INTRODUÇÃO
Desde o primeiro caso registado decoronavirus disease2019 (COVID-19), a vida das populações e, em particular, dos profissionais de saúde (PS) transformou-se inesperadamente, levantando preocupações crescentes relativamente à saúde mental (1).
Estudos anteriores à pandemia indicam que os PS exibem indicadores de saúde mental piores do que outros grupos profissionais (2,3), com sintomas significativos de depressão em 10,30% (4) a 28,00% (5) e sintomas do espetro de ansiedade eburnoutnuma proporção importante (6), que atinge metade dos PS em alguns estudos (4). Em Portugal, estima-se que 21,6% destes apresente síndrome deburnoutcom intensidade moderada e 47,8% elevada (7); a prevalência das restantes síndromes está menos documentada.
O risco dos PS acentua-se em contexto epidémico, em que apresentam probabilidade significativa de desenvolvimento de perturbações mentais a curto e longo prazo (8). O fato de a infeção por COVID-19 ser transmitida por contato interpessoal e envolver morbimortalidade significativa contribui para a perceção de risco dos PS (9), que temem também o contágio de familiares e colegas (1,10). O aumento do número de casos, a sobrecarga de trabalho clínico (11), a adaptação a novas rotinas de trabalho (12), a escassez de equipamento de proteção individual e o desconhecimento inicial em relação à doença contribuem para a sensação de falta de controlo (13), com potencial exaustão física e emocional (11) e consequências adversas sobre a qualidade do trabalho desempenhado (14).
Os relatos do impacto da pandemia sobre a saúde mental surgiram sucessivamente, num ritmo que seguiu o aumento do número de casos nos países afetados. No que diz respeito aos PS, estudos internacionais identificam sintomas relevantes de ansiedade em 24,1% a 67,6%, depressão em 12,1% a 55,9% (15); sintomas clinicamente significativos de perturbação pós-stress traumático (PPST) em 7,4 a 71,5% (9,16) e alterações do sono em quase metade (17). Os profissionais do sexo feminino (9,18,19), envolvidos na assistência direta a doentes COVID-19 (20), médicos em formação (19) e enfermeiros (9,17,18,21) são mais frequente e gravemente afetados. Por outro lado, a coabitação com elementos da família (22), satisfação com o suporte social (23) e as estratégias decopingativas (21,22) são fatores protetores.
No primeiro mês da pandemia em Portugal, eram já notórios sintomas mais graves de depressão e ansiedade e níveis destressmais elevados em enfermeiros portugueses, quando comparados com a população geral (24). A resiliência foi identificada como mediadora entre dimensões de depressão eburnoutem PS portugueses, havendo, no entanto, espaço para outros possíveis fatores, nomeadamente o suporte social (25). Finalmente, um estudo do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) identificou sinais de sofrimento psicológico em 44,8% de uma amostra de PS, sendo o risco de sofrimento psicológico superior em PS com contato regular presencial com doentes e naqueles que prestam cuidados a doentes com COVID-19 (26).
OBJETIVOS
Os objetivos deste trabalho são determinar a prevalência e gravidade de sintomas de ansiedade, depressão e PPST em PS portugueses durante a pandemia por COVID-19 e investigar a associação a fatores sociodemográficos, antecedentes clínicos, suporte psicossocial, fatores relacionados com infeção COVID-19 e atividade profissional.
MATERIAL E MÉTODOS
Desenho do estudo
Trata-se de um estudo observacional transversal, com uma amostra de conveniência de PS. Os dados foram recolhidos através de um questionárioonlinesediado na plataformagoogle forms, distribuído no período de 23 de julho a 23 de agosto de 2020.
Participantes
Consideraram-se todos os PS a trabalhar no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental no momento de realização da avaliação. O questionário foi enviado via endereço eletrónico institucional, acompanhado de um pequeno texto a descrever o intuito do estudo.
Dados recolhidos
O questionário inquiria sobre dados demográficos (género, idade, estado civil, escolaridade, agregado familiar, alterações ao agregado durante o período de pandemia); antecedentes clínicos (doença médica crónica, incluindo antecedentes psiquiátricos); suporte psicossocial desde o início da pandemia por COVID-19 (frequência do contato com pessoas próximas e satisfação com o suporte obtido); fatores relacionados com infeção por COVID-19 (contato de risco, infeção de pessoa que considera próxima e/ou do próprio); e dados relacionados com atividade laboral (grupo profissional; regime presencial ou teletrabalho; atividade clínica/não clínica, com/sem doentes COVID-19); bem como avaliação de sintomas de ansiedade, depressão e PPST.
A avaliação de sintomas de ansiedade e depressão foi obtida através da Escala Hospitalar de Ansiedade e Depressão (HADS), uma escala de autopreenchimento com duas subescalas, com seteitenscada, que identifica sintomas do espectro da ansiedade (HADS-Ansiedade) e da depressão (HADS-Depressão) presentes na semana anterior. A pontuação de cada subescala é calculada separadamente (27), com um ponto de corte de 8 (28-30), considerando-se gravidade “ligeira” (8-10), “moderada” (11-15) ou “severa” (16-21) (31). A HADS tem validade demonstrada na avaliação de doentes hospitalares, nos cuidados de saúde primários e comunidade (29,32), tendo sido validada para a população portuguesa em 2007 (33).
A avaliação de sintomas de PPST foi cumprida através da Escala de Impacto de Eventos- 6 (IES-6), novamente uma escala de autopreenchimento. Trata-se de uma versão abreviada da Escala de Impacto de Acontecimentos Revista (IES-R), um instrumento de rastreio de sintomas de PPST com validade e fiabilidade estabelecidas para diversos tipos de trauma e em várias culturas. Apesar de conter apenas seisitens, preserva sintomas das três sub-dimensões focadas na escala original (sintomas intrusivos, de evitamento/embotamento e hipervigilância) e demonstrou ser uma medida robusta de sintomas de PPST, útil em estudos epidemiológicos e como instrumento de rastreio na prática clínica (34). A IES-6 foi validada para a população portuguesa em 2013 (35), tendo sido estabelecido um ponto de corte de 12,5 para a presença de sintomas clinicamente significativos, que se adotou para este estudo.
Métodos estatísticos
Realizou-se o tratamento estatístico dos dados utilizando osoftware SPSS Statisticsversão 27.0.
Para além de métodos estatísticos descritivos, foram utilizados testes paramétricos (testetpara amostras emparelhadas,Analysis of Variance- ANOVA) e testes não paramétricos (teste deKruskal-Wallis, Teste U deMann-Whitney). Diferenças entre as variáveis estudadas foram consideradas significativas parap< 0,05.
RESULTADOS
Participantes
Dos 4741 contatos disponíveis na lista de endereços institucionais, 46 encontravam-se desativados.
Receberam-se 556 respostas, correspondentes a uma taxa de retorno de 11,84%. Duas pessoas não aceitaram os termos do consentimento, pelo que foram analisados dados de 554 participantes (n=554).
Dados recolhidos através do questionário
A Tabela 1 mostra os dados demográficos, antecedentes clínicos, dados relacionados com o suporte psicossocial, com a infeção por COVID-19 e com a atividade laboral desempenhada.
Frequência | Frequência relativa | ||
---|---|---|---|
Dados demográficos | |||
Género | Masculino | 126 | 22,74% |
Feminino | 427 | 77,08% | |
Prefiro não responder/outro | 1 | 0,18% | |
Idade | 18-25 | 42 | 7,58% |
26-35 | 165 | 29,78% | |
36-45 | 152 | 27,44% | |
46-55 | 120 | 21,66% | |
56-65 | 71 | 12,82% | |
>65 | 4 | 0,72% | |
Estado civil | Solteiro/a | 217 | 39,17% |
Casado/a ou em união de fato | 292 | 52,71% | |
Separado/a | 39 | 7,04% | |
Viúvo/a | 6 | 1,08% | |
Escolaridade | Ensino Básico e Secundário | 127 | 22,92% |
Ensino Superior | 427 | 77,08% | |
Coabitação no início da pandemia | Sozinho/a | 76 | 13,72% |
Acompanhado/a | 478 | 86,28% | |
Alterações ao agregado familiar | Nenhuma | 420 | 75,81% |
Entrada/Saída de elementos | 70 | 12,64% | |
Mudança do próprio | 58 | 10,47% | |
Outra | 6 | 1,08% | |
Antecedentes clínicos | |||
Doença crónica | Sim | 155 | 27,98% |
Não | 399 | 72,02% | |
Acompanhamento Psiquiátrico | Atual | 44 | 7,94% |
Pretérito | 85 | 15,34% | |
Não | 425 | 76,72% | |
Diagnóstico | Não aplicável | 356 | 64,26% |
Depressão | 52 | 9,39% | |
Perturbações Ansiedade | 40 | 7,22% | |
Perturbação Afetiva Bipolar | 1 | 0,18% | |
Perturbação do Uso de Substâncias | 1 | 0,18% | |
Outra | 89 | 16,06% | |
Não sei/prefiro não responder | 15 | 2,71% | |
Suporte psicossocial | |||
Frequência de contato com familiares e amigos | Diário | 73 | 13,18% |
>5 vezes | 10 | 1,81% | |
2 a 4 | 28 | 5,05% | |
Semanal | 58 | 10,47% | |
Raro | 385 | 69,49% | |
Satisfação com apoio dos familiares e amigos (classificação de 0 a 5) | 0 | 0 | 0,00% |
1 | 8 | 1,44% | |
2 | 30 | 5,42% | |
3 | 88 | 15,88% | |
4 | 177 | 31,95% | |
5 | 251 | 45,31% | |
Fatores relacionados com infeção por COVID-19 | |||
Contato de risco | Sim | 7 | 1,26% |
Sim, no contexto clínico | 334 | 60,29% | |
Não | 213 | 38,45% | |
Infeção por COVID-19 | Sim | 23 | 4,15% |
Não | 531 | 95,85% | |
Infeção por COVID-19 de alguém próximo | Sim | 151 | 27,26% |
Não | 403 | 72,74% | |
Dados relativos a atividade profissional | |||
Grupo Profissional | Médicos | 128 | 23,10% |
Enfermeiros | 198 | 35,74% | |
Assistentes Operacionais | 51 | 9,21% | |
Técnicos Superiores de Diagnóstico e Terapêutica | 76 | 13,72% | |
Assistentes técnicos | 62 | 11,19% | |
Técnicos Superiores de Saúde | 21 | 3,79% | |
Assistentes Sociais | 4 | 0,72% | |
Outros | 14 | 2,53% | |
Regime de atividade | Presencial | 460 | 83,03% |
Teletrabalho | 5 | 0,90% | |
Misto | 76 | 13,72% | |
Outro | 13 | 2,35% | |
Tipo de atividade | Clínica, com doentes COVID-19 | 244 | 44,04% |
Clínica, sem doentes COVID-19 | 209 | 37,73% | |
Não clínica | 101 | 18,23% |
A maioria dos participantes é do género feminino (77,08%), encontra-se casada ou em união de fato (52,71%), completou o ensino superior (77,08%) e vivia acompanhada no início da pandemia (86,28%). Apesar de o contato com pessoas próximas ser raro em 69,49%, uma proporção significativa (45,31%) indica o nível máximo de satisfação com o suporte social. Mais de metade (60,29%) regista pelo menos um contato de risco; 27,26% viu alguém próximo ficar infetado, e 4,15% foi contagiado por COVID-19. Verifica-se que os enfermeiros são o grupo mais representado (35,74%) e que 44,04% dos PS prestou cuidados a doentes com COVID-19.
Uma proporção significativa dos participantes apresenta sintomas significativos de ansiedade (40,61%), depressão (25,99%) e PPST (20,40%), como mostra a Tabela 2.
Frequência | Frequência relativa | ||
---|---|---|---|
Pontuação HADS-Ansiedade | |||
Sem ansiedade significativa | <8 | 329 | 59,39% |
Ansiedade significativa | ≥8 | 225 | 40,61% |
Ligeira | 08/out | 108 | 19,49% |
Moderada | nov/15 | 92 | 16,61% |
Grave | ≥16 | 25 | 4,51% |
Pontuação HADS-Depressão | |||
Sem depressão significativa | <8 | 410 | 74,01% |
Depressão significativa | ≥8 | 144 | 25,99% |
Ligeira | 08/out | 90 | 16,24% |
Moderada | nov/15 | 44 | 7,94% |
Grave | ≥16 | 10 | 1,81% |
Pontuação IES-6 | |||
Sem sintomas significativos | <12,5 | 441 | 79,60% |
Sintomas significativos | >12,5 | 113 | 20,40% |
Fatores associados a ansiedade, depressão e PPST
A análise dos fatores associados a ansiedade, depressão e PPST encontra-se na Tabela 3.
HADS-Ansiedade | HADS-Depressão | IES-6 | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Média | p | Média | p | Média | p | ||
Dados demográficos | |||||||
Género | Masculino | 5,95 | 0,001 | 4,51 | 0,235 | 8,12 | 0,391 |
Feminino | 7,34 | 4,99 | 8,5 | ||||
Idade | 18-25 | 7,38 | 0,166 | 4,64 | 0,272 | 9,12 | 0,209 |
26-35 | 6,99 | 4,39 | 8,59 | ||||
36-45 | 7,45 | 5,49 | 8,84 | ||||
46-55 | 7 | 4,9 | 8,01 | ||||
56-65 | 6,2 | 4,89 | 7,52 | ||||
>65 | 3,25 | 2,25 | 5,5 | ||||
Estado civil | Solteiro/a | 7,05 | 0,603 | 4,9 | 0,44 | 8,75 | 0,671 |
Casado/a ou em união de fato | 6,96 | 4,78 | 8,18 | ||||
Separado/a | 6,74 | 4,95 | 8,18 | ||||
Viúvo/a | 10,5 | 7,5 | 9,17 | ||||
Escolaridade | Ensino Básico e Secundário | 7,88 | 0,021 | 5,26 | 0,25 | 8,42 | 0,987 |
Ensino Superior | 6,76 | 4,75 | 8,41 | ||||
Coabitação no início da pandemia | Sozinho/a | 6,66 | 0,415 | 4,62 | 0,555 | 8 | 0,382 |
Acompanhado/a | 7,08 | 4,91 | 8,48 | ||||
Alterações ao agregado familiar | Nenhuma | 6,6 | <0,001 | 4,58 | 0,015 | 8,03 | 0,002 |
Entrada/Saída de elementos | 8,61 | 6 | 9,46 | ||||
Mudança do próprio | 7,72 | 5,43 | 9,59 | ||||
Outra | 10,5 | 6,67 | 11,83 | ||||
Antecedentes clínicos | |||||||
Doença crónica | Sim | 7,95 | 0,001 | 5,54 | 0,013 | 9,38 | 0,002 |
Não | 6,66 | 4,61 | 8,04 | ||||
Acompanhamento Psiquiátrico | Atual | 10 | <0,001 | 7,05 | <0,001 | 9,11 | <0,001 |
Pretérito | 9,16 | 6,52 | 10,51 | ||||
Não | 6,28 | 4,31 | 7,92 | ||||
Diagnóstico | Não aplicável | 6,25 | <0,001 | 4,27 | <0,001 | 8,03 | <0,001 |
Depressão | 9,73 | 7,25 | 10,75 | ||||
Perturbações Ansiedade | 10,28 | 7,25 | 10,43 | ||||
Perturbação Afetiva Bipolar | 11 | 11 | 14 | ||||
Perturbação do Uso de Substâncias | 14 | 8 | 14 | ||||
Outra | 6,42 | 4,37 | 7,53 | ||||
Não sei/ prefiro não responder | 10 | 6,73 | 8,6 | ||||
Suporte psicossocial | |||||||
Frequência de contato com familiares e amigos | Diário | 7,27 | 0,003 | 8,48 | 0,126 | 8,48 | 0,126 |
>5 vezes | 4,3 | 6,9 | 6,9 | ||||
2 a 4 | 6,71 | 8,86 | 8,86 | ||||
semanal | 5,47 | 7,07 | 7,07 | ||||
Raro | 7,3 | 8,61 | 8,61 | ||||
Satisfação com apoio dos familiares e amigos (classificação de 0 a 5) | 0 | - | <0,001 | - | 0,001 | - | 0,001 |
1 | 11,13 | 9,25 | 9,25 | ||||
2 | 9,33 | 10,6 | 10,6 | ||||
3 | 7,82 | 9,19 | 9,19 | ||||
4 | 7,47 | 8,64 | 8,64 | ||||
5 | 6,01 | 7,69 | 7,69 | ||||
Fatores relacionados com infeção por COVID-19 | |||||||
Contato de risco | Sim | 7,57 | 0,017 | 4,57 | 0,019 | 9,29 | 0,118 |
Sim, no contexto clínico | 7,37 | 5,15 | 8,69 | ||||
Não | 6,46 | 4,43 | 7,94 | ||||
Infeção por COVID-19 | Sim | 8,52 | 0,075 | 6,22 | 0,162 | 10,13 | 0,056 |
Não | 6,95 | 4,81 | 8,34 | ||||
Infeção por COVID-19 de alguém próximo | Sim | 7,69 | 0,02 | 5,48 | 0,038 | 9,09 | 0,026 |
Não | 6,77 | 4,64 | 8,16 | ||||
Dados relativos a atividade profissional | |||||||
Grupo profissional | Médicos | 5,86 | <0,001 | 3,88 | <0,001 | 7,8 | 0,293 |
Enfermeiros | 7,38 | 5,42 | 8,95 | ||||
Assistentes Operacionais | 9,18 | 6,47 | 8,61 | ||||
Técnicos Superiores de Diagnóstico e Terapêutica | 7,01 | 4,99 | 8,46 | ||||
Assistentes técnicos | 7,31 | 4,73 | 8,52 | ||||
Técnicos Superiores de Saúde | 5,71 | 3,05 | 7,24 | ||||
Assistentes Sociais | 5,5 | 4,25 | 6,5 | ||||
Outros | 5,71 | 3,21 | 7,29 | ||||
Regime de atividade | Presencial | 7,21 | 0,002 | 5,14 | 0,001 | 8,62 | 0,011 |
Teletrabalho | 6,2 | 3,4 | 8 | ||||
Misto | 5,58 | 3,24 | 6,87 | ||||
Outro | 8,92 | 5,23 | 10,08 | ||||
Tipo de atividade | Clínica, com doentes COVID-19 | 7,41 | 0,03 | 5,25 | 0,019 | 9,04 | 0,008 |
Clínica, sem doentes COVID-19 | 6,72 | 4,77 | 7,88 | ||||
Não clínica | 6,68 | 4,15 | 8 |
O género feminino apresenta pontuações superiores, sendo esta diferença estatisticamente significativa apenas na dimensão de ansiedade (7,34versus(vs) 5,95.p=0,001).
As alterações ao agregado familiar durante o período da pandemia estão associadas a pontuações superiores nas três escalas (HADS-Ansiedadep<0,001; HADS-Depressãop=0,015; IES-6p=0,002); o grupo com pontuação mais elevada é consistentemente o que seleciona a opção “outra”, descrevendo alterações transitórias na residência para proteção do agregado familiar.
A doença crónica está associada a sintomas mais graves de ansiedade (7,95vs6,66.p=0,001), depressão (5,54vs4,61.p=0,013) e PPST (9,38vs8,04.p=0,002). Verifica-se ainda associação destes sintomas com o acompanhamento psiquiátrico (HADS-Ansiedade,p<0,001; HADS-Depressão,p<0,001; IES-6,p<0,001) e também com o diagnóstico estabelecido. Quando realizadas comparações par a par entre os vários diagnósticos, os resultados da HADS-Ansiedade e HADS-Depressão mostram-se superiores na presença de diagnóstico de depressão (p<0,001) ou perturbação de ansiedade (p<0,001), por comparação com a ausência de patologia psiquiátrica. O mesmo acontece para a IES-6 (p=0,001).
Quanto ao suporte psicossocial, pontuações mais baixas de satisfação com o apoio de familiares e amigos estão relacionadas com sintomas de ansiedade (p<0,001), depressão (p<0,001) e PPST (p=0,001).
O trabalho em regime presencial associa-se a níveis mais elevados de sintomas de ansiedade (p=0,002) e depressão (p=0,001). Entre os fatores relacionados com infeção por COVID-19, os contatos de risco associam-se a sintomas de ansiedade (p=0,017) e depressão (p=0,019). A infeção confirmada não se relaciona com nenhuma dimensão, sendo mais relevante o contágio de alguém próximo, a que correspondem pontuações mais elevadas na HADS-Ansiedade (7,69vs6,77.p=0,020), HADS-Depressão (5,48vs4,64.p=0,038) e IES-6 (9,09vs8,16.p=0,026).
Observam-se diferenças entre grupos profissionais nas pontuações da HADS-Ansiedade (p<0,001) e HADS-Depressão (p<0,001), mas não na da IES-6 (p=0,273). Quando explorada a comparação par a par, as diferenças são evidentes entre enfermeiros e médicos (HADS-Ansiedade 7,38vs5,86.p=0,011; HADS-Depressão 5,42vs3,88.p=0,003) e assistentes operacionais e médicos (HADS-Ansiedade 9,18vs5,86.p<0,001; HADS-Depressão 6,47vs3,88.p=0,007). Há diferenças nas três dimensões estudadas, de acordo com o tipo de trabalho desempenhado: os sintomas depressivos diferem entre o trabalho com doentes com COVID-19 e trabalho não clínico (5,25vs4,15.p=0,021); os sintomas de PPST, entre o trabalho clínico com e sem doentes COVID-19 (9,04vs7,88.p=0,012).
DISCUSSÃO
A proporção de PS com sintomas relevantes de depressão (25,99%) é superior à prevalência a doze meses das perturbações do humor na população portuguesa (7,9%) (36), embora a presença de sintomas depressivos não equivalha à formulação diagnóstica através de entrevista estruturada (37), como a realizada no Estudo Epidemiológico Nacional de Saúde Mental citado. Os valores encontrados enquadram-se nos reportados por estudos internacionais, embora a comparação seja difícil, dada a heterogeneidade das metodologias e instrumentos psicométricos utilizados (15).
Também a percentagem de PS com sintomas relevantes de ansiedade (40,61%) é superior à da PG e próxima dos valores reportados por estudos de outros autores (15). A percentagem de PS com sintomas de PPST (20,4%) aproxima-se de estudos realizados na China em fevereiro (27,39%) e junho (20,87%) de 2020 (18,23); no entanto, a utilização de diferentes instrumentos de avaliação nos vários estudos dificulta uma análise comparativa.
Apesar da elevada prevalência de fatores protetores para a saúde mental (estar casado/em união de fato (38); ter um nível educacional elevado (39)), as alterações recentes ao agregado familiar e/ou à atividade laboral parecem exercer maior influência. De fato, a pandemia por COVID-19 obrigou a reajustamentos em múltiplas dimensões, com a incerteza a constituir umstressorde resolução impossível apesar de tentativas sucessivas de restabelecimento dostatus quo, com consequências para a saúde mental e física (40).
A primazia da satisfação com o suporte social, em detrimento da frequência dos contatos, está em consonância com a literatura disponível, que indica que os elementos funcionais (emocionais e instrumentais) do suporte social são genericamente mais relevantes do que os estruturais- tamanho da rede de apoio, frequência do contato. Do nosso conhecimento, é a primeira vez que estes dados são confirmados durante a pandemia por COVID-19, período de condicionantes importantes aos relacionamentos interpessoais.
Curiosamente, a infeção de alguém próximo teve maior peso do que a infeção do próprio, o que se poderá relacionar com uma preocupação real com o outro, com a perda temporária de suporte e, caso haja a suspeita de ter sido o PS a origem do contágio, com sentimentos de culpa e hiper-responsabilização por um acontecimento que não pode ser reparado (41).
A associação entre doença crónica e sintomas psiquiátricos, mais evidente nos PS, poderá relacionar-se com a perceção de risco para infeção mais grave por COVID-19 (42). O impacto poderá ser superior ao registado, já que, durante a pandemia, parece haver uma tendência para o desenvolvimento de sintomas de somatização na população com doenças crónicas (43), que não são adequadamente captados nas escalas aplicadas.
Os enfermeiros e os assistentes operacionais são grupos de risco para desenvolvimento de sintomas de depressão, ansiedade e PPST, o que se poderá relacionar com um contato mais próximo e prolongado com os doentes, com maior carga de trabalho num período de tempo mais curto e com trabalho de maior exigência física (44). De realçar que os assistentes operacionais exibem outros fatores de risco para doença mental, como escolaridade inferior, além de que se encontram em número insuficiente durante a pandemia (45).
O presente estudo apresenta algumas limitações metodológicas, de que se destacam a amostragem por conveniência e a utilização de questionários de autopreenchimento, que são condicionados pela motivação do participante, desejabilidade social das respostas e dificuldades na interpretação das perguntas (46). Para além disso, deverá ainda considerar-se que a pandemia pode ter exercido um efeito desigual sobre diferentes regiões geográficas e em horizontes temporais distintos, o que limita a generalização dos resultados. Procedeu-se a nova recolha de dados em outubro de 2020 e março de 2021, que se encontram atualmente em análise e que contribuirão para enquadrar os presentes achados numa perspetiva longitudinal.
CONCLUSÕES
A pandemia por COVID-19 associa-se a níveis significativos de sintomas de ansiedade, depressão e PPST nos PS. Fatores relacionados com alterações à rotina apresentam associação significativa com estes sintomas. A satisfação com o suporte psicossocial revela-se mais importante do que a frequência do contato estabelecido. Os PS com contato próximo com os doentes COVID-19 apresentam maior risco, sendo ainda necessária maior atenção ao sofrimento manifestado pelos assistentes operacionais. Apesar de algumas limitações metodológicas, o presente estudo contribui, em primeiro lugar, para a sensibilização quanto ao sofrimento psicológico dos PS e, potencialmente, para o alívio do estigma associado à doença mental, fomentando a procura de cuidados. Para além disso, e dada a prevalência significativa dos sintomas citados, justifica-se a sua pesquisa clínica nos contatos realizados pelos profissionais de saúde dos Serviços de Saúde Ocupacional. Recomenda-se, ainda, uma articulação mais próxima entre os Serviços de Saúde Ocupacional e os Serviços de Psiquiatria e Saúde Mental (nomeadamente os NúcleosLocais deRespostadaSaúde Mentala Acidentes Graves ou Catástrofes) e o planeamento de respostas integradas que englobem campanhas de sensibilização, psicoeducação, sinalização e encaminhamento precoce. Este modelo considera as dimensões dos PS enquanto profissionais e enquanto indivíduos que necessitam, eles próprios, de assistência e pode contribuir para a desestigmatização da doença mental nesta população. Encontrando-se as intervenções limitadas por restrições de ordem prática e de saúde pública, devem ser considerados como principais candidatos os enfermeiros, assistentes ocupacionais e os PS dedicados à assistência a doentes com COVID-19, sem prejuízo de uma avaliação individualizada. As intervenções dirigidas à saúde mental em PS devem recomendar estratégias de relaxamento e de autocuidado e, num momento de quebra de continuidade, incentivar o uso de estratégias decopingindividuais que tenham sido eficazes em momentos de crise no passado. Mais especificamente, e de acordo com os nossos dados, poderão ser utilizadas estratégias focadas no enriquecimento do suporte social e na manutenção de rotinas.