INTRODUÇÃO
A Disfunção Temporomandibular (DTM) constitui-se como um grupo de sinais e sintomas musculosqueléticos que afetam os músculos da mastigação e a articulação em causa, assim como outras estruturas associadas (1), e que se refletem num quadro clínico caracterizado por dor orofacial (sobretudo a nível dos ouvidos, com irradiação para a face, cabeça e cervical), sensibilidade muscular, estalidos e bloqueio dos movimentos da articulação. Estudos epidemiológicos sugerem que 40% a 75% da população adulta possui um sinal de associado a esta patologia (1) (2), cada vez mais comum a partir dos 40 anos e mais frequente no sexo feminino, sendo uma das principais causas de dor orofacial (3). A sua fisiopatologia é complexa e controversa, suspeitando-se que tenha uma origem multifatorial. Assim, parece existir a combinação de fatores psicossociais, com uma exposição inicial ou mantida a outros fatores, como macro ou microtraumas, seguidos de uma recuperação ineficiente (3) (4). A dor orofacial resultante da DTM pode, por sua vez, condicionar a qualidade de vida, afetando quer a dimensão física, quer psicológica, o que pode perpetuar a questão (5). Apesar de ser possível recuperar espontaneamente ou com intervenções mínimas, esta condição pode tornar-se crónica, com repercussões a nível social e profissional (3).
Segundo revisões sistemáticas recentes, a prevalência de DTM em músicos é elevada (3) (6), em especial nos que suportam a mandíbula no instrumento, como os violinistas ou os violistas, e também nos instrumentistas de sopro (6) (7). Como principais fatores de risco desta condição em músicos destacam-se os fatores biomecânicos envolvidos na manutenção prolongada de posturas não fisiológicas para a prática instrumental, o rigor técnico para um alto grau de desempenho e o formato específico de cada instrumento musical (5) (6). Em conjunto, estes fatores podem levar os músicos a ultrapassarem os seus limites fisiológicos, conferindo uma maior predisposição a lesões musculosqueléticas (6).
Nos violinistas, a posição do instrumento requer que os músculos orofaciais trabalhem em conjunto com os músculos do pescoço, garantindo o suporte do instrumento entre a mandíbula e o ombro do instrumentista. Além do alinhamento assimétrico mantido, a pressão exercida para suportar o instrumento, assim como as vibrações do próprio instrumento, aumenta a transmissão de forças entre a mandíbula e as articulações temporomandibulares, o que pode causar stress nas mesmas (8). Ao tocar profissionalmente um instrumento, neste caso o violino, são muitas as horas investidas, quer na prática, quer no desempenho e, se esse estudo não for feito de forma relaxada e consciente de toda a parte orofacial, irá acrescentar uma pressão extra, que poderá mais tarde ser refletida numa desordem deste tipo. Por outro lado, o medo de falhar em palco, ficar nervoso antes de exames/audições, receio de tocar em público, entre outros fatores psicossociais, podem condicionar não só o desempenho, como eventualmente contribuir para DTM. Os músicos, quer sejam profissionais ou amadores, experienciam diferentes níveis de ansiedade durante o seu desempenho musical, que pode afetar o conjunto de ações sequenciais que caracterizam o comportamento relacionado com as competências musicais (9).
Mediante o exposto, o objetivo deste estudo foi avaliar a associação entre da DTM e ansiedade em violinistas. Dos objetivos específicos fazem parte a análise da frequência dos sintomas associados à DTM, assim como identificar fatores de risco relacionados com os hábitos da prática do instrumento.
METODOLOGIA
Contexto e tipo de estudo
Foi desenvolvido um estudo observacional transversal recrutando participantes da comunidade, através de organizações relacionadas com o estudo e desempenho musical.
Participantes e recrutamento
Participaram neste estudo violinistas, nascidos antes de 01 de janeiro de 2005, isto é, maiores de 16 anos. Foi considerado critério de exclusão ter sido sujeito a qualquer tipo de cirurgia há menos de seis meses.
O recrutamento de participantes realizou-se através da apresentação do estudo por correio eletrónico junto de escolas, conservatórios e academias de música, expressando o pedido de divulgação pelos seus estudantes, assim como pela divulgação em redes sociais, aproximando-se esta abordagem das características da técnica de amostragem por bola de neve.
A recolha de dados foi realizada entre 12 de abril e 14 de maio de 2021.
Instrumentos de recolha de dados
Caracterização dos participantes
Para caracterizar os participantes, elaborou-se um breve questionário para recolha de dados sociodemográficos, como idade, sexo e concelho de residência, com questões relativas ao número de anos de prática do instrumento e do número de horas de estudo na última semana e, por último, com uma pergunta sobre a toma, na última semana, de medicação para dor de origem musculosquelética.
Despiste de dor temporomandibular incapacitante
Para a avaliação da presença de DTM em consequência da presença de sintomas foi utilizado o instrumento de despiste de dor temporomandibular incapacitante (TMPDS), que consiste num questionário de seis itens (10). A primeira questão aborda a presença de dor, a segunda refere-se à presença de rigidez na mandíbula ao acordar, e as restantes dizem respeito ao impacto nas atividades de rotina (mastigar, abrir a boca, juntar os dentes, falar/beijar/bocejar). A primeira questão, possui três opções de resposta (“Sem dor”, “Desde muito curta a não mais de uma semana, mas para”, “Contínua”) e todas as outras têm apenas duas (“Não”, “Sim”). A pontuação varia entre zero e sete pontos, sendo que a valores mais elevados corresponde um nível de disfunção maior.
Os autores do instrumento reportaram valores elevados de consistência interna (alpha de Cronbach=0,93), e quando dicotomizado (valores de pontuação ≥3), a sensibilidade e especificidade na correta classificação de disfunção temporomandibular foi de 0,99 e 0,97, respetivamente (10).
Índice de incapacidade da disfunção temporomandibular
O Índice de incapacidade de disfunção temporomandibular (IIDTM) foi utilizado para avaliar o impacto da DTM na funcionalidade (11). Este é constituído por dez itens, cada um com cinco opções gradativas de resposta, abordando diferentes funções do corpo e atividade de rotina. Cada item é pontuado entre zero e quatro, pelo que o total do instrumento se situa entre zero e 40 pontos, sendo que a uma pontuação mais elevada corresponde um nível de incapacidade maior. Apesar de bastante utilizado na literatura desta condição clínica, não foram encontrados valores para a fiabilidade e validade do instrumento.
Índice de ansiedade perante o desempenho musical de Kenny
O índice de ansiedade perante o desempenho musical de Kenny (K-MPAI) tem como objetivo avaliar o nível de ansiedade perante o desempenho musical (12). É constituído por 40 questões, com escala de resposta tipo Likert de sete opções, cujo resultado pode variar entre zero e 240 pontos, onde valores mais elevados correspondem um nível de ansiedade maior perante a desempenho musical. Para este trabalho os resultados foram transformados para uma escala que varia entre 0 e 100 pontos. Os valores de consistência interna da escala original é de α=0,94 e da versão em português de α=0,96 (14).
Procedimentos e questões éticas
Previamente ao preenchimento do formulário, os participantes foram informados dos objetivos e características gerais do estudo, sendo-lhes dada a possibilidade de esclarecer qualquer dúvida através de contacto com os autores. O consentimento informado, voluntário, livre e explícito foi, assim, necessário para o acesso ao questionário e participação no estudo. Todos os participantes foram ainda livres de desistir do estudo a qualquer momento, sem necessidade de qualquer justificação nem prejuízo, bastando, para tal, interromper o preenchimento do formulário, sem necessidade de submeter qualquer resposta obrigatória. Pelo facto da impossibilidade de singularizar os participantes através da análise dos dados em linha, os dados são considerados anónimos, podendo ser usados de acordo com o Regulamento Geral de Proteção de Dados, tendo-se utilizado uma plataforma de recolha e armazenamento dos dados segura (LimeSurvey da instituição de ensino superior onde o estudo foi desenvolvido).
Análise dos Dados
Da plataforma LimeSurvey exportaram-se os dados para um ficheiro em formato Microsoft Excel. Num segundo momento, o ficheiro foi verificado de forma a eliminar o conjunto de entradas de respostas vazio, isto é, questionários que embora iniciassem sessão não preencheram qualquer dado. Foram considerados válidos os questionários que apresentaram o preenchimento completo de todos os instrumentos.
A análise de dados incluiu estatística descritiva e inferencial. A análise descritiva foi realizada recorrendo à apresentação de frequências absolutas e relativas para as variáveis qualitativas, médias e desvio padrão para as variáveis quantitativas, quando a sua distribuição não era estatisticamente diferente da distribuição normal. Em alternativa, a apresentação destas variáveis foi realizada através da mediana e dos valores interquartis como medida de dispersão.
A associação entre variáveis quantitativas foi realizada recorrendo ao coeficiente de correlação de Spearman. A comparação das diferenças entre proporções foi realizada através do teste do Qui-quadrado. A diferença entre médias foi verificada através do teste de Mann-Whitney.
RESULTADOS
Dos 95 acessos registados no período em que o questionário esteve disponível, 49 foram considerados válidos. A média de idade dos participantes situou-se nos 27,9±9,3 anos. A participação foi maioritariamente de pessoas do sexo feminino (n=37, 75,5%) e oito (16,3%) dos participantes declararam terem recorrido a medicação para a dor musculosquelética na semana anterior ao preenchimento do questionário. No que diz respeito à prática do instrumento, a média do número de anos de estudos do violino situou-se nos 17,5±7,5 anos, e o número médio de horas de estudo por semana em 11,8±8,8 horas (Tabela 1).
Participantes (n=49) |
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Idade (em anos) | |
média (dp) | 27,9 (9,3) |
Sexo, n (%) | |
Feminino | 37 (75,5) |
Masculino | 12 (24,5) |
Medicação p/ dor*, n (%) | |
Sim | 8 (16,3) |
Não | 41 (83,7) |
Estudo p/ semana (em horas) | |
média (dp) | 11,8 (8,8) |
Anos de estudo (em anos) | |
média (dp) | 17,5 (7,5) |
* em qualquer momento da semana anterior à participação no estudo; dp - desvio padrão
A presença de DTM, utilizando como critério um valor igual ou superior a três pontos no questionário de despiste da dor temporomandibular (TMPDS), foi observada em 14 (28,6%) violinistas (Tabela 2). Trinta e três (67,4%) dos participantes reportaram que não sentem qualquer dor na mandíbula ou na região temporal, enquanto 3 (6,1%) sentem dor continuamente e 13 (26,5%) sentem dor por um breve momento, mas não mais de uma semana. No segundo item, referente à dor ou rigidez na mandíbula ao acordar, 14 (28,6%) violinistas confirmaram sentir dor. No último item relacionado com a dor e a sua consequência em várias atividades do dia a dia, os violinistas sentiram alterações nas seguintes atividades: seis (12,2%) ao mastigar alimentos consistentes ou duros, 14 (28,6%) a abrir a boca ou a mover a mandíbula, 15 (30,6%) em hábitos como juntar os dentes, fechar ou ranger e 11 (22.4%) em outros hábitos como falar ou bocejar (Tabela 2). Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre o sexo e as médias de idade, anos de estudo ou horas de estudo semana.
Participantes (n=49) |
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TMPDS | |
mediana (amplitude Iq) | 1 (3) |
≥3 Sim, n (%) | 14 (28,6) |
Dor na mandíbula ou na área da têmpora, n (%) | |
Sem qualquer dor | 33 (67,4) |
Por um breve momento ou mais | 13 (26,5) |
Continuamente | 3 (6,1) |
Dor ou rigidez na mandíbula ao acordar | |
Sim, n (%) | 14 (28,6) |
Em consequência da dor na mandíbula, há alterações em: | |
a. Mastigar alimentos consistentes ou duros | |
Sim, n (%) | 6 (12,2) |
b. Abrir a boca ou mover a mandíbula | |
Sim, n (%) | 14 (28,6) |
c. Hábitos como juntar os dentes, fechar, ranger | |
Sim, n (%) | 15 (30,6) |
d. Outros hábitos como falar, beijar ou bocejar | |
Sim, n (%) | 11 (22,4) |
IIq - Interquartil; TMPDS - Temporomandibular Pain Disability Screening
No que concerne ao índice de incapacidade na DTM, observou-se uma mediana de 2,0 (Iq =5,0), numa escala de 0 (sem incapacidade) a 40 (máxima incapacidade). Relativamente à ansiedade perante o desempenho musical, a média dos resultados obtidos no K-MPAI foi de 53±17 pontos.
Os resultados referentes à presença de DTM mostraram uma associação positiva significativa com o índice de incapacidade na DTM (rho=0,63; p<0,001) e com a ansiedade perante o desempenho musical (rho=0,53; p<0,001), mas não com a idade (rho=-0,22; p=0,124), número de anos de prática do instrumento (rho=-0,20; p=0,174), número de horas de estudo semanal (rho=0,15; p=0,318) ou sexo (Qui-Quadrado(1,49)=1,1; p=0,293). A ansiedade perante o desempenho musical evidenciou uma associação negativa, também significativa, com o número de anos de estudo (rho=-0,34; p<0,01) e com a idade dos participantes (rho=-0,39; p<0,01).
DISCUSSÃO
Este estudo procurou identificar a prevalência de DTM através da presença de sintomatologia em violinistas, e a sua relação com a ansiedade perante o desempenho musical. Neste estudo, encontrou-se uma prevalência de DTM de 28,6% em violinistas, sendo este um valor inferior ao reportado noutras investigações (13). Um fator que poderá explicar esta diferença reside na utilização de diferentes instrumentos de identificação de DTM, como por exemplo o Índice Anamnésico de Fonseca, onde valores de prevalência se situam acima dos 50% (14). A frequência das DTM, num estudo realizado por Amorim e Jorge (15) era mais elevada nas mulheres do que nos homens, resultado não confirmado neste estudo e os sintomas frequentemente mais relatados foram dores de cabeça, dor ou rigidez muscular no pescoço, ruídos articulares ao abrir e fechar a boca, estes últimos também encontrados neste trabalho. Para além da presença de dor, neste trabalho, os participantes atribuíram com maior frequência alterações no desempenho a nível dos hábitos de juntar, fechar ou ranger os dentes, seguido de abrir a boca ou mover a mandíbula. Menos frequente foram as alterações a nível de mastigar alimentos consistentes ou duros.
A associação entre DTM e a ansiedade na Desempenho musical foi confirmada pelos resultados neste trabalho, à semelhança de outros trabalhos realizados noutras áreas geográficas do planeta e em diferentes população-alvo (tipo de instrumento), onde foi verificado que o grau de severidade de DTM estava associado ao estado emocional e qualidade do sono e, consequentemente, com a qualidade de vida (14). Nos músicos, a ansiedade pode afetar a capacidade de desempenho, quer a nível das suas competências musicais quer a nível físico, apesar do número de anos de experiência parecer diminuir este risco segundo os resultados deste estudo. Se na infância este traço não é tão visível a ansiedade perante o desempenho musical torna-se presente na adolescência, diminuindo com a idade (16). No entanto, essa fase crucial do desenvolvimento poderá contribuir para o aparecimento de outras condições de saúde, onde se inclui a DTM, pelo que ações de prevenção são fundamentais na tentativa de diminuir os seus efeitos. De acordo com a literatura, para um controlo efetivo da DTM, é aconselhável uma intervenção precoce, com inclusão de estratégias de educação para a saúde (4). Nesse sentido, os professores de música e os profissionais de saúde ocupacional poderão desempenhar um papel importante quer na consciencialização dos riscos, quer no desenvolvimento de estratégias de prevenção ao longo da fase de formação e também em contextos de trabalho artístico.
As limitações deste trabalho incluem o risco de viés de seleção devido ao método de recrutamento de participantes. Por outro lado, o risco de viés de informação também está presente devido ao facto da análise se basear em dados reportados pelos próprios participantes, não existindo forma de serem confirmados por outra fonte, onde se inclui a identificação de DTM.