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Comunicação e Sociedade

Print version ISSN 1645-2089On-line version ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.44  Braga Dec. 2023  Epub Dec 31, 2023

https://doi.org/10.17231/comsoc.44(2023).5491 

Nota Introdutória

Nota Introdutória: A Qualidade do Jornalismo

1 Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga, Portugal

2 Departament de Teoria dels Llenguatges i Ciències de la Comunicació, Facultat de Filologia, Traducció i Comunicació, Universitat de València, Valência, Espanha


Qualidade do jornalismo, no jornalismo, em jornalismo. Seja qual for a enunciação (que não é indiferente e carrega especificidades que não discutiremos aqui), trata-se de um conceito com tradição na área científica dos estudos de jornalismo e de comunicação. Nos últimos anos, contudo, por força das transformações que têm ocorrido no ecossistema mediático - em que o jornalismo opera -, nomeadamente as de caráter económico e tecnológico, este debate ganhou um interesse renovado, na busca de soluções ou estratégias que permitam compreender e abordar assuntos como, por exemplo, a necessidade de novos modelos de negócio ou de sustentabilidade do jornalismo (conforme as perspetivas teóricas que orientam o argumento), o combate à desinformação, a relação do jornalismo - e da produção de narrativas jornalísticas - com fontes profissionalizadas formais (assessorias, relações públicas) ou informais (spin doctors) ou mesmo as profundas mudanças que têm ocorrido na dinâmica das redações e nas rotinas de trabalho.

O jornalismo está, hoje, assim, no ponto de confluência de um conjunto cada vez mais vasto de problemáticas. Discute-se que a qualidade da experiência política das sociedades e dos cidadãos está diretamente relacionada com a qualidade da informação produzida pelos jornalistas e pelos média. Contudo, esta circunstância parece já não ser suficiente para salvaguardar o jornalismo das ameaças que sobre ele pendem e das crises que em torno dele se instalaram nas últimas décadas. Argumentamos, assim, que estudar e discutir a qualidade do jornalismo é socialmente relevante; é relevante para o próprio campo jornalístico e para os jornalistas; e é relevante do ponto de vista científico, para a academia.

Na base da ideia de que é socialmente relevante estudar-se a qualidade do jornalismo está o papel atribuído ao jornalismo nas sociedades democráticas e na promoção da cidadania (Adam & Clark, 2006; Carey, 1999; Curran et al., 2009; Franklin, 1997; Hackett & Uzelman, 2003; Harris, 2001; Kovach & Rosenstiel, 2003; McNair, 2000; Meier, 2019; Meyer, 2004; Patterson, 2000; Tsfati et al., 2006), ainda que a relação entre jornalismo e democracia não esteja isenta de dificuldades (Curran, 2005) e que, apesar de ser uma relação natural, não se deva daí depreender que o jornalismo tem a capacidade ou a obrigação de criar democracia (Schudson, 2003).

Sendo um tema amplamente discutido na literatura, a qualidade do jornalismo tem-se revelado um conceito complexo, multidimensional e difícil de definir e medir (Lacy & Rosenstiel, 2015; Maguire, 2005; Molyneux & Coddington, 2020; Picard, 2000, 2004; Rosenstiel & Mitchell, 2004; Shapiro, 2010). Se, por um lado, esta característica representa um desafio epistemológico e cria dificuldades na sua operacionalização empírica (mas não a torna impossível, como tem mostrado a investigação na área), por outro lado, dá-lhe a flexibilidade, muitas vezes necessária quando se trata de ecossistemas em mudança, para adquirir a capacidade de conceito operativo e articulador de outros, que muitas vezes lhe estão associados, como, por exemplo, o conceito de “credibilidade”.

Ainda que se realce a dificuldade em ensaiar definições ou apontar as formas como pode ou deve ser medida a qualidade do jornalismo, tem-se registado uma produção científica notável neste campo, com propostas diversas e orientadas para diferentes dimensões da sua operacionalização. Registam-se igualmente tentativas de organizar essa produção, por via de uma metanálise da literatura (Marinho, 2015; Pinto & Marinho, 2004). A perspetiva dos editores deste volume é a de que uma boa forma de organizar esses contributos seria em torno de três abordagens (que não são estanques ou mutuamente exclusivas): a literatura que aborda a avaliação da qualidade do jornalismo essencialmente a partir do processo e das condições de produção noticiosa; a que se centra sobretudo no produto noticioso e nos seus atributos; e a que aborda primordialmente a avaliação da qualidade a partir da receção das notícias, dos públicos e dos seus usos (incluindo a acessibilidade dos conteúdos). Gómez-Mompart e Palau-Sampio (2013), agregam estas dimensões, ao definirem a qualidade em jornalismo:

a qualidade jornalística é a expressão de diferentes processos de obtenção e gestão de informação, resultado da aplicação de padrões de equilíbrio e imparcialidade, contraste e pluralidade - de acordo com códigos éticos e padrões de autorregulação -, ao mesmo tempo que exige variedade e originalidade - nos temas e no seu tratamento -, pesquisa, estudo aprofundado e independência - em relação às condições políticas e às pressões económicas. Tudo isto impede que se desligue de condições de produção específicas e de um contexto de recepção. (p. 35)

Esta perspetiva remete-nos para outra ideia central: a de que o estudo do jornalismo e da sua qualidade é contextual e depende dos eixos que “o estruturam, condicionam e potenciam” (Pinto & Marinho, 2004, p. 576). Isto porque “o trabalho dos jornalistas é realizado num dado contexto sociocultural e num tempo, aspectos que o organizam e, por vezes, condicionam” (Marinho, 2015, p. 125).

A par desta perspetiva, não podemos deixar de anotar que a produção jornalística ocorre no quadro do ecossistema mais vasto da produção e disseminação de informação/ dados. A informação interseta hoje, como totalidade, todos os campos das sociedades contemporâneas. Neste contexto, a produção jornalística de informação constitui-se como uma das dimensões fulcrais da relação das sociedades com os fundamentos que as constituem, como um dos principais modos instituidores das narrativas que, partindo do real, explicam e sustentam a experiência social.

Contrariamente ao que constituiu o núcleo histórico da crescente centralidade social do jornalismo até ao surgimento da internet, na atualidade, a informação jornalística produz-se, cada vez mais, num imenso caldo informacional que além de a extravasar e diluir, a força, simultaneamente, a ser competitiva. Se é certo que o jornalismo ainda dispõe de uma reserva de legitimidade que qualifica autoritativamente a informação que produz, a partir, por um lado, da tradição relacionada com o papel fundamental que desempenhou no desenvolvimento da esfera pública moderna e, por outro, do conhecimento público dos mecanismos de controlo internos e externos às práticas jornalísticas - pressupõe-se que a produção jornalística seja escrutinável a partir do seu ethos e da sua praxis -, as modalidades de competição em que está progressivamente imerso estão a aproximá-lo, cada vez mais, das possibilidades de esgotamento dessa reserva. Neste sentido, as constantemente debatidas ameaças ao jornalismo não se radicam apenas nos modelos da sua sustentabilidade económica, que o colocam perante a urgência de competir por métricas de visibilidade, mas também nos modelos intrínsecos à produção informativa, que a qualificam ou não como informação de interesse público e a colocam em competição com a produção de informação não mediada por jornalistas.

Que o jornalismo sempre foi um campo de tensões, não restarão dúvidas. Ao longo dos últimos dois séculos, com a crescente industrialização da produção jornalística, e partindo da instituição das redações como coração da produção de notícias, logo, da escolha entre o que se mostra, do mundo, e o que se oculta, e da escolha entre modos de mostrar mais e modos de mostrar menos, a redação tornou-se o lugar, por excelência, onde essas tensões se têm vindo a jogar.

Neste sentido, torna-se necessário que a reflexão científica questione o aforismo simplificador que afirma que o jornalismo depende da existência de jornalistas - que situa o cerne do problema em questões como a precarização e o esvaziamento das redações, fundamentais para aferir algumas das condições de qualidade, mas insuficientes para dar conta de todas as tensões que permeiam o campo. Daí que uma análise à qualidade do jornalismo não possa alienar o estudo da atual margem de agência dos jornalistas, isto é, de que modo se conseguem exprimir, nas condições de possibilidade da produção jornalística contemporânea, as dimensões individuais do ato jornalístico (Loureiro, 2023). De facto, os jornalistas reconhecem uma degradação dos padrões de qualidade do produto jornalístico, que associam à crise do setor (Gómez-Mompart et al., 2015).

A relevância que a investigação sobre a qualidade do jornalismo pode ter para o próprio campo jornalístico e para os jornalistas contempla ainda outra dimensão: a ideia de que a qualidade do jornalismo pode ser um “investimento estratégico” (Marinho, 2015; Pinto & Marinho, 2004), ou seja, a ideia de que investir na qualidade do jornalismo compensa financeiramente; de que qualidade e negócio podem andar de mãos dadas.

Esta perspetiva - a da associação (e não necessariamente causalidade) entre investimento e receita - tem sido explorada, a partir de ângulos diversos, por vários autores (Allern, 2002; Bogart, 2004; Edmonds, 2004; Lacy & Martin, 2004; Meyer, 2004; Meyer & Kim, 2003; Rosenstiel & Mitchell, 2004). Este constitui-se como um eixo relevante, em particular quando articulado com o público/audiência: a qualidade do jornalismo como caminho para a credibilidade e para a criação/manutenção de confiança por parte do público, partindo-se do pressuposto de que mais audiência/consumo geraria mais retorno financeiro.

O jornalismo está exposto num campo onde se jogam, simultaneamente, a sua sobrevivência económica, a sua relevância social, a sua adequação aos ambientes técnicos e tecnológicos em que está imerso e as condições objetivas e subjetivas em que é produzido. Analisar a qualidade no jornalismo significa, por isso, abraçar um problema público crescentemente complexo do qual só uma abordagem científica pluridimensional poderá tentar dar conta - correndo, ainda assim, o risco de ficar sempre demasiado aquém.

Antes propusemos uma organização da literatura sobre qualidade do/no jornalismo em três abordagens: trabalhos que abordam a avaliação da qualidade do jornalismo a partir do processo e das condições de produção noticiosa; os que se centram no produto noticioso e nos seus atributos; e os que abordam a avaliação da qualidade a partir dos públicos e dos seus usos. Os oito artigos - uns de revisão teórica, outros com abordagens empíricas - que constituem a secção temática deste volume enquadram-se nas duas primeiras abordagens, o que não significa que estes textos não levem em consideração o público e a relação do jornalismo com as audiências, já que, como salientámos, não estamos perante abordagens estanques ou mutuamente exclusivas. Apenas não colocam o foco da argumentação na receção das notícias e na forma como o público usa e avalia a qualidade do jornalismo.

Enquadramos a maior parte dos contributos (cinco em oito) na primeira abordagem - a qualidade do jornalismo vista a partir do processo e das condições de produção noticiosa: o texto de Pedro Coelho, intitulado “Novas Fronteiras do Jornalismo de Investigação: Do Lobo Solitário à Alcateia”; “Uma Nova Forma de Precariedade (da Prática)? A Descompetencialização Profissional no Centro do Sequestro da Qualidade no Jornalismo”, de Tiago Lima Quintanilha; a “A Abordagem Estratégica da Qualidade em Jornalismo: Inovação, Tecnologia e Pesquisa Aplicada”, de Josenildo Luiz Guerra; o artigo “Jornalistas Locais e Fact-Checking: Um Estudo Exploratório em Portugal e Espanha”, de Pedro Jerónimo e Marta Sánchez Esparza; e “‘Não Tenho as Condições’: Como os Jornalistas de Televisão e Rádio Avaliam a Qualidade do Jornalismo em Portugal”, de Marta Santos Silva. Na segunda abordagem - a qualidade do jornalismo avaliada a partir do produto noticioso e nos seus atributos - integramos dois contributos: “A Transparência Como Dimensão da Qualidade: A Propriedade dos Média e os Desafios da (In)visibilidade”, de Alexandra Figueira e Elsa Costa e Silva; e “Responsabilização e Qualidade do Jornalismo: Instrumentos e Práticas Digitais de Accountability dos Média Portugueses”, de João Miranda. Finalmente, a secção fecha com uma revisão sistemática da literatura do conceito “jornalismo de qualidade”: “Estudo Bibliométrico Sobre Jornalismo de Qualidade na Base de Dados Scopus: Evolução do Tema e Características”, da autoria de Luisa del Carmen Martínez García e Edson Capoano.

No que toca ao primeiro grupo de textos, três abordam, de diferentes perspetivas, o papel que a evolução tecnológica pode ter na apuração da qualidade do jornalismo que é produzido e/ou da sua avaliação. Pedro Coelho, em “Novas Fronteiras do Jornalismo de Investigação: Do Lobo Solitário à Alcateia”, parte da rejeição da ideia de que todo o jornalismo é, por natureza, de investigação para eleger “a investigação jornalística como a expressão mais direta do jornalismo de qualidade” (p. 1) e “tenta identificar soluções que contribuam para que a função de cão de guarda, atribuída ao jornalismo de investigação, permaneça ativa” (p. 1). Identifica um papel para a tecnologia digital no quadro destas soluções, mas alerta para a ideia de que “o jornalismo de investigação pode estar a viver uma segunda vida, mas o risco de esse renascimento não estar a chegar a todos existe, e não deve ser omitido” (p. 15).

Tiago Lima Quintanilha, em “Uma Nova Forma de Precariedade (da Prática)? A Descompetencialização Profissional no Centro do Sequestro da Qualidade no Jornalismo”, discute os resultados de uma sistematização da literatura sobre descompetencialização profissional, para deduzir que, no caso dos jornalistas, estamos perante a criação de um novo tipo de precariedade da prática, “capaz de capturar a qualidade jornalística e que vai além das tradicionais e muito documentadas precariedades do emprego e do trabalho” (p. 1). Sendo o jornalismo uma profissão muito exposta aos efeitos e ritmos da evolução tecnológica, refere-se às implicações desta exposição “na qualidade do jornalismo e na deterioração do produto jornalístico” (p. 13), mas admite a possibilidade de a tecnologia favorecer um processo de “recompetencialização (reskilling) profissional e o resgate de um jornalismo de qualidade apoiado numa infraestrutura que se encarrega das tarefas trivializadas da profissão (pp. 13-14).

Em “A Abordagem Estratégica da Qualidade em Jornalismo: Inovação, Tecnologia e Pesquisa Aplicada”, Josenildo Luiz Guerra situa a qualidade no jornalismo como “um esforço organizacional que considera condições e demandas do cenário externo articuladas com as ações internas, desde o planejamento até à entrega do produto final” (p. 1) e propõe que seja avaliada a partir de um sistema de gestão da qualidade, entendido como “um conjunto de ações integradas, que alinha a avaliação a diretrizes da gestão editorial, processos de produção e produtos. A implementação dessa proposta requer o investimento em inovação” (p. 1), que passará, entre outros aspetos, por aproveitar o potencial tecnológico à disposição das empresas e dos jornalistas. Para o autor, esta aposta justifica-se já que “o modelo editorial vigente, sem métricas e métodos rigorosos de aferição da qualidade reivindicada pelas organizações, tem se mostrado incapaz de justificar a confiança que a sociedade deposita nos profissionais e empresas” (p. 17).

Ainda com o foco no processo e nas condições de produção noticiosa, tanto Pedro Jerónimo e Marta Sánchez Esparza como Marta Santos Silva partem da inquirição dos jornalistas, atores centrais nesta dinâmica, acerca das suas práticas e perceções. Em “Jornalistas Locais e Fact-Checking: Um Estudo Exploratório em Portugal e Espanha”, Pedro Jerónimo e Marta Sánchez Esparza entrevistam jornalistas de 12 meios regionais de Portugal e Espanha, para recolher e analisar as suas perceções e práticas sobre fact-checking (verificação de factos). Da análise emergem fatores internos (ou subjetivos) e externos que condicionam a capacidade e formas de verificar a informação: “a escassez de tempo e a ausência de pessoas suficientes para realizarem esse trabalho nas melhores condições” (p. 14); e “a confiança excessiva nas fontes oficiais, aliada por vezes à preguiça - como admitem os/as jornalistas portugueses/as” (p. 14). Um aspeto positivo é destacado: “os/as jornalistas estão conscientes do problema e de que a diminuição da qualidade da informação também reduz a confiança dos cidadãos” e “são os/as primeiros/as a interessarem-se por enfrentar estes problemas, aprendendo com as experiências e implementando novas formas de trabalhar nas redações” (p. 15).

Marta Santos Silva, em “‘Não Tenho as Condições’: Como os Jornalistas de Televisão e Rádio Avaliam a Qualidade do Jornalismo em Portugal”, através de entrevistas semiestruturadas a 11 jornalistas de rádio e de televisão em Portugal, procura responder a duas questões: como é que os jornalistas de televisão e de rádio definem o jornalismo de qualidade? E como é que os jornalistas de televisão e de rádio avaliam a qualidade do jornalismo produzido em Portugal? A análise aponta para

a falta de investimento ou financiamento das redações, a resultante redução dos recursos humanos e a falta de tempo para dedicar ao trabalho jornalístico, que é em parte resultado dessa perda de mão de obra, e em parte motivada por dinâmicas de concorrência e da velocidade do meio digital. (p. 16)

Não sendo unânimes na forma como avaliam a qualidade do jornalismo televisivo e radiofónico em Portugal, a maior parte dos entrevistados considera que “as suas condições de trabalho para produzir bom jornalismo ficam aquém do desejado” (p. 16). Percebe-se ainda que “os jornalistas são capazes e estão dispostos a fazer avaliações negativas do próprio trabalho e a justificar essas avaliações com os fatores que provocam os resultados aquém do desejado” (p. 16).

Quanto aos artigos que se centram na avaliação da qualidade do jornalismo a partir do produto noticioso e dos seus atributos, vemos esta marca em dois dos contributos da secção temática, ambos dedicados a discutir - de diferentes perspetivas - a regulação dos média: o texto intitulado A Transparência Como Dimensão da Qualidade: A Propriedade dos Média e os Desafios da (In)visibilidade”, de Alexandra Figueira e Elsa Costa e Silva, e o artigo “Responsabilização e Qualidade do Jornalismo: Instrumentos e Práticas Digitais de Accountability dos Média Portugueses”, de João Miranda. Trata-se de dois textos que, ainda que não avaliem a qualidade do jornalismo a partir da receção, do público, colocam aí a sua pertinência: informação completa, clara e transparente sobre a propriedade dos média e sobre os mecanismos de prestação de contas das empresas é condição para a criação e manutenção da confiança dos cidadãos/leitores e, em última análise, para a promoção do consumo de notícias e do interesse das pessoas (Hermans & Drok, 2018), o que não tem necessariamente implicações positivas, se pensarmos nas pressões introduzidas no trabalho dos jornalistas pela medição das audiências (Meijer, 2013), cada vez mais presente nas redações. Ao integrarmos estes artigos numa abordagem que olha para a qualidade a partir dos atributos ou características do produto jornalístico, tomamos o termo “produto” num sentido amplo, que contempla também a informação publicamente disponibilizada pelas empresas/órgãos acerca da sua natureza e dos seus procedimentos.

Em “A Transparência Como Dimensão da Qualidade: A Propriedade dos Média e os Desafios da (In)visibilidade”, Alexandra Figueira e Elsa Costa e Silva procuram, a partir das deliberações da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, “perceber de que modo o princípio da transparência dos média tem sido recebido pelo mercado em Portugal, averiguando os incumprimentos e as objeções levantadas à divulgação da informação requerida” (p. 1). A análise aponta para a “falta uma reflexão alargada sobre formas de a tornar [a transparência] um instrumento ao serviço de políticas públicas de comunicação que promovam, por exemplo, a independência e a diversidade no jornalismo” (p. 17) e que está por fazer a “capacitação pública para a discussão sobre os riscos da propriedade dos média em Portugal” (p. 16). Ou seja, as autoras realçam que “o princípio da transparência não alcança, por si só, os benefícios antecipados” (p. 16) e que a “transparência a nível da propriedade da produção não resolve a necessária transparência também a nível da distribuição” (p. 17).

João Miranda, em “Responsabilização e Qualidade do Jornalismo: Instrumentos e Práticas Digitais de Accountability dos Média Portugueses”, reflete sobre a “relação entre accountability dos média e qualidade do jornalismo, assim como sobre o potencial de novos formatos de responsabilização dos média na promoção da qualidade da informação” (p. 1), a partir de um “estudo exploratório de mapeamento e de análise do nível de implementação de mecanismos digitais de responsabilização e prestação de contas de seis projetos editoriais portugueses” (p. 1). A análise sublinha

por um lado, a realidade heterogénea e o potencial subjacente à adaptação de modelos convencionais de responsabilização para formatos online, mas também a natureza mandatada dos processos de accountability e de transparência dos média, sugerindo-se a necessidade de uma investigação mais aprofundada sobre este fenómeno. (p. 19)

Bem como

a expansão de novas oportunidades para a mobilização e para o alargamento do alcance destes processos de monitorização da qualidade do jornalismo, mas também a ampliação do potencial de participação dos utilizadores e de diálogo entre os média e o seu público. (p. 19)

A secção temática completa-se com o artigo “Estudo Bibliométrico Sobre Jornalismo de Qualidade na Base de Dados Scopus: Evolução do Tema e Característica”, da autoria de Luisa del Carmen Martínez García e Edson Capoano. Na revisão sistemática, a partir de uma amostra de 971 artigos científicos, publicados entre os anos de 1939 e 2022 e indexados na Scopus, os autores concluem que “não há definição estanque do que seja qualidade do jornalismo, mas definições dinâmicas, que respondem às demandas e debates de seu tempo” (p. 16), embora ancoradas “nos debates temáticos em que circula o campo jornalístico, como a desinformação dos anos 2020, a profusão da comunicação digital nos anos 2010 e as metodologias e gêneros que surgem e ressurgem no campo” (p. 16) ou ainda as “mudanças do ofício e das demandas sociais durante todo o período analisado” (p. 16).

Tem sido profícua, como referimos, a produção científica sobre a qualidade do jornalismo, mas defendemos, enquanto editores da secção temática deste volume, que importa que, por isso, este tema não corra o risco de sair da agenda da investigação. Trata-se de um conceito central, também pela forma como está associado a tantos outros conceitos e dimensões da prática jornalística, ao contribuir para a sua compreensão e articulação. Por esse motivo, este número da Comunicação e Sociedade visa propor à comunidade científica o desafio de refletir sobre a qualidade no jornalismo quer como campo teórico de interseção e inserção da produção jornalística na produção informacional, quer como campo de pesquisa empírica da(s) qualidade(s) que, caracterizando a produção jornalística contemporânea, a afirmam como valor inalienável da contínua construção da cidadania.

Agradecimentos

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020 (financiamento base) e UIDP/00736/2020 (financiamento programático).

Referências

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Sandra Marinho é doutorada em Ciências da Comunicação, pela Universidade do Minho, com uma tese sobre a qualidade do ensino do jornalismo. É professora na mesma instituição desde 1997, onde tem lecionado nas áreas de metodologias de investigação, teorias da comunicação e jornalismo. É investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, onde desenvolve investigação sobre a qualidade no ensino do jornalismo e sobre a qualidade do jornalismo/informação/comunicação. Integra o Barómetro de Qualidade da Informação. Tem participado em diversos projetos de investigação (nacionais e internacionais). Foi diretora da licenciatura e do mestrado em Ciências da Comunicação da Universidade do Minho e coordenou o projeto pedagógico de âmbito nacional REC | Repórteres em Construção, do qual é também uma das fundadoras. Foi diretora-adjunta do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade e integra a comissão executiva do Centro IDEA-UMinho, a estrutura que promove a estratégia de inovação pedagógica e desenvolvimento de competências do ecossistema de ensino da Universidade do Minho. É diretora do projeto jornalístico Flor do Tâmega. Email: marinho@ics.uminho.pt Morada: Universidade do Minho, Instituto de Ciências Sociais, Campus de Gualtar, 4710-057, Braga, Portugal

Luís Miguel Loureiro é licenciado em Bioquímica pela Universidade de Coimbra e doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho, onde é professor desde 2021. Foi jornalista de rádio e televisão durante 30 anos, tendo sido correspondente de guerra no Médio Oriente (guerra Israel-Hezbollah, 2006), grande repórter e jornalista de investigação, premiado individual e coletivamente. Foi corresponsável e autor das investigações jornalísticas do programa Sexta às 9 (RTP) à concessão de exploração de lítio em Portugal, que estariam na origem da investigação judicial que, em novembro de 2023, fez cair o terceiro Governo do Primeiro-Ministro António Costa. Após o doutoramento, o seu percurso académico e científico passou pela Universidade Lusófona (Porto), onde, entre 2012 e 2021, coordenou a licenciatura em Ciências da Comunicação e o mestrado em Comunicação, Redes e Tecnologias, além de ter integrado os corpos docentes dos doutoramentos em Estudos em Comunicação para o Desenvolvimento e em Artes dos Média. Lecionou, então, nas áreas da ética da comunicação e do jornalismo, jornalismo de investigação, géneros jornalísticos e ativismo em rede, e conduziu seminários de investigação. Leciona atualmente disciplinas de narrativas jornalísticas e nas diversas áreas práticas do jornalismo, em particular, do jornalismo audiovisual. Investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, coordena o Barómetro de Qualidade da Informação e tem vindo a desenvolver investigação nas áreas da sociologia da comunicação, novos média, ativismo em rede, estudos jornalísticos e estudos televisivos. Email: luisloureiro@ics.uminho.pt Morada: Universidade do Minho, Instituto de Ciências Sociais, Campus de Gualtar, 4710-057, Braga, Portugal

Dolors Palau-Sampio é licenciada e doutorada em Jornalismo (2008, Prémio Extraordinário) pela Universitat Autònoma de Barcelona. É professora de Jornalismo na Universitat de València desde 2000, trabalhou como redatora no jornal Levante-EMV durante nove anos. As suas linhas de investigação centram-se na qualidade e na ética jornalísticas, no jornalismo narrativo e digital e na análise do discurso mediático. Publicou mais de 40 artigos em revistas indexadas, entre as quais El Profesional de la Información, Communication & Society, Comunicar, International Journal of Communication e Journal of Communication Inquiry. Autora do livro Els Estils Periodístics. Maneres de Veure i Construir la Realitat (Estilos Jornalísticos. Formas de Ver e Construir a Realidade, 2005), tem mais de 30 capítulos de livros e apresentou cerca de 120 comunicações em conferências, muitas delas internacionais. Foi vice-decana de Comunicação e Participação na Facultat de Filologia, Traduccció i Comunicació de la Universitat de València. Email: dolors.palau@uv.es Morada: Facultat de Filologia, Traducció i Comunicació. Avinguda Blasco Ibáñez, 32. 46010 Valencia (España)

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