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Acta Portuguesa de Nutrição

versão On-line ISSN 2183-5985

Acta Port Nutr  no.33 Porto jun. 2023  Epub 15-Fev-2024

https://doi.org/10.21011/apn.2023.3305 

Artigo De Revisão

LITERACIA ALIMENTAR: CONSTRUÇÃO DE UMA MATRIZ BASEADA NOS SEUS DOMÍNIOS E COMPETÊNCIAS DO PROCESSAMENTO DE INFORMAÇÃO

FOOD LITERACY: CONSTRUCTION OF A MATRIX BASED ON INFORMATION PROCESSING DOMAINS AND SKILLS

Joana Ribeiro1  2 

Helena Real1  3  4  * 

1Associação Portuguesa de Nutrição Rua João das Regras, n.º 278 e 284 R/C3, 4000-291 Porto, Portugal

2Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto Rua do Campo Alegre, n.º 823, 4150-180 Porto, Portugal

3Instituto Universitário de Ciências da Saúde-Cespu Avenida Central de Gandra, n.º 1317, 4585-116 Gandra, Portugal

4 1H-TOXRUN - One Health Toxicology Research Unit Avenida Central de Gandra, n.º 1317, 4585-116 Gandra, Portugal


RESUMO

A literacia alimentar consiste na capacidade do indivíduo obter, processar e entender informação relevante sobre alimentação e de utilizar os seus conhecimentos na tomada de decisão sobre o consumo alimentar, em diferentes contextos. Deste modo, maiores competências de Literacia Alimentar permitem navegar mais eficazmente nos sistemas alimentares cada vez mais complexos, e deste modo, capacitar os indivíduos para atuarem de forma autónoma na tomada de decisão contribuindo para escolhas alimentares mais salutares.

Foi objetivo deste trabalho desenvolver uma matriz teórica que combine os domínios da Literacia Alimentar com as competências relacionadas com o processamento de informação.

O desenvolvimento da matriz teve por base o conteúdo de uma revisão sistemática da literatura sobre definições de Literacia Alimentar, bem como um artigo de compilação de mapas conceptuais de Literacia Alimentar, extraindo-se daqui os domínios de Literacia Alimentar mais prevalentes. Posteriormente, por analogia a uma matriz de Literacia em Saúde, foi realizada uma adaptação aos domínios da Literacia Alimentar.

De modo a combinar os domínios da Literacia Alimentar (Planeamento e Gestão, Seleção, Preparação e Consumo) com as competências relacionadas com o processamento de informação (Aceder, Compreender, Avaliar, Aplicar), desenvolveu-se uma matriz teórica constituída por 16 dimensões de Literacia Alimentar.

Esta matriz poderá servir de base para o desenvolvimento de ferramentas de avaliação de Literacia Alimentar que incluam de forma extensiva estes conceitos e para o desenvolvimento de intervenções comunitárias e de políticas de saúde pública com vista na capacitação da tomada de decisão e mudanças do comportamento alimentar individual e coletivo.

PALAVRAS-CHAVE: Domínios; Literacia alimentar; Literacia em saúde; Matriz de literacia alimentar; Processamento da informação

ABSTRACT

Food literacy is the ability to obtain, process and understand relevant information about food and to use that knowledge to make decisions about food consumption in different contexts. In this way, greater food literacy competencies allow for more effective navigation in increasingly complex food systems, empowering individuals to act autonomously in decision-making and contributing to healthier food choices.

The aim of this study was to develop a theoretical matrix that combines the domains of Food Literacy and information processing skills. The development of the matrix was based on the content analysis of the most recent systematic review on definitions of Food Literacy, as well as on a paper compiling conceptual maps of Food Literacy, from which the most prevalent domains of Food Literacy were extracted. Subsequently, by analogy to a Health Literacy matrix, an adaptation to the domains of Food Literacy was carried out. In order to combine the domains of Food Literacy (Plan and Manage, Select, Prepare and Consume) with the skills related to information processing (Access, Understand, Evaluate, Apply), a theoretical matrix was developed composed of 16 dimensions of Food Literacy. This matrix may serve as a basis for the development of Food Literacy assessment tools that extensively include these concepts and for the development of community interventions and public health policies aimed at empowering decision-making and changes in individual and collective eating behaviour.

KEYWORDS: Domains; Food literacy; Health literacy; Food literacy matrix; Information processing

INTRODUÇÃO

A Literacia encontra-se, essencialmente, relacionada como o conjunto de competências de escrita, leitura e habilidades numéricas, das mais básicas às mais avançadas, adquiridas continuamente ao longo da vida (1).

Atualmente, a Literacia apresenta uma visão mais alargada do que o conceito convencional, indo além dessas competências básicas, compreendendo as capacidades necessárias para participar mais ativamente em atividades políticas, sociais, culturais e económicas (2).

Neste contexto, a Literacia apresenta um papel importante para o de- senvolvimento sustentável, dado que permite uma maior participação no mercado de trabalho, uma melhoria da saúde e nutrição, uma redução da pobreza e um aumento das oportunidades de vida. Assim, a Literacia é agora entendida como um meio de identificação, compreensão, inter- pretação, conceção e comunicação num mundo em rápida mudança (3). O conceito de Literacia tem vindo a ser aplicado em diferentes áreas, como são exemplos a Literacia Digital, a Literacia Financeira, a Literacia Mediática, a Literacia em Saúde e a Literacia Alimentar (4).

Relativamente à Literacia em Saúde, no caso concreto da realidade nacional, de acordo com os resultados apurados pelo Inquérito à Literacia em Saúde em Portugal, dirigido pelo Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (2013- 15), verificou-se que 11% da população portuguesa insere-se no nível de Literacia em Saúde “inadequado”, à volta de 38% corresponde ao nível “problemático”, 50% enquadram-se no nível ”suficiente” ou “excelente”, sendo que desses, apenas 8,6% apresenta nível “excelente”. Em comparação com outros países da Europa, Portugal apresenta valores no índice Geral de Literacia em Saúde ligeiramente mais baixos que a média dos restantes países (5). Segundo o Plano de Ação para a Literacia em Saúde 2019-2021, da Direção-Geral da Saúde, um dos objetivos gerais consiste na adoção de estilos de vida saudável, sendo a alimentação uma das áreas prioritárias (6).

No que se refere à Literacia Alimentar, Portugal desenvolveu a Estratégia Integrada para a Promoção da Alimentação Saudável (EIPAS), uma estratégia nacional multissectorial, que tem o objetivo de incentivar o consumo alimentar adequado e melhorar o estado nutricional da população, com efeito na prevenção e controlo de doenças crónicas, através de 4 eixos de atuação. Neste contexto, apresenta especial destaque o Eixo 3 “Promover e desenvolver a literacia e autonomia para o exercício de escolhas saudáveis” que tem como objetivo habilitar a população para realizar escolhas e adotar hábitos alimentares saudáveis (7).

Os dados de Literacia Alimentar existentes sobre a população portuguesa, até à data, são referentes à capacidade de interpretação de rótulos, ficando os restantes domínios da Literacia Alimentar por explorar (8), o que dificulta o planeamento de políticas públicas e intervenções comunitárias com vista na capacidade dos indivíduos utilizarem os seus conhecimentos e competências na tomada de decisão e mudança de comportamentos em diferentes contextos. Assim, apresenta especial relevo o desenvolvimento de uma ferramenta de medição de Literacia Alimentar adequada ao contexto nacional, com base nas recomendações e princípios defendidos pela Roda da Alimentação Mediterrânica, enquanto guia alimentar português. Adicionalmente, a inclusão dos domínios que compreendem a Literacia Alimentar (Planeamento e Gestão, Seleção, Preparação e Consumo) (9), assim como, as competências relacionadas com o processamento de informação, entre as quais, a capacidade de aceder, compreender, avaliar e utilizar/aplicar a informação (10) sobre o sistema alimentar, apresenta uma oportunidade para colmatar as dificuldades ao nível das políticas públicas e intervenções comunitárias.

Literacia em Saúde - Definições, Competências e Dimensões

O conceito global de Literacia em Saúde, definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) (1998), representa “as competências cognitivas e sociais que determinam a motivação e a capacidade dos indivíduos para aceder, compreender e utilizar a informação de forma a promover e manter uma boa saúde. Implica a obtenção de um nível de conhecimento, competências pessoais e confiança para tomar medidas para melhorar a saúde pessoal e comunitária, alterando os estilos de vida pessoais e as condições de vida”. Desta forma, a promoção da Literacia em Saúde é primordial para a capacitação da população, visto que permite melhorar o acesso às informações de saúde e promover a sua utilização eficazmente. Por outro lado, a baixa Literacia pode afetar a saúde dos indivíduos diretamente, ao limitar o seu desenvolvimento pessoal, social e cultural, e, desta forma, prejudicar o desenvolvimento de Literacia em Saúde (11).

Esta ampla definição de Literacia em Saúde proposta pela OMS, vai ao encontro da classificação proposta por Nutbeam para as competências da Literacia em Saúde como sendo Literacia Funcional, Interativa e Crítica (12):

Literacia Funcional/Básica: refere-se às competências básicas satisfatórias de leitura e escrita, que permitem um desempenho suficiente em situações da vida quotidiana.

Literacia Interativa/Comunicativa: corresponde ao conjunto das competências cognitivas mais avançadas e das competências sociais que podem ser utilizadas para o desempenho do dia-a-dia, de forma a adquirir informações e derivar significados a partir de diversas formas de comunicação e aplicar essas informações em diferentes contextos.

Literacia Crítica: representa o conjunto das competências cognitivas mais avançadas com as competências sociais, úteis para a análise crítica da informação que permita exercer uma maior influência sobre as situações da vida, com base na informação obtida.

Esta classificação sugere uma progressão nos diferentes níveis de Literacia, permitindo, gradualmente, uma maior autonomia e capacitação individual. Este progresso depende do desenvolvimento cognitivo e da exposição a diferentes informações, que por sua vez, é impactada por respostas pessoais mediadas pelas competências pessoais e sociais. Neste contexto, as intervenções para promoção da Literacia devem considerar a melhoria do conhecimento, da compreensão e a capacidade de ação dos indivíduos, assim como, os determinantes sociais, económicos e ambientais da saúde, com foco na modificação desses determinantes (12).

Sørensen e colaboradores (2012) (10) refere-se a Literacia em Saúde como o conhecimento e as competências dos indivíduos para atender às complexas demandas de saúde na sociedade moderna. Com o objetivo de rever as definições e modelos de Literacia em Saúde, estes autores realizaram uma revisão sistemática da literatura para identificar definições e marcos conceptuais, desenvolver uma definição integrada e um modelo conceptual que captasse as dimensões mais abrangentes baseadas em evidências de Literacia em Saúde. Deste trabalho resultou um modelo base para o desenvolvimento de intervenções direcionadas à Literacia em Saúde bem como para o desenvolvimento e validação de ferramentas de medição que englobem as diferentes dimensões da Literacia em Saúde. Este modelo mostra os 4 tipos de competências relacionadas com o processamento de informação:

- Aceder - capacidade de pesquisar, encontrar e adquirir informações sobre saúde;

- Compreender - capacidade de entender as informações sobre saúde à qual tem acesso;

- Avaliar - capacidade de interpretar, selecionar, julgar e avaliar as informações sobre saúde a que acedeu; e

- Aplicar - capacidade de relacionar e aplicar/utilizar as informações na tomada de decisão para a manutenção e melhoria da saúde.

Estas competências requerem características cognitivas específicas e dependem da qualidade da informação disponibilizada, do momento em que a informação é obtida, da perceção da sua fiabilidade, das expectativas individuais, do proveito percecionado, da interpretação dos resultados e da causalidade, da compreensão da linguagem e da informação.

Este modelo conceptual combinou estas quatro dimensões referentes ao processamento de informações em saúde com os três domínios da saúde - Cuidados de Saúde, Prevenção da Doença e Promoção da Saúde - tendo resultado numa matriz com 12 dimensões de Literacia em Saúde, descritos de seguida de forma detalhada:

- 4 dimensões no Domínio Cuidado de Saúde - referem-se à capacidade de aceder a informações sobre questões médicas ou clínicas, de entender, interpretar e avaliar essas informações e de tomar decisões informadas e cumprir as recomendações médicas.

- 4 dimensões no Domínio da Prevenção de Doenças - referem-se à capacidade de aceder a informações sobre fatores de risco para a saúde, de entender essas informações, de interpretar e avaliar o seu significado e de tomar decisões informadas sobre saúde e os seus fatores de risco.

- 4 dimensões no Domínio da Promoção da Saúde - referem-se à capacidade de atualização frequente sobre os determinantes da saúde no ambiente social e físico, de compreender, interpretar e avaliar essas informações e de tomar decisões informadas sobre os determinantes da saúde no ambiente social e físico.

Segundo estes autores, percorrer as etapas do processo de Literacia em Saúde em cada um destes três domínios capacita os indivíduos para assumirem o controlo sobre a sua saúde, ao aplicar os seus conhecimentos, capacidades e competências para adquirir as informações necessárias, compreendê-las, analisá-las criticamente e avaliá-las, de forma a atuar autonomamente e superar as barreiras pessoais, estruturais, sociais e económicas à saúde (10).

Literacia Alimentar - Definição e Domínios

O conceito de Literacia Alimentar não tem uma definição consensual na literatura, surgindo inúmeras definições e conceitos associados (13). Num trabalho de revisão sistemática publicado em 2021, verificou-se a existência de 51 definições distintas (14). Destas, a que surge mais vezes referenciada na literatura é a definição proposta por Vidgen & Gallegos, que explica a Literacia Alimentar como sendo o “conjunto dos conhecimentos, competências e comportamentos inter-relacionados necessários para planear, gerir, selecionar, preparar e consumir alimentos de forma a atender às necessidades e ingestão determinadas; condição que capacita os indivíduos, famílias, comunidades ou países a salvaguardar a qualidade da alimentação através do fortalecimento da resiliência em relação à alimentação ao longo do tempo”. A acompanhar este conceito, os autores apresentam um mapa conceptual que inclui 4 domínios inter-relacionados: Planeamento e Gestão; Seleção; Preparação e Consumo (9).

Recentemente, Torres e Real (2021) efetuaram uma revisão aos domínios propostos por Vidgen & Gallegos (2014), tendo complementado e enriquecido este mapa conceptual com componentes e fatores influenciadores adaptados das propostas de outros autores (9, 13, 14). Desta forma, os 4 domínios descrevem-se da seguinte forma:

1. Planeamento e Gestão

Refere-se à priorização de tempo dedicado à alimentação, ao planeamento adequado que garanta que o aprovisionamento regular dos alimentos e à capacitação para a tomada de decisões equilibradas ao nível das necessidades alimentares, nutricionais e organoléticas, tendo em consideração os recursos disponíveis, tais como: alimentos, tempo, competências culinárias, equipamentos e utensílios de cozinha (9, 13).

2. Seleção

Refere-se à seleção de alimentos e bebidas de forma ponderada através das diferentes fontes de aquisição; reconhecer a constituição dos géneros alimentícios, a sua origem, o seu método de produção e processamento, e os métodos de armazenamento e utilização mais adequados; analisar a qualidade dos alimentos; analisar e compreender a rotulagem alimentar; saber onde obter e como eleger fontes de informação fidedigna sobre nutrição e alimentação (9, 13).

3. Preparação

Refere-se à capacidade de cozinhar refeições agradáveis e nutritivas com qualquer alimento ao seu dispor, de recorrer a utensílios de cozinha e utilizá-los de forma eficaz, de alterar receitas com recurso a novos alimentos e ingredientes e de colocar em prática os cuidados básicos de higiene e segurança alimentar (9, 13).

4. Consumo

Refere-se diretamente ao consumo alimentar e as suas consequências: o impacto da alimentação no bem-estar pessoal; o equilíbrio da ingestão alimentar individual; a importância da sustentabilidade (ambiente, sociedade e economia) na alimentação; e a importância do convívio e socialização em torno da alimentação (9, 13).

Em estreita relação com estes domínios, os autores consideraram também a influência de diversos fatores, numa perspetiva mais abrangente: psicológicos, socioeconómicos, socioculturais, políticos, históricos, sistemas alimentares e sustentabilidade (13).

Ainda no trabalho desenvolvido por Torres e Real, foram analisadas 18 ferramentas de avaliação de Literacia Nutricional e Literacia Alimentar, onde as conclusões sugerem que as escalas SPFL (15) e IT-FLS (16) são as mais adequadas à população portuguesa, devido à sua abrangência quanto aos domínios incluídos e da população-alvo alcançada. Segundo estes autores existe ainda necessidade de continuar a trabalhar nesta área de forma desenvolver uma ferramenta capaz de abranger a Literacia Alimentar de forma integral e cooperar para a melhoria da saúde da população (13).

Literacia Nutricional - Definição e Limitações

Tal como a Literacia Alimentar, a Literacia Nutricional também deriva da Literacia em Saúde. Apesar de muitas vezes serem conceitos confundidos entre si, apresentam-se como distintos, uma vez que a Literacia Nutricional compreende, principalmente, as habilidades básicas de literacia e numeracia necessárias para aceder, processar e entender informações nutricionais. Por sua vez, o conceito de Literacia Alimentar é mais amplo, e inclui uma vastidão de conhecimentos teóricos e práticos e habilidades sobre alimentação e nutrição e não apenas a compreensão de informação afunilada para os nutrientes (13).

Desta forma, não se considera que a Literacia Nutricional seja suficiente para se alterar comportamentos alimentares, sendo importante um reforço mais abrangente do conhecimento sobre alimentação (17). A grande diferença entre Literacia Alimentar e Literacia Nutricional residirá no facto de a Literacia Alimentar elencar também competências para aplicar a informação derivada da capacidade de obter, compreender e apreciar informação sobre alimentação e nutrição (18), para além de realçar as habilidades que os indivíduos têm de fazer escolhas alimentares saudáveis e compreender os efeitos das suas escolhas na saúde, ambiente e economia (19).

Segundo Krause e colaboradores (2018), a Literacia Nutricional pode, assim, ser vista como um subconjunto da Literacia Alimentar, sendo a reunião dos dois uma forma de promover Literacia em Saúde (19).

OBJETIVOS

Este trabalho tem como objetivo desenvolver uma matriz teórica que combine os domínios da Literacia Alimentar (Planeamento e Gestão, Seleção, Preparação e Consumo) com as competências relacionadas com o processamento de informação (Aceder, Compreender, Avaliar, Aplicar).

METODOLOGIA

O desenvolvimento da matriz teórica teve por base a análise do artigo de revisão sistemática realizado em 2021 por Thompson C e colaboradores (14), que reuniu 51 definições de Literacia Alimentar distintas existentes na literatura, e do artigo realizado em 2021 por Torres e Real (13) que compilou 8 mapas conceptuais existentes na literatura num único mapa conceptual sobre os domínios da Literacia Alimentar e fatores influenciadores externos. Desta análise foram extraídos os domínios de Literacia Alimentar mais prevalentes. Posteriormente, por analogia à matriz desenvolvida por Sørensen e colaboradores (2012) (10), focada na combinação dos domínios de Literacia em Saúde e nos níveis de processamento de informação, foi realizada uma adaptação aos domínios da Literacia Alimentar.

RESULTADOS

Construção da Matriz Teórica

A combinação das quatro dimensões referentes ao processamento de informações (Aceder, Compreender, Avaliar e Aplicar) com os quatro domínios da Literacia Alimentar (Planeamento e Gestão, Seleção, Preparação e Consumo) resultam numa matriz com 16 dimensões de Literacia Alimentar, conforme ilustrado na Tabela 1.

Quatro dimensões da Literacia Alimentar no domínio Planeamento e Gestão, ou seja, a capacidade de aceder a informação que permita planear a ingestão alimentar, compreender e avaliar a importância de assegurar que os alimentos são adquiridos regularmente, bem como de priorizar tempo e dinheiro para a alimentação, e ainda à capacidade para tomar decisões que contribuam para o equilíbrio entre as necessidades alimentares e os recursos ao dispor.

Quatro dimensões da Literacia Alimentar no domínio da Seleção particularmente a capacidade de aceder a informações que permitam selecionar alimentos através de diferentes fontes e conhecer a sua origem, método de produção, compreender o que está num produto alimentar, o seu processamento, as suas necessidades relativamente ao tempo e temperatura de armazenamento, avaliar as fontes de informação sobre nutrição e alimentação, as informações presente nos rótulos alimentares, bem como a qualidade dos alimentos, de forma a tomar decisões informadas sobre as suas vantagens e desvantagens. Quatro dimensões no domínio da Preparação, ou seja, aceder a informações sobre boas práticas básicas de higiene e segurança alimentar, compreender informação sobre alergénios e de que formas adaptar receitas para testar novos alimentos e ingredientes, aplicar as boas práticas básicas de higiene e segurança alimentar e preparar refeições saborosas com qualquer alimento disponível, tomando decisões sobre formas de utilizar eficientemente os alimentos disponíveis, os utensílios e equipamentos de cozinha.

Quatro dimensões no domínio do Consumo, aceder a informações, entender o impacto da alimentação na saúde e bem-estar pessoal; compreender a necessidade de equilibrar a ingestão alimentar individual, a influência dos fatores externos no padrão alimentar; compreender a importância da alimentação na sustentabilidade e avaliar o seu impacto no ambiente, na sociedade e na economia e, por fim, conviver à mesa e alimentar-se socialmente.

À semelhança das etapas do processo de Literacia em Saúde, percorrer as etapas do processo de Literacia Alimentar em cada uma destas dimensões prepara as pessoas para assumir o controlo sobre a sua alimentação progressivamente, aplicando as suas competências para adquirir as informações necessárias, compreendendo essas informações, analisando-as criticamente e avaliando-as, capacitando- se a superar barreiras pessoais, estruturais, sociais e económicas para atuar de forma autónoma na tomada de decisão sobre os hábitos alimentares.

ANÁLISE CRÍTICA E CONCLUSÕES

Deste trabalho resultou uma matriz composta por 16 dimensões de Literacia Alimentar, desenvolvida com base nos domínios da Literacia Alimentar (Planeamento e Gestão, Seleção, Preparação e Consumo) e nas competências do processamento de informação (Aceder, Compreender, Avaliar e Aplicar). Esta matriz reforça o conceito de Literacia Alimentar, referindo-se às competências pessoais, sociais e cognitivas que estabelecem a capacidade individual para obter, compreender e utilizar a informação de forma a promover e manter uma alimentação adequada. Estas competências são fundamentais

Tabela 1 : Matriz dos subíndices de Literacia Alimentar baseada nos 4 domínios de Literacia Alimentar e nos 4 níveis de processamento da informação 

para a navegação nos sistemas alimentares, particularmente, devido à crescente mudança do contexto alimentar ao longo do tempo. Contudo, é de salientar que Literacia é apenas um dos fatores que influencia a tomada de decisão, dado que a alimentação é uma prática social e cultural complexa, influenciada por muitos fatores, desde fatores individuais até fatores sociais, físicos e económicos (20). Assim, a resposta a estas mudanças nos sistemas alimentares dependem do desenvolvimento cognitivo e psicossocial individual, bem como de competências anteriores e atuais, habilidades e competências da Literacia Alimentar desenvolvidas ao longo da vida e outros fatores externos (10). Tendo em conta o dinamismo do sistema alimentar e da influência dos diversos fatores externos, será expectável que as dimensões da Literacia Alimentar também possam mudar ao longo do tempo e em função da população em que a estamos a avaliar/ promover. A própria evolução da definição deste conceito assim o faz antever.

Neste contexto, esta matriz poderá servir de base para o desenvolvimento de ferramentas de avaliação de Literacia Alimentar que incluam de forma extensiva estes conceitos, que permitam a sua aplicação pelos profissionais no terreno e que contribuam para uma atuação mais direcionada em função dos resultados obtidos. Além disso, no âmbito da nutrição comunitária e saúde pública, esta matriz poderá contribuir para o desenvolvimento de intervenções abrangentes baseadas na Literacia Alimentar da população e com vista na capacitação da tomada de decisão e mudanças do comportamento alimentar individual e coletivo. Porém, as intervenções deverão basear- se não só nos níveis de Literacia Alimentar da população, mas também basear-se no contexto social, crenças e normas sociais percebidas, no contexto político e económico que se reflete nas condições de vida dos diferentes grupos sociais e económicos da sociedade com influência na alimentação, por forma a desenvolver as competências necessárias nos indivíduos para fazerem escolhas alimentares positivas e alcançarem os resultados esperados em termos de impacto nos comportamentos alimentares. Desta forma, reforça-se a importância de desenhar intervenções que complementem o conceito de Literacia Alimentar com estes vetores mencionados. Assim, uma abordagem mais abrangente permite abordar não só o comportamento individual, mas também alguns dos determinantes sociais e ambientais subjacentes a esse comportamento e obter resultados mais efetivos no que se refere à alimentação da população.

CONFLITO DE INTERESSES

Nenhum dos autores reportou conflito de interesses.

CONTRIBUIÇÃO DE CADA AUTOR PARA O ARTIGO

JR e HR: Planeamento da estrutura e conteúdos do artigo; JR: Pesquisa científica, construção da matriz e escrita do artigo; HR: Verificação final.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido: 22 de Janeiro de 2023; Aceito: 30 de Junho de 2023

*Endereço para correspondência: Helena Real Associação Portuguesa de Nutrição Rua João das Regras, n.º 278 e 284 R/C3, 4000-291 Porto, Portugal helenareal@apn.org.pt

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