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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.41  Braga jun. 2022  Epub 22-Jun-2022

https://doi.org/10.17231/comsoc.41(2022).4039 

Nota Introdutória

A Restituição Cultural Como Dever de Memória

iCentro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga, Portugal

iiEscola de Ciências Humanas e Sociais, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real, Portugal

iiiDepartment of Spanish and Portuguese, College of Arts and Science, The Ohio State University, Ohio, Estados Unidos da América


O Dever de Memória, título que Primo Levi (2011) deu a um dos seus livros, consubstancia toda a lógica que está subjacente à restituição cultural, num processo que está em marcha, tendente a promover a reparação dos danos provocados pelo colonialismo. Muito embora a reparação nunca seja completamente concretizada, a atitude que lhe está subjacente pode atenuar ressentimentos, num sinal assente na diversidade e não, como quase sempre aconteceu, numa lógica unilateral, decorrente de um olhar ocidental. Através da utilização da memória, que, no caso de Levi, incidiu sobre o holocausto - a que se reporta a cunhagem da expressão “dever de memória” -, foi dado o seu testemunho enquanto judeu que foi prisioneiro dos nazis, para que nada semelhante alguma vez voltasse a acontecer. Há um urgente dever de memória tendente a reparar atrocidades cometidas em tempo colonial, através do exercício da violência por parte de quem colonizava. Por conseguinte, a ideia de “dever da memória” quer significar a responsabilidade ética de nunca esquecer.

É por resumir muito bem toda uma lógica de reparação cultural, podendo, por isso, ter um recorte muito abrangente, que o dever de memória rapidamente se expandiu para além do holocausto e se estendeu a outras problemáticas sociais, históricas e humanas, sublinhando uma atitude relativa ao compromisso de se preservar e reconhecer a diversidade cultural refém de uma gramática que silenciava, marginalizava e não autorizava a existência de vozes e posturas diferentes daquela que a lógica da colonialidade ocidental impôs por muitos séculos em vários contextos geopolíticos (Khan et al., 2021).

O passado colonial teima em persistir, quer através do discurso político, que tem repercussões no espaço público e na sociedade, quer na própria academia, não obstante o esforço em alterar este estado de coisas. Isto não faz desse processo uma tarefa fácil. Bem pelo contrário, já que se reporta às mentalidades, permanecendo para além da descolonização administrativa, que já tem quase meio século (Sousa, 2019, 2021). Só na atualidade estão a ser desenvolvidos processos tendentes a uma descolonização cultural. Mesmo que Stuart Hall (1992), no final do século XX, no quadro dos estudos culturais, tivesse anunciado o estilhaçar das categorias que davam estabilidade ao mundo social, no que foi secundado por Homi Bhabha (1994/1998), que questionou o essencialismo dessas mesmas categorias organizadoras de identidades, só muito recentemente começou a ver-se esgrimir argumentos que conduzam a uma descolonização cultural. O que implica, necessariamente, processos contestatários sobre a história, para além de novas formas de reconhecimento cultural no espaço público: “não está apenas em causa a soberania sobre esses bens, mas todo o sistema internacional do património cultural” (Jerónimo & Rossa, 2021, p. 8). Para além disso, assuntos considerados fraturantes, como são os casos do racismo sistémico, da sobrevivência de velhas lógicas coloniais de racialização e de vigilância racial, e das lutas pela igualdade de género, vão somando pontos contra o status quo. Isto traduz-se em lutas que têm a memória como pano de fundo, confundindo-se, muitas vezes, com a própria história. Com rigor, o estudo do passado exige uma postura ética, cívica e epistémica no sentido de chamar para o plano do pensamento crítico a sobrevivência de antigas lógicas de colonialidade que permeiam os contextos sociais, políticos, históricos e culturais atuais (Meneses, 2021a, 2021b). Percebemos, pelas experiências que a globalização nos oferece, que o mundo contemporâneo é interdependente e que a globalização, mesmo com todas as críticas que lhe estão associadas, permite outros modos de relacionamento. Nesse sentido, é relevante destacar neste olhar o argumento de que o mundo não é estático, nem historicamente homogéneo (Sousa et al., 2020). Importa relembrar que a matriz da modernidade ocidental foi sustentada por mecanismos incrustados em princípios como hegemonia, violência, racialização e vigilância racial praticados de acordo com a seguinte premissa: aplanar o mundo da diversidade humana à luz dos critérios que excluíam logo à partida todos aqueles que não estavam enquadrados na grande narrativa e gramática de progresso, civilização e desenvolvimento ocidentais. Esta rasura histórica e ontológica condenou ao atraso milhares e milhares de seres humanos. Nenhuma latitude do mundo escapou a esta praxis, com a modernidade ocidental a ser tentacular e ágil nos seus mecanismos e dispositivos de dominação, apropriação, regulação e exclusão (Khan & Machado, 2021).

Marita Sturken, em entrevista a Barreiros (2021), sustenta que, na atualidade, a memória é desafiada pela volatilidade dos debates entre o que as nações lembram e esquecem, confirmando a inseparabilidade entre memória e esquecimento, fazendo assim sentido o ativismo como um lugar-chave para a produção de investigação sobre a memória. Mas, quando as referências integram as denominadas “histórias do presente”, isso pode significar que “a transposição de categorias do passado para identificar os seus correlatos presentes pode servir para invocar a história como guia do presente e estabelecer causalidades imediatas” (Jerónimo & Monteiro, 2020, p. 11). Não serve, no entanto, a imaginação política e social, e muito menos se “alicerça numa forma particularmente ágil e refinada de pensar a história” (Jerónimo & Monteiro, 2020, p. 11). É nesse contexto que, na contemporaneidade, devido à vivência para o presente e à velocidade que fragmenta (ainda mais) a sociedade, se corre o risco de “presentismo”, para o qual alertava François Hartog (2003), em que tudo o que é história se converte em história contemporânea. É, porém, muito discutível a correspondência entre história e memória, como chamou a atenção Pierre Nora (1989), muito embora referisse que, face à eventualidade de não se ter memória, se acede a uma memória reconstituída para dar sentido à identidade. Talvez, por isso, “presentismo e memória-prótese constituem ( … ) as chaves explicativas para compreender a cultura da memória de finais do século XX” (Soutelo, 2015, p. 25), o que também é válido no que até agora é conhecido do século XXI.

Marianne Hirsch (2008) introduziu o conceito de pós-memória para definir a relação de uma segunda geração com experiências marcantes não vividas, “muitas vezes traumáticas, que são anteriores ao seu nascimento, mas que, não obstante, lhe foram transmitidas de modo tão profundo que parecem constituir memórias em si mesmas” (p. 103). Trata-se de uma vivência em segunda mão, por exemplo, de um passado colonial, problematizando a relação das gerações seguintes com uma época que não viveram, mas da qual têm uma memória muito viva e colada às suas experiências e vivências subjetivas. Esta perceção geracional decorre do fracasso do projeto pós-colonial ocidental e global. Com clarividência e em torno da reflexão sobre pós-memória nesta pós-colonialidade atual, Margarida Calafate Ribeiro e Fátima Rodrigues (2022) observam: “é este território imaginado como património - geográfico, sanguíneo, cultural, político - que permite descobrir uma outra história, oculta, silenciosa ou silenciada, ou até ativamente rasurada, por trauma, pudor, vergonha, ressentimento, mas que os/nos explica hoje” (p. 21). É neste mapeamento de memórias a recuperar e a reparar que o sujeito da pós-memória e da reparação histórica se torna, como lemos no pensamento de António Sousa Ribeiro (2021), “um protagonista ativo [que] põe, literalmente, em cena um conjunto de representações do passado que não se limitou a receber, antes reconstrói e reelabora no âmbito de um processo de confrontação e negociação intergeracional” (p. 15).

Consubstancia-se o que António Pinto Ribeiro (2021) fixou em relação à arte em tempo de pós-memória, em que a segunda e terceira gerações de origem de países ex-colonizados, herdeiros da questão colonial, reinterpretam, reequacionam e devolvem novas linguagens históricas sobre o passado através de interpelações multidisciplinares e de inspirações várias, como as artes visuais, literatura, artes performativas, cinema e música, para suplantar os vários silêncios de uma história maior, ativa ou inconscientemente promovida pelos outros herdeiros da questão colonial do lado da ex-metrópole. Não obstante a grande complexidade de toda a problemática, as novas dinâmicas comunicacionais potenciadas pelo advento das redes sociais banalizam - e, por vezes, contrariam - os saberes academicamente produzidos e legitimados. Por um lado, estes saberes estão mais acessíveis do que nunca ao público leigo. Por outro lado, a possibilidade de uma partilha quase instantânea de conteúdos não obedece a critérios de verificação e possibilita que, no espaço público, se observem dinâmicas assentes em lógicas beligerantes entre os alegados “bons” e “maus” de uma qualquer contenda. Corre-se assim o risco de simplificar e desvirtuar o processo científico, como assinala Diogo Ramada Curto (2021), para quem “só o exercício da história analítica, fundada em problemas, nos pode libertar do peso das memórias parciais, construídas com base em antagonismos banalizados, em que nos querem à força encerrar” (para. 7). No entanto, e no limite, esta visão redunda num paternalismo elitista, como se apenas o historiador fosse qualificado para intervir sobre estas questões na esfera pública.

Ora, faz parte do exercício da história analítica perceber que os debates sobre as reparações históricas decorrem na longa duração, confundindo-se a sua cronologia com a da própria modernidade filosófica e política. As visões maniqueístas destes debates têm um terreno mais favorável para florescer em sociedades onde, apesar da sua pertinência, estas questões têm sido pouco trabalhadas e, por isso, o seu lastro histórico é invisibilizado, como na sociedade portuguesa.

A luta pelas reparações históricas é multifacetada e conhece várias temporalidades. Como sublinha a historiadora Ana Lúcia Araújo (2017), desde pelo menos o século XVIII que pessoas escravizadas e/ou livres trabalharam para conceptualizar a ideia de reparação através de estratégias e recursos vários como a correspondência, panfletos, alocuções públicas, narrativas de ex-escravos e reclamações judiciais. Mesmo em períodos e locais em que a escravidão era legal, as pessoas escravizadas ou ex-escravizadas insistiram em expressar publicamente uma consciência da injustiça da sua situação. Em cenários em que a sua escravização era manifestamente ilegal, estas pessoas exigiram compensações, materiais e/ou simbólicas, e daqui derivam as primeiras exigências históricas por reparações (Araújo, 2017). Ainda que muitas destas permaneçam ainda hoje por satisfazer, é preciso lembrar que várias tiveram sucesso. Curiosamente, e isto deveria merecer ampla e aprofundada reflexão, foram os senhores de engenho e empreendedores nas ex-colónias inglesas e francesas do Caribe que receberam avultadas compensações financeiras pela perda de “propriedade” aquando da abolição da escravidão nessas sociedades. Em contraste, os projetos de lei que exigiam pensões para ex-escravos nunca passaram, não obstante terem mobilizado muitas vontades e gerado debates que duram até hoje (Araújo, 2017, p. 3). Um fator que é preciso levar em consideração, pois introduz uma dimensão transtemporal ao debate, é o reconhecimento pelas Nações Unidas, em 2001, da escravatura como um crime contra a humanidade (World Conference Against Racism, Racial Discrimination, Xenophobia and Related Intolerance: Declaration, 2021). As acusações de anacronismo arroladas a partir de várias direções na esfera pública contra o ativismo deixam então de fazer sentido, quando sabemos que parte da definição deste crime é o seu caráter imprescritível.

Em Portugal, o último império europeu a reconhecer a independência das suas colónias africanas, estas questões nunca tiveram grande visibilidade, desde logo porque a história da escravatura não é um campo muito cultivado pela investigação nacional, mas também porque a persistência bem tardia da escravatura nos territórios portugueses foi sempre relativizada pela falsa consciência do liberalismo. Exemplos encontram-se na caricatura que Eça de Queirós faz em O Primo Basílio (1878), com a figura do Conselheiro Acácio (Queirós, 1960), ou num discurso que Alexandre Herculano proferiu na Câmara dos Deputados em 1840 em que, procurando estabelecer o direito histórico de Portugal em relação ao que hoje é a Guiné-Bissau e contestar a ideia de “nações infames”, num contexto definido por Fernando Catroga (1999) como “imperialismo defensivo” (p. 211), acaba por relativizar o envolvimento português no tráfico de africanos escravizados:

porque se accusa o povo portuguez de ser traficante d’escravos, quando apenas vinte, trinta, ou quarenta navios andam n’esse detestavel trafico de carne humana e de servidao; quando esses mesmos vinte, trinta, ou quarenta navios são tripulados por gente de diversas Nações? (muitos apoiados). Portugal conta três milhões d’habitantes; talvez dois milhões d’elles nunca vissem um preto da Costa d’Africa. Como, pois, se ousa entornar a ignominia de cem ou duzentos homens sobre três milhões de indivíduos? (numerosos apoiados). (Cordeiro, 1886, p. 31)

Com a adoção do paradigma da ocupação efetiva na sequência da Conferência de Berlim (1884-1885), o discurso da “missão civilizadora” substitui-se ao da precedência histórica, mas sempre em articulação com a questão do trabalho indígena (Jerónimo, 2010, p. 9), na configuração dos projetos coloniais que serão levados a cabo pela Primeira República e pelo Estado Novo. Em todo o caso, com o estabelecimento de um novo regime político democrático na sequência da revolução de 25 de abril de 1974, e das independências africanas que a potenciaram, permanecem sinais de continuidade desses discursos, como por exemplo na proliferação de monumentos aos “heróis do ultramar” um pouco por todo o país, ou na homenagem feita pelo Estado a figuras controversas do anterior regime como o Tenente-Coronel Marcelino da Mata, que configuram aquilo que Elsa Peralta (2022) definiu como “a não-memória do colapso do Império” (p. 64). Aqui entramos numa outra modalidade das reparações históricas, essencialmente simbólicas, da luta pela representação no espaço público, e que teve desenvolvimentos importantes um pouco por todo o mundo no rescaldo dos protestos pela morte de George Floyd em 2020.

Em Portugal, e na cidade de Lisboa, uma cidade pesadamente marcada por estátuas e monumentos que celebram a memória colonial, a instalação, por parte de um consórcio que incluiu a Câmara Municipal de Lisboa e a Santa Casa da Misericórdia, de uma estátua que celebra o suposto pioneirismo humanista do jesuíta António Vieira (1608-1697) no Largo Trindade Coelho despoletou acesa controvérsia e ações de protesto que incluíram intervenções físicas e simbólicas de diversa índole, em relação a uma figura histórica que permanece consensual em Portugal possivelmente na medida do enorme desconhecimento em relação à sua obra, e nomeadamente dos textos em que a sua apologia da escravização de africanos é mais clara e contundente (Pereira, 2018, pp. 166-167).

Embora as mentalidades estejam a mudar, o certo é que os museus etnográficos, que ajudaram a construir parte do conhecimento que deu corpo à antropologia (Brito, 2016), pouco se têm alterado ao longo dos tempos. Isto, para Dan Hicks (2020), significa que o museu é um lembrete de que existem muitos espaços que ainda não são pós-coloniais, porque desde logo foram feitos para serem assim, uma vez que certas instituições foram construídas para cimentar o projeto do colonialismo, e assim naturalizá-lo e justificá-lo, fazendo-o perdurar.

No livro que publicou em 2020, intitulado The Brutish Museums. The Benin Bronzes, Colonial Violence and Cultural Restitution (Os Museus da Brutalidade. Os Bronzes de Benin, Violência Colonial e Restituição Cultural), Hicks (2020) argumenta que o que os museus britânicos mostram remete para a brutalidade colonial, onde se encontram os bronzes de Benin (Nigéria), que foram roubados durante um ataque naval britânico em 1897, e que se encontram hoje no Museu Britânico e dispersos em coleções públicas particulares espalhadas pelo mundo, incluindo Portugal. Defende, por isso, a sua restituição à origem, como em todos aqueles casos em que se verificarem os mesmos pressupostos. Não se trata de devolver tudo e, em consequência, de ter de fechar museus, mas de retribuir quando isso é solicitado, sendo que a restituição de coleções pode fornecer novos impulsos em vários lugares do mundo. Isto não constitui um dado novo, bastando reportar-nos à década de 1980, em relação à devolução de restos humanos do holocausto, e à consequente devolução de objetos que foram saqueados pelo regime nazi. Na altura, isso configurava uma questão controversa, acabando por tornar-se num assunto absolutamente normal em todos os museus da Europa e da América.

Claro que, no que concerne aos museus, a restituição pode trazer ao de cima lacunas difíceis de resolver. Achille Mbembe (2018) escreveu um texto sobre se a restituição de artefactos africanos equivaleria a permitir à Europa ter a oportunidade de obter uma espécie de consciência tranquila a baixo custo. Em Necropolítica, sublinha que isso decorre do colonialismo extrativista em curso no presente, mas cuja ideologia remonta ao século XIX, não obstante o seu ressurgimento, travestido de capitalismo, na contemporaneidade. Assim, defende que o ponto de partida para a reflexão deveria ser, não o museu, mas sim, aquilo a que chama de “anti museu”, uma vez que o museu constitui um espaço mumificado, sendo necessário humanizá-lo, o que implica proceder à já propalada descolonização do conhecimento, mudando a forma como se pensa ou se reflete sobre as coisas. É uma ação necessária e urgente, no que pode ser uma das principais lições a serem tiradas do relatório de Sarr e Savoy (2018), que veio alterar, ainda que de forma lenta, o estado de coisas. Prova disso são as notícias relativas à devolução de artefactos, numa lógica mais de memória do que de história, já que os museus são instituições de memória, não existindo apenas para contar a história, mas para relembrar e refletir sobre quem somos e como chegamos até aqui. Isto envolve fluidez e flexibilidade na ligação com o passado e com o presente e está nos interstícios do passado colonial, nas necessidades do presente, na restituição do património, nas agendas da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura e de outras organizações internacionais, doadores, e agências de financiamento, ratificando a ideia de que a restituição não é subtração. Por outro lado, e num recente estudo, Bénédicte Savoy (2022) sublinha o quanto a questão das restituições patrimoniais, que agora de novo se discutem, nada tem de novo, datando as primeiras exigências do período das lutas anticoloniais e das independências que se verificaram após a Conferência de Bandung (1965), e o debate mais aceso a partir de meados dos anos 70 do século passado, naquilo que a historiadora classifica como uma “derrota pós-colonial” (Savoy, 2022, p. 3).

As memórias, as narrativas, os manifestos, os ativismos sociais e os debates em torno do reconhecimento e da reparação histórica transformaram-se do ponto de vista cultural e político num terreno fértil e num compromisso de introspeção histórica onde se travam combates desafiantes pela construção de uma narrativa mais justa, equitativa e reparadora. O confronto ao sistema colonial até ao pós-colonialismo foi um caminho duro, magoado e tortuoso, que, por isso, exige uma definição de dever de memória coletiva. Para compreendermos hoje os legados dessa colonialidade moderna, é relevante colocar no cerne do debate académico e civil as múltiplas vozes e as narrativas que ajudam a contribuir para um mapeamento mais profundo e compreensivo dos mecanismos do passado colonial ainda ativos na nossa contemporaneidade. Os textos que dão voz à urgência histórica e cívica, que este dossiê temático procurou concretizar, vieram ao encontro deste desafio e compromisso.

A secção temática abre com artigos em que os livros são o objeto de análise. Sandra Sousa mapeia o papel da literatura como um espaço de vigilância contemporânea das reparações históricas em contextos geopolíticos entre si ligados pela experiência ocidental colonialista e colonizadora. Margarida Rendeiro revela no seu estudo como as narrativas de autoria portuguesa afrodescendente desestabilizam imaginários cartográficos para com estes refletir, por um lado, as vivências pós-coloniais afrodescendentes e, por outro, como estas narrativas são ferramentas para processos ativos de reparação histórica. Já Susana Pimenta analisa a forma como a condição pós-colonial e mestiça da geração da pós-memória confronta as desigualdades sociais, culturais e históricas, chamando a si a responsabilidade de uma escolha ética de diálogo crítico e interventivo com os legados do passado da modernidade ocidental.

De seguida, Gustavo Freitas e Ana Teresa Peixinho fundamentam, com uma atenção ímpar, como a análise de imagens de um passado entre Portugal e Angola, em 1960, anos da insurgência angolana que resultou na Guerra Colonial, continua refém de uma gramática identitária ligada a processos seletivos de memória coletiva e nacional de duas nações, hoje, emancipadas e, contudo, interligadas entre si no que à história entre estes dois países diz respeito. Patrícia Sequeira argumenta, no seu texto, como a abordagem pós-colonial dentro da cultura visual é ambivalente, por ignorar o problema da legitimidade e da posição de fala do artista e/ou intelectual. Nesse sentido, a autora reforça o pensamento da ausência de uma atenção maior na relação entre conhecimento e visibilidade e entre poder e visibilidade.

Diogo Goes oferece uma reflexão singular sobre as fenomenologias da não identificação com o património cultural e artístico, nomeadamente, o arquitetónico e o escultórico, instalado no espaço público urbano. Nesse sentido, o autor estabelece as relações entre os fenómenos iconoclastas, as mitografias contemporâneas e as práticas discursivas pós-coloniais e neocoloniais, abordando as problemáticas sociais e políticas subjacentes ao racismo, que poderão estar na origem das práticas de iconoclastia contra o património. Tatiane Almeida Ferreira problematiza as relações entre o poder, a memória e o arquivo que circundam a revolta dos malês, acontecimento histórico narrado em Bahia de Todos os Santos: Guia de Ruas e Mistérios, do escritor Jorge Amado (1977), apresentando reflexões, tensionamentos e intenções que o contato com os estudos pós-estruturalistas e decoloniais podem provocar na história, significando um movimento de insubmissão capaz de potencializar uma crítica ao pensamento oficial e as narrativas hegemónicas. Luca Bussotti e Laura António Nhaueleque refletem em torno do facto de a questão étnica nunca ter constituído um elemento explícito na construção do Estado moçambicano. De acordo com os investigadores, esta ausência caracterizou a vida pública do país, com tensões relevantes, mas geralmente negligenciadas. Nesse sentido, o estudo apresenta evidências de como o longo processo de esquecimento étnico foi, em boa verdade, um programa político pensado e implementado desde a luta de libertação e que continuou, com as necessárias adaptações, até hoje, influindo diretamente na difusão da produção cultural e artística local.

O espaço para os artigos termina com questões em torno da discriminação. Lorenzo Dalvit concentra a sua análise em histórias relacionadas com questões que receberam ampla cobertura dos meios de comunicação, como a saúde mental, brutalidade policial e violência baseada no género. Com esse objetivo, procura problematizar o discurso eurocêntrico de direitos humanos que influencia os debates públicos e académicos. Na sua análise, toma como preocupação analítica a ligação entre os atuais entendimentos de (in)capacidade e o legado de um violento passado colonial e do apartheid. Rovênia Amorim Borges apresenta uma análise minuciosa no âmbito dos estudos decoloniais, partindo do mapeamento da interseccionalidade entre raça e domínio de língua inglesa em estudantes do Brasil em Portugal e nos Estados Unidos. Esta análise demonstrou que os constrangimentos que resultam das (in)comunicações interculturais entre estudantes do Brasil e de Portugal podem ser explicados pela reverberação, na contemporaneidade, da colonialidade do ensino da língua portuguesa nos dois países, experiências e perceções que potenciam a emergência de um “despertar descolonial”. Já Camila Lamartine e Marisa Torres da Silva exploram criticamente a utilização do ciberespaço como campo de denúncia e ativismo feminista através de estudo de caso do perfil @brasileirasnaosecalam, a partir da análise de conteúdo. O projeto surge na rede social digital Instagram com o intuito de denunciar, de maneira anónima, assédios, discriminações e preconceitos que mulheres imigrantes brasileiras sofrem em Portugal, especificamente por carregarem consigo a sua própria nacionalidade. Assim, através do ciberativismo, também feminista, as autoras mostram como as mulheres dispõem de um novo ciclo político de oportunidades impulsionado pela construção e consolidação de laços entre elas no âmbito de uma partilha global.

Finalmente, este dossiê temático integra, de Pedro Costa, uma recensão crítica em torno dos caminhos da contestação à reflexão sobre patrimónios culturais e históricos, e, de Rosa Cabecinhas e Miguel Barros, uma entrevista em torno da produção do conhecimento, comunicação intercultural e reparação histórica.

A secção “Varia” acolhe trabalhos que representam um contributo para a compreensão dos fenómenos de comunicação e para a leitura da realidade social e cultural. Neste volume, oferece-se ao leitor uma análise da relação entre a internet e os média sociais e o nível de engagement com as marcas. Com um enfoque no grupo de consumidores com idades entre os 55 e os 75 anos - neste artigo retratado como o segmento de “imigrantes digitais” ou baby boomers -, María Victoria Carrilllo-Durán, Soledad Ruano-López, M-Rosario Fernández-Falero e Javier Trabadela-Robles realizaram um estudo assente em sessões de grupos focais em Portugal e em Espanha. Os investigadores da Universidade de Extremadura procuraram analisar o uso que os baby boomers fazem das redes sociais, as razões por que aderiram a estas plataformas e o comportamento que têm na relação com estes espaços de interação. Identificando a socialização como uma das principais motivações deste grupo etário na utilização de redes sociais, os autores concluem também que “as marcas parecem não falar a mesma linguagem deste público” (p. 261) nem conseguem criar um vínculo relacional forte com os mais velhos.

Agradecimentos

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020 (financiamento base) e UIDP/00736/2020 (financiamento programático).

Referências

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Sousa, V., Khan, S., & Ribeiro, R. (Eds.). (2020). O mundo na Europa. Crises e identidades. Húmus. https://hdl.handle.net/1822/68605 [ Links ]

Soutelo, L. C. (2015). A memória pública do passado recente nas sociedades ibéricas. Revisionismo histórico e combates pela memória em finais do século XX [Tese de doutoramento, Universidade do Porto]. Repositório Aberto. https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/83844Links ]

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Vítor de Sousa é doutorado em ciências da comunicação (teoria da cultura), pela Universidade do Minho, com a tese Da “Portugalidade” à Lusofonia, mestre e licenciado na mesma área. Entre os seus interesses de investigação constam questões em torno da identidade nacional, memória, estudos culturais, educação para os média e teorias do jornalismo. É investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (Universidade do Minho), onde coordenou o grupo de estudos culturais (2021-2022) e é cocoordenador do Seminário Permanente de Estudos Pós-coloniais. Integra o projeto Memórias, Culturas e Identidades: O Passado e o Presente das Relações Interculturais em Moçambique e Portugal e o Museu Virtual da Lusofonia. É sócio da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação, onde coordena o Grupo de Trabalho de Comunicação Intercultural (2022-2023), da European Communication Research and Education Association e da Modern Language Association of America. Email: vitordesousa@ics.uminho.pt Morada: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga

Sheila Khan é socióloga, investigadora do Centro de Estudos em Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, professora auxiliar convidada da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e comentadora do painel do programa Debate Africano na RDP África. É doutora em estudos étnicos e culturais pela Universidade de Warwick. As suas mais recentes publicações são: Portugal a Lápis de Cor. A Sul de uma Pós-Colonialidade (Almedina, 2015); Visitas a João Paulo Borges Coelho. Leituras, Diálogos e Futuros (com Nazir Can, Sandra Sousa, Leonor Simas-Almeida e Isabel Ferreira Gould, Colibri, 2017); O Mundo na Europa: Crises e Identidade (com Rita Ribeiro e Vítor Sousa, Húmus, 2020); Racism and Racial Surveillance. Modernity Matters (com Nazir Can e Helena Machado, Routledge, 2021); e, finalmente, Djaimilia Pereira de Almeida: Tecelã de Mundos Passados e Presentes (com Sandra Sousa, no prelo). Email: sheilakhan31@gmail.com Morada: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga

Pedro Schacht Pereira é professor associado de literaturas de língua portuguesa no Departamento de Espanhol e Português da Universidade Estatal de Ohio. Fez parte da equipa que criou, em 2012, o Programa de Doutoramento em Estudos do Mundo Lusófono na mesma universidade. É licenciado em filosofia pela Universidade de Coimbra (1993) e doutorado em estudos portugueses e brasileiros pela Universidade de Brown (2005). Investiga a representação da negritude na literatura portuguesa, literatura portuguesa de autoria negra, colonialismo e pós-colonialismo na literatura portuguesa. Email: pereira.37@osu.edu Morada: Department of Spanish and Portuguese, The Ohio State University, 298 Hagerty Hall. 1775 College Road. Columbus, OH. 43210

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