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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.20 Lisboa dez. 2023  Epub 30-Out-2023

https://doi.org/10.48751/cam-2023-20320 

Dossier

Olisipografia e Comemoração. Lisboa, Oito Séculos de História (1947-1956)

Olisipography and Comemoration. Lisbon, Eight Centuries of History (1947-1956)

1 Instituto de História da Arte, Faculdade Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal. tborgeslourenco@gmail.com

2 Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal. raquelalexandraseixas@gmail.com

3 Câmara Municipal de Lisboa, Departamento de Património Cultural; Instituto de Historia da Arte, Faculdade Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal. helia.silva@cm-lisboa.pt


Resumo

Programadas e realizadas pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), as Comemorações do VIII Centenário da Tomada de Lisboa aos Mouros (1947) foram um momento de exaltação da história da cidade. De entre as diversas iniciativas, as publicações culturais assumiram-se como o lado perene das festividades. Foi neste contexto que foi editada Lisboa, Oito Séculos de História, a primeira obra coletiva de Olisipografia.

Por ocasião do 75º aniversário das comemorações e da publicação do primeiro fascículo, o presente artigo traça o processo do seu desenvolvimento e procura compreender as suas especificidades e a ação dos agentes envolvidos na sua produção.

Palavras-chave: Olisipografia; Câmara Municipal de Lisboa; Gustavo de Matos Sequeira; Almada Negreiros; Martins Barata

Abstract

In 1947, Lisbon City Council carried out the magnificent Celebration of the 800th anniversary of the Capture of Lisbon from the Muslims. Following up the principles and practice of its Cultural Services, several works on Lisbon History were published in this occasion. One of them, Lisboa, Oito Séculos de História (Lisbon, Eight Centuries of History) was the first colective olisipography (Lisbon studies) work.

On the 75th anniversary of these Celebrations, the present article aims to outline the process of its production and its specificities.

Keywords: Olisipography; Lisbon City Council; Gustavo de Matos Sequeira; Almada Negreiros; Martins Barata

Introdução. A olisipografia e os serviços culturais da Câmara Municipal de Lisboa

Nascida no século XIX da confluência de diversas sensibilidades, a Olisipografia corresponde a uma moderna fase dos estudos da história de Lisboa, “realizad[a] de acordo com as regras da metodologia histórica” (Branco, 1977, p. 6). O momento definidor do seu surgimento ocorreu em 1879, com a publicação da primeira parte de Lisboa Antiga de Júlio de Castilho (1840-1919). Nesta obra, que pela primeira vez extrapola o âmbito da crónica, do roteiro ou do simples estudo individualizado do património edificado, desenvolveu-se uma análise histórico-social sobre uma área da cidade, solidamente sustentada por fontes primárias e secundárias. A publicação em livro (e não em revistas científico-literárias) e uma linguagem mais coloquial tornou o seu acesso mais amplo e imediato. Esta preocupação com a divulgação da história de Lisboa foi, de resto, uma marca distintiva dos primeiros olisipógrafos.

Inicialmente, Castilho trilhou um caminho solitário. Apenas a partir da década de 1890 começou a reunir discípulos que com ele partilharam a paixão por Lisboa e pela sua história, nomeadamente Augusto Vieira da Silva (1869-1951), Gustavo de Matos Sequeira (1880-1962), Norberto de Araújo (1889-1952) e Luís Pastor de Macedo (1901-1971). Ao longo do primeiro terço do século XX compuseram um pequeno, mas impactante corpus de textos sobre a história da cidade nos seus diversos aspetos. Alguns tornaram-se membros ativos da Secção de Arqueologia Olisiponense da Associação dos Arqueólogos Portugueses, criada em 1912. Ao longo das duas décadas seguintes agruparam-se sob a sua égide a maioria dos agentes que contribuíram para o definitivo desenvolvimento de um pensamento crítico sobre a cidade, sua história e património, materializado ao longo da I República em diversas publicações e na realização da muito elogiada Exposição Olisiponense (1914).

A CML também contribuiu amplamente para o desenvolvimento dos estudos históricos da cidade, inicialmente através da criação e/ou reorganização de bibliotecas e arquivos municipais, detentores de vasta documentação histórica. Ainda que algum deste trabalho tivesse sido iniciado em data pouco anterior, o impulso decisivo ocorreu com a expedição de uma circular do Ministro do Interior para todas as autarquias do país (24/03/1936), instando-as ao cumprir as orientações emanadas por uma lei quase centenária (08/11/1847) que as obrigava a publicar Anais, nos quais se registassem os factos mais importantes e tudo quanto pudesse interessar às tradições locais.

Contrariamente ao que se havia verificado no século XIX, as recomendações agora emanadas mereceram uma aplicação generalizada. O cumprimento desta estratégia, que visava envolver as autarquias na denominada Política do Espírito enunciada por António Ferro em 1932, decorreu em função dos ritmos dos processos de organização, inventariação e divulgação da documentação dos diferentes arquivos municipais. Ao longo das décadas seguintes, por todo o país foram publicados Anais e Boletins Municipais, que se constituíram como eficazes divulgadores de documentação histórica municipal e verdadeiros repositórios de estudos de história local.

Sem surpresa, foi na Capital do Império onde mais longe se levaram estas iniciativas. A criação do pelouro dos serviços culturais da CML (em 1933) e o subsequente aproveitamento político-ideológico deram à Olisipografia e aos olisipógrafos uma dimensão inesperada:

Apesar de não ter contemplado a criação oficial da figura do cronista da cidade existente em Madrid e Paris, [estes serviços] encet[aram] uma profissionalização informal da figura do historiador da cidade (o olisipógrafo) assente numa estratégia de exaltação e divulgação da sua figura e obra através da publicação de dezenas de estudos, da organização de conferências para um vasto público e da criação de um curso e de um gabinete de estudos olisiponenses, num processo que entroncava plenamente na ideia de Política do Espírito (Lourenço, 2022, p. 7).

Com a ação dos serviços culturais da CML (e do Grupo Amigos de Lisboa), a Olisipografia extrapolou o domínio circunscrito da escrita e rapidamente abraçou outras formas de comunicar e dar a conhecer a história de Lisboa. Contudo, as publicações foram sempre a face mais visível desta ação. A par do desenvolvimento da Revista Municipal (1939-1973), a autarquia apadrinhou dezenas de novos estudos e a republicação de obras esgotadas ou de difícil acesso ao público.

Tal como em 1882, quando as comemorações do primeiro centenário da morte do Marquês de Pombal serviram de propósito ao arranque da primeira grande publicação cultural camarária (Elementos para a História do Município de Lisboa), também as Comemorações do VIII Centenário da Tomada de Lisboa aos Mouros em 1947 foram pretexto para semelhante ensejo. Foi nesse contexto que surgiu Lisboa, Oito Séculos de História, o primeiro grande estudo coletivo sobre a história de Lisboa e suas fontes, cujos processos burocráticos e criativos se abordam no presente estudo.

Lisboa, oito séculos de história

A obra está aí. Os melhores cultores dos Estudos Olisiponenses colaboraram nela; sabedores e notáveis artistas, ilustram-na. E à Câmara Municipal de Lisboa, deste ano comemorativo de 1947, fica a satisfação de a ter levado a cabo, para honra do burgo conquistado e cristianizado, há oitocentos anos, pelo primeiro rei português (Sequeira, 1947-1956, s.p.), (Figura 1).

Figura 1 Capa, Almada Negreiros, ca. 1946/7. 

Planeamento e produção

No rescaldo das grandiosas Festas da Cidade (1934-1935) e da Exposição do Mundo Português (1940), em sessão camarária de 19 de fevereiro de 1942, o vereador Luís Teixeira (1904-1979) chamou a atenção para a necessidade de se começar a equacionar a elaboração de um programa de celebrações para o oitavo centenário da Tomada de Lisboa aos Mouros, que deveria incluir a edição monumental de uma História da Cidade de Lisboa.

Esta ideia entroncava modelarmente nas políticas comemorativas do Estado Novo, que dando continuidade a um movimento iniciado no século XIX, procuravam promover a consciencialização alargada da identidade nacional através de novos modelos de interiorização e legitimação do poder. Com o liberalismo havia-se iniciado um processo de construção de identidade nacional, alicerçada na divulgação da História e no enaltecimento de episódios historicamente situados e dos seus protagonistas, nomeadamente através das comemorações centenárias (Torgal, Mendes e Catroga, 1998; Nora, 1997). O Estado Novo soube fortalecer este culto do passado como força-motriz de exaltação dos seus princípios ideológicos e de sedimentação da coesão da identidade nacional.

Enquadra-se neste contexto o ambicioso plano que, ao longo do ano de 1942, os serviços culturais da CML delinearam e que, entre outras atividades e melhoramentos, contemplava a construção de um Palácio Municipal de Exposições e de um novo edifício para o Museu da Cidade e a realização de uma exposição de documentos e obras de arte relativos à cidade de Lisboa, no Museu Nacional de Arte Antiga (Catálogo da Exposição…, 1947). Previa-se também a realização de um cortejo histórico e a publicação de uma Antologia Poética de Lisboa, de uma Bibliografia Geral Olisiponense, de um corpus documental reunindo e transcrevendo as mais importantes espécies documentais do Arquivo Histórico Municipal1 e da referida História Monumental de Lisboa. Esta última deveria ser dividida em fascículos compostos por textos de diferentes autores, a sair do prelo a partir de 1945. Correspondia a um desejo antigo, há muito latente.

Com a cabimentação de uma verba inicial de 50.000$00 em 1944, foi finalmente possível arrancar com os trabalhos. Para o efeito, e ainda antes de ser constituída a Comissão Central das Comemorações2, na sessão camarária de 22 de junho de 1944 foi decidida a criação de uma Comissão do Estudo do Plano das Publicações a editar pela Câmara Municipal destinadas a comemorar a passagem do VIII centenário da tomada de Lisboa3, composta pelo presidente da CML [Álvaro Salvação Barreto (1890-1975)] e por um representante das academias de Ciências de Lisboa [José Maria de Queiroz Veloso (1860-1952)], Nacional de Belas Artes (Gustavo de Matos Sequeira) e Portuguesa de História (António Rodrigues Cavalheiro [1902-1984]), da Associação dos Arqueólogos Portugueses [Augusto Botelho da Costa Veiga (1881-1965)], do Grupo Amigos de Lisboa (Luís Pastor de Macedo), do Sindicato Nacional dos Jornalistas (Norberto de Araújo), da Comissão Nacional de Arte e Arqueologia (Augusto Vieira da Silva) e da Repartição dos Serviços Culturais [Jaime Lopes Dias]. Ou seja, por todos quantos habitualmente compunham grupos e comissões do género, as verdadeiras engrenagens da Olisipografia neste período.

Na primeira reunião, decorrida a 19 de julho, foram apreciadas e discutidas sumariamente as linhas gerais do plano traçado pelos Serviços Culturais e de algumas propostas entretanto enunciadas, nomeadamente a reedição da Lisboa Antiga - O Bairro Alto de Castilho, acompanhada de um índice geral da obra do autor. Constituíram-se então duas subcomissões, encarregadas da elaboração de pareceres sobre a lista dos documentos do Arquivo Municipal que deveriam ser transcritos e publicados e sobre o plano da História de Lisboa4. Foram igualmente solicitadas propostas ou pareceres sobre a Antologia Poética de Lisboa (a Norberto de Araújo), a Iconografia de Lisboa e Bibliografia Geral Olisiponense (ambas a Vieira da Silva) e a reedição da mencionada obra de Castilho (a Matos Sequeira)5.

Até ao final do ano, a subcomissão dos documentos a publicar reuniu a 27 de setembro e 10 de outubro e a da História de Lisboa a 4 e 13 de novembro. Por esta altura, e desde a reunião de julho, havia já sido abandonada a ideia da edição de uma História Monumental em benefício de um formato menos ambicioso que garantisse maior probabilidade da sua concretização a tempo das Comemorações. Na reunião do dia 4, Matos Sequeira alegou considerar que essa publicação não deveria ser “projectada […] [como] trabalho de pura erudição, mas antes de divulgação histórica, leve, literária, respeitando […] a seriedade histórica”6, não mais se afastando desta ideia. Para o efeito, apresentou um esboço dos assuntos que julgava fundamentais nela constarem, unanimemente aprovado na segunda reunião, momento em que foi escolhido o nome da obra: Lisboa, Oito Séculos de História.

A Comissão do Estudo do Plano das Publicações reunir-se-ia, pelo menos, em cinco outras ocasiões durante o ano de 1946. O esboço de Matos Sequeira foi também nela bem acolhido e progressivamente afinado com a incorporação de sugestões dos colegas, nomeadamente a de Vieira da Silva de se estudar Lisboa também do ponto de vista geográfico (e não apenas geológico) e a de Rodrigues Cavalheiro de aplicar o termo “período filipino” e com isso incrementar rigor a um período à data pouco considerado. A possibilidade de uma divisão dos capítulos por séculos chegou a ser equacionada, mas foi prontamente abandonada por se considerar que traria desequilíbrios ao conteúdo.

Matos Sequeira manteve inalterada a visão de uma obra literária de marcada identidade gráfica e artística enunciada no plano dos serviços camarários de 1942, considerando serem para tal necessários dois diretores, um literário e outro artístico (“um especialista de Lisboa, pois não bastar[ia] ser apenas artista”7) - segundo proposta de Pastor de Macedo, foi também incluída a figura do diretor gráfico em todas as obras a publicar no contexto das comemorações. A 27 de março de 1946, Matos Sequeira foi eleito diretor literário e, a 6 de abril, Leitão de Barros (1896-1967) tornou-se diretor artístico da obra. Sem colocar em causa o resultado da votação, o presidente da autarquia afirmou temer que o envolvimento previsto do cineasta noutras atividades das comemorações prejudicasse a sua efetiva colaboração na obra. Matos Sequeira assegurou de pronto que ao diretor artístico caberia apenas a conceção da publicação e não a sua execução, o que não impediu que se lhe fossem providenciados colaboradores para lhe facilitar um mais fácil desdobramento entre as diversas áreas do programa das comemorações. A solução acabou por se revelar insuficiente e a ideia do envolvimento oficial de Leitão de Barros nos trabalhos de Lisboa, Oito Séculos de História foi em breve abandonada. Na mesma ocasião, para a direção gráfica da obra foi escolhido o nome de Luís de Montalvor (1891-1947), outrora diretor e colaborador da revista Orpheu. Revelar-se-ia igualmente efémera, como adiante se explicará.

Na reunião de 25 de maio de 1945, Matos Sequeira apresentou um relatório de quatro páginas (Figura 2), no qual definiu uma divisão da obra em 20 fascículos de 32 páginas cada e periodicidade de publicação mensal (entre janeiro de 1946 e agosto de 1947), que comporiam dois volumes de 320 páginas cada, em formato in fólio. Perante a impossibilidade de contar com a colaboração de Leitão de Barros, renunciou à figura do diretor artístico, preferindo trabalhar diretamente com os ilustradores. Comunicou também nesta ocasião a aceitação do convite endereçado a Joaquim Fontes (1892-1960) e Orlando Ribeiro (1911-1997) para a redação do texto dos três primeiros capítulos, correspondentes ao primeiro fascículo. E aflorou ainda as questões financeiras, declarando esperançosamente que “tôda a despesa a fazer ser[ia] compensada não só com o exito que se deve esperar, senão, e o que é muito de considerar, com os resultados práticos a obter, dado que tôdas as publicações semelhantes, editadas pelo Estado, tem sido integralmente pagas.”8

Figura 2 Relatório, Gustavo de Matos Sequeira, 24/05/1946. AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/ODAS/005/00002/121; pp. 25-28. 

A leitura do esboço inicial do conteúdo deste relatório e das diversas intervenções nas comissões, permitem qualificar o trabalho até então desenvolvido por Matos Sequeira como provido de grande rigor e atenção ao planeamento dos diversos aspetos da obra. Em vésperas de se cumprir o primeiro aniversário sobre a constituição da comissão, tinha a exata noção de que “para que o primeiro [tomo possa] […] sair em Janeiro d[e 1946], conforme o plano gizado, ha[via] que trabalhar muito durante [o resto do] ano corrente”9 na redação dos textos e nas questões técnicas da composição e impressão. No entanto, o rigor evidenciado acabou comprometido por uma cadeia de eventos e de decisões que inviabilizou o cumprimento de prazos e de orçamentos.

Mais do que os custos, preocupavam os atrasos. Desde logo, a demora da assinatura dos contratos com Matos Sequeira, Martins Barata (1899-1970) e Almada Negreiros (1893-1970)10, os artistas escolhidos para ilustrarem a obra, impediu o cumprimento da data prevista de início da publicação e da sua periodicidade mensal. Sem perspetiva de uma inversão de rumo, o presidente da autarquia interpelou o diretor literário e o assistente gráfico (Marques da Costa) para que o informassem dos motivos. Matos Sequeira traçou então um cenário negro, abordando a dificuldade em obter os textos e os desenhos por parte dos autores e dos artistas, a ausência da assinatura do contrato com a empresa que deveria proceder à impressão da obra e a falta de consenso a respeito do seu formato, da qualidade do papel, da mancha de página e do processo gráfico a usar na reprodução das imagens. Marques da Costa confirmou o atraso na entrega dos textos e dos desenhos, mas atribuiu sobretudo culpas à forma de trabalhar do trio:

No próprio dia em que foi lavrado o despacho de S. Exª. o Presidente [para a celebração do contrato com a tipografia], o diretor da obra e os colaboradores artísticos modifica[ram] a mancha da composição [definitivamente assente há vários meses] e reconhece[ram] vantagens na impressão da obra em offset, para o que [foi] necessário um novo estudo orçamental, para o qual ficaram de dar, sem que o tenham feito até ao presente, os indispensáveis elementos.11

Era esta a realidade a 20 de junho de 1946. Apesar de estar a ser programada há mais de quatro anos, parecia cada vez menos provável a publicação integral da obra a tempo das Comemorações. O testemunho do assistente gráfico revela um processo altamente centralizado e refém das figuras do diretor e dos artistas, que foram empreendendo sucessivas alterações gráficas e técnicas que redundaram em sucessivos atrasos e no encarecimento da obra. No entanto, será justo reconhecer que algumas das principais causas da morosidade do processo ultrapassavam as suas competências, nomeadamente as que respeitavam aos atrasos da entrega dos textos por parte dos colaboradores.

O segundo semestre de 1946 foi destinado a resolver questões técnicas e de produção, nomeadamente as que se prendiam com as fotografias. Em outubro foi aberto o concurso para impressão da capa (Figura 1) e dos desenhos extra-texto (hors-texte), do qual saiu vencedora a proposta da Litografia de Portugal para a reprodução, em litografia, de 60000 capas a cinco cores, pelo valor de 84.000$00 (Figura 3)12. A 18 de novembro, a CML celebrou finalmente o contrato para a execução da composição, impressão e brochura da obra com a Editorial Ática, cujo administrador era Luís de Montalvor. Por este documento, obrigava-se a Ática a imprimir 3000 exemplares, com formato de 340 x 260 mm e mancha de 155 x 220 mm, a três cores e composição em corpo 12 a dois pontos para 2/3 da obra e restante em corpo 10 (possivelmente prevendo notas de rodapé). Já depois da assinatura do contrato, seriam introduzidas alterações no número de cores (incremento para cinco) e na dimensão da letra (corpo 12 para a totalidade do texto). Foi ainda assinado um contrato com a Neogravura para a impressão de 20 páginas simples por exemplar, a rotogravura a duas cores, no formato máximo do papel, com legendas tipográficas (por 68.750$00). Conforme o processo foi sendo colocado em marcha, subiu significativamente o orçamento global da publicação, que acabou por ultrapassar os mil contos (correspondente a mais de meio milhão de euros, a preços atuais13).

Figura 3 Fatura da Litografia de Portugal relativa à impressão de estampas, 27/11/1947. AML, Documento PT/AMLSB/CMLSBAH/ODAS/005/00002/098; p. 127. 

À medida que Matos Sequeira recebeu e aprovou os textos14 e os desenhos, foi finalmente possível começar a preparar a publicação dos fascículos. Em carta de 22 de agosto de 1947, afirmou achar-se “pronta e entregue a colaboração respeitante aos seis primeiros fascículos, no tocante á parte literária15. Quanto à parte artística, estão concluídos, da parte do sr Jaime Martins Barata as páginas para os quatro primeiros, e da parte do sr Almada Negreiros, prontos os desenhos para os dois primeiros e prometidos para breve a de mais três”16.

Figura 4 Fatura de Maria Raquel de Sousa Bella relativa a trabalhos de datilografia (28/05/1947). AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/ODAS/005/00002/098; p. 82. 

A poucos dias do Natal de 1947, foi por fim publicado o primeiro fascículo composto pelo prefácio, primeiro capítulo (de Orlando Ribeiro) e parcialmente pelo segundo (de Joaquim Fortes). A opção por fascículos de dimensão não coincidente com a dos capítulos (entre 6 a 76 páginas) resultou numa fragmentação dos textos que obrigava o leitor a esperar semanas ou meses pelo tomo seguinte para concluir a leitura, à semelhança das revistas científico-literárias do século XIX e refletiu-se, também, na necessidade de ampliação da obra com um fascículo extra para abranger o final do último capítulo, índices do texto e gravuras e indicação de erratas.

Até ao final da década foram lançados mais doze fascículos (três em 1948, seis em 1949 e três em 1950), sem nunca atingir a periodicidade mensal preconizada por Matos Sequeira. Desses, apenas os seis primeiros foram editados pela Editorial Ática que, por motivos que não foi possível apurar (mas que terão partido da própria empresa), acabou substituída pela Bertrand no final de agosto de 1949 (Figura 5).

Figura 5 Fatura da Bertrand (Irmãos), Limitada relativa à execução de zincos para as gravuras (20/01/1948). AML, Documento PT/AMLSB/CMLSBAH/ODAS/005/00002/098; p. 131. 

Entre novembro de 1950 e março de 1952 nenhum fascículo foi publicado, o que motivou queixas por parte de diversos subscritores descontentes pela demora, que fora provocada pelo atraso na entrega dos textos de Gastão de Melo e Matos e de Queiroz Veloso, o último por motivo de doença. O caso de Melo e Matos foi o mais complicado de gerir, pelos sucessivos adiamentos e pela desadequação do conteúdo do seu capítulo - Matos Sequeira chegou mesmo a afirmar que o autor havia “esquec[ido] um tanto o assunto primacial - Lisboa - e que, por isso, t[inha] duvidas se deverá aceitá-lo e incluí-lo na obra”17. O texto acabou publicado, destoando dos demais nas parcas referências à história da cidade. Também a morte de Vieira da Silva em fevereiro de 1951, a meio da redação do capítulo sobre a Lisboa Pombalina, constituiu um rude golpe - substituiu-o Norberto de Araújo, que morreria dois meses depois da publicação deste seu texto.

Resolvidos os motivos do hiato, os lançamentos dos fascículos seguintes ocorreram a um ritmo inferior aos da década anterior (três em 1952 e em 1953 e apenas um em 1954, 1955 e 1956).

A obra podia ser adquirida em livrarias ou na sede do Grupo Amigos de Lisboa, depositário geral das publicações culturais da CML desde 1939. Cada fascículo tinha um preço de venda de 20$00, idêntico ao dos volumes de “O Carmo e a Trindade” (Matos Sequeira) ou de “Lisboa de Lés-a-Lés” (Pastor de Macedo) e o dobro dos da “Lisboa Antiga - Bairros Orientais” (Júlio de Castilho). Não sendo a obtenção de lucro um propósito18, a autarquia procurava cobrir os custos, o que verdadeiramente não conseguia em virtude da ativa política de ofertas a entidades nacionais e estrangeiras, dos exemplares destinados a Depósito Legal e da comissão de 30% sobre o valor das vendas arrecadada pelo Grupo Amigos de Lisboa.

Apesar do elevado preço (420$00 pela totalidade da obra19), a divisão em fascículos publicados ao longo de quase uma década acabou por suavizar a aquisição, feita sobretudo por quem procurava uma obra referencial sobre a história de Lisboa, de inequívoco valor literário e gráfico.

A Obra Literária

Desde o final da década de 1920 assistia-se, com particular ímpeto, à publicação de livros de História em fascículos. Os mais relevantes dividiam-se em capítulos redigidos por diferentes autores (conforme a área/cronologia de especialização) e eram profusamente ilustrados por reproduções de elementos de diversa natureza e/ou por desenhos de artistas contratados para o efeito. Este modelo encontrava-se já previsto no plano traçado em 1942 por Rodrigues Cavalheiro para a História Monumental de Lisboa, tendo a Comissão do Estudo do Plano das Publicações se limitado a segui-lo. Ainda que na mente de Matos Sequeira desde cedo estivessem definidos os nomes de alguns dos autores que pretendia ver envolvidos na redação, o processo da escolha dos colaboradores literários revelou-se pouco linear. Com a publicação do primeiro fascículo foi entregue uma folha de apresentação da obra (Figura 6) que incluía uma lista de vinte autores, número que não inocentemente coincidia com o de capítulos, apontando a uma lógica de atribuição de um capítulo por autor que acabou por não se verificar. Refletindo o caráter errante da produção da obra, este elenco foi profundamente alterado com a inclusão de três autores e a retirada de oito [Pastor de Macedo, Luís Teixeira, Rodrigues Cavalheiro, Leitão de Barros, Artur Portela (1901--1959), Carlos da Silva Lopes (1904-1978), João da Silva Tavares (1893-1964) e José Frederico Laranjo Coelho.

Figura 6 Folha de apresentação da obra (encarte do primeiro fascículo), 12/1947. 

Acabariam por ser quinze os colaboradores, alguns dos quais assinaram mais do que um capítulo. Aos nomes do próprio diretor da obra, de Vieira da Silva, Norberto de Araújo, Queiroz Veloso e Jaime Lopes Dias, somaram-se os de Garcia Domingues (arabista, 1910-1989), José Augusto de Oliveira (que em 1935 havia feito a primeira tradução para português do texto do cruzado Osberno), Durval Pires de Lima (bibliotecário da Biblioteca Nacional, 1905-1988), Mário de Sampayo Ribeiro (musicólogo, 1898-1966), Gastão de Melo e Matos (militar e historiador, 1890-1971), Julieta Ferrão (conservadora dos museus municipais, 1899-1974), Acúrcio Pereira (jornalista, 1891-1978) e Luís de Oliveira Guimarães (jornalista, escritor e dramaturgo, 1900-1988)20, a maioria já com trabalhos realizados sobre a história da cidade (Figura 7).

Figura 7 Índice, 1956. 

Não se conhecem as linhas editoriais fornecidas por Matos Sequeira aos seus colaboradores, mas, pela documentação consultada, perpassa a ideia que lhes terá definido o número de páginas para cada capítulo e estabelecido a não inclusão de notas de rodapé e de referências bibliográficas (por questões gráficas).

O caráter original do trabalho (primeira grande história de Lisboa e primeira obra coletiva de Olisipografia21) não se refletiu em substanciais ruturas ou novidades acerca dos temas abordados, possivelmente para cumprir os objetivos de obra acessível a um maior número de pessoas ou por então se considerar que

a história de Lisboa […] est[ava] feita nas suas linhas gerais. […] As obras já publicadas e em publicação, permit[ia]m ajuizar do passado histórico da nossa capital até ao começo da dominação romana. [Ainda que,] na parte que se refere á pré-história, não h[ouvesse ainda] obra digna de citar-se, aparte pequenos estudos dispersos por diversas publicações22.

Subentende-se destas palavras de Jaime Lopes Dias uma certa incapacidade dos olisipógrafos em tratar os períodos mais recuados, o que justificará o convite a dois académicos para redigir três dos quatro capítulos dedicados à Lisboa pré-romana, Joaquim Fontes (2) e Orlando Ribeiro (1) - o último havia já ensaiado o tema em 1938, num texto intitulado Le Site et la Croissance de Lisbonne (Ribeiro, 1938), considerado o seu primeiro estudo sobre Geografia urbana da cidade. O quarto resulta de um estudo assinado pelo próprio Matos Sequeira que, extrapolando o estrito desenvolvimento histórico da urbe, disserta sobre as suas fábulas, lendas e mitos da sua criação [“tudo isto, embora artificial e frágil, tem o seu valor” (Sequeira, 1947-1956, p. 54)], tema então muito trabalhado pela Olisipografia.

Até à Lisboa cristã, foram incluídos três outros capítulos, dos quais mencionamos o que Vieira da Silva dedica à “Lisboa Romana”, dando continuidade aos seus estudos sobre a temática. Simbolicamente, este texto personifica a mudança metodológica que muitos dos autores sofreram ao escrever estes textos, vendo-se na contingência de retirar a documentação de arquivo (e respetiva citação de trechos) do centro dos seus estudos em favor de um estilo mais livre, deixando a cidade e os seus personagens dialogar. Em alguns casos de forma literal, por meio de conversas imaginadas.

Até ao Terramoto de 1755, soma-se mais uma dezena de textos, orientados por uma divisão cronológica clássica (por reinados/dinastias, períodos ou momentos históricos nacionais). De entre estes, merece menção o de Queirós Veloso (“De 1580 a 1640”), por cortar com os pressupostos vigentes de desvalorização do período filipino, numa tendência que apenas se começaria a inverter a partir da década de 1960.

A estes, acrescentam-se oito para períodos cronológicos mais adiantados: cinco até ao final da Monarquia, um alusivo à Primeira República (cuja proximidade cronológica se sublinha pelo título “A Cidade de Ontem”) e o derradeiro sobre a “Lisboa de Hoje” que também perspetiva a cidade de amanhã. Assinado por Jaime Lopes Dias, o texto destoa da restante obra na forma como analisa, de forma vincadamente auto-elogiosa, a ação do município e do Estado Novo. O modo como, simbolicamente e em maiúsculas, termina o texto (e, por conseguinte, a obra), deixa poucas dúvidas acerca da contaminação político-ideológica do encomendador num trabalho supostamente de caráter e metodologia histórica: LISBOA, GRANDE EMPÓRIO, POLÍTICO, ADMINISTRATIVO E LINGUÍSTICO […] PROSSEGUIRÁ, PELOS SÉCULOS DOS SÉCULOS, MAIS BELA E MAIS SEGURA NO SEU LUGAR DE RAINHA DO MAR OCEANO E DE CAPITAL INCONTESTADA DA NOSSA GLORIOSA NAÇÃO DO GRANDE IMPÉRIO LUSÍADA (Sequeira, 1947-1956, p. 667).

No entanto, ao retirar a camada ideológica constata-se a sua profundidade. É, na verdade, um dos mais acutilantes textos técnicos sobre as políticas de urbanismo e de construção da Lisboa de meados do século XX. Assente numa leitura e numa visão de cidade abrangentes, reconhece a necessidade de um planeamento urbano para um crescimento sustentável nas áreas da habitação, circulação e transportes públicos, espaços verdes e cultura.

A intenção de tornar Lisboa, Oito Séculos de História numa obra de divulgação acabou genericamente cumprida. Entrecortando uma certa secura de discurso patente nos textos dos académicos, os olisipógrafos foram particularmente eficazes nesta tarefa, envolvendo, transportando e submergindo o leitor num tempo e num espaço outro, através da profusa descrição dos lugares de outrora, seus agentes e respetivas ações. Sem descurar a dinâmica dos grandes momentos histórico-políticos da cidade, a maioria dos autores revelou uma notória preocupação com a reconstrução histórica dos locais e das vivências. Estranhamente, a preocupação com o desenvolvimento urbanístico não encontra eco na análise da arquitetura, o que, ainda assim, não compromete o valor literário da obra.

Olhando para casos similares, encontramos diferentes abordagens. Editada entre 1962 e 1965 e dividida em três volumes subdivididos em nove partes ao longo de mais de 1500 páginas, a monumental História da Cidade do Porto contou com abundantes ilustrações monocromáticas da autoria do artista Gouvêa Portuense (1907--1976) e com a colaboração dos principais historiadores da cidade, de entre os quais Damião Peres (1889-1976), Artur Cruz e, a título póstumo, Magalhães Basto (1894-1960). Sem a possibilidade de contar com um conjunto de investigadores (maioritariamente não académicos) como o que informalmente trabalhava com a CML, a Câmara Municipal do Porto recorreu a técnicos da autarquia e a professores universitários, cuja formação superior (distinta da dos olisipógrafos) se refletiu (aqui e nas demais publicações culturais) num caráter menos literário e mais erudito do que o verificado em Lisboa, Oito Séculos de História.

A Obra Artística

Perante a impossibilidade de Leitão de Barros assumir a direção artística da obra, Matos Sequeira viu-se na contingência de reunir informalmente em si as tarefas que projetara neste cargo, nomeadamente a escolha dos ilustradores e o desenvolvimento do programa artístico. No esboço inicial da publicação que apresentou em setembro de 1944, havia já abordado este último ponto de forma superficial, propondo então que

na parte iconográfica deve[sse] evitar-se a repetição de cansadas estampas antigas, habitualmente utilizadas em obras sôbre a capital, guias turísticos, etc.

Planos e prospectos conjecturais, estatísticas figuradas, minúcias demográficas, representadas por figuras, desenhos originais de reconstituição, é que deve[riam] constituir o material ilustrativo, na sua maior parte. Só assim a publicação conseguirá um aspecto moderno e ganhará o foro de “obra diferente”23.

Para obter o que considerava ser um “aspecto moderno”, sublinhou a intenção de cortar com a prática de ilustrar obras históricas com fotografias e reproduções de documentos e de obras de arte. Ainda que este esboço se tenha limitado a apresentar as linhas gerais, a sua discussão na Comissão do Estudo do Plano das Publicações permite avaliar as diferentes sensibilidades relativamente ao tema, considerando as reservas manifestadas por Rodrigues Cavalheiro e Luís Teixeira. Contra-argumentaria Matos Sequeira, afirmando que se encontrava já “tudo publicado sôbre Lisboa em réplicas e cópias [e que sendo] todo o material [pouco] […], na sub-comissão propôs nova orientação […] [que] não visa[ndo] a eliminar documentação de valor […] [se enquadraria maioritariamente] [n]uma recolha cuidadosa de elementos das épocas tratadas, reconstituindo-se o que poder sê-lo”24.

Perante os receios de uns e a intransigência de outro, numa atitude conciliatória, o presidente da autarquia decidiu pelo uso conjunto da fotografia, da documentação histórica e da ilustração conjetural, concordando que se deveria evitar a reprodução de fontes vulgarizadas e eleger opções artísticas com unidade e aspeto moderno.

Contudo, Matos Sequeira não abdicou da sua visão. Havia já manifestado a sua enorme obstinação em iniciativas anteriores, demonstrando ser alguém que prezava ter o controlo absoluto do trabalho que desenvolvia. E, uma vez mais, conseguiu-o. Esta intransigência em provar a fulcral importância do desenho conjetural na obra enquadrava-se também numa ativa procura de reconstituição física da cidade desaparecida, empreendida e enquadrada por uma estreita ligação com o mundo teatral. A atividade que desenvolveu como olisipógrafo ultrapassou em muito a simples reescrita deste passado, em trabalhos em que a ilustração e o desenho conjetural foram amplamente experimentados por Alberto Sousa (1880-1961), nomeadamente em O Teatro de Outros Tempos (1933) e O Carmo e a Trindade (1939-1941)25. Refletia-se também na conceção e realização de iniciativas que permaneceriam gravadas na memória da cidade, caso da Feira Seiscentista do Largo de São Domingos (1925) e da Lisboa Antiga das Festas da Cidade de 1935, uma reconstituição idealizada de um antigo bairro feita à escala humana (Lourenço, 2022)26.

Em rigor, não havia nada de particularmente inovador nesta sua ideia para a parte gráfica da obra. Já nas primeiras décadas do século XIX aplicavam-se desenhos originais de reconstituição à ilustração de estudos e romances históricos portugueses, refletindo uma convergência entre a Nova Pintura de História em Portugal27e a reputação e popularização destes produtos na sociedade portuguesa. Um dos primeiros e mais paradigmáticos exemplos é a obra Quadros Históricos de Portugal (1838-1841) de António Feliciano de Castilho (1800-1875), para a qual foi definido um rigoroso programa artístico que conciliava o desenho conjetural (Maurício José Sendim) com a reprodução fiel de elementos de diversas tipologias (António Manuel da Fonseca). Mais recentemente, na transição para o século XX, foi introduzida a prática de reprodução em gravura de desenhos aguarelados coloridos, com amplo contributo de Roque Gameiro (1864-1935) e de Alberto Sousa. E, a partir da década de 1930, com um cunho modernista, através da colaboração de artistas como Cottinelli Telmo (1897-1948), Fred Kradolfer (1903--1968), Luis Montalvor e Almada Negreiros.

Durante o meio ano que separou o esboço inicial e o relatório final, Matos Sequeira deu corpo à sua ideia primitiva, apresentando de forma mais consistente a visão gráfica e artística que pretendia para uma obra que deveria ser

em formato “in fólio”, profusamente ilustrad[a], não só com reproduções de antigas estampas (gravuras, litografias, fotos, etc.), senão com estampas de carácter conjectural, reconstruções e gráficos, vinhetas e outros ornatos de documentação ornamental, e ainda com plantas, mapas e vistas perspectivas que esclareçam, por modernos processos, o texto da obra. […] Cada tomo […] deverá incluir uma reprodução a cores e outra a negro, de página, e outras ilustrações de formato variável, afora “entétes”, vinhetas, fechos de capítulo, etc.28.

Uma vez mais, não se encontram grandes rasgos nestas palavras. Sem inovar na proposta, procurava alinhar a composição gráfica da obra que superintendia com um modelo que vinha a ser progressivamente aplicado e aprimorado, inclusivamente por Júlio de Castilho nos estudos histórico-biográficos e olisipográficos que desenvolveu a partir de 1884. E, mais recentemente, nas monumentais Histórias de Portugal (nas suas diversas vertentes), que terão constituído o principal referente gráfico. A complementar os diversos elementos de ilustração do texto, recuperava de antigos elementos gráficos, nomeadamente letras capitulares, entradas (vinhetas de frontispício) (Figura 8) e fechos de capítulo e, ocasionalmente, frontispícios e vinhetas de separação de parágrafos29. Desconhece-se o arquétipo em que Matos Sequeira se terá baseado, ainda que as suas palavras descrevam com bastante exatidão as características gráficas de História da Colonização Portuguesa do Brasil30, uma das obras portuguesas da primeira metade do século XX mais luxuosamente ilustradas, contando com abundante número de desenhos originais, gravuras e mapas cartográficos (alguns desdobráveis e coloridos).

Figura 8 Mancha de texto, capítulo 20 - No Tempo das Guerras Civis (pp. 552-553), 08/1953. 

No referido relatório de maio de 1945, Matos Sequeira elencou os artistas que considerava poderem colaborar na obra: Martins Barata, Almada Negreiros, Alberto Sousa e António Soares (1894-1978). Excluindo o último, todos haviam já desenvolvido um extenso trabalho no campo da ilustração de temáticas lisbonenses31, critério de escolha preferencial. A documentação consultada não esclarece os motivos da opção pelos dois primeiros, respetivamente para a execução de desenhos históricos e para a ilustração dos capítulos. O contrato com Martins Barata previa a execução e entrega das pinturas para páginas duplas e dos desenhos a cores (sete páginas duplas e 20 desenhos de página a uma ou duas cores) no prazo de 60 dias após a indicação dos temas a representar. Para o efeito, ser-lhe-iam pagos 5500$00 por fascículo (no total de 110 contos, em três prestações). No caso de Almada, estipulava a execução nas mesmas condições de uma entrada de capítulo (Figura 9), uma capitular, um fecho de página (Figura 10) e um desenho de meia página para 10 fascículos e outro de página inteira para os restantes, ao preço unitário de 4500$00 (num total de 90 contos, também pagos em três prestações). A CML não adquiriu a propriedade dos desenhos, apenas a exclusividade da sua utilização nesta e em futuras edições da obra.

Figura 9 Desenho de entrada do capítulo 8 - A Conquista de Lisboa (p.121), Almada Negreiros. 

Figura 10 Desenho de fecho do capítulo 3 - Fábulas, Lendas e Mitos (p. 54), Almada Negreiros, ca. 1946. 

Embora Matos Sequeira já tivesse apresentado as linhas gerais em maio de 1945 e estivessem todos contratualmente obrigados a cumprir as responsabilidades acima plasmadas, o desenvolvimento do programa demorou cerca de dois anos, caracterizados por avanços, recuos e inúmeras alterações. Fica por definir o papel subterrâneo de Leitão de Barros e de Luís de Montalvor. Perante a impossibilidade do primeiro em colaborar oficialmente na obra, Matos Sequeira tomou “a liberdade de recorrer a várias individualidades de consulta artística, sem que isso represent[ass]e encargo especial”32, indicando para o efeito o nome do cineasta - seria certamente este um dos pontos-chave para abdicar da figura do diretor artístico. Assim, o agora consultor não remunerado Leitão de Barros terá desempenhado um papel importante mas potencialmente impossível de aferir. No caso de Montalvor, diretor gráfico, a dificuldade em definir o seu trabalho prende-se com uma quase total ausência de referências a seu respeito na documentação consultada e com a sua trágica e precoce morte em março de 1947. Ainda assim, parece possível que tenha contribuído ativamente para o desenvolvimento do modelo-base em que viria assentar a obra.

Montalvor era então uma das mais brilhantes personalidades do meio editorial português, tendo fundado em 1929 a Editorial Ática, responsável pela publicação de numerosos clássicos da literatura e obras de história. O tratamento gráfico de algumas destas edições aproxima-se de forma significativa do caso em estudo, nomeadamente História do Regimen Republicano em Portugal (Luís de Montalvor, com desenhos de Cottinelli Telmo e Fred Kradolfer, 1929) e História da Expansão Portuguesa no Mundo (direção de António Baião, Hernâni Cidade e Manuel Múrias, com direção artística de Montalvor, 1937-1942). A sua visão sobre a execução gráfica de um livro de arte ficou plasmada num texto incluído em Inquérito ao Livro em Portugal, no qual defendeu que a unidade e equilíbrio de um livro só serão conseguidos através da “harmonia da mancha da sua composição, das suas proporções em relação às margens, e ainda de uma sábia distribuição de claros e de negros” (Montalvor, 1946, p. 4), considerando a necessidade de conferir especial desvelo à estética e ao estilo gráfico, numa clara aproximação aos preceitos do design gráfico. Em sua opinião, um “livro de arte será, pois, aquele em que a ilustração [seja], pois, como acessório da tipografia, a parte rica, decorativa, por excelência” (Montalvor, 1946, p. 6), sustentando que o prestígio deste tipo de livros se encontra justamente “ligado à carreira gloriosa da ilustração ou gravura, através de gerações célebres de artistas decoradores” (Montalvor, 1943, p. 20), razão pela qual considerava a ilustração como um capítulo da história da arte. Em Lisboa, Oito Séculos de História encontram-se fortes ecos destas palavras.

Assim, se parece ter cabido a Leitão de Barros um informal papel de consultor e a Montalvor uma hipotética definição de um modelo-base, é inequívoco que se deveu a Matos Sequeira, a Almada Negreiros e a Martins Barata o modelo final que acabou por fazer de Lisboa, Oito Séculos de História uma obra distinta no panorama do design gráfico do século XX português. As muitas alterações introduzidas ao longo de 1946 e 1947 acabaram por distanciá-la progressivamente do simples modelo de recuperação de referentes setecentistas, desconstruindo-o subtil e inteligentemente. Desde logo, na opção pouco comum de iniciar os capítulos no verso das páginas e de sobredimensionar e desposicionar o desenho de entrada para a segunda página de cada capítulo, ocupando o terço superior da mancha do texto e ganhando um formato sensivelmente quadrangular em detrimento do habitual retangular. Esta opção permitiu um diálogo ativo com a capitular, acentuado pela correspondência cromática de ambas. Mas foi o incremento do número de cores nas ilustrações de Almada (Figura 11), de duas para cinco, o principal fator a contribuir para a definição do traço singular e diferenciador da sua identidade gráfica, permitindo evitar o habitual padrão de elementos a preto e branco (ou preto e vermelho/laranja). Se as cores dos elementos das duas primeiras páginas de cada capítulo são sempre coincidentes (Figura 8), o cromatismo dos cul-de-lamp chega a variar para coincidir com os elementos gráficos do capítulo seguinte de modo a permitir uma transição suave.

Figura 11 Desenhos aguarelados originais para o capítulo 15 - De 1580 a 1640, Almada Negreiros. Museu de Lisboa, ML.DES.5485. 

Ao longo dos 21 capítulos, Almada contribuiu com 64 desenhos33 (Figuras 9, 10, 12 e 13) menos do que os contratados. Os temas são diversificados. Não existindo uma relação direta com o conteúdo do texto, seguem genericamente as linhas programáticas de cada período histórico: para a Lisboa pré-cristã foram maioritariamente representados vestígios arqueológicos e elementos mitológicos; até ao século XV é notória a predominância de símbolos régios, afirmativos da nacionalidade; para os séculos XV e XVI evidencia-se a iconografia relacionada com os Descobrimentos; a quase totalidade dos desenhos do século XVIII reporta à arquitetura religiosa; nos capítulos do século XIX imperam os aspetos da sociedade, seus mais ilustres membros e principais acontecimentos (Invasões Francesas, Guerra Civil e a Revolta da Maria da Fonte); e para o século XX a opção recaiu no registo iconográfico da Implantação da República e pelas novas realizações arquitetónicas do Estado Novo, coroadas pela representação altamente simbólica da efígie de Duarte Pacheco na capitular do último capítulo (Figura 12). Estas ilustrações resultam quase exclusivamente de reproduções fiéis mas estilizadas de uma vastíssima panóplia de referentes34, a maioria pouco óbvia ou conhecida, que engloba vestígios arqueológicos das eras pré-cristãs35, pintura36, gravura, tapeçaria37, selos régios38, moedas39, cartografia40, painéis de azulejos41, estatuária42, fotografia43e maquetas44.

Figura 12 Capitular. Capítulo 24 - A Lisboa de Hoje (p. 644), Almada Negreiros. 

A apropriação de referentes iconográficos havia já sido experimentada por Montalvor na referida obra História da Expansão Portuguesa no Mundo, cujas entradas representavam desenhos de diversos aspetos de iluminuras, cartografia e gravuras antigas, a preto e laranja e com legenda informativa (aqui ausente). Esta repescagem de modelos iconográficos em Lisboa, Oito Séculos de História não retira identidade aos desenhos do artista. Pelo contrário, acentua o seu valor gráfico e concorre para lhe conferir autenticidade e modernidade no formato implementado, onde as formas geometrizantes e a paleta vibrante se constituem como uma marca gráfica e ilustrativa que nos remete prontamente para o universo de Almada.

Martins Barata assinou um total de 27 extra-textos (sete dos quais em dupla página, geralmente mostrando aspetos do quotidiano da cidade), entregues com os fascículos, mas destes separados. Aquando da encadernação, deveriam ser colocados entre os artigos respeitantes, segundo indicação no final da obra.

O [ilustrador] das «Peregrinações em Lisboa», estava agora confrontado com a reconstituição, e não com o simples registo dos restos do passado.

Surgiu assim uma larga série de ilustrações com várias técnicas - desenho a lápis «Wolff» e sanguínea, gouache em «grisaille», aguarela. Mas sobretudo, realizou então a capacidade técnica acumulada, em pinturas a têmpera de goma envernizada, e em técnicas mixtas de têmpera e velaturas resinosas, exemplares de execução: a reprodução litográfica, apesar de boa, não fez jus à qualidade da «matéria» dos originais” (Barata, 1988, s.p.).

E efetivamente não faz. O artista beneficiou de uma maior liberdade criativa para realizar composições históricas, a cores ou a preto e branco, a partir de indicações genéricas de temas fornecidos por Matos Sequeira. Os desenhos coloridos, maioritariamente a duas cores, ilustram aspetos genéricos da cidade ao longo dos tempos, geralmente recorrendo a perspetivas de vista de pássaro (Figura 13). Por oposição, os desenhos a preto e branco representam maioritariamente episódios e vivências da cidade, com um pendor mais intimista que conduz o leitor ao interior da cena (Figura 14).

Figura 13  Rua Nova dos Ferros no século XVI , desenho extratexto, Martins Barata. Museu de Lisboa, MC.PIN.0147. 

Figura 14 O feito de Martim Moniz no cerco de Lisboa de 1147, desenho extratexto, Martins Barata. Museu de Lisboa, MC.PIN.0154. 

Almada assinou também a capa, peça não prevista no contrato. A maioria dos seus elementos reportam à secular simbologia municipal, legitimando, valorizando e fundindo o encomendador com o objeto de estudo. Sobre um fundo preenchido pela repetição do padrão gironado preto e branco da bandeira da cidade, representou ao centro uma barca com dois corvos afrontados sobre um pentalfa com círculo ao centro. As letras do título e os elementos em primeiro plano são executados em tons verde e branco, com uma vibração que parece remeter para as luzes néon e que incrementa a enorme modernidade gráfica. Na contracapa os elementos e os tons surgem invertidos (Figura 16).

Retoma aqui a iconografia que havia iniciado na contracapa do programa das Festas de Lisboa de 1934 e atualizado dois anos depois no símbolo do Grupo Amigos de Lisboa (ainda em uso), desenhando uma barca de mastro único, enxárcia formando triângulo, vela carregada na verga e bandeira preta e branca hasteada no topo do mastro. Era um tema atual, cuja apaixonada discussão havia levado à definição oficial da composição do brasão da cidade em 1897 e a três subsequentes reformulações que espelham a diversidade de opiniões quanto ao tipo de embarcação a representar: galeão (1897 e 1927), birreme romana (1920) e retoma ao modelo de embarcações que figurava na iconografia lisbonense dos séculos XIII e XIV (1940).

Ainda que numa primeira perspetiva, pareça uma obra menor no contexto do riquíssimo trajeto artístico de Almada Negreiros, é possível encontrar nela influências para o desenvolvimento futuro do seu trabalho, desde logo na forma como retornará ao padrão gironado da bandeira municipal no fundo dos vitrais da Igreja do Santo Condestável, em Lisboa (1951), aplicando-lhe tonalidades verdes e amarelas. Mas é outro elemento que mais plenamente aproveita. Retirado do anverso de um dinheiro de D. Afonso Henriques, o pentalfa com um círculo ao centro45é o elemento que mais se repete na obra, surgindo na capa e contracapa, como vinheta (Figura 15)46 e em duas ilustrações. A representação da própria moeda afonsina no capítulo 8 (p. 141) descodifica a fonte e a significação iconográfica do elemento, que aponta para a fundação da nacionalidade portuguesa (contrariamente à sua aplicação na capa por questões estéticas e geométricas, área de interesse que há muito manifestava). Parece, pois, crível ter sido neste contexto de representação histórico-iconográfica que se deu o primeiro contacto de Almada com este motivo. A ele retornaria com particular ímpeto a partir da segunda metade da década de 1950 em diversos desenhos e obras, nomeadamente em aplicação puramente geométrica e como elemento central do painel Começar (1968), executado para o átrio da Fundação Calouste Gulbenkian. No ano seguinte, no fresco A Matemática Portuguesa ao Serviço da Epopeia Nacional do Edifício da Secção de Matemática da Universidade de Coimbra, representa-o ao lado de um morabitino de D. Sancho I, retomando a ideia da representação das primeiras moedas portuguesas como símbolos iconográficos da fundação da nacionalidade.

Figura 15 Vinhetas, Almada Negreiros, 1946. 

O tempo validaria a visão estética de Matos Sequeira para a sua obra. Decorridos 75 anos sobre a publicação do primeiro fascículo, Lisboa, Oito Séculos de História mantém-se ainda como um exemplo-maior do design gráfico no panorama editorial português de meados do século XX.

Figura 16 Capa e contracapa, Almada Negreiros, 1946. 

Conclusão

O estudo agora desenvolvido revelou-nos Lisboa, Oito Séculos de História, uma monumental história de Lisboa que, de tão monumental, é hoje mais objeto de colecionismo do que livro de consulta. Enquanto produto do seu tempo, apresenta-se como a primeira obra coletiva de Olisipografia, cumprindo os desígnios do seu diretor que lhe pretendeu legar um foro de obra distinta. Concebida desde a origem sobre um difícil equilíbrio entre conteúdo escrito e aspeto gráfico, é sobretudo pela feição absolutamente moderna desta última vertente que tem sido mais admirada. Apesar de cumprir escrupulosamente o preceito a que se propôs e ser composta por textos de inequívoca qualidade, é uma peça menos conhecida dentro do riquíssimo elenco das obras de Olisipografia, tendo caído num esquecimento que não tocou os trabalhos de Castilho, Vieira da Silva e Matos Sequeira, ainda hoje amplamente consultados e citados. Para isso muito contribuiu a longa espera entre a publicação do primeiro e do último fascículo e a opção pelo formato in-fólio47 que impede uma leitura cómoda antes da encadernação.

O lançamento do seu último fascículo, em abril de 1956, marcou simbolicamente o final da época dourada da Olisipografia e, simultaneamente, o derradeiro momento do seu aproveitamento e instrumentalização pelo poder político para uma propaganda de exaltação histórica da Lisboa, Capital do Império. Já depois das mortes de Vieira da Silva e de Norberto de Araújo, a saída de Pastor de Macedo da vice-presidência da CML em 1959 constituirá uma mudança de rumo no que concerne às publicações e realizações culturais camarárias, que passaram a ser em menor número/aparato e desenvolvidas por novos agentes que nunca conseguiram ter a visibilidade dos olisipógrafos clássicos. A morte de Matos Sequeira em 1962 encerrou definitivamente o ciclo.

Cerca de meio século depois, no contexto da Lisboa 94, Capital Europeia da Cultura e sob coordenação de uma olisipógrafa de outra geração, Irisalva Moita (1924-2009), foi publicado o Livro de Lisboa, um herdeiro fino-novecentista desenvolvido em onze capítulos assinados por historiadores, olisipógrafos, historiadores da arte e do urbanismo. Na introdução, Irisalva recua a 1947 para recordar, sem saudosismo, Lisboa, Oito Séculos de História e e a forma como esta “percorre a história da cidade em sequência cronológica, dando, contudo, prevalência aos aspectos ditos historizantes”, para imediatamente dela se distanciar ao assumir que a obra por si coordenada “não pretende ser uma actualização daquela obra nem em extensão, nem sob o ponto de vista metodológico”, devido à “maleabilidade de critérios” (Moita, 1994, p. 7), que permitiu diferentes tipos de abordagens conforme o que foi considerado mais importante em cada época. Todavia, do ponto de vista da estrutura e da organização das matérias, não parece que tenha conseguido o afastamento da obra de 1947 tão plenamente como pretendeu.

Mais recentemente, em 2008, José-Augusto França (1922-2021) publicou Lisboa. História Física e Moral, obra de grande fôlego (dividida em 11 fases compostas por 23 subcapítulos) que optou por escrever sozinho para obter um controlo da uniformização da qualidade dos textos, como o próprio reconhecerá. Mais de meio século depois da apresentação do primeiro esboço de Matos Sequeira para o que viria a ser Lisboa, Oito Séculos de História, era já outro o caminho que os estudos olisiponenses trilhavam, iniciado justamente por França no simbólico ano de 1962 com a defesa da sua tese de doutoramento Une Ville des Lumières: la Lisbonne de Pombal. Neste trabalho académico, o historiador da arte implementou um estudo modelarmente enquadrado na metodologia científica, desenvolvido à luz das modernas ferramentas das ciências sociais apreendidas na academia francesa. E com isso deu um definitivo impulso para o desenvolvimento do que poderemos chamar de Olisipografia Científica (em contraponto com a Olisipografia Clássica).

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1Documentos para a História da Cidade de Lisboa, coleção composta por 10 volumes, com 400 a 500 páginas cada.

2Criada na sessão camarária de 20 de julho de 1945, com alterações aprovadas na de 21 de fevereiro de 1946.

3V. Ata nº 81, pp. 18-20.

4Composta por Queiroz Veloso, Matos Sequeira, Pastor de Macedo e Norberto de Araújo.

5Posteriormente foi acrescentada a proposta de publicar a obra Plantas Topográficas de Lisboa (Augusto Vieira da Silva).

6Arquivo Municipal de Lisboa (AML), Caixa 16. Acta de 04/11/1944 [documento datilografado], s.p.

7AML, Arquivo Tomada de Lisboa aos Mouros, Caixa 27. Livro de Atas da Comissão encarregada do Estudo do Plano das Publicações, ata nº 2 (15/03/1945), f. 11.

8AML, Arquivo Tomada de Lisboa aos Mouros, Caixa 27. Livro de Atas da Comissão encarregada do Estudo do Plano das Publicações, ata nº 5 (25/05/1945), f. 38-39.

9AML, Caixa 16. Relatório (24/05/1945) [documento datilografado], f. 2.

10Matos Sequeira a 8 de novembro de 1945 e os artistas a 30 de maio de 1946.

11AML, Repartição dos Serviços Culturais, Livro de Ofícios Expedidos 1946, Ofício nº 853, de Joaquim da Silva Pinto endereçado a Jaime Lopes Dias, 20/06/1946.

12Contrato assinado a 21 de fevereiro de 1947.

13Cálculos baseados nas taxas de variação do Índice de Preço no Consumidor (IPC) do Instituto Nacional de Estatística para o período 1948-2022.

14Datilografados por Maria Raquel de Sousa Bella (escriturária do Grupo Amigos de Lisboa entre 1946 e 1980), à razão de 2$50 por página (Figura 4).

15Os quatro primeiros já se encontravam prontos e datilografados em maio.

16AML, Arquivo Tomada de Lisboa aos Mouros, Caixa 24. Carta enviada por Gustavo de Matos Sequeira a Jaime Lopes Dias, 22/08/1947.

17AML, Repartição dos Serviços Culturais, Livro de Ofícios Expedidos 1951. Ofício nº 1398 de Jaime Lopes Dias endereçado a Luís Pastor de Macedo, 31/10/1951.

18O preço de venda das publicações culturais da CML resultava do cálculo (aproximado) do custo total da obra a dividir pelo número de exemplares produzido.

19Segundo o IPC, corresponderia a cerca de 230€ a preços de 2022 (aos quais poderia acrescer o valor de uma hipotética encadernação).

20Foi justamente o nome dos três últimos que não constava do folheto de apresentação da obra.

21Três ou mais autores.

22AML, Repartição dos Serviços Culturais, Livro de Ofícios Expedidos 1944. Ofício 304/44/C-IV, de Jaime Lopes Dias endereçado ao Presidente da CML, 11/03/1944.

23AML, Caixa 16, Esbôço de Grupos de Assuntos a Tratar na Projectada Obra Sôbre Lisboa (s/d) [documento datilografado], s.p.

24AML, Arquivo Tomada de Lisboa aos Mouros, Caixa 27. Livro de Atas da Comissão encarregada do Estudo do Plano das Publicações, ata nº 2 (15/03/1945), f. 12.

25Até ter coordenado Lisboa, Oito Séculos de História, Matos Sequeira havia já trabalhado com diversos artistas, nomeadamente Alberto Sousa [Olivença (1924), Évora (1931), Figuras Históricas de Portugal (co-autoria de Bourbon de Menezes, 1933)], Roque Gameiro (Portugal de Algum Dia, 1931), Rocha Vieira [Queluz (1932) e A Nossa Lisboa (co-autoria de Pastor de Macedo, 1945)], Paulo Ferreira (Aldeias Portuguesas, 1939) e José Espinho (A Nossa Lisboa, 1945).

26Estava ainda por concretizar a sua maior e mais impactante realização neste contexto, a Maqueta da Lisboa pré-terramoto de 1755 (1954-1958, investigação de Matos Sequeira e execução de Ticiano Violante).

27“[Surgida em 1799,] diferencia[-a] [...] da anterior […] o modo de representação, e não só a secularização dos conteúdos. Este caracteriza-se pelo interesse quase arqueológico no passado histórico e pela eliminação de elementos que subverteriam a verosimilhança da representação, incluindo figuras alegóricas. [...] Os pintores visaram transmitir ao espectador a impressão de uma realidade histórica (Vlachou, 2016, p. 10).

28AML, Caixa 16. Relatório (24/05/1945) [documento datilografado], f. 1, 3.

29Inovando, contudo, na forma como retirou a estes elementos o valor de meros apontamentos decorativos (tendencialmente vegetalistas) e lhes incrementou uma dimensão ilustrativa por efeito da sua direta relação iconográfica com a temática dos capítulos.

30Publicada em 1921, com direção literária de Carlos Malheiros Dias (1875-1941), cartográfica de Ernesto de Vasconcelos (1852-1930) e artística de Roque Gameiro.

31Martins Barata ilustrou a capa de Ruas de Lisboa de Gomes de Brito (1935), diversas passagens de Peregrinações de Lisboa (1938-1939) e Legendas de Lisboa (1943), ambas de Norberto de Araújo - que o convidou para desenvolver o programa artístico do Pavilhão de Lisboa na Exposição do Mundo Português (1940). Almada foi o responsável pela conceção gráfica do programa das Festas da Cidade de 1934, do símbolo do Grupo Amigos de Lisboa (ca. 1936) e do desenho utilizado entre 1944 e 1950 na capa da Olisipo (publicação trimestral do referido grupo e cujo diretor era Matos Sequeira). E, como referido, Alberto Sousa havia já trabalhado com Matos Sequeira em algumas das suas obras.

32AML, Caixa 16. Relatório (24/05/1945) [documento datilografado], f. 1.

33Executados a tinta-da-china e aguarela ou guache.

34No âmbito da presente investigação foram identificados cerca de 80% dos referentes.

35Maioritariamente representações de peças do espólio do Museu Nacional de Arqueologia, mas também de um vaso grego do British Museum no qual é representado Ulisses amarrado ao mastro do navio (p. 54 - Figura 10).

36Casos das efígies do Infante D. Henrique (Painéis de São Vicente, p. 240) ou da de D. Miguel (retrato de João Baptista Ribeiro, p. 553).

37Dois aspetos da Tomada de Arzila das Tapeçarias de Pastrana (pp. 241 e 313).

38De D. Afonso IV (contendo uma das primeiras representações de Lisboa, p. 169) e D. João I (p. 237).

39Dinheiro de D. Afonso Henriques (p. 141).

40Rosa-dos-Ventos da carta de Vaz Dourado, de 1571 (p. 338).

41A Reunião dos Conjurados, existente no jardim do Palácio da Independência (p. 439).

42Busto de Duarte Pacheco no monumento erigido à sua memória em Loulé (p. 644).

43São diversos os referentes fotográficos (nomeadamente de monumentos), destacando-se a reprodução da icónica fotografia do grupo dos Vencidos da Vida (p. 629).

44Do Hospital de Santa Maria (p. 645).

45Almada já tinha utilizado anteriormente o pentalfa (ou pentagrama) mas sem o círculo ao centro.

46Cinco elementos que dividem partes dos textos e se repetem individualmente ao longo dos fascículos: dois selos de D. Afonso Henriques, uma barca com corvos afrontados, um corvo e um pentalfa com um círculo no centro.

47Em que a folha de impressão é dobrada uma vez, resultando em duas folhas que formam quatro páginas.

48* O presente artigo resulta da investigação realizada no contexto do projeto Olisipógrafos. Os Cronistas de Lisboa, coorganizado pela Câmara Municipal de Lisboa e pelo Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Recebido: 21 de Dezembro de 2022; Aceito: 23 de Junho de 2023

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