas. E agora, durante a pandemia, todos nós desejamos ouvir um monte de vozes nas ruas novamente, ouvir a vida das pessoas na cidade. Essa é uma experiência positiva de pessoas que vivem juntas numa comunidade e esse tipo de polifonia social precisa de ser examinado: existe um equilíbrio de vozes em termos do seu poder sónico? Se o trânsito dominar, como eu disse antes, a comunicação real entre humanos e animais não será tão claramente decifrável. Se os responsáveis pelo planeamento urbano pudessem fazer passeios sonoros, especialmente agora durante estes tempos de pandemia, a escuta consciente que acontece em qualquer passeio revelar-lhes-ia novas informações úteis para o projeto acústico urbano… e informações significativamente diferentes daquelas que resultam das medições de ruído. Mas, infelizmente, essa consciência de escutar ainda está a faltar em grande parte do planeamento urbano.

A nossa cultura e os nossos sistemas de aprendizagem são muito baseados no visual (nos ecrãs digitais). A nossa experiência de lugares urbanos também é provavelmente mais visual que acústica. Pelo menos a maneira como registamos essa experiência. De que forma se poderia promover uma experiência mais sonora dos espaços urbanos? E o que é que pode oferecer-nos uma experiência sonora que não possa ser visto?

Em primeiro lugar, eu diria que a experiência se tornou mais visual por causa dos ambientes barulhentos em que vivemos. Um ambiente denso com sons motorizados e de banda larga - sons que cobrem todo o espectro de frequência e muitas vezes são sons contínuos, como ar-condicionado, tráfego de veículos, etc. - ambientes como esse não incentivam a escuta, porque rapidamente se tornam desinteressantes. Quando uma paisagem sonora se torna aparentemente muito familiar e não contém novas informações, torna-se um som de fundo que aparentemente não requer a nossa atenção, mas também não nos dá nenhuma pista para orientação nos nossos movimentos. É um aspeto natural da nossa perceção auditiva bloquearmos o que não nos interessa. No entanto, quando conversamos com alguém enquanto caminhamos por uma rua barulhenta, os nossos ouvidos têm de se esforçar para ouvir as palavras e torna-se papel dos nossos olhos garantir que atravessamos a rua com segurança, por exemplo. Sob tais condições, tornou-se nosso hábito orientarmo-nos principalmente através da visão. As únicas pessoas que precisam de confiar na sua acuidade auditiva, mesmo em ambientes barulhentos, são as pessoas cegas. Mas para eles é muito difícil, porque eles têm que decifrar as informações acústicas do fluxo e refluxo do trânsito e a partir de dentro da densidade de banda larga dos sons do tráfego.

A covid ensinou-nos algo, acredito. Quando o mundo acalmou tão repentinamente em março de 2020, aquele som de banda larga estava quase ausente e os nossos ouvidos despertaram para um novo ambiente de bairro. Ouvimos com mais clareza o que sempre esteve lá, o silêncio em si. De repente, pode-se ouvir todo o som de um carro a passar desde o início do seu aparecimento até ao final de seu desaparecimento - uma experiência sonora muito rara na cidade. Podia ouvir-se vozes individuais a comunicar-se, pessoas a falar na rua umas com as outras. Podia ouvir-se muito mais pássaros, que provavelmente sempre estiveram lá, mas não os notávamos antes. Como aquele leito de ruído da cidade havia sumido, podíamos ouvir todos os sons mais subtis com mais clareza. Foi um prazer ouvir as pessoas a falarem das suas varandas. Por muitos meses aqui em Vancouver, todas as noites às 7 horas, as pessoas saíam para as suas varandas e faziam sons e ruídos de gratidão pelos profissionais de saúde que estavam a trabalhar arduamente em hospitais e lares de idosos. Lembro-me de ir a diferentes partes da cidade para gravar aqueles eventos das 7 horas. Cada bairro parecia diferente! O início da covid-19 foi um momento de despertar auditivo para todos no mundo. Mas agora a novidade acabou. É justamente nesse momento que precisamos de ficar acordados auditivamente e nos consciencializar do que podemos aprender com essa experiência para o futuro do design de paisagens sonoras urbanas.

O contraste de sair de um ambiente barulhento para um ambiente silencioso, se for vivenciado conscientemente, é o mesmo tipo de chamada de atenção. Se conduzirmos um carro por horas, a nossa acuidade auditiva será reduzida. Os nossos ouvidos terão sido inundados por horas de som de motor. Portanto, experimentaremos uma mudança temporária do limiar, ou seja, ficaremos ligeiramente surdos. Quando chegarmos e sairmos do carro, sentiremos um súbito silêncio. Levará algumas horas para que os nossos ouvidos se recuperem da mudança induzida pelo ruído na nossa audição e, gradualmente, os sons subtis no ambiente mais silencioso irão chamar a nossa atenção, especialmente se pudermos experimentar essa transição conscientemente.

Muitas pessoas não sabem - há uma falta de conhecimento nesta área - que experimentamos o que é chamado de mudança temporária de limiar, onde perdemos temporariamente um pouco da nossa audição. Fisiologicamente, as células no nosso ouvido interno foram dobradas pelo som do motor contínuo que experimentámos. Se tivermos a sorte de ficarmos expostos a um ambiente silencioso por tempo suficiente após essa exposição - que pode ser até o dobro do tempo da exposição ao ruído, dependendo do nível de decibéis - as células ciliadas retornarão à sua posição vertical saudável e recuperamos a nossa acuidade auditiva original. Se entendermos esse processo físico, saberemos que a quietude é necessária para a recuperação dessa mudança temporária de limiar e podemos tentar dar-nos esse tempo. Se o fizermos, seremos capazes de nos conectar com os sons silenciosos do ambiente, com a sua riqueza. Entrar no deserto ou nas montanhas tem o mesmo impacto. Mas se não tivermos essa oportunidade, se estivermos sempre cercados por uma parede de níveis sonoros mais elevados, não temos a comparação. Em tal situação, se tivermos a sorte de fazer passeios sonoros ou oportunidades para algum tipo de escuta ambiental, que pode dar-nos experiências de contrastes acústicos mesmo dentro do ambiente urbano, então começamos a perceber todas essas subtilezas que estão implícitas ao ouvir conscientemente o meio ambiente.

Depois de fazer um passeio sonoro, não se esquece essa experiência. Podemos falar sobre passeios sonoros, mas a menos que as pessoas realmente os tenham experimentado, elas realmente não sabem do que estamos a falar. Eles têm de ser feitos. Ficar apenas uma hora concentrado em ouvir e não falar, prestando atenção a todos os sons, é uma experiência muito revigorante, embora intensa. Eu acho que nunca estive num passeio sonoro em que as pessoas não se inspirassem depois. É uma experiência inspiradora, porque a sua audição foi aberta de uma nova maneira. Isso acontece mesmo quando se anda num ambiente barulhento. É um pouco mais cansativo. Numa caminhada sonora está-se a conectar ao ato de ouvir de forma consciente, não importa qual seja a qualidade do som do ambiente. E é precisamente aí que se encontra a fonte de descoberta, de novas informações e de inspiração.

O que é que ouvi hoje no meu bairro que sempre esteve lá, mas nunca tinha percebido antes? É a perceção que nos conecta auditivamente ao lugar. Num passeio sonoro, tornamos a relação entre nós e o ambiente consciente num nível auditivo, o que é muito diferente de ver um local. Tornamo-nos conscientes de que, na verdade, estamos sempre dentro de uma paisagem sonora, não estamos a ouvir, pois estamos a olhar para algo. Saber por dentro de que é que estamos, o que é essa “sala” acústica dentro da qual estamos todo o tempo, e como a sua estrutura e a sua qualidade mudam e nos afetam ou a uma situação, é uma informação muito importante, porque então também entendemos o porquê de nos relacionarmos com isso de certas maneiras, o como respondemos a isso. Saber quem somos como ouvintes em qualquer cultura, em qualquer ambiente, significa que aprendemos a compreender melhor a nossa relação com esse ambiente. E isso em si é um primeiro passo para a ação ecológica.

Diria que a prática de passeios sonoros potencializa o nosso corpo como um lugar sensorial em si mesmo?

Sim, totalmente! Não ouvimos apenas pelo ouvido, sentimos com todo o nosso corpo. Todas as frequências sonoras colocam o ar em movimento e as suas vibrações tocam os nossos corpos. Se pensarmos nisso puramente em termos da física do som, essa é a realidade. A percussionista e compositora Evelyn Glennie (Reino Unido>, que perdeu quase toda a audição em tenra idade, ensinou-nos como todo o corpo, e não apenas o ouvido, é realmente uma unidade sensorial, como diferentes partes do corpo são afetadas por diferentes frequências e como todo o corpo pode “ouvir”. Todos nós, que temos a sorte de ter ouvidos saudáveis, temos a desvantagem de nunca realmente aprender como o resto do nosso corpo ouve, porque não precisamos de sentir a paisagem sonora ao nosso redor dessa forma, os nossos ouvidos parecem fazer o trabalho. Apenas em situações muito barulhentas, como clubes noturnos ou ao longo de uma rota de camião, podemos sentir as baixas frequências vibrando em nossos corpos. As pessoas podem tentar proteger os seus ouvidos em tais situações usando protetores de ouvido, mas na realidade a maior parte do som ainda afeta o resto do nosso corpo.

Além de ser uma forma de termos consciência das crises ecológicas, a prática do passeio sonoro pode ser entendida como uma forma de melhorar a nossa condição, o equilíbrio e o bem-estar? Pode ser uma espécie de terapia?

Sim, definitivamente. Normalmente nas discussões após um passeio sonoro, há uma sensação de entusiasmo que vem das pessoas, uma empolgação por terem percebido sons que não haviam percebido antes. Isso em si é terapêutico e inspirador. Muitas vezes recebo o feedback de que uma caminhada sonora é uma experiência meditativa. Se for um passeio sonoro bem composto, ou se o ambiente “joga” bem connosco durante um passeio sonoro, esperamos ter uma espécie de “composição” sonora que seja equilibrada em si mesma. Os participantes experimentariam momentos de estimulação sonora e momentos de repouso, e outras mudanças semelhantes no ambiente sonoro alternando de forma equilibrada.

Às vezes pode haver música de rua ou transições entre sons internos e externos, trânsito, patos num lago ou crianças no parque, tudo é possível. As caminhadas sonoras podem ser muito mágicas quando nos proporcionam aquelas belas mudanças de uma paisagem sonora para outra. Os nossos ouvidos e todo o ser são estimulados por tais mudanças quando as percebemos. Na vida diária, tendemos a bloquear esse tipo de experiência de escuta. Perceber sons num passeio sonoro sem reagir ou falar sobre eles imediatamente, apenas ouvindo, apenas deixando-os ir e vir, é por si só calmante. Na meditação, percebemos os nossos pensamentos, o ruído do nosso cérebro, e aprendemos a reconhecê-los e deixá-los passar. Numa caminhada sonora, fazemos algo bastante semelhante: percebemos o som, reconhecemos em silêncio e deixamo-lo ir. No final dessa experiência, pode ser muito regenerante para as pessoas uma troca sobre o que vivenciaram. Muitas vezes, essa troca mostra como cada um de nós ouve de maneira diferente e o que temos em comum ao ouvir, como nos sentimos a respeito de certos sons, como reagimos a eles.

Num passeio sonoro, as pessoas emocionam-se de várias maneiras. Esse é o efeito imediato. Comparar essas experiências cria uma consciência mais profunda sobre como ouvimos como pessoa ou como comunidade e é uma oportunidade de explorar por que podemos reagir de certas maneiras. Há aspetos terapêuticos em tudo isso, especialmente se criarmos o passeio sonoro como uma prática contínua. Aqui em Vancouver, isso foi possível para algumas pessoas com o estabelecimento do Vancouver Soundwalk Collective, que ofereceu passeios sonoros ao público através do Vancouver New Music desde 2003. Para alguns membros, esse tipo de escuta tornou-se uma prática nas suas vidas diárias, semelhante a uma prática regular de meditação. É a regu laridade de tal prática que tem efeitos positivos e calmantes e estimula um processo contínuo de aprofundamento, mudança e renovação da escuta e, portanto, da relação com o mundo que nos rodeia.

Agradecimentos

Esta entrevista foi realizada no âmbito do projeto “AUDIRE. Repositório Áudio: guardar memórias sonoras”, que é financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Ref. PTDC/COM-CSS/32159/2017).

Este trabalho é ainda apoiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020

REFERÊNCIAS

Bazzana, K. (2007). Hildegard Westerkamp. In B. Graves & J. H. Marsh (Eds.), The Canadian Encyclopedia. Retrieved January 10, 2021 from Retrieved January 10, 2021 from https://www.thecanadianencyclopedia.ca/en/article/hildegard-westerkamp-emcLinks ]

Hendy, D. (2013). Noise: A human history of sound and listening. Harper Collins Publishers [ Links ]

Recebido: 18 de Fevereiro de 2021; Aceito: 30 de Abril de 2021

Tradução: Madalena Oliveira e Cláudia Martinho

Madalena Oliveira é doutorada em ciências da comunicação e professora associada do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, Portugal, e membro integrado do Centro de Investigação em Comunicação e Sociedade. É professora regu lar de semiótica, comunicação e linguagens, jornalismo e som. Os seus interesses de investigação focam-se no estudo da cultura sonora e nos estudos de rádio. Atualmente é investigadora principal do projeto “AUDIRE. Audio Repository: Saving Sonic-Based Memories”, tendo também coordenado o projeto “NET Station: Shaping Radio for the Web Environment” (2012-2015). Madalena Oliveira é vice-presidente da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (Sopcom), tendo fundado o Grupo de Trabalho português de Rádio e Meios Sonoros e exercido as funções de chair da Radio Research Section da European Communication Research and Education Association (ECREA) entre 2012 e 2018. Email: madalena.oliveira@ics.uminho.pt Morada: Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4715-398 Braga, Portugal

Cláudia Martinho é investigadora, artista, arquiteta e acústica. É doutorada em arte sonora e atualmente é membro da equipa do projeto “AUDIRE. Audio Repository: saving sonic-based memories”, na Universidade do Minho, Portugal. Cláudia Martinho tem feito experiências com som ambiental, ressonância espacial e geometria, com o objetivo de regenerar as relações entre o ser humano e os ecossistemas envolventes. O seu processo de pesquisa envolve arte sonora, arquitetura, ecoacústica, arqueoacústica, animismo e ativismo, gravação de campo, desenho de paisagens sonoras, instalação, performance, música experimental e workshops. O seu trabalho tem sido partilhado em diversos contextos, nomeadamente em eventos e exposições culturais, em Portugal e no estrangeiro. Além do seu envolvimento em vários projetos colaborativos, Cláudia Martinho foi coeditora da antologia Site of Sound: Of Architecture and the Ear - Vol. 2 (O Lugar do Som: Da Arquitetura e do Ouvido), cocuradora do evento “Public Art and Urban Interventions” (Arte Pública e Intervenções Urbanas), Bienal de Bordéus, França, e colaboradora do Bureau des Mesarchitectures, Paris, França. Email: claudiamartinho@ics.uminho.pt Morada: Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4715-398 Braga, Portugal

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