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Revista Internacional CONSINTER de Direito - Publicação Oficial do Conselho Internacional de Estudos Contemporâneos em Pós-Graduação

versão impressa ISSN 2183-6396versão On-line ISSN 2183-9522

Revista Internacional CONSINTER de Direito  no.8 Vila Nova de Gaia jun. 2019  Epub 28-Jun-2019

https://doi.org/10.19135/revista.consinter.00008.30 

Artigos Originais

O MICROSSISTEMA DE PRECEDENTES NO NOVO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO: UMA INTERPRETAÇÃO

THE PRECEDENT MICROSYSTEM IN THE NEW BRAZILIAN CIVIL PROCEDURE: AN INTERPRETATION

Adriano Moura da F. Pinto1
http://orcid.org/0000-0003-1451-6422

Nilo Rafael B. de Mello2
http://orcid.org/0000-0001-6401-7731


Resumo

Este estudo tem por objetivo realizar uma análise crítica da utilização de institutos próprios da tradição jurídica conhecida como common law no sistema processual brasileiro. A criação de um sistema de precedentes judiciais é uma aposta definitiva do Código de Processo Civil de 2015 para entregar uma prestação jurisdicional mais eficiente e justa. O que seriam, no entanto, os padrões decisórios que criam precedentes judiciais no novo sistema? Para tentar responder a esta questão, utiliza-se como referencial teórico obras de Câmara (2016, 2018), Streck (2016) e Dworkin (2005), a fim de realizar uma análise bibliográfica perscrutando, inicialmente, o que pretendia o legislador ao criar um sistema de vinculações de decisões dos órgãos jurisdicionais brasileiros. Observa-se que, por meio de institutos próprios da tradição jurídica do common law, o legislador concebe mecanismos de padrões decisórios que devem ser observados, de modo a conferir maior isonomia, segurança jurídica e eficiência ao judiciário brasileiro, muito embora existam dispositivos legais. Como resultado deste estudo, observa-se que, nem todas os padrões decisórios enunciados no art. 927 podem ser considerados precedentes, ainda que vinculantes, bem como existem dispositivos outros na legislação processual que orientam e vinculam decisões judiciais com pouca possibilidade de comunicação com a atuação dos Tribunais. De igual maneira, observa-se que nem todos os incisos do art. 927 vinculam as decisões dos órgãos jurisdicionais, devendo ser interpretado aquele dispositivo em conjunto com todo o sistema lógico-jurídico do código, sob a lógica da integridade e coerência.

Palavras-chave: Ratio decidendi; Stare decisis; Precedentes; Uniformização; Integridade; Coerência

Abstract

This study intends to perform a critical analysis of common law institutes within the Brazilian civil procedure system. The new Brazilian Civil Procedure Code introduces a new judicial precedent system, in order to deliver fairer decisions. What would be, in the Brazilian system, the decision patterns that could be identified as precedent? To answer that question, the works of Câmara (2018, 2018), Streck (2016) and Dowrkin (2005) are used, in a bibliographical analysis that intends to find out what was the legislator’s intentions. It is found that, by means of common law tradition principles and concepts, the legislator conceives mechanisms of decision patterns that must be observed by the courts, in order to fulfill the equality and legal certainty assured by the Brazilian Constitution. As a result of this study, it can be said that not all decision patterns mentioned in aticle 927 are to be interpreted as precedent, even if they are binding decisions. Also, some of the dispositives the processual legislation brings instruct and bind judicial decisions with little communication with the courts. In the same way, it can be said that article 927 must be interpretd in conjunction within the judicial system’s logic as a whole, in orther for it to have integrity and coherence.

Keywords: Ratio decidendi; Stare decisis; Precedents; Uniformization; Integritye; Coherence;

1 INTRODUÇÃO

O sistema processual brasileiro vem apresentando uma série de obstáculos para levar ao jurisdicionado a efetiva tutela pleiteada. Desde a Constituição de 1988, a democratização do acesso à justiça, com a criação de uma série de mecanismos que facilitam o acesso ao Poder Judiciário, gerou a massificação das demandas judiciais (BARROSO; MELLO, 2016). Com isso, são submetidas ao judiciário, diariamente, milhares de demandas, muitas vezes repetitivas, porquanto possuem a mesam causa de pedir e pedido, modificando-se tão somente as partes envolvidas.

Este é um quadro que enseja uma série de problemas, quando se leva em conta o modelo de processo constitucional ao qual se submete o Estado Democrático de Direito vigendo no Brasil. A demora na entrega do provimento jurisdicional, o contraditório deficiente e, sobretudo, as divergências de interpretação das leis, gerando aplicação incorreta de teses jurídicas, podem ser mencionadas como os mais relevantes dentre estes, atingindo a isonomia e a segurança jurídica do sistema processual.

Nesse sentido, o Código de Processo Civil (CPC) de 2015 realiza uma aposta, com a instituição de padrões decisórios vinculantes da forma mais abrangente na história da legislação processual civil pátria. Aproximando os sistemas de tradições jurídicas do common law e civil law, vislumbram-se no CPC os conceitos de stare decisis e ratio decidendi, para fazer valer um microssistema de precedentes vinculantes (binding precedents) que visa, a um só tempo, conferir maior eficiência e justiça na atuação do judiciário, sem deixar de lado os direitos e garantias constitucionais que se aplicam ao processo.

Este artigo tem por finalidade analisar como o novo Código de Processo Civil (CPC) busca consolidar um sistema que possa conferir maior isonomia e segurança jurídica ao processo, de modo a garantir um exercício mais eficiente e justo da jurisdição. Mais especificamente, analisam-se os mecanismos ou ferramentas que procuram instituir um sistema de precedentes, com padrões decisórios que devem ser observados, sendo estes, em algumas situações, obrigatórios, vinculando os pronunciamentos judiciais. Utilizando-se de padrões decisórios vinculantes trazidos de forma mais ampla e decisiva, o novo código busca erradicar o estado de inconstitucionalidade que decorre da ofensa à isonomia e à segurança jurídica, conferindo maior qualidade às decisões proferidas pelo Estado juiz. Observa-se, no entanto, que esta é pretensão que ainda esbarra em uma prática jurídica eivada de vícios, que acarretam, geralmente, o desrespeito à história institucional dos órgãos do judiciário (STRECK, 2016; DWORKIN, 2005).

Sob muitos aspectos, essa incorreta prática jurídica deriva de uma percepção errada acerca dos padrões decisórios que efetivamente vinculam. Em suma, poder-se-ia perguntar: o que vêm a ser precedente no Direito brasileiro? Quais seriam as decisões aptas a se tornarem base para decisões futuras? De que maneira são formados os precedentes que vinculam no sistema proposto pelo CPC?

Para responder a estas questões, buscou-se realizar uma análise bibliográfica crítica, com base no referencial teórico de Câmara (2016; 2018), Dworkin (2005) e Streck (2016) de forma a buscar compreender a lógica por detrás dos padrões decisórios que vinculam no direito brasileiro, identificando-os e perscrutando a sua utilidade para o sistema processual como um todo.

Em um primeiro momento, este artigo analisa os conceitos de precedente, stare decisis e ratio decidendi, oriundos do common law, de modo a chegar-se a um mínimo denominador comum acerca do que significariam exatamente. Observa-se que há na doutrina certa divergência acerca do que seria exatamente o precedente. Nesse sentido, inicia-se o artigo trazendo a conceituação da doutrina estrageira e brasileira, com vistas a aproximar-se de um denominador comum coerente com os institutos que deram origem ao sistema brasileiro.

Na segunda parte do artigo, analisam-se os dispositivos do CPC que ensejariam a aplicação dos conceitos da common law, realizando a discussão principal acerca do que poderia ser considerado precedente stricto sensu, entendidos estes como as decisões - ou a parte da decisão - que efetivamente vincula o magistrado. Trata-se de pensar não só a mens legis do novo CPC, mas também de verificar, em cada um dos mecanismos propostos pelo código e aqui estudados, onde estaria a fundamentação legal ou consuetudinária que exige sua aplicação obrigatória.

E mais, cabe analisar também a extensão de dispositivos legais que tratam de possibilidade de vinculação ou não de decisões judiciais nos diversos espaços do Poder Judicial, em especial, no tocante à comunicação ou não de caminhos processuais distintos, mas passíveis de tratarem do mesmo direito material. Por exemplo, citam-se os mecanismos intitulados de precedentes no âmbito dos tribunais, mas necessário investigar também o que ocorre com institutos tradicionais de uniformização de “jurisprudência” dos juizados especiais federais e fazendários, que acabam tendo pouca chance de revelar decisões judiciais que cheguem aos tribunais locais, ou mesmo aos tetos superiores de Brasília.

Por último, discute-se de que forma a aplicação dos mecanismos estudados na segunda parte podem contribuir para a prestação jurisdicional mais eficiente e justa, buscando compreender a atuação dos tribunais no sentido de implementação das decisões vinculantes, bem como analisando a cultura jurídica que ainda predomina no sistema processual brasileiro.

2 O DIREITO A PARTIR DE PRECEDENTES E SUA OBRIGATÓRIA OBSERVAÇÃO NA COMMON LAW

Inicia-se pelo primeiro ponto controvertido na problemática em que se insere a discussão: a conceituação de precedente não é uníssona na doutrina. Em verdade, pode-se dizer que parte da doutrina trata o termo com certa dose de desdém, não dando a devida importância a sua conceituação, confundido o termo frequentemente com jurisprudência. Como observa Marcelo Alves Dias de Souza (2006, p. 41):

(..) o termo jurisprudência é usado, no linguajar jurídico, em pelo menos 4 sentidos distintos: a) como sinônimo de filosofia ou ciência do direito; b) significando uma série de decisões judiciais uniformes sobre uma mesma questão jurídica; c) representando, de modo menos preciso, o conjunto de decisões judiciais de um país como um todo; e d) referindo-se, impropriamente, a uma decisão judicial isolada.

Fato é que há certa imprecisão acerca do termo, motivo por que se reputa imprescindível uma análise prévia do conceito, de modo a estabelecer as bases do debate. Recorre-se, assim, à definição de Câmara (2016, p. 426), que atesta que:

Precedente é um pronunciamento judicial, proferido em um processo anterior, que é empregado como base da formação de outra decisão judicial, prolatada em processo posterior. Dito de outro modo, sempre que um órgão jurisdicional, ao proferir uma decisão, parte de outra decisão, proferida em outro processo, empregando-a como base, a decisão anteriormente prolatada terá sido precedente.

Para o ilustre doutrinador, precedente é simplesmente a decisão que serve de base para uma outra decisão. Observa-se que nesse conceito estão englobados todos os diferentes graus de vinculatividade dos precedentes, com subtipos como eficácia persuasiva ou fraca, eficácia normativa ou forte e eficácia intermediária, atribuídos pela doutrina (BARROSO; MELLO, 2016). Assim, pode-se entender por precedente tanto o padrão decisório que vincula, quanto aquele que deve meramente ser levado em consideração, como argumento subsidiário de orientação do julgador, ainda que se possa decidir de forma contrária.

Um segundo ponto controvertido que decorre do raciocínio acima é a distinção entre o conceito de precedente e aquele de jurisprudência, uma vez que não é incomum encontrar-se na doutrina, e sobretudo em ementas de julgados dos tribunais, a menção a precedente como jurisprudência. Assim observa-se a definição de Neves (2016, p. 1.298) que leciona: “Jurisprudência, por sua vez, é o resultado de um conjunto de decisões judiciais no mesmo sentido sobre uma mesma matéria proferidas pelos tribunais. É formada por precedentes, vinculantes e persuasivos, desde que venham sendo utilizados como razões do decidir em outros processos, e de meras decisões”.

Câmara (2016, p. 427) traz conceito nos mesmos termos, assertando que “(…) jurisprudência é um conjunto de decisões judiciais, proferidas pelos tribunais, sobre uma determinada matéria, em um mesmo sentido”. Distingue ambos, pertinentemente:

(…) há uma diferença quantitativa fundamental entre precedente e jurisprudência. É que falar sobre precedente é falar de uma decisão judicial, proferida em um determinado caso concreto (e que servirá de base para a prolação de futuras decisões judiciais). Já falar de jurisprudência é falar de um grande número de decisões judiciais, que estabalecem uma linha constante de decisões a respeito de certa matéria, permitindo que se compreenda o modo como os tribunais interpretam determinada norma jurídica. (Idem, ibidem, grifo do autor)

Nesse sentido, é possível dizer que o conceito de jurisprudência é mais amplo, uma vez que constitui tanto precedentes quanto “meras decisões” (NEVES, 2016, p. 1.298), entendidas estas como decisões que não possuem caráter vinculativo ou persuasivo. É diferença que tem fulcro no âmbito quantitativo, querendo-se referir a um conjunto de decisões por jurisprudência, enquanto precedente trata de uma única decisão.

2.1 O Stare Decisis

A aplicação do direito a partir de precedentes tem origem no sistema de justiça anglo-saxão, cuja prática jurídica decorre de leis não escritas. A técnica decisória que parte do precedente no caso concreto, empregado como princípio argumentativo (case law) para implementação em casos supervenientes, surge com maior força no sistema da common law, uma vez que a ausência de leis escritas não permite o raciocínio dedutivo comum ao sistema jurídico continental, em que se parte do comando abstrato da lei, englobando situações gerais em hipótese, para que sejam aplicadas por dedução no caso concreto.

No direito da common law uma das formas para a qual o sistema convergiu inicialmente, de modo a conferir uma segurança jurídica ampla, foi justamente a obrigatoriedade de se observar o que já foi julgado pelos órgãos responsáveis. O princípio da isonomia, em um sistema sem norma postivada, está estreitamente relacionado com uma aplicação igualitária das decisões proferidas em casos semelhantes: é a forma de se tratar de igual maneira os jurisdicionados em situações idênticas ou semelhantes, sem lhes frustrar a legítima expectativa de um comportamento reiterado e coerente por parte do Estado.

Explicitado de outra maneira, ao longo do desenvolvimento histórico daquele sistema, esta foi a solução para a qual se convergiu, uma vez que não há lei que obrigue os próprios juízes a seguirem suas decisões, de modo a conferir coerência ao sistema. Nesse sentido, o comportamento reiterado das cortes e órgãos julgadores no sentido de observarem com rigidez o que foi previamente decidido configurou-se mais do que mero uso, surgindo ao longo do tempo uma opinio juris que passa a reputar este comportamento como sendo obrigatório.

Surge o stare decisis nessa tradição, que decorre de uma percepção de que uma prática reiterada - e obrigatória - de respeito às decisões dos órgãos jurisdicionais conferiria mais estabilidade e mais legitimidade a todo o sistema. Não é outra senão a posição da doutrina, explicitada aqui pelo fato de que “ (…) no common law a vinculação aos precedentes não decorreu da lei, mas foi construída ao longo do tempo, conforme a mudança da forma de atuação dos órgãos jurisdicionais ” (CÂMARA, 2018, p. 19).

Assim, o princípio da vinculação aos precedentes judiciais, ou stare decisis et quieta non movere, que rege o sistema da tradição da common law, pode ser compreendido nas seguintes bases: “ Uma regra de direito, uma vez proferida por um tribunal, normalmente deve ser seguida até que tal regra tenha que, ou deva ser, modificada. A regra do stare decisis é, pois, a política das Cortes de manter o precedente e não interferir, nos casos que se sucedem, em questões já decididas em casos anteriores ” (FINE, 2000, p. 90).

Em suma, entende-se pela necessidade de não se rediscutir o que foi resolvido pelo entendimento da corte (literalmente, não mexer no que foi decidido e está “quieto”). É dizer que se deve dar a mesma decisão para casos idênticos aos que já foram decididos, consoante um entendimento da corte, que levou em considerações certos fundamentos determinantes.

A este ponto é forçoso dizer que, embora esteja presente de forma ampla dentro da prática jurídica vinculada à tradição do common law, o stare decisis é aplicado de forma diferente nos sistemas jurídicos dos diversos países que adotam a tradição. A título de exemplo, na Inglaterra, este é princípio que se aplica com menos exceções do que nos Estados Unidos da América. Naquele país, a vinculação às decisões proferidas fixou-se definitivamente em 1898, no caso London Street Tramways vs. London County Council, não comportando exceção, em absoluto, pelo menos até o ano de 1966, com a edição do House of Lords’ Practice Statement3, que finalmente aquiescia que a House of Lords (e, após 2009, a United Kingdom Supreme Court, sucedânea da House of Lords) pudesse orientar decisões em dissonância com precedentes seus. Conforme aquela decisão: “Suas Excelências, entretanto, reconhecem que a aderência por demais rígida a precedente pode levar à injustiça em um caso em particular, assim como (pode) restringir indevidamente o desenvolvimento do direito4.

Observa-se o descompasso entre o uso receoso da técnica do overruling (afastamento de precedentes), na Inglaterra, e a prática americana, onde, com efeito, se vislumbram flexibilizações, por exemplo, na Suprema Corte (entre 1946 e 1992 afastando-se de 154 precedentes5, contra 5 na Inglaterra pós-1966), embora vigente a mesma doutrina do stare decisis. É fato que demonstra de forma decidida que a técnica de utilização do precedente vinculante não pode ser entendida como homogênea mesmo dentro do common law, não causando surpresa que esta adote configurações diferentes no sistema da civil law (CÂMARA, 2018).

2.2 Ratio decidendi e Obiter dictum

O conceito de ratio decidendi ou fundamento vinculante da decisão é objeto de aguda discussão doutrinária, inclusive na doutrina estrangeira. Não se propõe neste estudo um amplo debate acerca dos entendimentos possíveis do que seria a ratio ou de como esta pode decorrer das decisões. O que se propõe neste artigo é a apresentação não pormenorizada de alguns entendimentos sobre o que seria, efetivamente, a ratio, adotando-se um posicionamento para posterior discussão acerca da sua aplicação no CPC de 2015.

Dando continuidade ao estudo, observa-se o dissenso na doutrina acerca deste conceito. Uma primeira posição, como exemplo, pode ser trazida com o teste criado por Wambaugh (1894, p. 17) com a finalidade de encontrar-se a ratio em uma decisão.

O autor propõe método, para encontrar a ratio, que inicia pelo enquadramento da suposta proposição legal derivada do julgado (to frame the proposition of law). Em seguida, haveria a inversão dessa proposição previamente enquadrada, observando-se o resultado disto sobre o dispositivo do julgamento. Continuando a decisão a mesma, a proposição enquadrada não pode ser fundamento determinante, uma vez que sua inversão mostra-se inócua ao resultado do julgamento; em sentido inverso, havendo modificação ou anulação do que fora julgado, poder-se-ia considerar o enquadramento como fundamental ou fundamento determinante: fazendo parte da ratio decidendi.

Outro autor, Goodhart (1930), propõe análise menos simples que toma por norte o que aquele doutrinador chama de fatos “materiais” (o que parece ser a este autor os fatos indissociáveis do caso), diferenciando-os do que alude serem fatos “imateriais” (entendidos estes como dispensáveis à ratio). A partir daí, observa o autor que o precedente vai ser formado sobre tais fatos, aplicando-se este quando os fatos considerados materiais no caso anterior também o forem no caso superveniente.

Para este estudo, entretanto, adota-se a definição da doutrina brasileira, consubstanciada no entendimento de Câmara (2018, p. 274), de clareza ímpar:

(…) para a conceituação do que sejam, no direito brasileiro, os fundamentos determinantes dos padrões decisórios dotados de eficácia vinculante, é preciso ter em conta, em primeiro lugar, que apenas pronunciamentos oriundos de órgãos colegiados podem ter tal eficácia obrigatória. Em razão disso, deve-se considerar que o fundamento determinante de um padrão decisório é aquele que tenha sido acolhido, expressa ou implicitamente, pelo menos na maioria dos votos formadores do acórdão. (CÂMARA, 2018, p. 274)

Nesse sentido, fundamento determinante de um precedente são os motivos que levaram o órgão a decidir daquela forma, ou seja, a proferir a ordem no dispositivo da decisão. Dessa asserção decorrem alguns fatos importantes. Em primeiro lugar, se a ratio encontra-se nos motivos que levam o órgão à decisão, ela precisa estar compreendida dentro da fundamentação da sentença. É exatamente nesse sentido que Bustamante (2012, p. 272) observa que “apenas há um precedente no tribunal em relação às questões que foram objeto de consenso de seus membros”. Em segundo lugar, decorre exatamente disto o conceito de obiter dictum, uma vez que tudo aquilo que não é ratio, ou fundamento determinante, e, portanto, não está na base das razões de proceder àquela decisão, é considerado obiter dictum, ou letra morta (dizer morto).

Câmara (2018, p. 278) assim também define o conceito:

Estabelecido o modo pelo qual se determina quais são os fundamentos determinantes (rationes decidendi) dos padrões decisórios, tudo o mais que em sua fundamentação se encontrar será obter dictum, isto é, fundamento não determinante. Aí se incluem os fundamentos não acolhidos (expressa ou implicitamente) por um número de votos que seja suficiente para formar a maioria do colegiado. Mas aí se incluem também aqueles empregados pelos juízes que tenham prolatado votos vencidos (os quais, nos termos do disposto do art. 941, § 3º, constituem parte integrante do acórdão para todos os fins legais).

Para este estudo, adota-se como definição de fundamento determinante da decisão (ratio decidendi) o fundamento sob o qual a maioria vencedora em um órgão julgador erige a decisão final. Nesse sentido, é a partir da identificação deste ou destes, que o precedente vai ser utilizado como base para construção da decisão posterior. Dito de outra forma, é observar que o que vincula, no precedente, é a ratio decidendi, ou seus fundamentos determinantes.

A utilização da terminologia fundamentos determinantes, neste estudo, cabe ressaltar, não é feita de forma aleatória. É, antes, expressão escolhida porque utilizada pelo próprio CPC, em diversos dispositivos de seu texto. Seja para indicar a decisão nula, porquanto não ser fundamentada quando se limita a invocar precedente sem indicar seus fundamentos determinantes (rationes decidendi), seja para mencionar obrigações dos tribunais no sentido de organização de banco de dados e produção de ementas que contenham os fundamentos determinantes da decisão, o Código refere-se por meio destes termos, que aqui são adotados.

3 OS CONCEITOS NO CPC E AS DECISÕES QUE CONSTITUEM PRECEDENTES

A análise dos conceitos no CPC, bem como dos padrões de decisão que levam à constituição de precedente parte, neste estudo, de uma ideia baseada no que Dworkin (2005) referiu por coerência e integridade. Entende-se, que, adotada pelo código, é lógica que aproxima as práticas das tradições jurídicas do common e civil law de forma harmônica.

O novo modelo de processo proposto pelo CPC privilegia a cooperação entre as partes assim como o respeito a institutos constitucionais, ligados aos direitos fundamentais. É fato que impõe uma nova forma de compreender, sobretudo, as decisões nos tribunais, mas que deve ser entendido sob a ótica de um modus operandi novo para todo o sistema processual.

O terceiro capítulo do Código de Processo Civil disciplina não só os processos nos tribunais, mas traz uma série de conceitos do common law aplicados ao processo brasileiro como um todo. Estabelecendo a lógica que deve reger os tribunais, o CPC acaba também por definir o comportamento das instâncias inferiores, uma vez que estas se encontram em relação de subordinação hierárquica àqueles.

Nesse sentido, observa-se a importância nodal do art. 926 do Código, que traz obrigações para todos os tribunais, órgãos de mais alta hierarquia no sistema processual brasileiro, com vistas a garantir a isonomia e a segurança jurídica em todo o sistema, sem se afastar dos preceitos fundamentais do processo no modelo do Estado Democrático de Direito brasileiro, com suas garantias.

Observam-se os dispositivos que trazem conceitos da doutrina estrangeira e aqueles que são aplicados na construção de precedentes. Os padrões analisados podem ser entendidos como vinculantes ou não vinculantes, apresentando uma lógica de construção comparticipativa, por meio de audiências públicas e intervenção de amici curiae, quando o são. Significa dizer que o código prevê diferentes procedimentos de construção dos padrões decisórios, com contraditório ampliado para construção de decisões que possuem aplicação obrigatória, de modo a mitigar o déficit de legitimidade que se poderia, em tese, ter.

Para compreender o sistema, inicia-se a análise a partir do art. 926 do CPC, que traz deveres de uniformização da jurisprudência, manutenção da sua estabilidade, integridade e coerência. Trata-se de disciplinar o norte do sistema, assentando seus princípios básicos, através dos quais deve se orientar a lógica do sistema de precedentes.

Aqui se tem uma manifestação de institutos próprios da common law, em certo sentido. O stare decisis, como já se explicou, é doutrina que disciplina a obrigatoriedade de se respeitar e não se rediscutir os casos que já foram decididos pelos tribunais. Em que pese a possibilidade de aplicação desse princípio em maior ou menor grau de rigidez, conforme os variados países, é certo que se baseia na ideia de atingir-se a segurança jurídica, por meio do respeito a decisões já exaradas.

No sistema da civil law, onde a fonte principal do Direito é a lei, é preciso que esse princípio esteja positivado em algum dispositivo. Com efeito, é por meio do art. 926 que se pode entender uma das formas de manifestação do princípio do stare decisis.

3.1 Uniformização da jurisprudência

A redação do art. 926 assim enuncia:

Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. (BRASIL, 2015)

Há efetivamente um comando claro e objetivo. Um dever de agir para os tribunais, que não podem escolher seguir ou não o comando. Responsabilizar-se pela uniformização de suas jurisprudências é a primeira regra que deve ser observada. Há, no entanto, outros deveres enunciados e que decorrem da mesma lógica: a conservação da estabilidade desta jurisprudência, mantendo sua integridade e coerência. O dever de uniformizar a jurisprudência deve ser entendido dentro da lógica de garantia da isonomia e da segurança jurídica do sistema judicial.

No Estado Democrático de Direito brasileiro, não se pode conceber a isonomia como figura coadjuvante, sendo direito fundamental assegurado no art. 5º da Constituição. É nesse sentido que se deve observar que é impossível conceber legítimo que diferentes indivíduos submetam questões a juízo, com pedidos idênticos, com causas de pedir idênticas, em situações semelhantes, porquanto baseadas em fatos e direitos iguais, e sobrevir resultado positivo, para um, e negativo, para outro. A justificativa da disparidade encontra-se no fato de terem tido seus casos julgados, por eventualidade, por um juiz diferente, ou, pior, por serem pessoas diferentes. Se isso acontece, conclui-se que o sistema jurídico tratou de forma desigual duas demandas idênticas, que deveriam, em tese, ter tido a mesma solução jurídica. Está-se, assim, diante de situação que fere substancialmente o princípio da isonomia, e, portanto, contrária a princípios básicos do sistema constitucional e democrático do Brasil.

O dever de uniformização, portanto, deve ser compreendido como meio de se garantir a mencionada isonomia, conferindo respostas iguais a casos idênticos, trazendo previsibilidade e segurança ao sistema jurisdicional brasileiro.

3.2 Manutenção da estabilidade

Decorre do dever de uniformização um outro dever: a obrigação de manter-se a estabilidade da jurisprudência. A estabilidade se vai atingir a partir, e posteriormente, da uniformização jurisprudencial. O tribunal deve agir no sentido de uniformizar sua jurisprudência, mas em verdade de nada adianta engendrar esforços de uniformização se, em pouco tempo, vai-se proceder à mudança do que foi uniformizado, criando tumulto institucional e, consequentemente, ofendendo a segurança jurídica. O dever de estabilidade está ligado à ideia de que “linhas de decisões constantes e uniformes a respeito de determinadas matérias não podem ser simplesmente abandonadas ou modificadas arbitrária ou discricionariamente” (CÂMARA, 2016, p. 429). Como explicitado antes, é dispositivo que manifesta a doutrina da stare decisis no sistema processual brasileiro. Manter a estabilidade pode ser interpretado como não perturbar o que houve por bem ser decidido e está assentado. Na mesma lógica, em se tratando de estabilidade jurisprudencial, há a exigência de que os precedentes de um tribunal sejam observados por seus próprios órgãos fracionários, em clara conexão com o conceito de stare decisis do common law6.

Nesse contexto, é preciso fazer uma explicação sobre o argumento de se chegar a uma jurisprudência com excessiva ridigez ou imutável. De fato, seria pouco saudável para a evolução do Direito que houvesse uma jurisprudência com tão pouca mutabilidade, sob pena de não se conseguir acompanhar mudanças da sociedade, da cultura ou do próprio pensamento jurídico. O código, no entanto, não impede que haja desvio da jurisprudência dominante (overruling), contanto seja justificada uma tal decisão de forma específica, demonstrando o juiz o motivo de o estar fazendo, conforme os §§ 3º e 4º do art. 927.

3.3 Integridade e coerência

O respeito à estabilidade da jurisprudência, uma vez uniformizada pelo órgão competente indica um movimento do sistema jurisdicional no sentido da preservação da integridade e da coerência do sistema jurídico. Para Dworkin (2005), Direito é integridade, e aqui cabe maior explicação. Integrar é tornar inteiro o que não está completo, podendo-se entender por íntegro aquilo que não tem falhas ou lacunas: é fazer um todo completo de partes inacabadas. A ideia de integridade mencionada e utilizada pelo Código de 2015 baseia-se na concepção da lógica de um respeito à história institucional dos órgãos judiciais. Em clara referência ao pós-positivismo (DWORKIN, 2005), a legislação adjetiva brasileira parte do pressuposto de que não há caso zero a ser decidido. Significa dizer que o juiz deve, portanto, assumir que toda temática já foi, em algum momento, submetida à apreciação do judiciário, devendo ser interpretada levando-se em conta os pronunciamentos anteriores daquela instituição. Ao levar em conta (“observar”, segundo o art. 927 do CPC)7 decisões anteriormente prolatadas, o juiz integra a história institucional do órgão, observando a lógica do “romance em cadeia” (idem, ibidem), trazendo legitimidade por meio desse respeito, evitando-se pronunciamento em total dissonância com o que, até então, vem sendo decidido pelo órgão.

A expectativa de um comportamento jurisdicional previsível, porque baseado em interpretações já proferidas, constitui o cerne da lógica de integridade. A esta altura é preciso ressaltar o papel da ideia de coerência nesse sistema. Reputa-se importante ponto, uma vez que se pode ter coerência em decisões contraditórias. Para tanto, basta-se pensar na situação em que já se sabe, de antemão, que determinado tribunal ou órgão sempre profere decisões contraditórias e assim continuará fazendo. É a coerência no erro (STRECK, 2016), que não pode ter lugar no sistema constitucional que o CPC se propõe a regular. É, portanto, através de um amálgama entre a integridade e a coerência que se vai chegar efetivamente à decisão constitucionalmente correta: respeitar a história institucional do órgão, por meio da observância dos julgados passados, que constituem base e bússola para a integração da jurisprudência daquele órgão, de forma coerente com o ordenamento jurídico como um todo.

3.4 Precedentes

O art. 927 do CPC traz alguns dos padrões decisórios de observação obrigatória, com vinculatividade sobre os juízes, bem como aqueles que precisam ser levados em conta, quando da construção da decisão. Cabe aqui a pergunta: dentre estes, quais de fato poderiam ser considerados precedentes, na acepção do conceito já enfrentado neste estudo? A vinculatividade do padrão de observância obrigatória estaria por si apta a classificá-lo como um precedente judicial?

Para tentar responder a esta questão, observa-se que o CPC, sob o art. 927, traz para os órgãos jurisdicionais o dever de observar (ou levar em consideração) certos padrões decisórios, às vezes submetendo-se a, outras observando (o que se vai explicar mais adiante) certas decisões. Dita o dispositivo, portanto:

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II - os enunciados de súmula vinculante;

III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;

V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

A redação do caput deste dispositivo precisa ser objeto de consideração, de antemão: na atualidade, enseja discussão na doutrina. O ponto controvertido da discussão está justamente sobre a vinculatividade que visa dar este dispositivo aos padrões decisórios contidos nos seus incisos, entendendo parte da doutrina que este visa atribuir eficácia vinculante a todos os seus incisos. Haveria, dessa forma, um dever do órgão jurisdicional no sentido de observar (interpretado pelos partidários desta corrente como dever de seguir) os dispositivos dos cinco incisos trazidos no artigo (DIDIER, 2015; BARROSO; MELLO, 2016). Em posição contrária, há professores que entendem não poder lei ordinária atribuir eficácia vinculante a decisão alguma, uma vez que seria matéria de competência constitucional, dependendo tal efeito, portanto, de dispositivo constitucional que assim o fizesse (NERY JÚNIOR; NERY, 2015).

No estudo aqui proposto, com o permesso às respeitabilíssimas opiniões da doutrina mencionada, adota-se entendimento diverso do dispositivo analisado. Explica-se: inicialmente, é preciso realizar uma análise mais ampla do dispositivo, levando-o à interpretação integrada com outros do CPC. Nesse sentido, observa-se o art. 926, imediatamente anterior com um claro comando, consubstanciado através da utilização do verbo “dever”: é comando que implica em obrigação de agir. Já a palavra “observar”, por sua vez presente no art. 927, não possui em suas acepções mais comuns a definitiva obrigatoriedade que enseja “dever”. Com sentido de “tomar por modelo”, “olhar com atenção para”, “notar”, “examinar” ou, ainda, “ponderar”, não se encontram palavras como “obrigatoriedade” ou “vinculatividade” nas acepções mais utilizadas do verbo. A mera observação semântica do dispositivo em comento, portanto, enseja um entendimento de que não seriam as decisões mencionadas nos incisos do art. 927 obrigatórias, mas devem simplesmente serem levadas em consideração, ponderadas ou examinadas anteriormente.

Em segundo lugar, pode-se dizer que a eficácia vinculante dos padrões decisórios contidos nos incisos deste dispositivo não deriva exatamente do comando do caput, mas se encontra disciplinada por outros tantos dispositivos do ordenamento jurídico que, assim, podem atribuir nominalmente a mencionada eficácia, como se vai demonstrar a partir da análise de cada um daqueles incisos.

Menciona o primeiro inciso as decisões do Supremo Tribunal Federal, emanadas em controle concentrado de constitucionalidade. Como amplamente sabido, são decisões vinculantes que assim o são não por constarem de inciso no art. 927 do CPC, mas por motivo de dispositivo constitucional, consubstanciado no art. 102, § 2º, que atribui vinculatividade que deve ser respeitada não só pelo Poder Judiciário, mas por toda a administração pública direta e indireta. Tratam-se de precedentes vinculantes (binding precedents) cuja natureza decorre diretamente da constituição. Enquadram-se exatamente na definição adotada neste trabalho para o conceito de precedente: são decisões anteriores, em um caso, que servem de base para a construção de decisões posteriores. Aqui, mais ainda, são simplesmente precedentes vinculantes em sentido forte (BARROSO; MELLO, 2016), uma vez que devem obrigatoriamente ser seguidas por todos os órgãos e pela administração.

Difere, no entanto, o caso dos enunciados de súmula vinculante, mencionados no art. 103-A da Constituição. Denota-se que possuem o mesmo tipo de eficácia das decisões mencionadas no inc. I do art. 927, tendo, também, sua obrigatoriedade fundada na Carta Maior, mas é importante ressaltar que estes não se configuram como precedentes stricto sensu. Explica-se: súmula não é precedente (CÂMARA, 2018). E isto assim é porque o precedente é uma decisão, construída em contraditório pelos sujeitos do processo, em um procedimento legítimo, que traz a norma a ser aplicada ao caso concreto. A súmula, por outro lado não é uma decisão, mas um extrato da jurisprudência do tribunal. Dito de outra forma, a súmula baseia-se em diversas decisões, ou mesmo em vários precedentes, para ser produzida. O enunciado de súmula, portanto, é texto em que se pretende enunciar, resumidamente, decisões em certo sentido. É fato que, inclusive, gera problema interessante para a pesquisa acadêmica em processo, uma vez que a produção de enunciados de súmula vinculante deve ter por norte uma certa abstração, porque se destina a gerir ou a ser aplicado a um número indeterminado de casos. Ao mesmo tempo, entretanto, deve ater-se, tanto quanto possível, aos fatos dentro das circunstâncias comuns das decisões reiteradas, não podendo ser, ao invés, carta branca com redação abstrata produzida pelo Poder Judiciário. Não é essa, entretanto, a questão discutida neste trabalho, bastando o acima dito para justificar o motivo de súmula não poder ser confundida com precedente.

O terceiro inciso do art. 927 merece maior explicação: os incidentes de assunção de competência, de resolução de demandas repetitivas e os julgamentos em recurso extraordinário e especial repetitivos, é preciso dizer, têm natureza vinculante. Esta, entretanto, não decorre do próprio dispositivo em análise, mas de outros que constam do Código de Processo Civil.

Iniciando-se pelo incidente de assunção de competência, observa-se o § 3º do art. 947 do CPC, cuja redação traz “O acórdão proferido em assunção de competência vinculará todos os juízes e órgãos fracionários, exceto se houver revisão de tese” (BRASIL, 2015). Trata-se de redação que não deixa outra opção senão o entendimento de que estas são decisões vinculantes para o Poder Judiciário. De forma bastante clara asserta o dispositivo que o acórdão vinculará todos os juízes e órgãos fracionários. Aqui, trata-se de precedente na acepção que se conceituou previamente neste estudo. Informando que o “acórdão vinculará”, cabe a pergunta: o que no acórdão vincula? A resposta, acredita-se, é dada pelo próprio dispositivo, in fine, quando menciona a exceção à vinculação: a revisão da tese.

O que quer dizer o legislador por “tese”? Sendo o acórdão constituído por relatório, fundamentação e dispositivo, como toda sentença (CÂMARA, 2016), é preciso perscrutar quais das suas partes vinculam os demais órgãos judiciários. Ou melhor, onde exatamente estaria o elemento vinculante dentro da decisão. Acredita-se ser razoável que o relatório não seja vinculante, uma vez que se trata de mera suma dos atos mais importantes daquele determinado processo. Tampouco se poderia falar em vinculatividade do dispositivo para o judiciário, uma vez que este é ordem específica para as partes envolvidas exatamente em um processo determinado. Nesse sentido, parece crível, portanto, que o que vincula é a tese do acórdão, entendida esta como os motivos determinantes ou a razão de decidir (ratio decidendi), constantes da fundamentação. E está justamente aí o motivo pelo qual se pode falar em precedente no sentido mais estreito da acepção do termo: uma decisão proferida anteriormente que possui elementos que servirão de base para decisões posteriores.

Há, não obstante, argumento de certa parte da doutrina no sentido da inconstitucionalidade dessa atribuição por meio de lei ordinária, como é o caso do código processual. Afirmam os que assim entendem que não seria possível atribuir eficácia vinculante a esses padrões, sob pena de usurpação de competência de dispositivo constitucional. Não parece ser esta, no entanto, a interpretação mais precisa a ser adotada por este estudo. É que os dispositivos constitucionais que atribuem tal eficácia, como já dito, vinculam não só o Poder Judiciário, mas toda a administração pública, o que, de fato, só seria possível por meio de dispositivo constitucional, por se tratar de mais de um poder. Não é, contudo, o que acontece com o dispositivo do CPC, que atribui eficácia vinculativa perante juízes e órgãos fracionários, portanto, determinando o comportamento tão somente do judiciário, fato que é perfeitamente possível de ser realizado por lei ordinária. Nesse sentido, não há que se falar em inconstitucionalidade por infringência ao princípio da separação dos poderes, porquanto não é vedado a um poder atribuir eficácia vinculante a seus próprios órgãos (CÂMARA, 2016).

Sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas, analisa-se o art. 985, sobretudo os incs. I, II, assim como o § 1º. Assim, observa-se:

Art. 985. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada:

I - a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região;

II - aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo revisão na forma doart. 986.

§ 1º Não observada a tese adotada no incidente, caberá reclamação.

Há, novamente, comando que pretende atribuir eficácia vinculane a este padrão decisório, mencionando o dispositivo novamente a “tese” que deverá ser aplicada. Está-se, aqui, diante de precedente, nos exatos termos do já analisado, uma vez que há uma tese desenvolvida em decisão anterior, respeitado o procedimento em contraditório. Nesse sentido, observam-se as ideias de stare decisis, uma vez que é decisão a ser respeitada, além da inescapável referência à ratio decidendi, porque aquilo que vincula, nesses padrões de decisão, é a “tese”, ou seus fundamentos determinantes. Há, ainda, importante complementação no dispositivo em comento, através da possibilidade do cabimento de reclamação, se descumprido. É exatamente o que Barroso e Mello (2016, p. 20) referem por “precedentes normativos em sentido forte correspondentes aos julgados e entendimentos que devem ser obrigatoriamente observados pelas demais instâncias e cujo desrespeito enseja reclamação”.

Os recursos extraordinário e especial repetitivos estão previstos no art. 1.040 do CPC, que traz, da mesma forma, a obrigatoriedade de vinculação aos acórdãos:

Art. 1.040. Publicado o acórdão paradigma:

I - o presidente ou o vice-presidente do tribunal de origem negará seguimento aos recursos especiais ou extraordinários sobrestados na origem, se o acórdão recorrido coincidir com a orientação do tribunal superior;

II - o órgão que proferiu o acórdão recorrido, na origem, reexaminará o processo de competência originária, a remessa necessária ou o recurso anteriormente julgado, se o acórdão recorrido contrariar a orientação do tribunal superior;

III - os processos suspensos em primeiro e segundo graus de jurisdição retomarão o curso para julgamento e aplicação da tese firmada pelo tribunal superior.

Aqui, como se observa, não é diferente, aplicando-se a tese (ratio) firmada pelo tribunal superior aos processos suspensos, trazendo de forma inequívoca a lógica de vinculação.

Os últimos incisos do artigo trazem, ainda, os enunciados de súmula simples do STF, em matéria constitucional, ou aqueles do STJ, em matéria infraconstitucional, assim como a orientação do plenário ou do órgão especial. Seriam tais padrões vinculantes? Responder afirmativamente seria dizer que o enunciado de súmula vinculante se iguala ao enunciado de súmula. Teria a súmula simples, assim, a mesma eficácia vinculante das súmulas referidas no art. 102, § 2º da Constituição, o que não se afigura razoável porquanto seria tratar como vinculantes enunciados que não o são, com a agravante de não haver previsão legal, ou constitucional para isso. É questão que se resume à lógica básica: se, de fato, há súmulas que são vinculantes e súmulas que não o são - e parece que existem -, verifica-se pouco equilibrado atribuir-se a todas a mesma eficácia. Em verdade, o que realmente ocorre é que as decisões mencionadas nos incs. IV e V não devem vincular os órgãos jurisdicionais, porquanto não se pode encontrar no sistema jurídico norma que atribua a estas decisões caráter obrigatório.

Constam essas decisões do dispositivo por outro motivo, que deve ser analisado por meio da interpretação conjunta, mais uma vez, dos arts. 927 e 926. São padrões que devem ser observados pelos juízes e tribunais, tendo em vista o dever de integridade e coerência. Observar as decisões já proferidas por um órgão sobre a matéria em questão é imprescindível para se atingir uma integração coerente do direito. Sem o respeito à história institucional do órgão (DWORKIN, 2005) não se pode falar em legitimidade plena. É fato notório, no entanto, que é humanamente impossível analisar toda decisão já proferida sobre determinada matéria emanada por um órgão jurisdicional, no Brasil, com milhões de casos em juízo. O art. 927, assim, não traz precedentes nos incs. IV e V, devendo ser entendidas como o extrato das decisões que devem ser levadas em conta, de modo a haver o respeito da história institucional do órgão, garantindo as mencionadas integridade e coerência. E não podem ser assim considerados porquanto não são decisões emanadas de um órgão jurisdicional, produzidas em contraditório pelos sujeitos do processo, mas meras reduções dessas decisões, abarcando toda uma jurisprudência do órgão.

4 CONCLUSÃO

O novo Código de Processo Civil traz mecanismos que vão no sentido de aproximação das tradições jurídicas do civil e common law. Por meio da remissão a conceitos como o de stare decisis e de ratio decidendi, o CPC busca implementar uma concepção inovadora no que concerne aos processos nos tribunais, trazendo explicitamente deveres que devem ser incorporados na prática jurisdicional de todos os órgãos do judiciário.

Ao estruturar a maneira como os tribunais devem proceder, sob os deveres de uniformização e manutenção da estabilidade da jurisprudência, visando garantir a integridade e coerência, o código também condiciona a atuação de todo o sistema jurídico brasileiro. Nesse sentido, a criação de um sistema de precedentes em um sistema jurídico historicamente vinculado ao civil law traz importante questão acerca de quais seriam as decisões que podem ser consideradas precedente em sentido estrito. Ao aproximar a tradição jurídica vinculada ao sistema romano-germânico daquela que vigora na common law, há ainda certa dúvida quanto a precisão dos conceitos com origem na doutrina estrangeira e de como eles são aplicados no processo brasileiro.

Ao se analisarem os padrões decisórios trazidos pelo art. 927 do código, observou-se que nem todos são dotados de eficácia vinculante, embora grande parte da doutrina os trate como tal. Ainda, há padrões sem eficácia vinculante que podem ser considerados precedentes persuasivos e outros padrões que, embora vinculem os órgãos do judiciário, não podem ser entendidos como precedente stricto sensu. Trata-se de importante distinção, uma vez que o precedente traz em seu bojo os fundamentos determinantes (ratio decidendi) que é exatamente o que vincula em um padrão de observância obrigatória, e de onde se lhe retira a legitimidade de aplicação.

Sem prejuízo das conclusões acima, é forçoso também destacar a incompatibilidade do sistema de precedentes formalizado no CPC com outras importantes normas processuais, como a legislação dos juizados especiais cíveis federais e os juizados fazendários, uma vez que normalmente suas decisões não alcançam em geral outras passíveis de atuação dos tribunais locais. Também se destaca que os institutos de uniformização presentes nos respectivos ritos dos juizados geram decisões de orientação material que podem conflitar, no todo ou em parte, como a validação dos tribunais respectivos. Tanto é assim que foi criada a Turma Nacional de Uniformização das turmas recursais federais de todo o país, que se desconexa da atuação dos tribunais locais, apenas acirra o risco de inconsistência e insegurança jurídica8.

Em alguns dos padrões decisórios apontados no art. 927, como os enunciados de súmula vinculante, embora reconheça-se sua força normativa que obriga a todos os órgãos judiciários, observa-se um problema que diz respeito à exata extração da ratio decidendi. Trata-se, ainda, de problema que pode ser percebido não só quando se perscruta a correta aplicação dos fundamentos determinantes, mas também quando se estuda a formação das súmulas, sua redação e a legitimidade por detrás de sua criação e aplicação. Estes, embora não sejam o objeto de pesquisa deste estudo, ensejam ainda muita discussão, devendo-se reconhecer a importância de se debruçar sobre a temática aqui tratada em pesquisas futuras.

REFERÊNCIAS

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