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Revista Internacional CONSINTER de Direito - Publicação Oficial do Conselho Internacional de Estudos Contemporâneos em Pós-Graduação

versão impressa ISSN 2183-6396versão On-line ISSN 2183-9522

Revista Internacional CONSINTER de Direito  no.14 Vila Nova de Gaia jun. 2022  Epub 26-Ago-2022

https://doi.org/10.19135/revista.consinter.00014.03 

Artigos Originais

O DIREITO COMPARADO ENTRE BRASIL E ESPANHANA ANÁLISE DA HERANÇA DIGITAL E SEUS DESDOBRAMENTOS

THE COMPARATIVE LAW BETWEEN BRAZIL AND SPAIN IN THE ANALYSIS OF DIGITAL INHERITANCE AND ITS DEVELOPMENTS

Rui G. Ghellere1 
http://orcid.org/0000-0003-1022-5505

Marcus Vinicius Mariot Pereira2 
http://orcid.org/0000-0002-4873-9395

1Universidad del Museo Social Argentino, Buenos Aires, Argentina - UMSA

2Faculdade Legale - FALEGALE, São Paulo, Brasil


Resumo

O exponencial avanço das tecnologias de informação e o uso cada vez maior da internet no cotidiano, principalmente na guarda de material que, pode ou não ter cunho patrimonial, aliado a um arcaico sistema normativo no que concerne o direito sucessório, tanto no Brasil quanto na Espanha, tem trazido constantes problemas de ordem prática quanto a destinação dos “bens e direitos virtuais” do de cujos. Assim, o objetivo é analisar brevemente o sistema normativo espanhol e brasileiro no tocante à ‘herança digital’, constatando que as normas vigentes são inócuas para uma solução prática adequada. Foi utilizado o método teórico e histórico que consiste na consulta de obras, artigos de periódicos, documentos eletrônicos, bem como da legislação pertinente ao tema de ambos os países. Também se analisou como o direito digital surge como um novo ramo do direito e quais são os bens passíveis de serem herdados, nunca deixando de lado a privacidade na era digital, a dignidade da pessoa humana e os direitos da personalidade, intrínsecos ao proprietário do bem digital, que se perduram mesmo após a sua morte.

Palavras-chave: Direito Sucessório; Herança Digital; Direito Virtual; Direito Comparado.

Abstract

The exponential advance of information technologies and the increasing use of the Internet in everyday life, especially for the storage of material that may or may not be of a patrimonial nature, coupled with an archaic regulatory system regarding inheritance law, both in Brazil and Spain, has brought constant problems of practical order regarding the destination of the “virtual goods and rights” of the “de whose”. Thus, the objective is to briefly analyze the Spanish and Brazilian regulatory systems regarding the 'digital inheritance', finding that the current rules are innocuous for an adequate practical solution. The theoretical and historical method was used, which consists of consulting works, journal articles, electronic documents, as well as legislation pertinent to the subject in both countries. We also analyzed how digital law emerges as a new branch of law and which assets can be inherited, never leaving aside privacy in the digital age, human dignity, and the rights of personality, intrinsic to the owner of the digital asset, which endure even after his death.

Keywords: Inheritance Law; Digital Inheritance; Virtual Law; Comparative Law.

Sumário: 1. Introdução. 2. O Direito Digital. 2.1. O Direito Digital no Brasil. 2.2. O Direito Digital na Espanha. 3. O Conceito Moderno de Herança. 4. A Herança Digital. 4.1. Bens Passíveis de Serem Valorados Economicamente. 4.2. Bens Sem Valor Econômico. 5. Privacidade, Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos da Personalidade na Era Digital. 6. Conclusão. 7. Referências.

1. INTRODUÇÃO

Com o passar dos anos os significados das palavras sofrem alterações. O conceito de direito, justiça, herança e sucessões, passa por evoluções com o tempo e, com o advento de novas tecnologias. Estas evoluções não são apenas necessárias, mas primordiais e contemplam nossa humanidade.

Isto porque cada vez mais o homem faz uso da tecnologia na sua vida diária, seja para seu lazer ou labor. É notório uma nova realidade, ainda pouco abordada pela legislação brasileira e espanhola, mas sendo cada vez mais levada a apreço de ambos os judiciários para dirimirem conflitos. São situações em que, no Brasil, atualmente, por não existir norma específica, recorre o julgador às fontes subsidiárias formais, que segundo o art. 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro3 são a analogia, os costumes e os princípios gerais do Direito, que atuam nas lacunas da norma. A Espanha, por sua vez, apresenta legislação um pouco mais avançada, mas ainda assim deficitária em vários pontos novos trazidos, ficando o requerente à mercê da interpretação do Juiz, sem a segurança jurídica.

Ademais, o direito sucessório decorre essencialmente da morte do indivíduo. Como a morte é uma das únicas certezas da humanidade, ela está ligada inteiramente com o homem e com o direito. Existem no ordenamento jurídico brasileiro e espanhol princípios norteadores e regras gerais sobre os efeitos jurídicos gerados pela morte do indivíduo, como por exemplo, a questão sucessória sobre a transmissão de seus ativos e passivos econômicos.

Assim, existem disposições sobre o tema da sucessão hereditária, desde o início das legislações brasileira e espanhola, tratando sobre a destinação correta dos bens após a morte do de cujos4. Ocorre que, em ambas as nações, houve poucas alterações legislativas (se não nenhuma) na seara dos direitos das sucessões no que tangencia os objetos passíveis de serem herdados, já que, os elencados na lei refletiam a realidade daquele momento histórico em que foram sancionadas. Com o advento da internet e de outras tecnologias, e seu uso efetivo por toda a população, a legislação vigente, tanto no Brasil quanto na Espanha, não mais refletem a realidade da sociedade moderna, e carecem de estudo e modernização, mormente no que tange a destinação dos chamados “Bens e Direitos Digitais” do de cujus.

Hoje em dia é comum, no mundo todo, que se use a internet para guardar trabalhos ou arquivos, que apresentam elevado valor econômico e/ou afetivo, bem como, também, pode-se utilizar da internet para auferir renda, até mesmo sem que a atualização seja pessoal do usuário, podendo ser continuada esta exploração mesmo após a morte do titular.

Assim, é cada vez mais necessário analisar como o direito deve se atualizar para contemplar as consequências em âmbito virtual e sucessório do que ocorre quando o indivíduo vem a falecer.

2. O DIREITO DIGITAL

Antes de tudo, necessário é entender, interpretar e aplicar o Direito como ‘um todo’. Todas as grandes divisões do direito em ‘ramos’ são realizadas para fins acadêmicos. Em linhas gerais os dois grandes ramos do direito, são doutrinariamente apontados como o direito público e o direito privado, que por sua vez, se subdividem cada vez mais em temas específicos, abrangendo todo o ordenamento jurídico.

A necessidade da criação de um novo ramo do direito se dá quando a evolução da sociedade e das relações humanas chega a um ponto em que as normas vigentes não conseguem tutelar esta evolução.

O jurista e filósofo austríaco Hans Kelsen ao elaborar a “Teoria Pura do Direito” determina que as normas devem refletir, em essência, a realidade e a necessidade contemporânea da sociedade às quais são dirigidas5.

Desta maneira, não se pode empregar normas anacrônicas, que são aquelas que foram elaboradas em épocas passadas e que, portanto, não refletem o atual contexto social e jurídico, tendo em vista que o Direito está em constante evolução e requer conteúdo normativo atualizado com o seu momento histórico6.

Seguindo nesta linha, o jurista brasileiro Miguel Reale, em sua famosa teoria Tridimensional do Direito, assevera que o Direito é produto de uma tridimensionalidade, quais sejam os três elementos, “fato, valor e a norma”. Assim, somente um fato que possui determinado valor para a sociedade é capaz de ensejar a criação de uma norma regulamentadora, o que gera, a longo prazo, uma constante mutabilidade e alteração no mundo jurídico7.

Com a grande ‘Revolução Digital’ ocorrida nas últimas décadas, conclui-se que a rede mundial de computadores veio para ficar e já é uma realidade. Desta feita, se tornou algo indispensável e essencial na vida cotidiana de praticamente todos. Assim com a rápida e frequente evolução das tecnologias neste ramo, frente ao antiquado e moroso processo de evolução das leis, é cristalina a necessidade de uma revolução normativa, que começa pela criação de um novo ramo do direito, denominado como o direito digital.

Como bem se expressaram Eugênio Facchini Neto e Karine Silva Demoliner:

A internet revolucionou a nossa forma de viver em sociedade. O mundo digital é maravilhoso, pela espantosa facilidade de acesso a informações e por tornar o mundo concretamente uma aldeia global. Tudo e todos estão ao alcance de qualquer um. O controle de entes públicos se torna mais efetivo e mais democrático. A comunicação aproxima pessoas e elimina distâncias. Também abriu oportunidades negociais imensuráveis. Lucros para uns, facilidades para todos8.

Assim, a criação e estudo deste novo ramo do direito não pode ser considerados sui generis9, já que é fruto da junção de várias outras áreas já existentes, do qual podemos citar a área cível, criminal, empresarial, tributária, constitucional, família, etc. se aplicando, de maneira extensiva, para o denominado Direito Digital. Leciona Pinheiro:

Assim, o Direito Digital surge como direito atual, que exige cada vez mais o papel de estrategista jurídico, de muito mais prevenção do que reação. Não é um direito de tecnologia, nem um direito das máquinas. É simplesmente o novo Direito, com as respostas necessárias para continuar a garantir a segurança jurídica das relações entre pessoas físicas ou jurídicas10.

Na mesma linha assevera Patricia Peck, advogada especialista em Direito Digital. Ela define este ramo do direito da seguinte forma:

(...) o Direito Digital traz a oportunidade de aplicar dentro de uma lógica jurídica uniforme uma série de princípios e soluções que já vinham sendo aplicados de modo difuso - princípios e soluções que estão na base do chamado Direito Costumeiro. Esta coesão de pensamento possibilita efetivamente alcançar resultados e preencher lacunas nunca antes resolvidas, tanto no âmbito real quanto no virtual, uma vez que é a manifestação de vontade humana em seus diversos formatos que une estes dois mundos no contexto jurídico11.

Conclui-se, portanto, que quando a sociedade, como um todo, muda a forma de se relacionar entre si, o direito também deve acompanhar essa evolução, que é constante e incessante. É notório, todavia, que as leis não apresentam o mesmo dinamismo que a sociedade, mas, devem buscar chegar o mais próximo disso, para terem efetividade e não se tornarem arcaicas e sem propósito.

Vale apontar que sobre o tema, em 2011 a Organização das Nações Unidas (ONU), declarou o acesso à internet como um direito humano fundamental, sendo inconcebível que países não invistam em tecnologia para conectar sua população ou aprovem leis para bloquear a comunicação com a rede global de redes12.

Alguns países, todavia, muito antes da declaração da ONU, já legislavam sobre este tema. Cita-se, como exemplo, o parlamento da Estônia, país do norte europeu com cerca de 1,3 milhões de habitantes, que no ano de 2000, aprovou uma lei que conferiu às assinaturas certificadas digitalmente a mesma validade das tradicionais e milenares assinaturas em papel.

Ainda assim, a Espanha e o Brasil apresentam evoluções tímidas sobre a legislação do tema, em especial no que tangencia aos direitos digitais sucessórios.

2.1 O DIREITO DIGITAL NO BRASIL

Proposta pelo Senador Rodrigo Rollemberg (PSB/DF), tramitou no Senado Federal a Proposta de Emenda à Constituição n. 6, de 2011, que inquiriu no objetivo de incluir o acesso à Internet no rol do art. 6º, da Constituição Federal, qualificando-o, portanto, como uma espécie de direito social.

Tal proposta, porém, fora arquivada ao final da legislatura, em consonância ao art. 332, do regimento interno do Senado Federal, que atesta que ao final da legislatura serão arquivadas todas as proposições em tramitação no Senado.

Todavia, existe proposta parecida que hoje encontra-se em tramitação, datada de 2017, sendo que a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados chancelou a admissibilidade da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 185/15, que coloca entre os direitos fundamentais elencados na Constituição o “acesso universal à internet”, acrescentando, assim, o inc. LXXIX ao art. 5º, da Constituição Federal.

Nesta toada, necessário pensar os reflexos financeiros que tal classificação trará para a Sociedade Brasileira, pois se for classificado constitucionalmente como um “direito fundamental” é necessário que todos os brasileiros tenham acesso garantido à internet... sendo, necessário para tanto, por exemplo, computadores para todos, bem como um sinal de internet de qualidade.

Ademais, a Lei 12.965/14, conhecida como o Marco Civil da Internet estipula em seu art. 7º, pertencente ao capítulo que trata dos direitos e garantias dos usuários, que o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania. A mesma lei não faz nenhuma referência à transmissão de bens por sucessão, ou à classificação de bens virtuais como patrimoniais.

Não há dúvidas de que o reconhecimento pela legislação brasileira do acesso à Internet e informática como um direito constitucional é questão de tempo, e tratará consequências no campo do direito como um todo, sendo necessário garantias e normas para que ocorra a efetiva proteção dos direitos dos cidadãos.

2.2 O DIREITO DIGITAL NA ESPANHA

A Espanha começou desde cedo a legislar sobre a internet, com o advento da Lei 34/2002 que regulamenta o comércio eletrônico e os serviços da sociedade de informação. A legislação foi considerada muito avançada para a época que já dispunha, inclusive, sobre a responsabilidade de terceiros sobre os provedores de armazenamento. (FERREIRA, 201713)

Na Espanha já existe leis com enfoque na Internet desde 2002, neste caso a Lei 34/2002, que regulamenta o comércio eletrônico e os serviços da sociedade de informação, dando enfoque em seu Art. 16, dispõem sobre a responsabilidade de terceiros, no que tange os provedores de armazenamento.

Outro exemplo é a Controversa Lei Sinde, que entrou em vigor em 2012 com a finalidade precípua de combater a pirataria. A lei impôs sanções severas para as empresas provedoras de conteúdo em caso de violação a direitos autorais14. Com base neste diploma legal os sites podem ser fechados ou bloqueados em até dez dias. Não somente os sites que ‘hospedam’ conteúdos ilegais, mas são alvos da Lei sites que contém links que direcionam para outros sites que hospedam estes conteúdos.

Da mesma forma a lei possibilitou um maior controle sobre os conteúdos veiculados na internet, pois os provedores são obrigados a ceder ao Estado os dados necessários para a identificação dos usuários que cometem irregularidades. Porém a lei não prevê qualquer pena para quem baixa conteúdo ilegal15.

No tocante à ‘herança digital’, em resumo temos as seguintes legislações espanholas: i. O Código Civil que regulamenta a herança sobre os bens de forma geral; ii. A Lei Orgânica n. 1/82 que trata sobre a Proteção civil à honra, à intimidade e à imagem no que diz respeito à privacidade; iii. A Lei Orgânica de Proteção de Dados Pessoais de 1999, em vigor até à aprovação da nova Lei Orgânica, ainda em fase de Projeto de Lei, relativa à proteção de dados pessoais e iv. O Regulamento Europeu de Proteção de Dados, também para a proteção de dados pessoais.

Acerca da responsabilidade dos provedores de serviços ‘on-line’ por danos causados em relação a terceiros, brilhantes são as conclusões de Fiorillo at al.:

Realizando-se o estudo interpretativo e comparativo da problemática acima trazida, observa-se que na Espanha o ordenamento jurídico interno e comunitário europeu assimilam o entendimento de que o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos à liberdade de expressão e informação não são absolutos, necessitando o provedor de detenção de mecanismos aptos a impedir a veiculação de conteúdos ofensivos à imagem de uma pessoa, sob pena de responsabilização jurídica.16

Salientando, de modo geral, que a regulamentação sobre o patrimônio digital, assim como no Brasil, é ambígua, não específica e insuficiente.

3 O CONCEITO MODERNO DE HERANÇA

Em breve síntese, herança, tanto no Brasil quanto na Espanha, é o patrimônio deixado pelo falecido para seus herdeiros. Assim, imperiosa é a análise do conceito de patrimônio para elucidação do tema. Sílvio de Salvo leciona:

Destarte, a herança entra no conceito de patrimônio. Deve ser vista como o patrimônio do de cujus. Definimos o patrimônio como o conjunto de direitos reais e obrigacionais, ativos e passivos, pertencentes a uma pessoa. Portanto, a herança é o patrimônio da pessoa falecida, ou seja, do autor da herança.17

Segundo Pablo Stolze, patrimônio é:

Na concepção clássica, patrimônio é a representação econômica da pessoa”, vinculando-o à personalidade do indivíduo, em uma concepção abstrata que se conserva durante toda a vida da pessoa, independentemente da substituição, aumento ou decréscimo de bens.18

Todavia, esse conceito acima trazido sofre críticas, e atualmente é mais amplo, já que parte da doutrina e da jurisprudência advogam no sentido de observar-se o critério objetivo da universalidade dos direitos deixado pelo de cujos, ou seja, não analisando apenas os bens corpóreos que eram deixados e tinham valor econômico, mas sim, todo o arcabouço de relações jurídicas que permeia a pessoa, seja natural ou jurídica, desde que tenham também um mínimo de valoração econômica.

O que é consenso, já que é trazido de forma expressa pela legislação vigente brasileira e espanhola, é que a herança se compõe de um todo unitário e indivisível, de titularidade dos herdeiros de forma condominial, findando-se esta titularidade apenas no momento da partilha.

O primeiro artigo, qual seja o “Artículo 657” do título III “De las sucesiones” em suas “Disposiciones generales” traz ao ordenamento espanhol, o princípio da saisine que é um instituto do Direito das Sucessões, estampado também no art. 1.784 do Código Civil, em que aponta que pelo evento morte, opera-se a imediata transferência da herança aos seus sucessores.

4 A HERANÇA DIGITAL

A herança digital compreende todos os bens adquiridos pelo de cujus ao longo de sua vida, que são armazenados em servidores e sistemas informatizados. O Código Civil brasileiro e espanhol ou demais legislações pertinentes à matéria de ambos os países, não apresentam nenhuma disposição no que tangencia à herança digital, o que pode ser prejudicial e perigoso em alguns casos em concreto, dada a função social, econômica ou afetiva dos arquivos que ali podem estar depositados.

Em princípio os bens digitais incluem tanto os bens de patrimônio intelectual como os direitos e obrigações contraídos pelo de cujos, que também formam o patrimônio digital que poderá ser objeto de herança.

En principio, los bienes digitales, que incluyen tanto los bienes de patrimonio intelectual almacenados en cualquier tipo de dispositivo, como todos los derechos y obligaciones contraídos por el difunto (contratos, suscripciones, etc.), también forman parte del patrimonio digital y por lo tanto pueden heredarse19.

Verifica-se que hoje, sem uma legislação específica e clara sobre o assunto, tanto no Brasil quanto na Espanha, o mais seguro é que as pessoas façam um documento testando e deixando claro qual será a destinação de seus bens e direitos digitais.

No ano de 2011, o Caderno TEC da Folha de São Paulo trouxe reportagem sobre herança digital, onde com base em uma pesquisa britânica, concluiu que pessoas de lá já se preocupam com o valor de seus bens guardados na nuvem e passam a incluir em testamento coleções de discos, filmes e livros que só existem on-line.

Uma pesquisa recente do Centro para Tecnologias Criativas e Sociais, do Goldsmiths College (Universidade de Londres), mostra que 30% dos britânicos consideram suas posses on-line sua “herança digital” e 5% deles já fizeram como Kelly: definiram legalmente o destino dessa herança. Outros 6% planejam fazê-lo em breve.

Os pesquisadores estimam que, no total, os britânicos tenham o equivalente a R$ 6,2 bilhões guardados na nuvem. Nas contas de Kelly Harmer, seu patrimônio digital, que inclui mais de mil álbuns comprados apenas na rede, vale cerca de R$ 27 mil.20

A mesma reportagem traz que existe uma alteração até mesmo na relação dos advogados com os seus clientes, a fim de se adequarem com a nova realidade, já que segundo Chris Brauer, codiretor do centro e um dos autores do estudo, isso acontece porque advogados agora questionam seus clientes se eles têm objetos valiosos on-line, e muitos percebem que a resposta é sim21.

Em regra geral, quando uma pessoa cria uma conta em uma rede social, serviço de backup e sincronização de arquivos ou até mesmo provedor de e-mail, não consegue discutir os termos do contrato, e muitas vezes nem faz a leitura do conteúdo que ali é trazido, por se tratar de um contrato de adesão.

Desta forma, não sabe e não tem controle o usuário e contratante de seus arquivos e bens em caso de sucessão quando ele vier a óbito.

Portanto, pela interpretação extensiva do conceito jurídico de patrimônio trazido em tópico oportuno, na falta de última manifestação do de cujus quanto ao destino de seu acervo digital, somente os bens digitais aos quais se possa atribuir valor monetário deverão ser transmitidos por meio de herança. Sobre o tema, é a lição de Augusto e Oliveira:

No ordenamento jurídico pátrio não há óbice para se permitir a transferência de arquivos digitais como patrimônio, sobretudo quando advindos de relações jurídicas com valor econômico. A possibilidade de se incluir esse conteúdo no acervo hereditário viabiliza, inclusive, que seja transmitido o acervo cultural do falecido aos seus herdeiros, como forma de materializar a continuidade do saber e preservar a identidade de um determinado sujeito dentro do seu contexto social22.

Todavia, as legislações brasileira e espanhola não criam óbice para que conste em testamentos ou codicilos o que na Espanha tem seu equivalente chamado de “testamento ológrafo” cláusulas sobre os bens digitais do indivíduo, sejam eles valorados economicamente ou não.

Codicilo, por sua feita, trata-se de disposições testamentárias de pequena monta ou extensão. Em síntese, trata-se de ato de última vontade simplificado, sem a necessidade da solenidade que é imperiosa ao testamento, em razão de ser o seu objeto considerado de menor importância para o falecido e para os herdeiros.

Em todo o mundo, casos com essa temática são levados ao apreço do judiciário, e, por isso, algumas empresas de tecnologia criaram ferramentas a fim de facilitar a transmissão de arquivos. Aponta-se, por exemplo, que o Facebook e o Google adicionaram um campo denominado herdeiros digitais ou gerenciador de contas inativas, para que o titular da conta nomeasse se alguém poderia gerir a conta da rede social após o seu falecimento23,colocando limites para que fosse preservada a privacidade do de cujos.

4.1 BENS PASSÍVEIS DE SEREM VALORADOS ECONOMICAMENTE

Com o passar do tempo, a sociedade se modifica cada vez mais rapidamente. Seguindo a mesma linha, a noção sobre a valoração de um bem também se alterou significativamente. Antigamente, só era considerado patrimônio aquilo que era tangível, material, corpóreo. A evolução tecnológica, por sua vez, modificou este aspecto, e hoje é plenamente possível que bens virtuais tenham valoração econômica, que inclusive podem chegar a valores de grande monta.

Assevera Sâmia Frantz que os bens de valor econômico, são por exemplo, os que envolvem o acúmulo de materiais de autoria própria, como músicas, poemas, textos e fotos ou até mesmo, moedas digitais, como é o caso das bitcoins24. No que compete aos bens dispostos em ambientes virtuais cuja valorização econômica é inerente, estes deverão, em regra, compor o espólio, haja visto se enquadrarem no conceito basilar de patrimônio, e por consequência, no de herança.

Costa Filho registra que:

Bens armazenados virtualmente suscetíveis de apreciação econômica fazem parte incontroversa há herança, constituindo direito dos herdeiros independentemente de previsão em testamento, já o acesso a apropriação pelos herdeiros dos insuscetíveis de tal valoração dependem de manifestação prévia do de cujus e ordem judicial25

.

Inclusive, a prática de ocultar intencionalmente bens inventariados pelo inventariante, herdeiro ou testamenteiro é vedada pelos ordenamentos jurídicos brasileiro e espanhol, aplicando punição que varia conforme o agente que a praticou.

No Brasil, se tal sonegação for praticada pelo herdeiro, este perderá o direito sobre o bem sonegado ou responderá pelo respectivo valor acrescido de perdas e danos, caso já o tenha alienado, consoante aos arts. 1.992 e 1.995 do Código Civil. Se praticada pelo inventariante, será removido da inventariança e perderá o direito sobre o bem sonegado, se for também herdeiro ou meeiro. Neste caso, apenas se configura a sonegação após a prestação das primeiras e últimas declarações, com omissão intencional de bens e a afirmação de não existirem outros a inventariar, a teor dos arts. 1.993 e 1996 do Código Civil e art. 621 do Código de Processo Civil Brasileiro.

Por fim, se praticado pelo testamenteiro, este perderá a inventariança e o direito à remuneração ou vintena, como preceitua o art. 625, VI, do Código de Processo Civil Brasileiro.

Ademais, não se pode perder de vista que é crescente o uso da internet ou redes sociais como trabalho e método, muitas vezes único, de auferir renda, dada sua facilidade e grande abrangência. Assim, a fim de elucidação do tema, pode-se citar, por exemplo, o falecido que deixa de herança um grande site, que por sua vez gera renda através de anúncios, e que independe de pessoalidade, ou seja, pode ser continuado por qualquer outra pessoa, ou mesmo que não seja continuado, ficará acessível indeterminadamente, gerando lucros enquanto existir

Desta feita, quando trazidos bens virtuais em cláusulas testamentárias e havendo a existência de herdeiros necessários, deverão estes arquivos e bens virtuais obrigatoriamente ter seu valor devidamente auferido, isto porque, dependendo do objeto virtual que fora ali deixado, este poderá apresentar valor superior a metade do patrimônio do de cujos, infringindo assim a regra esculpida no § 1º do art. 1.857, do Código Civil Brasileiro, de que só pode o testador dispor de até o limite da metade de seu patrimônio.

Ademais, no caso dos bens digitais economicamente valoráveis pode-se concluir que a cada dia o patrimônio digital de usuários da internet aumenta, e a tendência lógica dada a evolução tecnológica, é um crescimento exponencial destes valores.

A empresa de segurança digital McAfee realizou no ano de 2012, uma pesquisa sobre o valor dos ativos digitais no Brasil. Revelou que o valor médio atribuído pelos brasileiros aos seus patrimônios digitais é de aproximadamente R$ 238.826,00 (duzentos e trinta e oito mil oitocentos e vinte e seis reais). Para se ter uma ideia do tamanho da proporção deste valor, em média cada brasileiro avaliou seu patrimônio digital em mais de 383 salários mínimos vigentes na época da realização da pesquisa, que era na época R$ 622,00 (seiscentos e vinte e dois reais).

Além disso, na mesma pesquisa, os entrevistados indicaram que 38%, cerca de 3.712 arquivos armazenados em um dispositivo digital, são insubstituíveis para eles, volume avaliado em mais de R$ 90.745,00 (noventa mil setecentos e quarenta e cinco reais).

Na pesquisa foram avaliados downloads de música, memórias pessoais (como fotografias), comunicações pessoais (e-mails ou anotações), registros pessoais (saúde, finanças e seguros), informações de carreira (currículos, carteiras, cartas de apresentação, contatos de e-mail), passatempos e projetos de criação.

4.2 BENS SEM VALOR ECONÔMICO

Existem casos também em que a internet é utilizada não para o fim de angariar fundos, mas sim, como meio de armazenamento de seus arquivos, como fotos, livros digitais, músicas e vídeo. Nestes casos, muitos arquivos não apresentam valor auferível financeiramente, mas apresentam grande carga emocional ou informacional para o seu proprietário.

Assim, a lei não impede que os bens digitais considerados sem valor econômico possam ser transferidos para os herdeiros da pessoa falecida, via testamento por exemplo.

Todavia, como tratado em tópico oportuno, os bens transmissíveis via herança sofrem limitações. Imbuídos nessa perspectiva, Augusto e Oliveira asseveram que:

Entretanto, há que se ressalvar que nem todos os direitos e todas as obrigações do autor da herança são transmissíveis, seja em razão do seu caráter personalíssimo, encerrados com o óbito - como o poder familiar, a tutela, a curatela e os direitos políticos -, seja em função de serem bens e direitos patrimoniais de natureza obrigacional infungível26

Mesmo com bens de caráter personalíssimo, encerrados com o óbito do usuário, é necessário destacar, também, que a internet tem a característica de propagar rapidamente a informação. Assim, uma notícia, imagem ou vídeo, pode ficar eternizado se divulgado em massa, não tendo mais o seu criador ou dono maneiras de medir a dimensão daquela propagação, ou controle sobre aquilo.

5 PRIVACIDADE, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS DA PERSONALIDADE NA ERA DIGITAL

Nota-se que uma determinação legal acerca deste instituto em ambos os países está cada vez mais perto de virar realidade, e é necessária. Todavia, não se pode perder de vista o tocante às previsões protetivas a honra, intimidade e privacidade do de cujus quando se trata da sucessão de seus bens.

De acordo com o inicial artigo da Constituição Federal Brasileira, são fundamentos da República Federativa do Brasil a soberania, a cidadania, os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa, o pluralismo político, e, por fim, como regra matriz dos direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana.

Por sua vez, a Constituição Espanhola, traz logo em seu art. 1, que a “Espanha constitui-se num Estado social e democrático de Direito, que propugna como valores superiores da sua ordem jurídica a liberdade, a justiça, a igualdade e o pluralismo político27.

Por sua feita, assevera o doutrinador Pedro Lenza que os direitos da personalidade são direitos subjetivos existenciais, intrínsecos e inerentes à própria existência da pessoa humana. O ordenamento concede a toda pessoa natural o poder de agir para tutelar os bens da sua personalidade, e, assim, os direitos subjetivos podem ser violados, e essa violação faz nascer uma pretensão, que nada mais é que um poder de exigibilidade28.

Cabe apontar que além de estarem dispostas de maneira principiológica no ordenamento jurídico brasileiro, em especial na Constituição Federal os direitos da personalidade são expressamente trazidos nos arts. 5º, caput, V, X, XII, XXVI, LIV, LX, LXXII, LXXV, 199, § 4º, 225, § 1º, V, 227, caput, § 6º e 230.

Vale abalizar, também, que em ambos os ordenamentos jurídicos o embasamento dos direitos da personalidade é o próprio princípio da dignidade da pessoa humana, e, assim, ambos apresentam interdependência, e por isso devem ser analisados sobre o mesmo prisma.

Em regra geral, conforme preceitua o art. 11 do Código Civil brasileiro, os direitos da personalidade são irrenunciáveis e intransmissíveis, e, por isso, se encerram com a morte do indivíduo. Na Espanha a regra é a mesma por força do art. 32 do Código Civil Espanhol. Entretanto, os direitos da personalidade da pessoa falecida podem ser tutelados pelos parentes próximos. Sobre esse aspecto, pondera Paulo Lobo, com precisão:

O que se transmite não é o direito da personalidade, mas a projeção de seus efeitos patrimoniais, quando haja. O direito permanece inviolável e intransmissível, ainda que o titular queira transmiti-lo, pois o que é inerente à pessoa não pode ser dela destacado. A pessoa não transmite sua imagem, ficando dela privada durante certo tempo, o que acarretaria sua. O que se utiliza é certa e determinada projeção de sua imagem (a foto, o filme, a gravação), que desta se originou. A regra do Código está, portanto, correta. No sentido do discrime entre intransmissibilidade dos direitos da personalidade, em si, e a transmissibilidade da projeção de seus efeitos patrimoniais, decidiu o STJ (REsp 268.660) pelo direito de a mãe defender a imagem da falecida filha: “Ademais a imagem de pessoa famosa projeta efeitos econômicos para além de sua morte, pelo que os seus sucessores passam a ter, por direito próprio, legitimidade para postularem indenização em juízo. O direito próprio é sobre os efeitos patrimoniais (reparação por danos morais) em virtude da sucessão hereditária. Quanto à defesa da imagem da filha, não se trata de direito próprio, mas de legitimação para defesa de direito alheio29.

De maneira positivada no ordenamento jurídico brasileiro, a privacidade é esculpida na Constituição Federal, em seu art. 5º, X, no art. 21 do Código Civil e nos arts. 7º, I, 21 e 23 da Lei n. 12.965/2014, conhecida como o Marco Civil da Internet, sendo considerada inviolável e de observância obrigatória pelos provedores de aplicações de internet, ensejando a responsabilização civil por conteúdo que viole direito de terceiro.

O Código Civil brasileiro, em seu art. 21, traz a regra da inviolabilidade da vida privada da pessoa natural. Segundo a redação do artigo, o poder judiciário, a requerimento de interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma. Corrobora a doutrina que o elemento fundamental do direito à intimidade, manifestação primordial do direito à vida privada, é a exigibilidade de respeito ao isolamento de cada ser humano, que não pretende que certos aspectos de sua vida cheguem ao conhecimento de terceiros30.

A Constituição Espanhola, em seu Art. 18.3, reconhece o direito secreto das comunicações, seja seu conteúdo íntimo ou não, protegendo tanto seu conteúdo como os dados externos da comunicação bem como as identidades dos interlocutores. Assim, é preciso sopesar bem a privacidade do de cujos, que tem seu direito protegido pela Constituição, com o suposto direito de herança de seus sucessores sobre tais acessos.

Desta forma:

... o mais recomendado é estabelecer por testamento o que vai acontecer com suas contas, perfis, e para quem vai suas inscrições (de serviços on-line, streaming, etc) quem herdará sua coleção de filmes e alguns digitais, para quem vai seu depósito em sua conta PayPal31.

Existem várias situações cotidianas que são manifestas e já intrínsecas a ideia de privacidade e intimidade, como, por exemplo, as correspondências do indivíduo. No mesmo diapasão encontram-se alguns arquivos e bens armazenados virtualmente, dentre os quais podem citar, na mesma trilha das correspondências, os e-mails, que são denominados correios eletrônicos, e devem ter o seu conteúdo abarcado pelas defesas legais da privacidade tal qual as correspondências físicas. Referida proteção, em nosso ordenamento jurídico, não cessa simplesmente com a morte do indivíduo, tendo, portanto, que ser respeitada, mesmo que post mortem.

Desta feita, no tocante aos bens virtuais, a ideia de privacidade deve ser sempre lembrada, tendo em vista que lá existem as mais variadas e diversas informações acerca da pessoa. Neste ponto, assevera Sérgio Branco, ao apontar sobre a memória e esquecimento na internet, que a expectativa de segredo em ambientes virtuais é consideravelmente maior do que aquela de que desfrutamos em nosso ambiente físico32.

Assim, as legislações brasileira e espanhola, até o presente momento prezam pela privacidade do falecido, consequente de esta ser a extensão de sua personalidade, dos dados e bens armazenados em ambientes virtuais em face dos direitos sucessórios dos herdeiros. Obviamente, esta inequívoca antinomia só ocorre nos casos em que o de cujos não realiza disposição de última vontade, seja por codicilo ou testamento, sobre estes bens e dados.

Mais uma vez cabe as palavras de Eugênio Facchini Neto e Karine Silva Demoliner33:

Isso vale para países pobres e para nações ricas. Recentemente, Posner salientou que “o fato de que ninguém pode trafegar na modernidade sem continuamente revelar informações pessoais a uma variedade de demandantes tem habituado a maioria dos americanos à radical redução de sua privacidade informacional.

De fato, vivemos em um mundo que é cada vez mais invasivo, reduzindo dramaticamente nossa privacidade. Talvez seja um movimento inexorável, cabendo apenas constatá-lo. ‘Privacy is dead. Get over it’ (“A privacidade está morta. Deixe-a para trás”). Assim proclamou Scott McNealy, CEO da Sun Microsystems, em 1999. Ele não estava só: o obituário da privacidade já foi escrito por múltiplos acadêmicos e observadores. Talvez. Há quem diga que o réquiem é prematuro e que vale a pena resistir. Os invasores estão no portão, mas a cidadela não cairá sem uma batalha(57). Após descrever o mundo do “capitalismo de vigilância” em mais de 500 interessantes páginas, Zuboff encerra seu livro dizendo que “O Muro de Berlim caiu por muitas razões, mas acima de tudo foi porque o povo de Berlim Oriental disse: ‘Não mais!’ Nós também podemos ser os autores de muitos novos fatos ‘grandes e belos’ que reivindicam o futuro digital como lar da humanidade. Não mais! Que esta seja a nossa declaração (Tradução livre)

.

Necessário é pensar sobre o tema de ‘herança digital’ sempre em consonância e oposição ao direito de privacidade do de cujus... Até que ponto o que está ‘trancado nas nuvens digitais’ poderá ser herdado pelos sucessores do falecido? Existem segredos que o de cujus tem o direito de levar consigo? O Direito à Privacidade e a inviolabilidade se extinguem com a morte, podendo ser ‘herdados’ pelos sucessores’? São questões, de ordem prática, a que a legislação atual não consegue dar respostas satisfatórias.

6 CONCLUSÃO

O presente trabalho abordou a viabilidade e necessidade jurídica do reconhecimento do acervo digital como patrimônio, tanto no Brasil quanto na Espanha, tendo em vista o exponencial avanço do uso no dia a dia da tecnologia e os óbices a sua transferência através de herança, levando sempre em conta questões incidentais decorrentes do direito de privacidade do indivíduo.

Este pequeno ensaio não tem por objetivo fazer uma análise profunda e exaustiva sobre este tema de tamanho envergadura, principalmente pela brevidade deste espaço. Assim serve o presente para levantar questionamentos necessários quanto aos ‘novos’ direitos sucessórios dos bens e direitos digitais’... questões que deverão ser respondidas pelos doutrinadores norteando os legisladores para que façam seu trabalho de maneira competente afastando a insegurança jurídica atual sobre os temas abordados.

Nota-se que atualmente não existe nenhuma lei específica no Brasil ou na Espanha que trata da transmissão desses bens virtuais do de cujos para seus herdeiros, mas os poderes Legislativos nacionais já se movimentam para tratar do tema.

Até o momento, a melhor solução viável para tratar sobre o tema é a confecção de testamentos ou codicilos tratando sobre os bens digitais.

No Brasil, não havendo disposição de última vontade, fica-se diante de clara antinomia constitucional: de um lado o direito à herança, burilada pela Constituição Federal em seu art. 5°, inc. XXX, e de outro, a privacidade do de cujos trazida na Constituição Federal também pelo art. 5º, só que dessa vez em seu inc. X.

Na Espanha, a antinomia encontra-se estampada na lei magna, em seu Artículo 33, 1, que aponta que “Se reconoce el derecho a la propiedad privada y a la herencia” em face da Lei Orgânica n. 1/82 que trata sobre a Proteção civil à honra, a intimidade e a imagem no que diz respeito à privacidade; a Lei Orgânica de Proteção de Dados Pessoais de 1999, em vigor até à aprovação da nova Lei Orgânica, ainda em fase de Projeto de Lei, relativa à proteção de dados pessoais.

Assim, resta evidente a possibilidade do valor patrimonial do acervo digital e sua incidência nos direitos sucessórios. Entretanto, no atual estado regulatório sem jurisprudência sedimentada ou lei específica regulando a herança digital, constata-se que, se nada de efetivo e prático for feito, parte considerável do patrimônio digital será perdida com a morte do titular em detrimento de seus sucessores nos dois países, ante a insegurança jurídica do tema.

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3 BRASIL, Decreto-Lei N. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito . Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm > Acesso em: 18 ago. 2019.

4 Segundo Venosa (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. 13. ed. São Paulo, Atlas, 2013, v. 7.), de cujos está consagrada para referir-se ao morto, de quem se trata da sucessão, retirada da frase latina de cujus sucessione agitur

6 FREITAS, Viviane de Andrade, Aspectos fundamentais da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4724, 7 jun. 2016. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/49444>. Acesso em: 18 ago. 2019.

9 Sui generis é uma expressão em latim que significa “de seu próprio gênero” ou “de espécie única”

10PINHEIRO, Patrícia Peck, Cristiana Moraes Sleiman, Tudo que você precisa saber sobre direito digital no dia a dia, São Paulo, Saraiva. 2009, p. 25.

12 ONU afirma que acesso à internet é um direito humano. 2011. Disponível em: <http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2011/06/onu-afirma-que-acesso-internet-e-umdireito-humano.html>. Acesso em: 04 set. 19.

18 GAGLIANO, Pablo Stolze, Novo curso de direito civil, volume 7: direito das sucessões / Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho, 6. ed., São Paulo, Saraiva Educação, 2019. P. 55

20 Herança Digital, Caderno TEC da Folha de São Paulo, 2011. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/tec/tc0211201101.htm>. Acesso em: 12 jun. 2021

21 Herança Digital. idem. Acesso em: 21 ago. 2019

22 AUGUSTO, N. C.; OLIVEIRA, R. N. M. de, A possibilidade da transmissão de bens digitais “causa mortis” em relação aos direitos personalíssimos do “de cujus”. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO E CONTEMPORANEIDADE: MÍDIAS E DIREITOS DA SOCIEDADE EM REDE, 3., 2015, Santa Maria. Anais... Santa Maria, 2015. Disponível em: <http://coral.ufsm.br/comgressodireito/anais/2015/6-16.pdf>. Acesso em: 26 jul. 2019.

24 Herança digital e direito sucessório: tudo o que você precisa saber. Disponível em: < https://blog.sajadv.com.br/heranca-digital/ >. Acesso em: 21 ago. 2019>

26 AUGUSTO, Naiara Czarnobai, A possibilidade jurídica da transmissão de bens digitais “causa mortis” em relação aos direitos personalíssimos do “de cujus” 3 congressos internacional direito e contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede. Anais 3 Santa Maria (RS): UFSM, 2015. Disponível em: <http://coral.ufsm.br/congressodireito/anais/2015/6-16.pdf>. Acesso em: 02 set. 19.

27 Tradução livre do original: “España se constituye en un Estado social y democrático de Derecho, que propugna como valores superiores de su ordenamiento jurídico la libertad, la justicia, la igualdad y el pluralismo político.”

31 Tradução livre de: “Así las cosas, lo más recomendable es establecer por testamento qué va a pasar con tus cuentas y perfiles, quién se encargará de cancelar suscripciones, a quién le legarás tu colección de películas y discos virtuales y qué pasará con tu depósito en PayPal. Eso sí, sin olvidar dejar las contraseñas actualizadas a buen recaudo pero al alcance de tus herederos.” Disponível em <https://www.ionos.es/digitalguide/paginas-web/derecho-digital/la-herencia-digital/>.

Recebido: 31 de Julho de 2021; Aceito: 04 de Novembro de 2021

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Advogado, Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA, Mestre em Direito Processual Civil e Cidadania pela Universidade Paranaense - UNIPAR, possui MBA Executivo em Direito: Gestão e Business Law pela Fundação Getúlio Vargas - FGV. É Especialista em Maçonologia: História e Filosofia pelo Centro Universitário Internacional - UNINTER -- Rui@AdvocaciaGhellere.com.

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Advogado, Pós-graduado em Processo Civil pela Faculdade Dom Alberto e Advocacia Extrajudicial pela Faculdade Legale - FALEGALE -- Marcus@AdvocaciaGhellere.com.

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