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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.21 Lisboa jun. 2024  Epub 30-Abr-2024

https://doi.org/10.48751/cam-2024-21339 

Recensão

Gomes, R. M., & Ó, J. R. do (Eds.). (2023). A urgência da palavra impressa: A imprensa dos «intrépidos adolescentes» contra a ditadura (1970-1974). Tigre de Papel.

i Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, luis.farinha@sapo.pt


O livro desvenda o plano acelerado de mobilização e sindicalização da juventude académica liceal de Lisboa nos anos que antecederam de perto a Revolução de 25 de Abril de 1974. A decisão da nova população estudantil, como explicam os editores/autores, era a de “Tomar a palavra: falar e escrever”. O movimento associativo-estudantil que tinha emergido com a CPA dos Liceus (Comissão Pró-Associação dos Estudantes do Ensino Liceal de Lisboa) em meados dos anos 60 - ainda muito voltado para a denúncia das debilidades da ação pedagógica de uma escola fechada e elitista -, transmutara-se no início da década de 70. De 1970 a 1974, a população liceal crescera mais de 50% - de 14 870 para 22 994 estudantes. Continuava a ser uma minoria - mas menos escassa que anteriormente e, principalmente, mais aberta a outros setores sociais menos favorecidos e a outros locais menos centrais da Grande Lisboa: Amadora, Olivais, Almada, são exemplos de como o mundo estudantil deixara de se confinar ao Liceu Camões, ao Pedro Nunes ou aos liceus femininos D. Filipa de Lencastre e Maria Amália Vaz de Carvalho. Mesmo escolas industriais e comerciais como a Veiga Beirão tinham na altura uma população estudantil que se deslocava de longe - de Sintra ou do Barreiro. Trata-se, na verdade, dos efeitos da Reforma Veiga Simão, uma adaptação de política educativa do Marcelismo ao novo tempo do país, muito dividido entre a África e a Europa, com uma Guerra Colonial de permeio e muitos milhares de mortos e feridos que o (novo) Ditador já não conseguia justificar à esmagadora maioria da população portuguesa.

A grande mudança iniciou-se com a crise académica de 1969, profunda nos meios universitários e também nos meios operários e políticos oposicionistas, todos eles confrontados com a “continuidade” de um regime político obsoleto. Como os editores/autores explicam, o MAEESL (Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa), criado em 1967, ganhou um novo fôlego em 1970. Sinal disso mesmo são os numerosos boletins que surgem, alguns com bastante regularidade, pelos maiores e mais dinâmicos liceus da Grande Lisboa, editados uns pelos núcleos liceais do MAEESL e outros por “Grupos de Estudantes” que se autonomizavam do movimento associativo-estudantil para se afirmarem como movimentos políticos clandestinos, atuando na sombra da atividade académica. Uns e outros nunca deixaram de declarar a intenção de “partir da base”, da turma, da crítica da ação pedagógica e das enfermidades das instalações e do sistema de ensino. Mas, na verdade, a sua intenção rapidamente foi ultrapassada pela sindicalização de evidente cariz político, imposta pelas circunstâncias. E as circunstâncias eram próprias do tempo: uma sociedade paralisada pelo arcaísmo e pelo medo da opressão/repressão ditatorial, e exposta a fissuras cada vez mais abertas e demolidoras. No mundo estudantil, no mundo sindical (com a criação da CGTP-IN) e mesmo nos quartéis, onde a conscrição (imposta) de oficiais milicianos alterou o quadro hierarquizado da caserna.

A inspiração chegava de cima, chegava de longe, dos setores sociais que se moviam internamente contra o regime ditatorial fascista, mas também de longe, da cultura contestatária que emergiu em França no “Maio de 68” ou da cultura do Woodstock que se manifestava contra a Guerra do Vietname, como se refere no livro. Não explicam os editores/autores (porque esse não é explicitamente o seu objetivo), como se apoderaram os estudantes liceais do verbo “truculento e insubmisso” que alimenta muita da sua escrita. Mas não deixam de abrir uma porta para a nossa compreensão: os boletins eram produzidos nas reprografias das academias universitárias (Medicina, Económicas, Técnico) e os textos escritos sem autoria, embora da responsabilidade do grupo. Mas este é um tema para um trabalho mais fino e mais denso - da história ou da sociologia dos movimentos estudantis que, seguramente, será feito no futuro.

Interessante é a forma como os autores explicam a decisão pelo trabalho a que puseram ombros. Rui M. Gomes, um dirigente do MAEESL entre 1971 e 1974, afirma que o trabalho lhe foi sugerido pela circunstância de, em 2021, ter ido, pela primeira vez, consultar o seu processo policial ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Deparou, como refere, com material apreendido daquela época que julgava perdido. Por outro lado, afirma que sempre tinha evitado estudar o assunto por lhe parecer que um ator privilegiado daqueles acontecimentos seria sempre um mau intérprete, por falta de objetividade. Ora, o que se prova com este trabalho é que não só Rui M. Gomes, e Jorge Ramos do Ó, souberam como dirigir a investigação, como propiciaram a outros investigadores um material precioso para o estudo das lutas estudantis contra a Ditadura, na sua fase final. A memória, quando informada, não é forçosamente um instrumento despiciendo de trabalho e de estudo. Pelo contrário, pode até ser - como acontece neste caso - um meio de reconhecimento e de valorização de um objeto de estudo que, de outro modo, poderia continuar oculto, como acontece a tantos outros. Chamar a atenção para um tema ou assunto esquecido (ou silenciado) é, já de si, um trabalho precioso de recuperação e de abertura a novas investigações. De resto, os autores não quiseram avançar deliberadamente pelo campo da hermenêutica, deixando esse trabalho para futuros estudos. Partiram do que conheciam de experiência vivida - a literatura liceal de protesto dos últimos anos da Ditadura - e elaboraram um levantamento numérico e analítico de todo o material disponível. E este é um ponto de partida muito interessante para prosseguir o estudo deste movimento estudantil liceal no período final da Ditadura. Acrescentemos, agora como leitores-cidadãos, que é também uma forma excelente e justa de celebrar Abril, no ano das Comemorações do seu Cinquentenário. Em Liberdade, como não aconteceu, a título de exemplo, nas Comemorações do Cinquentenário da I República, em 1960, quando as ruas se encheram de cidadãos em fuga às cargas da polícia de choque. A mesma que, em 1970-1974, período a que este livro se refere, carregava sobre os estudantes, os prendia e lhes encerrava as associações.

Como se fez o livro

Os editores/autores - Rui M. Gomes e Jorge Ramos do Ó - reuniram 32 boletins oriundos de cerca de duas dezenas de liceus e escolas industriais e comerciais da Grande Lisboa - da cidade, a Oeiras, a Almada, à Amadora, a Cascais - e submeteram esses boletins a uma leitura analítica sumária: o título, o editor, o início e fim da publicação, os números editados entre 1 de janeiro de 1970 e Abril de 1974, o formato, o tipo de impressão, a existência de separatas e os conteúdos de um número escolhido da coleção, normalmente o primeiro publicado. O material reunido é, fundamentalmente, oriundo do Arquivo de História Social do Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa (AHS-ICS-UL), do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) e do Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra (CD25A-UC).

O “Reportório da Imprensa Estudantil do Ensino Secundário de Lisboa (1970-74)”, constitui, assim, o objeto e o fim deste livro e, por isso, a parte mais interessante do mesmo. São, portanto, boletins da responsabilidade das Delegações do MAEESL dos vários liceus e escolas, com uma estrutura semelhante, de 4 a 6 páginas, mas que podem, como acontece, com “Outubro”, do Liceu D. Pedro V, chegar às 12 páginas ou mesmo mais. Predominam os títulos de “Boletim”, “Informação” ou “Boletim Informativo”, mas surgem depois muitos outros boletins com títulos mais apelativos: “Intervalo”, “Argumento”, “O Grito”, “Luta”, “Impacto”, etc.

A unidade é, contudo, muito grande nos conteúdos com que os boletins se apresentam nos primeiros números (os observados pelos editores/autores), em parte pelo desígnio muito debatido e generalizado de, intencionalmente, respeitar os princípios da democraticidade, da neutralidade política e religiosa e da unidade e representatividade. Evidentemente que são intenções iniciais tidas como importantes para garantir a participação do maior número em torno das questões pedagógicas e académicas; mas que, rapidamente, são suplantadas pela emergência dos problemas políticos gerais impostos pelo Estado Ditatorial, pela Guerra Colonial e pela repressão policial e administrativa que muitas vezes se abate sobre os estudantes mais ativos ou sobre as Delegações do MAEESL. Podia-se começar pela denúncia dos “métodos pedagógicos retrógrados”, pela debilidade das instalações e serviços das escolas (cantinas, casas de banho, ginásios) ou mesmo pelas regras absurdas (para aquela época) que impediam o uso de calças pelas raparigas ou impunham o uso obrigatório da bata branca nos liceus femininos. Normalmente, começava-se por estes aspetos, até por serem os que mais adesão podiam ter da população liceal. Mas, com o tempo, rapidamente se passou aos temas de debate ideológico e de caráter sindical. Estão, neste caso, as denúncias dos professores “bufos e hipócritas”. O nº 2 do “Argumento”, de janeiro de 1973, publicado pelo núcleo do Liceu Passos Manuel, denunciava o “Carneiro”, um professor de Religião e Moral que lançava para a discussão temas como o “comunismo”, ou a “Reunião dos Cristãos no Rato”, com a finalidade de perceber a opinião e a ideologia dos seus alunos. No “Boletim” nº 1 do Liceu Rainha D. Leonor (s/d), denunciava-se a nova tática da Mocidade Portuguesa Feminina (MPF): por não conseguir as anteriores formas de controlo das raparigas, a MPF procurava agora cativá-las com atividades circum-escolares, com os mesmos objetivos ideológicos de formatação da futura mulher.

Os professores e aulas mais contestadas estavam justamente nestes campos onde os valores começavam a colidir abertamente com os comportamentos e com as ambições de um tempo novo. Isso acontecia mais naturalmente em Religião e Moral, em Canto Coral, em História, mas também na disciplina de Português. No “Boletim” nº 1 (s/d) do Liceu Gil Vicente criticava-se a ausência de abordagem aos autores “proibidos”, realçando o facto de os livros “de Herculano, Oliveira Martins, Antero de Quental, Damião Peres, Eça e tantos outros” não serem mais do que “monstros sagrados” a servir “para decorar as paredes” da biblioteca. Acrescentava-se ainda outras leituras “recomendáveis”: de Aquilino Ribeiro, Jorge Amado, Bertrand Russell, Gorki.

No mesmo “Boletim” do Liceu Gil Vicente, a crítica à Guerra Colonial e o apoio aos povos coloniais que empreendem pela luta a sua libertação é clara e inequívoca, formulados, aliás, em termos de humor negro: “A vossa comunicação distingue-se das demais pela contestação vigorosa e justa, pela mensagem válida aos corações de têmpera que em África, para defender o nosso património, regam as florestas de napalm, aquecem as palhotas dos negros com lança-chamas, engordam os corpos com chumbo, desmentindo assim os boatos de que as populações das nossas províncias ultramarinas estão subalimentadas e subdesenvolvidas; dão casas e aldeias aos gentios, rodeados de arame farpado, com ruas modernas e simétricas e com postos de vigias para os proteger das feras” (Ramos & Ó, 2023, p. 96).

A repressão sobre este movimento estudantil era inevitável, na perspetiva do regime. Quando em 16 de dezembro de 1973, a poucos meses da Revolução de 25 de Abril, a PSP prende 151 jovens do MAEESL na Faculdade de Medicina - alguns deles com idades compreendidas entre os 14 ou 15 anos - estava, de facto, a mostrar uma imensa fraqueza e a apressar a “Operação Fim do Regime”. É bem verdade que eram jovens fortemente politizados, não obstante a sua idade. Desde novembro que mobilizavam meetings de dezenas pessoas, reunindo milhares de alunos pelos liceus de Lisboa. Também é verdade que o seu fascínio pela revolução (cultural, socialista, ou “sem nome”…) era forte e convicta. Nos seus boletins tinham dado a ler Gorki, Brecht e outros “autores proibidos” através de uma secção cultural de forte intervenção política. Tinham mesmo ousado passar o “Couraçado Potenkin” numa sessão clandestina.

Que fazer com estes jovens? O regime julgava que eram poucos, que seria possível anulá-los pela prisão temporária e pelo processo disciplinar. Na verdade, eram só a ponta do icebergue que explodiu nos Dias de Abril.

Este é, pois, um livro que vale pela pertinência do objeto, pela honestidade do método de trabalho e pela oportunidade de dar a conhecer a luta dos jovens que hoje têm entre 60 e 70 anos, testemunhas privilegiadas de um tempo de mudanças (e de promessas), muito raro (único, talvez) na História portuguesa contemporânea.

Referência bibliográfica

Gomes, R. M., & Ó, J. R. do (Eds.). (2023). A urgência da palavra impressa: A imprensa dos «intrépidos adolescentes» contra a ditadura (1970-1974) . Tigre de Papel. [ Links ]

Recebido: 06 de Fevereiro de 2024; Aceito: 01 de Março de 2024

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