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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

versão impressa ISSN 2184-0458versão On-line ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.8 no.1 Braga jun. 2021  Epub 01-Maio-2023

https://doi.org/10.21814/rlec.3212 

Artigos Temáticos

Corpos Dissonantes e as Lutas Pelo Espaço Urbano: Narrativas em Documentários Internacionais Sobre o Rio de Janeiro

Ana Teresa Gotardo1 
http://orcid.org/0000-0001-7713-6780

Ricardo Ferreira Freitas2 
http://orcid.org/0000-0002-4486-763X

1Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil

2Departamento de Relações Públicas, Faculdade de Comunicação Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil


Resumo

Um dos imaginários mais sólidos do Brasil diz respeito à perfeição física, representada atualmente na forma dos corpos femininos cisgênero, brancos, magros, que ocupam as praias da zona sul do Rio de Janeiro e assumida como atributo da marca Rio na construção da “cidade olímpica”. Este artigo busca compreender, por meio de uma análise crítica de quatro documentários internacionais de televisão produzidos e exibidos por televisões estrangeiras durante o chamado “período Olímpico”, como os corpos dissonantes a esses imaginários disputam espaços, o direito à cidade e a narrar-se por meio de rompimentos com a marca oficial. Apesar da diversidade cotidiana dos corpos dissonantes, três ganham espaço na mídia internacional: mulheres trans e travestis, analisadas em Gaycation: Brazil de Page e Daniel (2016) e Rio 50 Degrees - Carry on Carioca de Temple (2014); corpos negros e pobres invisibilizados no cotidiano urbano, em Copacabana Palace de Waldron (2014) e pessoas com deficiência que lutam pelo direito à inclusão e à mobilidade em A Bumpy Road to Rio de Fox (2015). Ainda que as representações desses corpos sejam pequenas em relação à ratificação dos imaginários já sólidos dos corpos perfeitos, sua abordagem contribui para dar visibilidade a sujeitos invisibilizados pelo processo de city branding, promovendo um importante questionamento em relação ao achatamento de sujeitos e subjetividades que a estratégia de construção da marca acaba por impor, além de mostrar outras possibilidades de existência, pontos de conflito diversos e de disputas pelo espaço urbano.

Palavras-chave: cidade; corpos dissonantes; documentários de televisão; marca Rio; megaeventos.

Abstract

Physical perfection is one of the most solid imaginary of Brazil and it is currently represented in the form of cisgender white, thin, female bodies that occupy the beaches of the south zone of Rio de Janeiro. It was also an attribute of the brand Rio during the construction of “Olympic city”. This article aims to understand, through a critical analysis of four international television documentaries produced and exhibited by foreign televisions during the so-called “Olympic period”, how the bodies that are dissonant in relation to these imaginaries struggle over urban spaces, the right to the city and to narrate themselves, breaking with the official brand. Despite the diversity of dissonant bodies, three of them gain space in the international media: trans and transvestite women, analyzed in Gaycation: Brazil by Page and Daniel (2016) and Rio 50 Degrees

- Carry on Carioca by Temple (2014); black and poor bodies made invisible in urban daily life at Copacabana Palace by Waldron (2014) and people with disabilities who fight for the right to inclusion and mobility in A Bumpy Road to Rio by Fox (2015). Although the representations of these bodies are still small in relation to the solid imaginary of the perfect bodies, their approach contributes to give visibility to subjects made invisible by the city branding process. They also promote an important question in relation to the flattening of subjects and subjectivities that the megaevent strategy ends up imposing, in addition to showing other possibilities of existence, conflicts and disputes over urban space.

Keywords: brand Rio; city; dissonant bodies; megaevents; television documentaries

Introdução

Nossos corpos constituem-se na referência que ancora, por fim, a identidade. E, aparentemente, o corpo é inequívoco, evidente por si; em consequência, esperamos que o corpo dite a identidade, sem ambiguidades nem inconstância. Aparentemente se deduz uma identidade de gênero, sexual ou étnica de “marcas” biológicas; o processo é, no entanto, muito mais complexo, e essa dedução pode ser (e muitas vezes é) equivocada. Os corpos são significados pela cultura e são, continuamente, por ela alterados. Talvez devêssemos nos perguntar, antes de tudo, como determinada característica passou a ser reconhecida (passou a ser significada) como uma “marca” definidora da identidade; perguntar, também, quais os significados que, nesse momento e nessa cultura, estão sendo atribuídos a tal marca ou a tal aparência. (Louro, 2019, p. 16)

A perfeição física compõe o leque dos mais sólidos e antigos clichês em relação ao Brasil, recorrente nos documentários internacionais de televisão sobre o Rio de Janeiro. O corpo que compõe esse atributo da marca-cidade possui características estabelecidas: magro, branco, feminino e cisgênero. Às mulheres cisgênero negras, também muito retratadas, cabe o corpo disponível como objeto de desejo e de sexualização. Homens cisgênero brancos também são exibidos em corpos com músculos esculpidos, mas em menor frequência.

Assim, emerge a questão: qual o lugar dos corpos, no branding urbano, que não se encaixam nas características atribuídas à perfeição ou que são dissonantes em relação a essas narrativas? Embora o rol de corpos destoantes dessa narrativa oficial seja amplo e irrestrito, são destacados nos documentários em análise neste artigo como espaço de luta pelo direito à cidade: as mulheres transgênero, os corpos negros das favelas e as pessoas com deficiência.

Interessa-nos compreender como os corpos incluídos e excluídos estabelecem narrativas sobre a marca Rio e como são representados nas produções audiovisuais estudadas na pesquisa que origina este artigo: Gaycation: Brazil, de Page e Daniel (2016), produção estadunidente exibida pelo canal Vice; Rio 50 Degrees - Carry on Carioca, de Temple (2014), Copacabana Palace, de Waldron (2014) e A Bumpy Road to Rio, de Fox (2015), produções britânicas exibidas pelos canais da BBC. São produções sem conexão entre si, realizadas e transmitidas por redes internacionais à época dos dois megaeventos esportivos sediados no Brasil (copa do mundo de 2014 e as olimpíadas e paralimpíadas de 2016) e compõem o corpus de um estudo mais amplo sobre a marca-cidade (Gotardo, 2020). Observamos que, quando interessa aos poderes públicos e às estratégias de marketing da cidade, pessoas que habitualmente não são contempladas pelas políticas públicas aparecem nas propagandas políticas ou de promoção turística, tentando mostrar o Brasil como país da diversidade. No entanto, os cotidianos narrados nos documentários selecionados apresentam outras narrativas que por vezes rompem com os discursos oficiais, e por outras os reiteram.

Para empreender esta análise, buscamos uma construção metodológica, por meio de leituras polivalentes das dimensões sonora, visual e narrativa dos programas em questão. A proposta metodológica flui entre as proposições clássicas da análise cinematográfica e a gramática própria da televisão, pois é necessário resguardar diferenças dos meios no que diz respeito às etapas de produção, circulação, distribuição/consumo, reprodução. Embora nosso foco seja no produto, consideramos todo o contexto em que é produzido e consumido, bem como os contextos que norteiam a sua leitura. Consideramos também ser necessária a articulação dos vários níveis de estratégias de construção de sentidos, de enunciação e da circularidade comunicacional para que seja possível conhecer o fenômeno de forma mais precisa.

Buscamos, portanto, elementos da análise fílmica, da televisão e das narrativas para construir uma metodologia que possibilite uma leitura crítica da produção de sentidos e de imaginários nos produtos audiovisuais. Tendo em mente essas questões, buscamos uma compreensão ampla e crítica sobre as relações entre dois dos principais agentes envolvidos na reformulação da imagem da cidade - a mídia e as estratégias urbanas - e as produções de sentidos veiculadas a partir dessas relações, de forma a refletir sobre a atual situação desta marca-cidade, seus impactos e resultados.

As cidades se deparam com negociações entre corpos e espaços, estabelecendo disputas que perpassam cotidiano e mídia. Os corpos imprimem marcas a cada cidade, constituindo-se como um dos principais atributos do branding urbano. No entanto, as estratégias de inclusão social das cidades brasileiras nem sempre levam em consideração os corpos cotidianos, suas marcas de vida e suas táticas para disputa do direito à cidade.

Das Mulheres Transexuais e Travestis

A mulher transexual ganha voz nos documentários Gaycation: Brazil e Rio 50 Degrees - Carry on Carioca, encarnada especialmente em um corpo: o de Luana Muniz, símbolo do bairro da Lapa, no Rio de Janeiro. Também conhecida como “A Rainha da Lapa”, Luana, que morreu em 6 de maio de 2017, era uma líder entre as prostitutas transexuais que atuam na região, fazia shows artísticos e tinha um trabalho social de relevância no bairro, acolhendo e ajudando pessoas em situação de maior vulnerabilidade.

Entendendo que a disputa discursiva também é uma luta pelo poder, e a autorrepresentação é essencial nesse processo, é importante ressaltar o porquê do uso do termo “travesti”. Trata-se de uma palavra que carrega grande estigma por ter sido usada historicamente de forma pejorativa, “por remeter principalmente a pessoas que têm baixa condição financeira e muitas vezes são associadas a prostitutas e pessoas que não possuem passabilidade1 cisgênero” (Coletivo Ametista UERJ LGBT+, 2019, pp. 12-13). Luana se autorreferencia usando o termo travesti, assim como se dirige a outras mulheres dessa forma. Neste caso, o termo é ressignificado para sua dimensão política, tendo em vista a luta que Luana promoveu para o reconhecimento das prostitutas transexuais da Lapa.

Destacamos três características marcantes: a primeira diz respeito a Luana Muniz como porta-voz das prostitutas transexuais - o que pode ser entendido como um reconhecimento ao importante trabalho político e social que desenvolvia no bairro; a segunda trata das ressignificações sobre os sentidos da perfeição física a partir do corpo de Luana, que se projeta na tela das mais diversas formas como um corpo-resistência; e a terceira é a representação da Lapa e do Carnaval como os espaços das pessoas transexuais no Rio de Janeiro.

No primeiro ponto, Luana é apresentada em dois momentos e abordagens distintas nos documentários em questão, mas que se conectam tanto pela apresentação que ela faz de seu trabalho social, quanto pelas críticas que apresenta. Em Gaycation: Brazil há um bloco destinado às mulheres transexuais, sendo a primeira parte na Lapa, Rio de Janeiro, e a segunda em São Paulo, onde ocorre uma entrevista com a atriz Carol Marra. O bloco começa com a narração de Elliot Page2 sobre o alto índice de assassinatos entre pessoas trans e a sua marginalização na sociedade brasileira. Ian Daniel destaca que Luana protege as prostitutas transexuais do bairro enquanto caminha para encontrá-la. .

O programa busca um outro ponto de vista sobre a transexualidade entrevistando Carol Marra, modelo de projeção nacional e atriz que encenou o primeiro beijo trans da televisão brasileira. A forma como Carol descreve sua experiência e visão sobre as mulheres trans é bem diferente da de Luana Muniz: enquanto Luana diz que “gosta de ser puta”, Carol alinha-se com o discurso acadêmico e ativista mais tradicional (por exemplo, diz que as mulheres trans são “covardemente empurradas à prostituição”). A atriz ainda pondera outras questões, tais como: o fato de o gênero não estar ligado à genitália ou a de transpor a genitália e a discriminação que sofrem por serem mulheres com pênis. .

Reconhecer o gênero acima da genitália diz respeito a romper com certas restrições do gênero que insistem no binarismo homem/mulher, ou “totalmente masculino” e “totalmente feminina”:

gênero não é exatamente o que alguém “é” nem é precisamente o que alguém “tem”. Gênero é o aparato pelo qual a produção e a normalização do masculino e do feminino se manifestam junto com as formas intersticiais, hormonais, cromossômicas, físicas e performativas que o gênero assume. Supor que gênero sempre e exclusivamente significa as matrizes “masculino” e “feminina” é perder de vista o ponto crítico de que essa produção coerente e binária é contingente, que ela teve um custo, e que as permutações de gênero que não se encaixam nesse binarismo são tanto parte do gênero quanto seu exemplo mais normativo. (Butler, 2014, p. 253)

Nesse sentido, Butler (2014) entende que o gênero pode ser usado para desconstruir as noções naturalizadas de masculino e feminino, movendo-o para além do binarismo. Ao romper com o binarismo, rompe-se também com “uma operação reguladora de poder que naturaliza a instância hegemônica e exclui a possibilidade de pensar sua disrupção” (Butler, 2014, p. 254). Usando de linguagem acessível, Carol propõe o rompimento com o binarismo que usa o suporte físico/cromossômico como regulação e normalização para colocar em pauta um atravessamento nas visões normativas sobre feminilidade e masculinidade.

O rompimento com a normalização do gênero é muito mais explorado em Rio 50 Degrees - Carry on Carioca. Luana é a única personagem trans do filme, ratificando a ideia de que ela é uma “porta-voz” das travestis da Lapa (talvez do Rio de Janeiro, considerando que, nos filmes, a transexualidade é territorializada). Ela é acompanhada em alguns momentos por Lorna Washington, uma das principais transformistas da cidade. Não há um bloco específico para pessoas trans, embora sejam associadas ao Carnaval, à Lapa e ao questionamento em relação à violência contra pessoas LGBTQi+. No que diz respeito à violência, Lorna denuncia: “o Rio é gay-friendly? Não é. Quem quer saber de travesti? Ninguém. Como ninguém quer saber de preto, ninguém quer saber de pobre... são mortos vários gays, travestis...” (00:44:44), seguida por uma imagem do Cristo Redentor que parece chorar. Ao contrário das produções institucionais da prefeitura do Rio e do Ministério do Turismo para promover o país-sede da copa de 2014 e da cidade-sede dos jogos olímpicos, nos quais fica subentendido que o Rio de janeiro é gay-friendly, Lorna e Luana deixam claro que a realidade não é essa. O Brasil ainda tem um alto índice de homofobia e de transfobia.

No filme de Temple, Rio 50 Degrees - Carry on Carioca, fica muito evidente a relação de Luana com seu corpo como resistência - a segunda característica marcante presente nos filmes. Em Gaycation: Brazil, Luana está vestida com um vestido longo, mais fechado, e aparentemente não está confortável com a presença da equipe na sua casa. Já em Rio 50 Degrees - Carry on Carioca, abre sua casa, seu camarim, é acompanhada por mais tempo pela equipe de gravação. Temple, em entrevista para o jornal O Globo, diz que conheceu Luana quando gravou o filme Running out of Luck (1987) no Rio (Fonseca, 2012). De uma gravação que, segundo o diretor, era para ter sido feita em segredo, Luana ganhou espaço no filme para questionar certas naturalizações acerca dos imaginários da cidade.

De volta a Gaycation: Brazil, Luana “brinca” com Ian Daniel: enquanto recebe instruções para a gravação, Luana, em pé defronte a ele, é muito mais alta, e sua postura deixa claro o olhar de cima para baixo, demarcando um poder. Já em Rio 50 Degrees - Carry on Carioca, ela aparece “desfilando” para a câmera em um vestido curto, colado ao corpo e decotado; na cena seguinte, aparece seminua, de costas, tatuagens à mostra, enquanto se arruma em seu camarim; ela se levanta na frente da câmera, que enquadra suas nádegas. Já nas primeiras cenas, as imagens deslocam diversas normalizações por meio de seu corpo e sexualidade. O imaginário da perfeição física atribuído ao corpo feminino cisgênero ganha novos sentidos a partir do corpo de Luana: embora ela também tenha um corpo branco e magro, esse corpo é fluido, é tatuado e já não é considerado um corpo jovem para os padrões estéticos (ela tem cerca de 51 anos no momento da gravação).

Luana marca, com a fluidez de seu corpo, uma alteridade em relação aos corpos-atributo da marca-cidade e também sua biopotência. Segundo Pelbart (2007), biopoder e biopotência, ou poder sobre a vida e as potências da vida, “são como o avesso um do outro. (...) Tanto o biopoder como a biopotência passam necessariamente (...) pelo corpo” (p. 58). A forma como narra seu corpo é bem diferente de Carol: Luana se sente bem em ter um pênis, ele possibilita sua fluidez sexual, rompendo tanto com a cis, quanto com a heteronormatividade. Pode-se entender que Carol está mais sujeita às normatizações de gênero que Luana, uma normatização que parte, segundo Butler (2014), de um regime regulador e disciplinar específico e próprio do gênero, enquanto Luana coloca seu desejo como potência ao expropriá-lo da submissão e do controle dessa modalidade do biopoder contemporâneo que atua “no cerne das subjetividades e da própria vida” (Pelbart, 2007, p. 58).

Oswin (2008) entende que é tarefa dos teóricos queer “abraçar a crítica da identidade em sua extensão máxima, abandonando a busca por um sujeito queer inerentemente radical e voltando a atenção para o avanço de uma abordagem crítica ao funcionamento das normatividades e não-normatividades sexuais” (p. 96). E, nos documentários, é interessante observar como duas mulheres transexuais narram suas vidas a partir de pontos de vista muito distintos. Não há invalidação de um ou outro; há, sim, necessidade de compreendê-los, e de como eles operam dentro de seus contextos específicos.

Na perspectiva de Oswin (2008) sobre a necessidade de crítica aos binarismos e normatizações, Luana oferece uma importante contribuição, ainda que seu discurso muitas vezes se choque com os discursos ativistas e acadêmicos. É importante entender e reconhecer que a história de vida de Luana, a qual não se conhece por meio dos documentários, é permeada por táticas cotidianas de sobrevivência. Luana apropria-se e expõe sua fluidez com naturalidade e, ainda que suas falas sejam muitas vezes contextualizadas pelo binarismo, ela circula no “entre”. Também trata com naturalidade a sexualidade e sexualização, como uma resistência à heteronormatividade. O corpo de Luana atua no deslocamento de imaginários e no exercício ou desejo de poder (ou ainda na resistência às violências impostas pela cis-heteronormatividade).

A Rainha da Lapa também é reconhecida pela forma como opera uma transformação, que diz respeito ao terceiro ponto de destaque das narrativas: em Gaycation: Brazil, ela ressalta que o mundo travesti é muito fechado, visto como “submundo”, mas que no centro do Rio isso não existe por causa dela. No entanto, ao contrário do que afirma o referido documentário - que a Lapa é um famoso bairro de prostituição, enquadrando-o em um lugar de travestis, Luana afirma, em Rio 50 Degrees - Carry on Carioca, que “a Lapa tem de tudo: tem puta, tem veado, tem maluco, tem mendigo, tem rico, tem pobre” (00:43:16). As imagens ratificam a fala de Luana. Há, nesse momento do filme, um rompimento com a ideia de que a Lapa é um espaço queer ao dizer que ele não é homogêneo, mas, sim, tal como Luana e seu corpo, é fluido - o espaço da Lapa e o corpo de Luana se (con)fundem.

Na geografia queer, há a ideia de que a reterritorialização do espaço heterossexual possibilitaria “a visibilidade de subculturas sexuais que resistem e rompem a heterossexualidade hegemônica que é a fonte de sua marginalidade e exclusão” (Oswin, 2008, p. 90), a reterritorialização como resistência e transgressão à heteronormatividade como exercício de poder. Oswin (2008) ressalta que essa linha de estudos baseia-se na ideia que os espaços, tanto quanto as pessoas, não possuem uma identidade sexual preexistente; assim, não há um “espaço hétero”, mas, sim, um espaço heterossexualizado, produzido ativamente nesse sentido, no qual os corpos dissonantes produzem uma diferença que salienta ainda mais sua condição normatizadora. Com isso, a ideia de sua ocupação denota resistência por meio da visibilidade.

Esse ponto de vista é questionado, no entanto, por Oswin (2008), no sentido de que mesmo a classificação dentro das subculturas sexuais é também uma normatização dos espaços. Trata-se, segundo a autora, de um “desafio à ideia de espaço queer como espaço dissidente, espaço resistente, espaço progressivo, espaço colonizado ou espaço reivindicado (que atua na manutenção de um binário heterossexual/ homossexual sobre o qual se baseiam essas noções problemáticas de espaço queer)” (Oswin, 2008, p. 91). Na visão da autora, os estudos sobre a territorialização do espaço queer privilegiam a sexualidade em detrimento de outros processos identitários, mas deveriam considerar “os sujeitos queer como corpos simultâneos de raça, classe e gênero” (Oswin, 2008, p. 91). A crítica de Oswin (2008) se dá no sentido de que entender espaços como gays, lésbicos, trans, acaba também por ser uma prática normatizadora e excludente. A autora entende que os espaços devam ser fluidos, compartilhados, independentemente de orientações sexuais ou identidades de gênero, até como forma de crítica aos binarismos e normatizações.

Embora os autores se contradigam nas formas como se deve lutar pelo direito à cidade, salienta-se que os diferentes pontos de vista dizem respeito, todos, ao direito ao pleno cotidiano urbano e ao direito de se apropriar de celebrações, como o Carnaval, e de espaços, como a Lapa, de forma a legitimar os corpos e romper com as normatizações heterossexistas. Esperar consenso em uma área tão permeada por diversos recortes é também normatizar uma teoria que propõe romper com normatizações.

Além da tentativa de territorialização, nos documentários, da Lapa como espaço trans, há também a associação do Carnaval como festa trans. Em Gaycation: Brazil, por exemplo, Page cita uma “atmosfera de segurança” da festa, que é amplamente influenciada pela cultura LGBTQi+. Diversas imagens de mulheres trans são exibidas, e uma é entrevistada: “eu venho a cada ano porque é um lugar assim que foi feito para a gente, né, transexuais, né. Aqui a gente é bem recebida, entendeu?” (00:03:26). Page, no entan- to, relata o assassinato da passista Piu da Silva, para contrapor a ideia de “aceitação”. Eles também citam a prática de crossdressing3, feita especialmente entre homens, como uma tradição que é uma forma de opressão de gênero.

A desconstrução da ideia do Carnaval como espaço trans também é vista em Rio 50 Degrees - Carry on Carioca. A apresentação do Carnaval mostra diversos pontos de vista - a transformação em festa de consumo, a sexualização do corpo feminino e a as- sociação com a ideia de espaço trans. Luana, em imagens nas quais aparece nua, seios à mostra, diz que esse imaginário “é só folclórico mesmo, até porque o carnaval já foi uma festa que era sinônimo de travesti, hoje em dia não, e agora não tem mais porque o Carnaval se tornou para vocês, turistas” (00:42:13). A crítica de Luana passa também por uma reterritorialização (pela cisnormatização) que gera ainda mais exclusão às pessoas trans. Tal como salienta Puar (2002, como citada em Oswin, 2008) “a reivindicação do espaço - qualquer espaço, até a reivindicação do espaço queer - (é) um processo informado pelas histórias de colonização, essas histórias operando em conjunto com as especificidades disruptivas e potencialmente transgressivas disponíveis” (p. 95).

Em outro momento do episódio, são exibidas imagens do show de Luana e Lorna Washington, que dubla a música La Vie en Rose enquanto novas imagens de conteúdo sexual são exibidas, todas envolvendo a sexualização e o consumo dos corpos de pessoas trans no Carnaval por turistas aparentemente estrangeiros - hiperssexualização também citada por Page em Gaycation: Brazil. Essas imagens são alternadas com as falas de Lorna sobre a violência contra pessoas LGBTQi+, tendo ainda como fundo musical a canção de Dalida, em uma construção irônica sobre a festa.

É interessante observar, nos documentários analisados, alguns importantes deslocamentos em relação à marca oficial da cidade do Rio de Janeiro: em primeiro lugar, a colocação em pauta das violências a que pessoas LGBTQi+ são submetidas, em especial as pessoas trans. Trata-se de uma mudança relevante em relação a narrativas oficiais, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento do atributo gay friendly para a marca-cidade como destino turístico. Tanto em Rio 50 Degrees - Carry on Carioca, quan- to em Gaycation: Brazil esse imaginário é bastante desmistificado.

O fato de as pessoas trans ganharem espaço de autorrepresentação (dentro da autorrepresentação possível que um produto audiovisual desse tipo permite), por si, também é um importante deslocamento porque não houve, nesses casos, um silenciamento da existência dessas pessoas ou tampouco essas pessoas precisavam se preocupar em reproduzir as narrativas oficiais e os imaginários sólidos sobre a cidade. Na construção dos corpos perfeitos para consumo, não há espaço para esses corpos dissonantes; ao romperem com as narrativas oficiais, esses corpos emergem e ganham visibilidade, ganham presença na mídia hegemônica, marcando sua existência. E mais do que isso, mostram que compõem a cidade, com suas demandas e com suas lutas pelo direito à cidade.

Dos Corpos Negros Pobres

Estarmos despreparados para uma imagem da mídia que oprime pode nos levar não à paralisia, mas a uma situação (a) de comoção, em que agimos precisamente porque somos afetados, e (b) de estarmos ao mesmo tempo lá e aqui e, de diferentes maneiras, aceitando e negociando a multilocalidade e a temporalidade cruzada das conexões éticas que podemos chamar corretamente de globais. (Butler, 2015/2019, p. 117)

Os corpos negros costumam frequentar as estratégias de comunicação turística brasileira. Essa representação também foi recorrente em todo o material publicitário voltado para a copa do mundo de 2014 e dos jogos olímpicos de 2016. Em geral, as pessoas negras aparecem sorridentes e com pouca expressão de sua realidade cotidiana. No documentário britânico Copacabana Palace, entretanto, os corpos negros rompem com os imaginários da “mulata” (com sua dupla opressão de gênero e raça) e da sexualização em sua disputa pelo espaço urbano. O documentário narra os corpos sujeitos à lógica capitalista de consumo de luxo do hotel Copacabana Palace, outro lugar da cidade que compõe o imaginário internacional, um dos ícones da marca Rio, com especial destaque para pessoas que trabalham nos cargos hierarquicamente mais baixos (camareiras e faxineiros) e que são excluídos de sua possibilidade de consumo. Exibido pela BBC, possui 59 minutos, foi produzido em 2013 e transmitido pela primeira vez em 12 de maio de 2014 e pela última vez em 7 de novembro de 2017. A sinopse destaca que

o luxo não sai barato; o preço inicial de uma noite no Copacabana Palace é de £400, e o preço de suas suítes VIP nem é divulgado. Mas em um país onde uma em cada cinco pessoas ainda vive abaixo da linha da pobreza, a realidade de muitos funcionários do hotel é muito diferente. Este documentário para This World revela como a história do hotel reflete as fortunas de toda a nação e como o Brasil é cada vez mais um país de extremos extraordinários. (BBC, s.d.)

Neil Midgley, colunista do jornal The Telegraph, deu quatro estrelas ao documentário em sua avaliação, dizendo que ele mereceria ser feito de forma seriada pela excelência de seus personagens (Midgley, 2014). Em sua análise, diz que as olimpíadas deveriam ser organizadas pelos gerentes do hotel, considerando que

os preparativos do Rio de Janeiro para as Olimpíadas de 2016 são, segundo o Comitê Olímpico Internacional (COI), os “piores” de todos os tempos. (...) Dentro do belo Palace, era fácil entender as aspirações olímpicas do Rio. Mas de volta às favelas, era ainda mais fácil entender as dúvidas do COI. (Midgley, 2014, para. 1-5)

Após apresentar alguns hóspedes (ricos e “excêntricos”), o documentário começa a entrevistar os trabalhadores do hotel. Um deles diz que o salário que ganha “dá pra viver uma vida direitinho” (00:26:34), enquanto, acompanhado por um colega, ambos estão cabisbaixos defronte à câmera, já que não podem, naquele contexto, criticar o empregador. Em outra cena, uma camareira chamada Jéssica é acompanhada por Anne Philips, inglesa funcionária do hotel especialista em hospitalidade, que, nesse momento do documentário, dá aulas de inglês para a camareira. Anne ressalta que os funcionários jamais conseguiriam pagar para ter aulas; ela não pode acompanhá-los por muito tempo no expediente, então, tendo em vista que eles moram muito longe, ela grava as aulas para que eles possam estudar no trajeto, que pode demorar até três horas de ônibus, o que pode ser entendido como uma forma de estender a relação de subordinação do trabalhador com o empregador (ainda que as aulas possam beneficiar os trabalhadores em outros empregos, o interesse imediato está na qualificação para o trabalho no Copacabana Palace). Anne destaca, no entanto, que as pessoas pobres não podem arcar com os custos de uma moradia em áreas nobres e próximas ao trabalho, salientando que as pessoas que moram nas favelas são “fabulosas”, e cerca de “2% é de traficantes de drogas” (00:30:00). Sem apresentar dados, ela fala também que estão modernizando as favelas, “eles têm televisão, luz, água, saneamento” (00:30:30). Jéssica, que não fala inglês, não pode participar da conversa, mantendo uma postura ereta e um sorriso no rosto, como se concordasse com o que está sendo dito.

Há uma normalização do abismo social que separa hóspedes dos trabalhadores da base do hotel, quando, por exemplo, a chefe das camareiras diz que é difícil para as trabalhadoras terem de lidar com pessoas muito ricas, enquanto elas mesmas são geralmente muito pobres; ela no entanto, ressalta que sempre reforçam essa questão de forma que as camareiras entendam que essa diferença “faz parte da vida”. Louro (2019) ressalta que toda sociedade estabelece rótulos que pretendem fixar as identidades:

distintas e divergentes representações podem, pois, circular e produzir efeitos sociais. Algumas delas, contudo, ganham uma visibilidade e uma força tão grandes que deixam de ser percebidas como representações e são tomadas como sendo a realidade. Os grupos sociais que ocupam as posições centrais, “normais” (...) têm possibilidade não apenas de representar a si mesmos, mas também de representar os outros. Eles falam por si e também falam pelos “outros” (e sobre os outros); apresentam como padrão sua própria estética, sua ética ou sua ciência e arrogam-se o direito de representar (pela negação ou pela subordinação) as manifestações dos demais grupos. (pp. 18-19)

No documentário, o corpo das mulheres pobres, majoritariamente negras, é colocado nessa posição de servir e da subserviência como parte da vida; elas devem, ainda, dentro dessa lógica, “agradecer” devido ao fato de trabalharem em um hotel como o Copacabana Palace. Viviane diz que gosta de ser camareira, que muitas pessoas desejam trabalhar em um hotel conhecido mundialmente; tem três filhos, falou que foi difícil de início conciliar os filhos com o trabalho na rede hoteleira, mas que deu certo. Uma pessoa questiona se ela mora perto do trabalho, ela diz que sim, que mora na Rocinha (“não sei se você já ouviu falar na televisão” [00:39:17]). Enquanto ela concede a entrevista no seu trabalho, vai mostrando e narrando suas atividades para a câmera - lençóis brancos perfeitamente esticados sobre uma grande cama, produtos espalhados sobre o edredom para que ele fique com um aroma especial e ainda mais liso. Ela ressalta que

por mais que nós estejamos cheias de trabalho, cheias de crédito pra fazer, mas quando a gente entrar no apartamento do cliente, a gente (deve) focar ali no cliente, esquecer o que tem pendente para trás. Porque é isso que é o mais importante aqui, nós trabalhamos assim, foco sempre no cliente, dar o melhor pra eles para ele se sentir agradável para estar retornando novamente.(00:39:39)

Esse corpo deve abrir mão de sua subjetividade para ocupar esse espaço da cidade, ainda que a lógica urbana o submeta a condições desfavoráveis. Por exemplo, a chefe das camareiras relata que é comum que as funcionárias liguem informando que há tiroteios onde vivem e que chegarão atrasadas no trabalho. Ela complementa: “eu entendo, mas eu tenho hóspedes pra ter que limpar, não vou poder ‘senhor, desculpe, o senhor não terá arrumação hoje porque nossa camareira não pode chegar’” (00:40:13).

A gravação segue Viviane até sua casa na Rocinha, promovendo um choque entre o luxo do hotel, seus lençóis brancos perfeitamente esticados e os esgotos e vielas da favela. Viviane mora em uma casa muito pequena e simples, ela e os três filhos têm apenas dois colchões de solteiro para dormirem. Viviane se transforma quando está em sua casa: da camareira de corpo dócil do hotel, torna-se uma mulher crítica, demonstra insatisfação, por exemplo, por ter de sair de casa para trabalhar durante tiroteios e deixar seus filhos em perigo; ela também relata que vai trabalhar 12 dias direto, sem folga, durante o Carnaval. Diz também que as pessoas pensam que ela ganha bem por trabalhar no Copacabana Palace, mas ela diz para a equipe de gravação: “você está vendo que na realidade não é assim” (00:44:22). Ela ainda ressalta que tem “dois tipos de Brasil”, um rico e um pobre, sendo que “o lado da pobreza é o lado dos colaboradores” (00:44:34), destacando que, enquanto colegas vivem em comunidades até piores, as pessoas do hotel vivem no luxo.

A minha vida é praticamente dentro do Copa. Lá, nós estamos praticamente num palco, num teatro, porque quando a gente entra em cena, temos que esquecer todos os problemas, estar sempre sorrindo (...) por mais que você esteja morta de cansada de tanto trabalho... é encenar um personagem ali que na realidade ele não existe. (00:44:48)

Viviane segue sua crítica dizendo que o governo não dá oportunidade aos pobres, mas aos ricos; ela ressalta também que não terminou os estudos e que se arrepende muito disso, mas hoje faz questão que seus filhos frequentem a escola.

De volta ao hotel, a narração destaca a desigualdade brasileira como uma das maiores do mundo, enquanto imagens de uma festa de luxo são exibidas. Apresenta também uma outra face da desconexão dos ricos com a realidade brasileira: Felipe, gerente do restaurante asiático que está sendo construído no hotel, também vive na favela. Para ele, no entanto, essa é uma opção, um “estilo de vida”, ele diz que não moraria lá se não se sentisse seguro, e que as pessoas das favelas não são mais pessoas pobres, pois elas têm bons empregos, destacando uma das faces da gentrificação promovida pela política de pacificação do governo do estado, destacada também pela narração. A mesma ideia de crescimento econômico e ascensão de pessoas pobres ao consumo é ratificada pela gerente do hotel, Andrea.

O documentário em si atua quase como uma peça de publicidade para o hotel, mostrando sua história e reforçando imaginários sólidos sobre esse espaço de consumo de luxo na cidade, inclusive por meio do uso de imagens de arquivo, como do filme Flying Down to Rio, com Fred Astaire e Ginger Rogers (filme que também é utilizado na montagem de Rio 50 Degrees - Carry on Carioca em contexto totalmente distinto, mostrando a potência das imagens de arquivo na reconfiguração dos imaginários), dentre outras, as paisagens cariocas, as vistas aéreas, o uso constante da música Mas que Nada, de Sérgio Mendes (também utilizada em outro contexto por Rio 50 Degrees - Carry on Carioca, documentário que igualmente aborda o Copacabana Palace como representante da alta classe carioca), e artefatos históricos que marcam o hotel como um dos mais conhecidos da América Latina.

É interessante, nesse contexto, que o filme abra espaço para as pessoas que são invisibilizadas e silenciadas nesse processo de consumo da cidade por meio da voz de Viviane; e ainda que não haja problematização clara das falas das pessoas privilegiadas em relação à posição que elas atribuem a esses corpos que devem ser docilizados para ocupar um espaço invisível de subserviência. O contraste das imagens também produz sentidos para uma potencial crítica. E, acima de tudo, é interessante o fato de Viviane poder, em sua casa, sair do personagem que ela constrói para si em seu trabalho, denunciando a invisibilização de seu corpo e a sujeição de seu cotidiano pelas lógicas de consumo. Se o direito à diferença é, conforme salienta Harvey (2013), “um dos mais preciosos direitos dos citadinos” (p. 38), então a lógica do consumo de luxo é uma forma de retirada dos direitos desses cidadãos que lá trabalham.

Das Pessoas com Deficiência

Algumas vezes as pessoas, ou algumas pessoas, estão confinadas ou ausentes, ou fora do alcance da rua e da câmera - elas são os incapturáveis, embora possam perfeitamente ser capturadas em outro sentido. Nunca acontece realmente de todas as pessoas possíveis representadas pela noção de “povo” aparecerem no mesmo espaço e ao mesmo tempo para se afirmar como povo! Como se todos fossem livres para se mover, como se todos, por sua própria vontade, chegassem juntos a um espaço e tempo que pode ser descrito ou fotografado de uma maneira que inclua a todos! (Butler, 2015/2019, p. 183)

Como bem aponta Butler (2015/2019) ao abordar as representações visuais sobre o povo, nem todos os corpos estão disponíveis ou têm acesso a todos os espaços das cidades. Uma outra manifestação que se apresenta como dissonante em busca do direito à cidade, nos documentários estudados nesta pesquisa, diz respeito aos corpos de pessoas com deficiência, representados em A Bumpy Road to Rio. O documentário de 23 minutos foi exibido pelo programa Our World (Nosso Mundo), na BBC World News e BBC World News North America, entre 9 e 30 de outubro de 2015. O programa é estrelado por Nikki Fox, uma mulher cadeirante, que busca entender como é o cotidiano no Rio para pessoas com deficiência e apresentar as preparações da cidade para as paralimpíadas. Havia uma promessa de legado especialmente em relação à mobilidade e acessibilidade para pessoas com deficiência, a qual também se configurava em uma necessidade para receber os atletas de todo o mundo. No entanto, a crise financeira do Comitê Rio 2016 causou um grande impacto na realização dos jogos, comprometendo sua realização, também devido ao baixo interesse da população na compra de ingressos. O então prefeito Eduardo Paes, ao garantir o apoio financeiro do município para a realização do evento, declarou que “a Paralimpíada é um evento incrível, mas, como negócio, não é exatamente atraente para patrocinadores, para venda de ingressos. É um modelo de negócio que eventualmente não fecha” (Betim, 2016, para. 4). E, embora o apoio da mídia tenha contribuído para alavancar a venda de ingressos, assim como a audiência televisiva tenha registrado aumento em relação aos jogos de Londres (“Com 4,1 bilhões de telespectadores, Paralimpíada do Rio bate recorde”, 2017), a ocupação dos hotéis, por exemplo, não foi tão animadora (Martín, 2016).

Em relação aos documentários trazidos para este trabalho, praticamente não há referência aos jogos paralímpicos e ao impacto que eles podem trazer em termos de mobilidade, acessibilidade, políticas públicas e inclusão das pessoas com deficiência no cotidiano urbano. A Bumpy Road to Rio configura-se, portanto, em uma importante voz nesse sentido. É interessante observar, por exemplo, na primeira cena do filme, como um dos mais clássicos clichês da cidade é deslocado: trata-se de uma escola de samba na qual uma passista é uma pessoa com nanismo e outra com síndrome de Down, assim como a porta-bandeira. Corpos que não compõem o imaginário do Carnaval fazem parte da abertura do programa, assim como de seu desenrolar. Trata-se da Embaixa- dores da Alegria, escola de samba para pessoas com deficiência fundada pelo inglês radicado no Brasil Paul Davies. Viviane, a passista com nanismo, é chamada por Nikki de super star: vaidosa, Viviane mostra familiaridade com a câmera e diz que nasceu para dançar. Ela diz que sempre quis ser rainha do Carnaval, mas que uma cláusula de altura mínima de 1,60m a impedia.

Nikki é acompanhada por algumas pessoas durante a sua estadia na cidade. A primeira, Elizabeth, também cadeirante, relata a sua dificuldade para andar nas ruas, o medo de cair, de quebrar sua cadeira, além da vergonha de não ser reconhecida como pessoa pelo governo, destacando a invisibilidade das pessoas com deficiência em rela- ção às políticas públicas. As imagens mostram os buracos nas calçadas e as dificuldades de locomoção que ambas enfrentam, mas Nikki destaca que “o que falta na cidade em termos de acessibilidade, as pessoas preenchem com ajuda” (00:07:00). Outro acompanhante é Carlos, também cadeirante, taxista de um carro adaptado para transporte de pessoas com deficiência e guia turístico. Ele também ressalta as dificuldades de locomoção na cidade, destacando que, embora pareçam condições terríveis para estrangeiros, as pessoas no Brasil já se acostumaram. Nikki tenta circular pela cidade e esbarra em buracos, degraus e no trânsito (motoristas que não param no sinal ou param sobre a faixa de pedestres, ou fecham cruzamentos). Carlos a convida para andarem de transporte público. Eles param em um ponto de ônibus em uma rua da zona sul (aparentemente a rua Visconde de Pirajá, em Ipanema): diversos ônibus que passam não têm elevador ou estão lotados, até que conseguem embarcar em um ônibus vazio.

A apresentadora também visita as obras do Parque Olímpico. Ela destaca seu custo, questionando se esse dinheiro também será revertido em melhorias para as pessoas com deficiência da cidade. Eduardo Paes a recebe no parque, destacando que o Rio será uma cidade muito melhor após as olimpíadas, embora reconheça que há ainda um lon- go caminho pela frente. Nikki também ressalta as paralimpíadas como uma forma de iniciar as mudanças e empurrá-las à frente (em uma representação do discurso oficial dos megaeventos como catalisadores das mudanças desejadas).

A dificuldade de ser uma pessoa com deficiência que mora em uma favela também é abordada. Nikki acompanha Washington Assis do Nascimento Junior, um atleta paralímpico morador da Cidade de Deus, e suas dificuldades para treinar, inclusive pelos atrasos nos financiamentos. Andrew Parsons, presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro, diz que não há um sistema eficiente para investir na formação de atletas e espera que as paralimpíadas contribuam nesse sentido. Outro atleta acompanhado é Wilians Araújo, que vivia no Complexo do Alemão, mas que conseguiu comprar uma casa fora da favela; ele diz que o esporte mudou sua vida e de sua família, conduzindo o documentário para seu final, permeado por mensagens positivas de superação, apesar das dificuldades enfrentadas pelos deficientes que vivem na cidade, e das paralimpíadas como catalisadoras das mudanças necessárias na cidade, reforçando o discurso oficial.

Considerando a mobilidade como um direito básico à cidade que garante acesso a outros direitos, como educação, saúde, lazer, a exclusão de pessoas com deficiência do espaço urbano é uma restrição de seu direito à cidade. Não se trata apenas de preconceito dos familiares que “escondem” as pessoas com deficiência, tese trazida por Paul Davies em conversa com Nikki: mas também das dificuldades diárias que essas pessoas sofrem, não somente em relação à mobilidade, porém igualmente de ausência de espaços acessíveis, de oportunidades de estudo e trabalho, dificuldades de acesso à cultura (por exemplo, peças de teatro interpretadas em libras ou com audiodescrição, bibliotecas públicas com livros em braile, dentre inúmeras ações que poderiam ser feitas em prol das pessoas com deficiência), além de tantas outras. Esses corpos dissonantes, muito invisibilizados e excluídos do espaço urbano, viram nas paralimpíadas um poten- cial de ocupar a cidade e garantir sua visibilidade no espaço urbano, pois

se o corpo na esfera da política fosse ativo por definição - sempre se autoconstituindo, nunca constituído -, então não teríamos que lutar pelas condições que permitem ao corpo a sua livre atividade em nome da justiça econômica e social. Essa luta presume que os corpos são constrangidos e constrangíveis. (Butler, 2015/2019, p. 201)

O guia para a imprensa da Aliança Global para inclusão das pessoas com deficiência na mídia e entretenimento (Almeida, s.d.) destaca o importante papel que a mídia desempenha ao incluir em suas pautas as pessoas com deficiência e suas produções. Segundo o guia, a história se concentra nas questões sobre a qualidade de vida das pessoas, embora muitas vezes certos discursos flertem com uma meritocracia, como quando a narradora diz que as pessoas não reclamam por terem de trabalhar muito mais para melhorar suas vidas, ou como quando Carlos diz que é possível fazer tudo, mas é necessário tentar, vencer. O guia destaca que, “mesmo que o público possa achar esses retratos inspiradores, esses estereótipos levantam falsas expectativas para as outras pessoas com deficiência” (Almeida, s.d., p. 6). Ainda assim, A Bumpy Road to Rio é uma produção fundamental na inclusão de pautas de pessoas com deficiência na mídia hegemônica e na disputa pelos sentidos da marca Rio, pois é um produto produzido por uma pessoa com deficiência que mostra tanto as dificuldades impostas pelo tecido social e urbano quanto a necessidade de criar uma cidade, por meio de políticas públicas, para que esses corpos possam fazer parte efetivamente do cotidiano urbano. O audiovisual dá voz para a autorrepresentação, com espaço para críticas ao capacitismo, mostrando a pluralidade de corpos que compõem a cidade e que clamam por seu direito a vivê-la plenamente.

Considerações Finais

Somos, como corpos, vulneráveis aos outros e às instituições, e essa vulnerabilidade constitui um aspecto da modalidade social por meio do qual os corpos persistem. A questão da minha ou sua vulnerabilidade nos implica em uma questão política mais ampla sobre igualdade e desigualdade, uma vez que a vulnerabilidade pode ser projetada e negada (categorias psicológicas), mas também explorada e manipulada (categorias sociais e econômicas) no curso da produção e da naturalização das formas de desigualdade social. (Butler, 2015/2019, p. 231)

Embora a pluralidade de corpos dissonantes do imaginário do corpo perfeito atribuído à marca Rio ainda seja muito maior que a retratada nos documentários estudados nesta pesquisa, dar visibilidade a sujeitos invisibilizados pelo processo de city branding é uma forma de romper com o achatamento de subjetividades que a estratégia de construção da marca acaba por impor. Esse processo implica a emergência de toda uma gama de possibilidades de existência, de conflitos e de disputas pelo espaço urbano muito mais condizentes com o cotidiano da cidade que os consensos pregados pelo planejamento estratégico urbano, que contém na estratégia de megaeventos um de seus pontos mais relevantes, sendo que neste último o foco de reconstrução de imagem é central. Nos documentários analisados, notamos que os corpos dissonantes da estética hegemônica de consumo rompem com os discursos oficiais ao incluírem a diversidade em suas narrativas, sempre deixando claro que essa diversidade é coadjuvante ou alternativa. Corpos dissonantes não são protagonistas das políticas públicas, apesar de haver uma tendência de narrativa de inclusão de corpos não hegemônicos em períodos de eleições políticas ou de grandes eventos. Nessas situações, as pessoas excluídas de boa parte dos processos públicos de educação, saúde, transportes e habitação são lembradas, pois representam votos ou ainda porque serão figurantes que levam a imagem de cidade inclusiva ao mundo. É o caso das categorias de corpos tratadas neste artigo: mulheres trans e travestis, pessoas negras e pobres e pessoas com deficiência.

Os corpos dissonantes em relação ao imaginário da perfeição física que é atribuído ao paraíso edênico brasileiro desde suas narrativas fundadoras, reapropriado como atributo da marca-cidade, atuam também como tensionamento na disputa discursiva em torno do poder de narrar-se e de lutar pelo direito a existir, a representar-se, pelo direito à vida e à cidade. Se esses corpos, entendidos como minorias, foram antes silenciados ou docilizados, esses movimentos em busca de representação contribuem para a disputa de algum espaço e de alguma autorrepresentação na mídia hegemônica, embora ainda estejam sob o escrutínio de um olhar estrangeiro.

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1A “passabilidade” é considerada um termo LGBT+, o qual diz respeito a pessoas transgênero que não possuem características visíveis ou marcantes típicas e comumente associadas ao gênero designado no nascimento, ou seja, pessoas “mais próximas de estereótipos e aspectos da cisheteronormatividade” (Coletivo Ametista UERJ LGBT+, 2019, p. 8)

2Elliot Page publicizou recentemente sua identidade de gênero como homem trans. À época da gravação do episódio, ainda era identificado pelo gênero designado no nascimento. Ainda que no episódio ele seja identificado pelo nome de registro de nascença, entendemos que, a partir do momento em que há uma nova identificação de gênero, é ela que deve ser utilizada.

3Crossdressing é um termo que se refere à prática de pessoas que vestem roupas e/ou usam objetos comumente associados ao gênero oposto, a partir do entendimento de um binarismo de gênero correspondente ao “masculino” e ao “feminino”.

Recebido: 30 de Janeiro de 2021; Aceito: 01 de Abril de 2021

Ana Teresa Gotardo é doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2020) com estágio doutoral no Departa- mento de Estudos Urbanos e Planeamento da Universidade de Sheffield (Reino Unido, bolsa do Programa Institucional de Internacionalização CAPES/Print). Mestre em co- municação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2016), especialista em ma- rketing estratégico pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2008) e graduada em comunicação social - relações públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004). Atualmente é técnica-administrativa - relações públicas da Universidade Federal Fluminense e pesquisadora associada ao Laboratório de Comuni- cação, Cidade e Consumo - Lacon/Universidade do Estado do Rio de Janeiro . Email: aninhate@gmail.com Morada: Superintendência de Comunicação Social - SCS/UFF, Rua Miguel de Frias, 9 - 8º andar - Icaraí, Niterói - RJ, CEP: 24220-900, Brasil

Ricardo Ferreira Freitas é professor titular do Departamento de Relações Públi- cas da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e membro permanente do Programa de Pós-graduação em Comunicação da mesma universidade. Doutor em sociologia pela Universidade René Descartes - Paris V, sob orientação de Michel Maffesoli. É vice-diretor da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2020-2024) e vice-presidente da Associa- ção Brasileira de Pesquisadores de Comunicação Organizacional e de Relações Públicas (2020-2022) e bolsista produtividade 2 CNPq. Email: rf0360@gmail.com Morada: Faculdade de Comunicação Social - UERJ, Rua São Francisco Xavier, 524 - sala 10.001-A, CEP. 20943-000, Rio de Janeiro - RJ, Brasil

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