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Comunicação e Sociedade

Print version ISSN 1645-2089On-line version ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.41  Braga June 2022  Epub June 22, 2022

https://doi.org/doi.org/10.17231/comsoc.41(2022).3727 

Artigos Temáticos

Para Não Esquecer: Memória, Poder e Arquivo Malê em Narrativa Amadiana

Tatiane Almeida Ferreirai 
http://orcid.org/0000-0001-8596-3559

i Centro Universitário UNIFTC de Feira de Santana, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil


Resumo:

Neste artigo, se problematiza as relações entre o poder, a memória e o arquivo que circundam a revolta dos malês, acontecimento histórico narrado em Bahia de Todos os Santos: Guia de Ruas e Mistérios, do escritor Jorge Amado (1977), buscando compartilhar reflexões, tensionamentos e intenções que o contato com os estudos pós-estruturalistas e decoloniais podem provocar ante a história, significando um movimento de insubmissão capaz de potencializar uma crítica ao pensamento oficial e às narrativas eleitas. A resistência e a busca malê para resguardar sua identidade é uma potência expressa no livro amadiano, que denuncia a violência física, linguística, religiosa, social e histórica vivenciada pela desumanização dos corpos negros e o apagamento da história nacional dessas figuras populares que tiveram uma participação em lutas em prol da liberdade e foram silenciadas nas narrativas oficias da nação. O trabalho desenvolvido tem por intuito ainda compreender como o romancista brasileiro aborda essas estruturas forjadas nas relações de poder e de controle da história e da memória utilizadas como mecanismos para apagar identidades das minorias étnicas em solos brasileiros. Para o desenvolvimento deste estudo, foram utilizadas as concepções teóricas de Derrida (1995/2001), Deleuze (1969/2009), Foucault (1969/2008), Mignolo (2003), Grosfoguel (1996), Quijano (2005) e Reis (1986).

Palavras-chave: arquivo; poder; malê; memória; história

Abstract:

This article discusses the relations between power, memory, and the archive that surround the Malês revolt, a historical event narrated in Bahia de Todos os Santos: Guia de Ruas e Mistérios (Bahia de Todos os Santos: A Guide to the Streets and Mysteries) by the writer Jorge Amado (1977). It seeks to share reflections, tensions, and intentions that the contact with post-structuralist and decolonial studies can trigger before history, as a movement of insubmission able to potentiate a critique of official thought and the elected narratives. The Malê resistance and endeavor to protect their identity is a power expressed in Amado’s book, which denounces the physical, linguistic, religious, social, and historical violence experienced by the dehumanization of Black bodies and the erasure of the national history of these popular figures who had participation in struggles for freedom and were silenced in the nation’s official narratives. The work developed also aims to understand how the Brazilian novelist approaches these structures forged in the relations of power and control of history and memory used as mechanisms to erase the identities of ethnic minorities on Brazilian soil. The development of this study relied on the theoretical concepts of Derrida (1995/2001), Deleuze (1969/2009), Foucault (1969/2008), Mignolo (2003), Grosfoguel (1996), Quijano (2005), and Reis (1986).

Keywords: archive; power; Malê; memory; history

1. Introdução

Tomamos uma abordagem transdisciplinar dada a contemporaneidade da narrativa de Bahia de Todos os Santos: Guia de Ruas e Mistérios, do escritor Jorge Amado (1977), que nos permite dialogar com conhecimentos que estão dentro da perspectiva pós-colonial e pós-estruturalista e do pensamento decolonial, a fim de situar como a dominação moderna/colonial imersa em sua cartografia do poder envolve o acontecimento histórico referente à revolta dos malês na Bahia oitocentista. Este episódio presente na narrativa ilustra, em larga medida, não apenas a questão da memória na problematização do outro indesejado, mas a postura de resistência e de busca da identidade desse grupo e a denúncia do seu apagamento da história nacional. O silenciamento é tomado como mote para repensar questões sobre o poder, a história, a memória e o arquivo na historiografia oficial brasileira e o papel da literatura como instrumento de combate e de denúncia à violência física, linguística, religiosa, social e histórica vivenciada pelas minorias étnicas.

A narrativa amadiana burla a temporalidade, a ponto de estar imersa na perspectiva pós-colonial, pós-moderna e chegar à decolonialidade ao buscar a emancipação de tipos de dominação e opressão, no que tange, principalmente, a grupos subalternizados e à destruição de sua memória por meio das relações de poder, da desintegração dos povos e das suas culturas, dos seus saberes que incomodam, que contestam o colonialismo, os desmandos políticos e sociais que exterminam, calam comunidades, povos, intelectuais, artistas, líderes, entre outros.

O projeto pós-colonial identifica a relação de oposição entre colonizador e colonizado, tendo por objetivo denunciar as diversas formas de exploração, dominação e opressão experenciada por determinados grupos. Grosfoguel (1996) reconhece a importância dos estudos pós-coloniais e do grupo sul-asiático de Bhabha e Spivak, contudo, ressalva que eles se concentraram em apenas uma única vertente epistemológica, de pensamento pós-estruturalista, decorrente das filosofias de Foucault, Derrida e Lacan. Por isso, tem-se um problema de entendimento da modernidade, propondo assim descolonizar não apenas os estudos subalternos como também os coloniais. Contudo, aqui fazemos um trabalho de “releitura do paradigma da razão moderna” (Mignolo, 2003, p. 167), tomando as concepções teóricas de Derrida (1995/2001) e Deleuze (1969/2009), como também as epistemologias do sul-latino para a reflexão proposta, pois o pensamento decolonial não nega a razão, mas amplia o imaginário quanto à produção de saberes, histórias e produção de conhecimentos de outros povos.

As reflexões teóricas de Foucault (1969/2008), Derrida (1995/2001) e Deleuze (1969/2009) são pertinentes para a discussão de pontos importantes do presente estudo e procuramos alinhá-las com a perspectiva do pensamento decolonial que permite discutir outras questões, uma vez que não se trata aqui de uma visão do subalterno refletindo a sua condição histórica, mas sim de uma crítica ao eurocentrismo, ao silenciamento imposto ao outro inferiorizado, partindo do escritor Jorge Amado, homem e branco. Não podemos evocar a categoria “lugar de fala” em seu sentido propriamente dito para esta discussão, mas considerar distintas perspectivas para perceber a realidade. O autor Walter Mignolo (2003), que produz uma das principais bases teóricas-conceituais do pensamento decolonial, alarga a compreensão acerca do conceito de teoria, resgatando outras formas de racionalidade exteriores à modernidade eurocêntrica que teorizam as heranças da colonização através de duas vertentes. A primeira trata-se “de uma posição estritamente disciplinar, do ponto de vista de alguém para quem as heranças coloniais são um tema histórico, mas não uma questão pessoal” (Mignolo, 2003, p. 160). É uma perspectiva de uma colonialidade a partir de um lugar de não vivência imediata. Por outro lado, a segunda acontece por “alguém cujas heranças coloniais estão entranhadas em sua própria história e sensibilidade” (Mignolo, 2003, p. 161).

As duas perspectivas vão de encontro com a postura adotada pelo escritor Jorge Amado. Embora ele se visse enquanto um homem mestiço, engajado nas questões das minorias étnicas, tratava-se de um homem branco, que recobrava que a história e a memória da população afro-baiana não ficasse esquecida nos baús, como é possível notar pelos seus questionamentos através da sensibilidade presente nos trechos selecionados da obra Bahia de Todos os Santos (Amado, 1977). O escritor procurou trazer a importância memorialística e política de algumas figuras populares que fazem parte da história política e social da cidade de Salvador e da história nacional, justamente por essas serem vozes desprestigiadas e silenciadas ainda nos dias de hoje.

Uma das premissas do pensamento decolonial é, assim, “reinscrever [n]a história da humanidade o que foi reprimido pela razão moderna, em sua versão de missão civilizadora ou em sua versão de pensamento teórico negado aos não civilizados” (Mignolo, 2003, p. 158), denunciando a limitação e a violência gerada no seio da sociedade moderna e no seu conhecimento produzido, desconsiderando experiências e saberes em nome do eurocentrismo e sua supremacia hierarquizante.

Ao insistir nas ligações entre o lugar da teorização (ser de, vir de e estar em) e o lócus de enunciação, estou insistindo em que os loci de enunciação não são dados, mas encenados. Não estou supondo que só pessoas originárias de tal ou qual lugar poderiam fazer X. Permitam-me insistir em que não estou vazando o argumento em termos deterministas, mas no campo aberto das possibilidades lógicas, das circunstâncias históricas e das sensibilidades individuais. Estou sugerindo que aqueles para quem as heranças coloniais são reais (ou seja, aqueles a quem elas prejudicam) são mais inclinados (lógica, histórica e emocionalmente) que outros a teorizar o passado em termos de colonialidade. Também sugiro que a teorização pós-colonial relocaliza as fronteiras entre o conhecimento, o conhecido e o sujeito conhecedor (razão pela qual enfatizei as cumplicidades das teorias pós-coloniais com as “minorias”). (Mignolo, 2003, pp. 165-166)

Mignolo (2003) não impõe barreiras para limitar a produção do conhecimento a uma parcela escolhida dos sujeitos que são pertencentes a um espaço geopolítico determinado. Para o autor, as pessoas que passaram pela experiência de vivenciar a colonialidade estariam mais inclinadas a tratar a questão, todavia, isso não garante que irão refletir sobre essa condição ou que podem sentir dificuldade em discutir acerca da colonialidade e da diferença colonial.

O estudioso ainda entende, em sua proposta de descolonizar o conhecimento, que as macronarrativas precisam ser submetidas à perspectiva da colonialidade e rever o que se pensa a respeito da globalização, tendo em vista a mudança de posição do lugar da enunciação, abrangendo histórias locais e remapeando as culturas de conhecimento acadêmico.

A pós-colonialidade é tanto um discurso crítico que traz para o primeiro plano o lado colonial do sistema mundial moderno e a colonialidade do poder embutida na própria modernidade, quanto um discurso que altera a proporção entre locais geoistóricos (ou histórias locais) e a produção de conhecimentos. O reordenamento da geopolítica do conhecimento manifesta-se em duas direções diferentes mas complementares: 1. A crítica da subalternização na perspectiva dos estudos subalternos; 2. A emergência do pensamento liminar como uma nova modalidade epistemológica na interseção da tradição ocidental e a diversidade das categorias suprimidas sob o ocidentalismo; o orientalismo (como objetificação do lócus do enunciado enquanto, “alteridade”) e estudos de área (como objetificação do “Terceiro Mundo”, enquanto produtor de culturas, mas não de saber). (Mignolo, 2003, pp. 136-137)

Problematizar as relações entre o poder, a memória e o arquivo que circundam a revolta dos malês, acontecimento histórico narrado no guia amadiano, é a proposta desse artigo, buscando compartilhar reflexões, tensionamentos e intenções que o contato com os estudos pós-estruturalistas e decoloniais, ancoradas nas ideias de Mignolo (2003), pode provocar ante a história, significando um movimento de insubmissão capaz de potencializar uma crítica ao pensamento oficial e às narrativas eleitas provenientes da colonialidade.

Explorar a ideia de arquivo na narrativa da revolta dos malês, na obra já mencionada, é procurar fazer algumas aproximações entre a potência de memória e a arquivística presente no guia amadiano. As concepções teórico-filosóficas de Jacques Derrida (1995/2001) sobre “mal de arquivo” e o seu universo argumentativo da desconstrução, bem como as de Foucault (1969/2008) sobre saber e poder serão pertinentes para uma leitura aqui proposta.

Nesse sentido, a noção de arquivo de Derrida (1995/2001) servirá para pensar que a memória histórica passa constantemente por estágios de repressão e de manutenção, dando-se de forma consciente. O mal de arquivo teria então relação com o apagamento da memória e, consequentemente, levaria a dominações políticas, sociais e identitárias. O seu intuito é desconstruir as questões filosóficas, literárias e políticas, bem como o sistema dominante promotor da negação da existência do “outro” - ainda que faça parte dele -, através de pares binários herdeiros dos fundamentos da metafísica ocidental, que favorecem o primeiro elemento e excluem o segundo: homem/mulher, rico/pobre, natureza/cultura, forma/sentido, branco/negro, entre outros.

Em relação à América Latina, as hierarquias de origem étnico-raciais que foram construídas ao longo da expansão colonial europeia são umas das bases da “colonialidade do poder”, como é chamada por vários investigadores. Os projetos que se pretendem radicais hoje não obterão sucesso sem pôr abaixo as hierarquias coloniais/raciais de domínio branco/eurocentrado sobre os povos não-europeus, como nos lembra Mignolo (2003).

Diante do contexto da América Latina, a abertura para a diversidade epistêmica ajuda no diálogo para se pensar as diferentes realidades históricas, as experiências do presente momento e as suas memórias, que apontam para as permanências e rupturas com a hegemonia cultural.

2. Revolta e Resistência dos Malês

Tomando esta perspectiva de entendimento, nos dirigiremos à narrativa amadiana que se propõe a relatar um importante acontecimento histórico acerca da cidade da Bahia. Esta foi palco para a mobilização de povos africanos escravizados de origem islâmica, que deflagrou oposição acirrada contra três práticas comuns herdadas do sistema colonial português: a escravidão, o desmando político e a intolerância religiosa. Partindo em busca de uma coerência histórica através do conceito de arquivo e da colonialidade do poder, percebemos que a narrativa do guia relata um episódio referente a uma das revoltas que precedeu a luta em prol da abolição da escravatura e da independência do Brasil: a revolta dos malês.

De suma importância para a história do país, porém, até hoje não reconhecida e excluída dos livros didáticos escolares, o grande levante, organizado pelo povo negro de descendência muçulmana vivente na Bahia, resultou em combates que provocaram divisões no interior da cidade. O autor-narrador-personagem procurou demonstrar a importância memorialística de algumas figuras que construíram a história da cidade, mas que são vozes desprestigiadas na sociedade baiana. O fragmento a seguir versa sobre os rastros históricos, muitas vezes silenciados e esquecidos, acerca da revolta dos malês e de seu líder:

dos personagens históricos brasileiros, o meu preferido. O mais esquecido de todos, enterrado em cova funda pelos senhores de escravos, de lá ainda não foi retirado para as páginas da história, nem da que se escreve com H maiúsculo e em geral se ocupa apenas das personalidades oficialmente consentidas e consagradas, nem mesmo daquela outra história mais verdadeira, feita à margem da aprovação das classes dominantes ( ... ). Do alufá Licutã quem conhece o nome, os feitos, o saber, o gesto, a face do homem? ( ... ) Comandou a revolta dos negros escravos durante quatro dias e a cidade da Bahia o teve como seu governante quando a nação malê acendeu a aurora da liberdade, rompendo com as grilhetas, e empenhou as armas, proclamando a igualdade dos homens. Não sei de história de luta mais bela do que essa do povo malê, nem de revolta reprimida com tamanha violência. ( ... ) Maldito, o alufá Licutã espera que venha proclamar na praça pública, em meio ao povo, sua força, sua medida, sua presença de herói. Herói não somente da nação malê, herói do povo brasileiro, herói da liberdade ainda hoje em luta contra a escravidão. (Amado, 1977, pp. 27-28)

O escritor Jorge Amado (1977) propõe outra forma diferencial de tratar a história, a “escrita com H maiúsculo”, a da presença, e apresenta uma narrativa descentrada, movida pelos cruzamentos de histórias individuais e coletivas. A oposição envolvendo as ações desenvolvidas pelo par dicotômico branco (autoridades governamentais portuguesas) e negro (povo malê) é um dos pontos de nossa análise, justamente pela violenta relação entre colono e escravo, demarcadora da revolta lembrada na obra do escritor baiano. As ideias defendidas por Derrida (1995/2001) em Mal de Arquivo permitem perceber a necessidade de se inverter essas hierarquias metafísicas presentes no trecho acima, pois,

fazer justiça a essa necessidade significa reconhecer que, em uma oposição filosófica clássica, nós não estamos lidando com uma coexistência pacífica de um face a face, mas com uma hierarquia violenta. Um dos dois termos comanda (axiologicamente, logicamente etc.), ocupa o lugar mais alto. Desconstruir a oposição significa, primeiramente, em um momento dado, inverter a hierarquia. (p. 48)

A contestação de Derrida (1995/2001) a esta premissa do pensamento ocidental, de raiz logocêntrica, aponta para as estruturas hierarquizantes que o filósofo quer desconstruir, bem como o processo de arquivamento estanque, fechado enquanto representante da metafísica da presença. Entendemos que ao herói negro popular faltam condições representativas essencialistas, por isso, está fora da história oficial. Ele foge de um modelo branco aceite, pois é o elemento excluído da metafísica ocidental, “o mais esquecido de todos, enterrado em cova funda pelos senhores de escravos, de lá ainda não foi retirado para as páginas da história, ( ... ) [qu]e em geral se ocupa apenas das personalidades consentidas” (Amado, 1977, pp. 27-28).

O escritor questiona um lugar que não seja o de dominados, oprimidos e discriminados pela modernidade ocidental e faz uma contestação a partir da proposição de um novo olhar para os malês como sujeitos de sua história, ou seja, a experiência dos sujeitos subalternizados, esses outros invisíveis, que foram e ainda são violentados na sua condição de ser em decorrência do processo de conquista física e simbólica.

Jorge Amado recobra na década de 70, edição do presente guia, o resgate dessas memórias históricas coletivas de um passado para as páginas da grande história, aquela conhecida e reconhecida por todos, ou seja, o cânone ocidental. O seu intuito é cobrar a retirada desses acontecimentos dos muros do silêncio, da violência cometida não só contra os participantes do ato revolucionário em si, mas também cobrar a destruição proporcionada pela pulsão de morte que se manifesta antes mesmo desse evento tornar-se arquivo, vista a ausência de registros documentais que não asseguraram o recontar desse feito heroico. Afinal, para compor um arquivo, é necessário alguém que o autorize, que o valide, vejamos: “do alufá Licutã quem conhece o nome, os feitos, o saber, o gesto, a face do homem?” (Amado, 1977, pp. 27-28). Essa falta de registros sobre o movimento contestatório e o apagamento da imagem do militante malê aponta para a violência histórica sofrida por ele e por todo o seu povo.

A perspectiva da “colonialidade do poder”, de Aníbal Quijano (2005), permite-nos pensar na existência contínua dos modos coloniais de dominação que ainda persistem após o fim das administrações coloniais, os quais são frutos das culturas coloniais que ainda permeiam as sociedades estruturadas pelo sistema capitalista moderno, vide o fato de a revolta dos malês ser desconhecida da maioria dos brasileiros e não constar nos grandes manuais de história, nem nos livros didáticos. Diante disso, a pós-colonialidade, que nasce no interior do mito eurocêntrico, é uma falácia, tendo em vista a necessidade de descolonização dos centros metropolitanos.

Tomando como parâmetro o diferencial presente na potência do simulacro deleuziano, que estabelece sua natureza independente das características da representação, entendemos que ao herói negro popular faltam condições representativas essencialistas, por isso, está fora da história oficial. Ele é um simulacro, ele foge de um modelo branco aceite.

Esse simulacro malê emerge da profundidade, onde estava recalcado, para provocar o observador, aqui entendido como o leitor, para tirá-lo da sua zona de conforto, fazendo-o pensar acerca das imposições e dos limites enunciativos demarcados pela revitalização da história de seu poder político de resistência.

Esse trecho da obra amadiana expressa a resistência do povo malê através do compromisso com os seus saberes, com a sua cultura e identidade, materializada pela desobediência à hegemonia branca que governava a cidade e imprimia seus valores eurocentrados na sociedade baiana. A postura malê foi uma estratégia decolonial, pois os militantes deixaram marcado um questionamento à colonialidade, estabelecendo como objetivo a descolonização, pois seus projetos estiveram ligados diretamente à necessidade de transformar as relações, estruturas e instituições dominantes, ainda que em meio ao racismo. Para Quijano (2005), este é o principal fator que vai organizar a economia, a política e as diversas formas de poder e saber e a existência.

O escritor Jorge Amado aciona politicamente, assim entendemos, a força simbólica de um simulacro deleuziano (Deleuze, 1969/2009), pois questiona a história oficial por deixar à margem a trajetória do povo malê na luta por sua liberdade social, religiosa e identitária. Sendo assim, a narrativa propõe repensar os antigos dizeres sobre esse grupo indesejado, banido pelos do centro, a fim de alcançar outra potência por meio do texto literário, uma vez que é oriundo do entre-lugar da história.

Deleuze (1969/2009) faz considerações acerca do pensamento de Platão, que concebe os simulacros como erros, como cópias mal fundadas da mimese, aqui considerada como a história oficial, uma vez que é uma narrativa da nação, autorizada como tradução da realidade. A reversão do simulacro, idealizada pelo filósofo francês, serve para pensar e exigir que a história tradicional contestada no guia não seja mais o modelo eleito, pois é apenas uma verdade dentre tantas outras. Por isso, o conceito de simulacro será utilizado para recobrar o estatuto de diferença e apontar a fragmentação da identidade.

Nesse sentido, Derrida (1967/2002) recobra que se desconstruam os discursos para mostrar suas ambiguidades e as contradições, as quais norteiam o pensamento metafísico ocidental e os seus conceitos canônicos, que tendem a recalcar o segundo elemento da dicotomia. O posicionamento crítico do filósofo em A Escritura e a Diferença (Derrida, 1967/2002) questiona as vozes de mando da sociedade ocidental, ao contestar a noção de verdade e de centro que percebemos ser o cerne da história eleita:

não era um lugar fixo mas uma função, uma espécie de não-lugar no qual se faziam indefinidamente substituições de signos. Foi então o momento em que a linguagem invadiu o campo problemático universal; foi então o momento em que, na ausência de centro ou de origem, tudo se torna discurso - com a condição de nos entendermos sobre essa palavra - isto é, sistema no qual o significado central, originário ou transcendental, nunca está absolutamente presente fora de um sistema de diferenças. (Derrida, 1967/2002, p. 232)

Com base nesse pensamento, Derrida (1967/2002) desloca os domínios e traz as margens à cena da questão, uma vez que elas são a própria différance1, operador que designa o distinto, o não-idêntico, desestabilizando o centro em detrimento das diferenças, dos grupos minoritários. O herói popular malê invisível, não reverenciado pela sociedade, muito menos pela história oficial, aparece na narrativa como forma de trazer à memória essa contestação, essa busca por liberdade e justiça, ainda em curso, uma vez que o preconceito ainda impera. A narrativa vai de encontro ao discurso opressor produzido pela elite de descendência eurocêntrica, sempre creditado como verdadeiro.

Derrida (1995/2001) elabora a noção “mal de arquivo” para discorrer a respeito da preservação da memória e da história, as quais estão emaranhadas em jogos de poder que elegem o que permanece ou não no arquivo, pois a pulsão de morte quer exterminá-lo. Derrida (1995/2001) assim a define: “não é um princípio. Ela ameaça de fato todo o principado, todo primado arcôntico, todo desejo de arquivo. É a isto que mais tarde chamaremos de mal de arquivo” (p. 23). Se o arquivo se encontra reprimido, ele não terá espaço na memória, levando a consequências psíquicas (memória individual), ou social e política (memória histórica). Em relação ao evento malê, temos apenas o “desejo de arquivo”, pois a memória é um instrumento de poder, de domínio, que pode paralisar ações, logo são postos nela somente os dados que interessam a alguém, a um grupo dominante - neste caso, para a referida época do acontecimento histórico, trata-se da hegemonia branca, de descendência ocidental, dos narradores da história oficial.

O poder institucional detém o arquivo, pois seleciona as informações e as dispõe de forma conveniente, organizando as narrativas a partir de seus interesses, o que implica consequências políticas. Isso ocorre na historiografia em geral, já que a política oficial privilegia a repressão, possibilitando o “mal de arquivo”, o esquecimento provocado e, consequentemente, o apagamento da memória. Nesse sentido, o escritor cobra que os submersos da história tenham não só lugar nos arquivos, mas que sejam uma memória viva, pois o líder malê negro deve ser lembrado, reverenciado, proclamado em “praça pública, em meio ao povo, sua força, sua medida, sua presença de herói. Herói não somente da nação malê, herói do povo brasileiro” (Amado, 1977, pp. 27-28). As ideias do filósofo dialogam, de certa forma, com essa passagem amadiana inconformada com o silenciamento do passado, dessa grande personalidade da história brasileira, pois, para Derrida (1995/2001), o arquivo se articularia com o presente e o futuro, estando o passado referido nesses tempos.

As narrativas históricas se erguem através das relações de poder que selecionam, excluem e combatem fatos e personagens históricos que fogem ao controle das vozes de mando que regem uma sociedade. Tomando como parâmetro os estudos de Foucault (1969/2008) em Arqueologia do Saber, o poder é formado por jogos de força que negociam a todo o momento através de estratégias, sendo a memória uma delas, já que é construída e se liga a formas de hierarquia e de subordinação. Essas relações de poder podem ser pensadas de duas formas: a primeira se atém à seleção da memória de quem ou do que deve ser poupado do esquecimento; em segundo, trata-se dos sujeitos envolvidos no processo de criação dessa memória. Essas considerações de Foucault (1969/2008) servem para pensar que eleger uma determinada verdade como absoluta é incorrer num erro metafísico, uma vez que para a construção da memória é empreendido um movimento de repressão desta e de sentido também.

Para Pierre Nora (1993), os lugares de memória se mantêm sabendo do automatismo da memória e da sua necessidade de criar arquivos: “se o que defendem não estivesse ameaçado, não se teria a necessidade de construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que envolvem, eles seriam inúteis” (p. 13).

Nora (1993) organiza e apresenta suas distinções para memória e história, argumentando que

a memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos, estando em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações. (p. 8)

Já a história é a “reconstrução, sempre problemática e incompleta, do que não existe mais” (Nora, 1993, p. 9). E ainda, continua distinguindo, “a memória é sempre suspeita para a história, cuja função é destruí-la e a repelir” (Nora, 1993, p. 9). Este pensamento é revisitado por Beatriz Sarlo (2007) ao dizer que o passado abriga sempre o conflituoso, referindo-se ao fato de participar tanto na memória e a história: “nem sempre a história consegue acreditar na memória, e esta desconfia de reconstituição que não tenha em seu centro a lembrança” (p. 9).

As certezas provindas da noção de verdade da essência, da existência, geram o movimento da desconstrução que as burla, bem como os signos do discurso oficial da história etnocêntrica, suscitando a verificação dos seus significados, propondo um descentramento de suas estruturas de poder. De tal modo, os malês promoveram um abalo do centro a favor das diferenças, eles representavam a linguagem, o domínio intelectual e da escrita, eram a força da différance, fugiam às regras impostas. Além disso, representam um dos elementos da dicotomia que sofria exclusão, justamente por serem alvo das marcas da presença do poder.

As considerações de Derrida (1995/2001) em Mal de Arquivo dialogam com as ideias de Foucault (1969/2008), pois para ele o poder tem o domínio dos arquivos, da memória e organiza a história. Logo, estabelece a “história oficial” por onde circulam os acontecimentos, que atendem a interesses específicos, eliminando tudo o que incomoda através do controle político da memória. Conforme Derrida (1995/2001): “a democratização efetiva se mede sempre por este critério essencial: a participação e o acesso ao arquivo, à sua constituição e à sua interpretação” (p. 16). Esse acesso, constituição e interpretação do arquivo é, em outras palavras, o movimento de desvelar, de desconstruir essa construção histórica oficial, fazendo uma leitura crítica dessas formas de repressão, de significações prontas e memórias inventadas, encerradas em si mesmas, reinterpretando-as. Se tratando de documentos que nem compõem o arquivo, podemos dizer que recortes, eleições e seleções são realizados, pois, para fazer parte dele, é necessário atender a determinados requisitos que estão diretamente ligados com as relações de poder que regem uma sociedade e que negociam a produção e os sentidos das coisas através da manipulação da linguagem e dos arquivos.

Nesse sentido, a literatura serve como suplemento ao arquivo, uma vez que é um documento dotado de valor simbólico. A obra amadiana abriu espaço e recontou a história desse grupo minoritário, burlando o dispositivo de exclusão das narrativas históricas tradicionalmente autoritárias, assim como outras formas de discurso.

O escritor aciona um posicionamento político, pois questiona a história oficial por deixar à margem a trajetória do povo malê na luta por sua liberdade social, religiosa e identitária. Sendo assim, a narrativa propõe repensar os antigos dizeres sobre esse grupo indesejado, banido pelos do centro, pela voz de mando, uma vez que é oriundo do entre-lugar da história, a fim de alcançar outra potência por meio do texto que transita entre a realidade e a ficção. O centro, enquanto elemento externo à estrutura, não participa do jogo da diferença e não promove a dinamicidade no interior da estrutura. Em palavras do guia-escritor:

a repressão foi tamanha, tão desmedida, que ainda hoje a palavra malê continua como que maldita; ainda hoje a ascendência malê é escondida, silenciada, quando já as razões do medo foram esquecidas. ( ... ) Da revolta e do seu chefe pouco se sabe. Pedro Calmon tratou do assunto numa novela que parece haver se tornado, ela também, vítima do diktat dos escravagistas pois, sendo dos primeiros livros de mestre Pedrinho, não tenho notícias de que haja sido reeditado. No mais, o silêncio. É o caso de se perguntar onde estão os jovens historiadores baianos, alguns de tanta qualidade e coragem intelectual, que não pesquisam a revolta dos malês, não levantam a figura magnífica do chefe? (Amado, 1977, p. 29)

A diversidade dos povos não-europeus assim como sua diversidade epistêmica abriga conhecimentos, vivências, cosmologias e visões de mundo “outras”, com seus corpos políticos de diversas dimensões espaço-temporais vistos como “inferiores” em relação ao conhecimento dito “superior” de origem branca e europeia, selecionado por aqueles que têm uma postura ocidental de segregação fundada no racismo/sexismo epistêmico no mundo moderno/colonial e seus privilégios de narrar. Os malês se tornaram uma constante ameaça à supremacia da escravidão urbana, tanto que conseguiram desarticular o domínio militar da cidade de 25 a 27 de janeiro de 1835. Os revoltosos foram contidos ante as denúncias que impediram a concretização do projeto malê, tendo como resultado a prisão, em alguns casos, e a morte dos líderes do movimento e de seus integrantes. Os malês tinham como objetivos manter a sua cultura tão perseguida na sociedade baiana, romper com a subserviência social e econômica e combater o racismo, a intolerância religiosa e o controle intelectual. Eles dominavam a leitura, a escrita e costumavam repassar estes conhecimentos, além da prática religiosa muçulmana, a outros negros. Por tais méritos, não eram bem vistos pelos senhores de escravos, eram diferentes, indesejados.

O escritor de Bahia de Todos os Santos (Amado, 1977) reconta esse acontecimento para que ele seja narrado por outras formas de saber, pois precisa ser lembrado através do exercício da memória. O historiador baiano João José Reis (1986) reconhece a importância desse episódio e o traz para seu universo enunciativo, arquivando-o, pois este foi e ainda é alvo da falência histórica, organizada por determinados setores da sociedade baiana/brasileira, tendo em vista que esse grande acontecimento histórico ainda é desconhecido e ausente dos livros didáticos de história nacionais - narrativas desse outro tão parte da formação e da identidade brasileira. Dessa maneira, vemos como o discurso é negociado nas relações de poder existentes na sociedade. Segundo o pesquisador:

durante o interrogatório a 11 de fevereiro de 1835, Licutan recusou revelar o nome de qualquer colaborador ou discípulo seu. Negou até que ele próprio fosse muçulmano, apesar de toda prova ao contrário. Ao mesmo tempo manteve diante de si próprio, dos outros africanos que aguardavam para depor e dos interrogadores a dignidade e identidade malê. Disse ao juiz chamar-se Bilal, ao que a autoridade retrucou furiosa saber que seu nome africano era na verdade Licutan. O escravo retorquiu insolente: “Era verdade chamar-se ‘Licutan’ mas elle podia tomar o nome que quisesse”. O juiz, por ignorância, perdeu o detalhe de que Bilal é um nome islâmico muito comum e, no caso do réu, um nome carregado de singular sentido simbólico. Na tradição muçulmana Bilal é o nome islâmico do auxiliar (muezzin) negro do profeta Maomé e na África Ocidental bilal tornou-se a própria designação do cargo de muezzin (literalmente o assistente que “puxa” os fiéis na reza). A revolta continuava viva no coração de Licutan, ou Bilal, apesar do insucesso no campo de batalha. (Reis, 1986, p. 161)

A vitória contra os africanos, em 1835, foi conseguida por meio do forte aparato do branco, das denúncias aos revoltosos e de uma falta de unidade, de parceria com descendentes de africanos de religiões e etnias diferentes. Essa revolta antiportuguesa causou um clima de constante insegurança entre senhor e escravo, e não pôs fim à resistência dos que foram escravizados na Bahia. A pena recebida pelo Licutã não seria menos severa, dada à proporção de sua contestação, tendo que vivenciar uma tortura indignante, repleta de açoites e castigos:

as vítimas eram despidas, amarradas e açoitadas nas costas e nádegas. Dois locais foram escolhidos para isso: o Campo da Pólvora de novo e o quartel de Água de Meninos, mesmo lugar onde foi travada a última batalha do levante. Houve momentos em que as autoridades temeram que os açoites viessem a perturbar a paz da cidade. A sentença de 1.000 açoites do mestre malê Licutan seria executada num local “público contanto que não seja nas ruas da cidade”. (Reis, 1986, p. 270)

A partir do momento em que esses sujeitos subjugados, durante longo período da história, reagem de forma incisiva, resistente, para que não anulem seus referenciais culturais e religiosos, a sua questão se torna então pública, ganha força, apesar da convivência opressora com os valores hegemônicos da história ocidental. Tem-se assim um fluxo heterogêneo, dessemelhante, marcado pela ruptura de determinados modelos de conduta eleitos, instaurando uma identidade com a marca da diferença.

De tal modo, Bahia de Todos os Santos se adéqua à proposta literária de “recobrar a fala subalterna, recuperando a voz dos silenciados, lançando mão da reconstituição da História como base de um discurso denunciado, dirigido contra outro, hegemônico e diametralmente oposto” (Augel, 2006, p. 9), propondo uma reescritura desses relatos pretéritos sobre o país, no próprio interior do guia, da ficção, das narrativas de forma mais ampla, ao trazer esses acontecimentos e heróis populares marginalizados e esquecidos nos porões da história oficial. Reconstrói assim uma história que se ergue à margem da aprovação das classes dominantes.

Esse movimento de margem emerge da profundidade onde estava recalcado para provocar o observador, aqui entendido como o leitor, para tirá-lo da sua zona de conforto, fazendo-o pensar acerca das imposições e dos limites enunciativos demarcados pela história. São vestígios do mundo colonizado construído discursivamente a partir do olhar do colonizador que destrói quase que completamente a memória da civilização dos povos nativos e dos traficados africanos para terras brasileiras trazidos. A narração de episódios relacionados à revolta dos malês promove a revitalização de sua potência política de resistência e liberdade.

Um exemplo de realização de um texto, do efeito simbólico da literatura por meio da experiência de leitura, do impacto e do estímulo causado no receptor para a compreensão da realidade, ocorreu com a escritora Ana Maria Gonçalves. Um Defeito de Cor (Gonçalves, 2009), escrito por ela em 2009, narra, em seu prólogo, que a escritora estava à procura de um novo destino para sua vida, quando entrou numa livraria de São Paulo em busca de guias de viagem, com informações ilustradas sobre Cuba, sua cultura, história e povo. Ela se dirigiu a uma secção destinada a eles e, de repente, caíram da prateleira vários guias, mas ela só conseguiu segurar um, Bahia de todos os Santos: Guia de Ruas e Mistérios, de Jorge Amado. A partir da leitura do convite do guia amadiano, o prólogo da obra, encontrou um motivo para viajar para a Bahia em 2001, quando começou toda a sua relação afetuosa, de interesse e de instigação histórica e literária pela cidade da Bahia. Diz a escritora:

era Bahia de Todos os Santos - guia de ruas e mistérios, do Jorge Amado. Foi aí que aconteceu a primeira Serendipidade. Na época, eu estava cansada de morar em uma cidade grande, cansada da minha profissão, tinha acabado de me separar e queria vida nova, em um lugar novo, fazendo coisas diferentes e, quem sabe, realizando um velho sonho: viver de escrever. Desde o dia em que o livro de Jorge Amado caiu nas minhas mãos, eu sabia que este lugar de ser feliz tinha que ser a Bahia. (Gonçalves, 2009, p. 10)

Após esse contato inusitado com a narrativa, fruto do acaso, segundo Gonçalves (2009), que parece ficcionalizar esse encontro, decide aventurar-se no plano real pela cidade misteriosa amadiana, a ponto de querer fazer uma leitura da própria cidade narrada, de suas ruas e personagens históricos. Ela se apropria da obra e é nesse momento que a recepção se concretiza, sendo então atualizada durante o contato proporcionado pela legibilidade realizada, permitindo acontecer processos de interação, de vivências entre a obra e quem a recebe, sendo conduzida, portanto, para uma experiência artística. A partir desse momento, Gonçalves (2009) decidiu abraçar a recepção, vindo à cidade da Bahia, pois estava em busca da felicidade:

ainda na livraria, de pé diante da prateleira, abri Bahia de Todos os Santos e comecei a ler um prólogo chamado “Convite”: “E quando a viola gemer nas mãos do seresteiro na rua trepidante da cidade mais agitada, não tenhas, moça, um minuto de indecisão. Atende ao chamado e vem. A Bahia te espera para sua festa cotidiana”. ( ... ) Na hora, tive a sensação de que ele tinha escrito aquelas palavras exatamente para mim, o que foi virando certeza quando continuei correndo os olhos pelo doce e tentador convite. Bahia. A Bahia me esperava e Jorge Amado ainda estava vivo para me apresentar a ela. Num trecho mais adiante, ele mesmo dizia: “vem e serei teu cicerone”. (p. 10)

Amado construiu o guia turístico, mas com uma escrita literária, tendo em vista os seus dotes de romancista, conseguindo, portanto, atingir a emoção das pessoas, na interferência que realiza, alcançando o objetivo de fazer o “leitor(a)-viajante”, nos termos de Netto Simões (2002), transitar por um lugar desconhecido, a imaginar, sendo tocado, de alguma maneira, pelo texto que lê e assumir-se a condição de turista-leitor, quando viaja, deslocando-se ao encontro da cidade real. Ou seja, nesse momento, o escritor incide sobre o leitor e consegue, com a sua escrita poética, uma consolidação desse real, um efeito de sentido, envolvendo afetivamente o leitor, concretizando o propósito do texto. Para Iser (1976/1996), a obra literária possui dois polos: o artístico - que designa o texto produzido pelo autor - e o estético - que é a concretização produzida pelo leitor, que atualiza o texto:

o papel do leitor se realiza histórica e individualmente, de acordo com as vivências e a compreensão previamente construída que os leitores introduzam na leitura. Isso não é aleatório, mas resulta de que os papéis oferecidos pelo texto se realizam sempre seletivamente. O papel do leitor representa um leque de realizações que, quando se concretiza, ganha uma atualização determinada. (p. 78)

Em relação a Gonçalves (2009), escritora negra que se identifica com a narrativa, principalmente da seção que aborda a história dos malês, o guia a fez viajar pelo universo das palavras, depois lhe provocou o desejo de vir conferir o que fora contado sobre a força do passado, que ainda é muito presente, dada as heranças identitárias e históricas da população, das narrativas eleitas e oficiais que suprimem e apagam outras narrativas e rostos.

A narrativa épica presente no guia acerca dos feitos heroicos dos malês, com suas revoluções populares e desconhecidas dos manuais de história de grande circulação, também seduziu a leitora Ana Maria Gonçalves a querer conhecer essas histórias, espaços e lugares. Diante da surpresa do convite e da informação recebida acerca das revoluções desse grupo à margem das grandes narrativas, a escritora aceita a sugestão dada pelo escritor, para que os historiadores a estudem. Além disso, ele ainda propôs que alguém se habilitasse a escrever tal saga em um romance, pois seria um bom tema. Dessa leitura fortuita do guia, Gonçalves encontrou um motivo para escrever. A escritora resolve então vir à cidade da Bahia para conhecer, vivenciar e conferir tudo que havia lido:

acho que esqueci pelo chão os guias sobre Cuba, encantada com o que tinha acabado de descobrir, porque, apesar de não pertencer à categoria de “jovens historiadores baianos”, estava claro que era para mim a provocação sobre escrever o romance. Durante quase um ano, por meio da internet, de telefonemas para a Bahia, de buscas em livrarias, bibliotecas, sebos, e de material emprestado, pesquisei sobre os malês, escravos muçulmanos, bravos, inteligentes, e que realmente tinham sido banidos da história. Até então eu nunca tinha ouvido falar deles. Aquele foi também um ano desesperador, porque tudo que eu queria era estar na Bahia, andando pelas ruas por onde os malês tinham andado, entrando nas igrejas onde eles tinham entrado, nadando no mar no qual eles tinham nadado, pois tinha certeza de que, se não estivesse in loco, o livro não sairia. Eu acreditava que alguma coisa no ar da Bahia me faria ouvi-los e senti-los, muito mais do que apenas conhecê-los. (Gonçalves, 2009, p. 11)

O problema da história, assim como da literatura, é querer representar a realidade, e isso não é fácil, pois a verdade é ideológica. Porém, Amado (1997) extrapola a capacidade do real, indo para fora dele, ao fornecer um retrato vivo e insinuante das experiências humanas, provocando os seus leitores, fazendo-os acreditar nessas narrativas que se contadas pela história oficial talvez não atingiriam com tanto impacto a emoção das pessoas, justamente porque ele utiliza o poder encantatório da escrita de tom poético que seduz o leitor, a ponto de impulsioná-lo a querer comprovar o que leu.

Chegando à Bahia, mais precisamente em Salvador, Gonçalves (2009) pesquisou sobre os malês, mas percebeu que já havia um amplo material sobre a trajetória deles, o que a fez desistir de escrever um livro sobre tal tema, pois chegara à conclusão de que outras pessoas já tinham aceitado o convite de Jorge Amado. Porém, até hoje, o que se sabe é que essa história heróica e combativa é desconhecida do povo baiano e brasileiro. Gonçalves (2009) ainda vivencia outra experiência incomum, porque ao ir viajar para uma das ilhas pertencentes à Baía de Todos os Santos, a de Itaparica, ficou sabendo que um padre doou a uma família antigos documentos de uma velha igreja da ilha. A turista acabou encontrando esses papéis inesperadamente - pelo menos, é assim que narra -, ao conhecer um menino de 6 anos que os utilizava para fazer desenhos. Consegue com a criança e a sua família a doação desse material. Após analisá-lo, percebeu que ele estava escrito em português arcaico e que se tratava da vida de uma escrava que ninguém sabia se realmente existiu, pelo menos até aquele momento, apesar de os documentos trazerem dados reais. Pouco provável que esses papéis antigos estivessem servindo para a criança desenhar. Parece-nos que ela em seu livro quer provar a falta de importância da vida daquela escrava.

A partir deles, descobriu um pouco da vida de uma escrava cega muito especial, que viajava da África para o Brasil em busca do filho. Na travessia, ela conta sua história, marcada por estupro, violência e escravidão. Kehinde é o seu nome, é também a personagem principal do romance criado por Gonçalves (2009). Quando criança, foi capturada na África e embarcada num navio negreiro rumo ao Brasil. Chegando ao Brasil, a menina foi comprada por um fazendeiro baiano para ser acompanhante de sua filha. Durante as lições desta, Kehinde aprende também a ler e a escrever.

Depois de certo tempo, a menina é estuprada, tem um filho e, após combate existencial renhido, consegue comprar sua liberdade. Conhece Alberto, homem branco com quem se envolve, mas se separam. Kehinde pode ser Luísa Mahin ou Luísa Gama, suposta mãe do poeta Luís Gama. Ela teria se envolvido na articulação dos diversos levantes de pessoas escravizadas na Bahia do século XIX, dentre esses movimentos contestatórios, teria participado da revolta do malês. Não se sabe a veracidade da história descoberta nos documentos encontrados por Ana Gonçalves, que estão agora recontados em seu livro Um Defeito de Cor (Gonçalves, 2009), mas a escritora toma a proposta de Amado e empreende um movimento de metaficção historiográfica a fim de repensar e resgatar memórias silenciadas ao longo do tempo e oprimidas pelos discursos oficiais de poder que regem as nações.

3. Considerações Finais

A proposta amadiana é que o evento malê não se torne uma memória fixa, cristalizada, significando uma referência a uma temporalidade passada, mas, assim entendemos, que o discurso malê seja arrancado do passado, da sua inércia e que reencontre algo de sua vivacidade perdida, como podemos notar no efeito estético, de reparação histórica, causado na escritora Ana Maria Gonçalves (2009).

Portanto, o guia Bahia de Todos os Santos (Amado, 1977) não quer ser um repositório de palavras mortas, uma vez que ele tem um devir a cumprir, um dizer a leitores do presente e do futuro, que passarão a conhecer tal fato histórico nele registrado, dando-lhe sentido, independente do tempo. Com isso, a obra torna-se o lugar da différance, da diferença, do diferimento, que permite à memória da literatura problematizar questões históricas, políticas e culturais, uma vez que se caracteriza por sua capacidade de construir a memória de um povo, visando reatualizá-la para que ela não venha a ser um arquivo morto.

A postura de resistência e de busca da identidade desse grupo é exposta, bem como a denúncia do seu apagamento e silenciamento nacional. São tomados como mote para repensar questões sobre poder, história, memória e arquivo na historiografia oficial brasileira e o papel da literatura como instrumento de combate e denúncia da violência física, linguística, religiosa, social e histórica vivenciada pelas minorias étnicas.

Dessa maneira, é de fundamental importância que as diferenças culturais tenham imagens sobre si próprias e sobre as outras, bem como das relações de poder e de saber que as circundam, a fim de dar respostas epistêmicas da subalternidade ao projeto eurocêntrico da modernidade na busca por superar as relações de pobreza, invisibilidade, exploração e opressão decorrentes das relações de poder.

Referências

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1Termo francês cunhado por Jacques Derrida (1967/2002). Différance estabelece um jogo com a palavra différer significando tanto diferir quanto diferenciar. As palavras e os signos nunca evocariam o que significam para o filósofo.

2“Serendipidade então passou a ser usada para descrever aquela situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra, mas para a qual já tínhamos que estar, digamos, preparados” (Gonçalves, 2009, p. 9).

3French term coined by Jacques Derrida (1967/2002). Différance plays a game with the word différer meaning both to differ and to differentiate. Words and signs would never evoke what they mean to the philosopher.

4“Serendipity then came the term used to describe a situation where we discover or find something while looking for something else, but for which we had to be, let’s say, already prepared” (Gonçalves, 2009, p. 9).

Recebido: 03 de Dezembro de 2021; Aceito: 07 de Janeiro de 2022

Tatiane Almeida Ferreira é doutorada em literatura e cultura pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal da Bahia. É mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de Feira de Santana, especialista em teoria da literatura e produção textual e em metodologia do ensino, neuropsicopedagogia e educação especial e inclusiva. É graduada da Licenciatura em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual de Feira de Santana, é avaliadora de revistas acadêmicas, concursada pela rede pública de ensino do município de Feira de Santana. É professora do Centro Universitário UniFTC de Feira de Santana e participa no grupo de pesquisa na Universidade Federal da Bahia. Email: tatferreira3@gmail.com Morada: Av. Artêmia Pires Freitas, s/n - Sim, Feira de Santana - BA, 44085-370, Brasil

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