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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.18 Lisboa dez. 2022  Epub 08-Jul-2022

https://doi.org/10.48751/cam-g5s1-y740 

Dossier

O julgamento de si no outro: a viagem de Victor Cousin da França a países alemães e suas implicações pedagógicas

The judgement of the self in the other: Victor Cousin’s travel to German countries and its pedagogical implications

Alexandre Ribeiro e Silvai 
http://orcid.org/0000-0001-5898-9059

i FEUSP - Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 05508-040 São Paulo, Brasil. alexandrerib@usp.br


Resumo

O presente trabalho propõe-se a relatar as implicações pedagógicas da viagem de Victor Cousin da França para alguns países alemães, em 1831, a partir do relatório sobre a instrução pública por ele próprio elaborado. O objetivo foi averiguar a dimensão transnacional dessa viagem, considerando-se a dimensão comparada e analítica das reflexões desenvolvidas pelo autor acerca de um território que lhe era estrangeiro. Do ponto de vista do método, o estudo do relatório, focado em sua primeira parte, ocorreu a partir de categorias temáticas, eleitas como ferramentas operatórias oportunas para a abordagem do tema. Como resultado da investigação verificou-se que havia uma via de mão dupla no olhar de Victor Cousin sobre a realidade educacional alemã. Ao mesmo tempo em que expressava sua admiração e estranhamento com aquilo que presenciava, manifestava também sua dimensão comparada, dado que seu olhar tinha lentes francesas para observar aquela realidade estrangeira.

Palavras-chave: Victor Cousin; Educação Comparada; História da Educação; Formação de Professores; História Transnacional

Abstract

This article aims to report the pedagogical implications of Victor Cousin’s travel to some German countries, in 1831, based on the report about public instruction elaborated by himself. The objective was to investigate the transnational dimension of such travel, by considering the analytic and comparative dime nsion of the reflection developed by the author about a territory that was foreign to him. Regarding methodology, the study of the report, focused on its first part, occurred from thematic categories elected as appropriate operatory tools to approaching the theme. As result of the investigation, it was verified that there was a two-way road in Victor Cousin’s look on the German educational reality. While he expressed his admiration and strangeness with what he saw and witnessed, he simultaneously expressed his comparative dimension, since his look had French lens to observe that foreign reality.

Keywords: Victor Cousin; Comparative Education; History of Education; Teachers Training; Transnational History

Introdução

Em 1832, foi publicado em Paris o Rapport sur l’état de l’instruction publique dans quelques pays de l’Allemagne, et particulièrement en Prusse, de autoria de M. Victor Cousin, cujas credenciais vão estampadas na contracapa: “conselheiro de estado, professor de filosofia, membro do instituto e do conselho real de instrução pública”. De acordo com o preâmbulo, escrito em 10 de fevereiro de 1832, o relatório - ou antes, conjunto de relatórios - resultou da missão confiada a Victor Cousin pelo Conde de Montalivet, então Ministro da Instrução Pública francês, em maio de 1831. O objetivo era “[...] recolher documentos autênticos e completos sobre as diversas partes da instrução pública no reino da Prússia” (Cousin, 1832, secção “Avant-propos”, par. 1)1. O tempo da viagem seria curto, com partida no final de maio e retorno a Paris previsto para meados de julho, perfazendo cerca de um mês e meio.

Tratava-se, pois, de uma missão ou viagem pedagógica, uma ida a campo para observar, refletir, classificar, mensurar, julgar e aprender. Em suma, comparar e, ato contínuo, tirar conclusões práticas a serem transmitidas em forma de sugestões de reforma, como se evidencia no seguinte trecho: “Por toda parte comparei o que via na Alemanha com o que deixava atrás de mim na França; e essa comparação me sugeria naturalmente ideias de reforma que expus com uma inteira franqueza” (Cousin, 1832, secção “Avant-propos”, par. 2).

Como apontam Mignot e Gondra (2007), na constituição dos diversos sistemas nacionais de educação, as viagens pedagógicas assumiram o caráter de estratégia de aproximação a modelos pedagógicos estrangeiros, evidenciando processos de empréstimos e diálogos com experiências internacionais nos mais diversos domínios do campo educacional. Alinhando-se a tal temática, o objetivo deste texto é investigar como Victor Cousin construiu seu raciocínio no Rapport... a partir da combinação entre argumentos comparatistas e propostas de reforma educacional direcionadas a seu país de origem. De fato, é notório como ambas as dimensões se entrecruzam na densa e alargada tessitura composta ao longo do relatório. Nesse sentido, pergunta-se: de quais procedimentos Cousin lançou mão para, por assim dizer, colher os dados que alimentariam suas reflexões e escritos? Com que tipos de evidências procurou lidar?

A partir do exposto, pretende-se vislumbrar o que e como disse o comparatista educacional francês, atentando para os termos em que realizou as discussões. Considera-se importante divisar os elementos, sejam teóricos, práticos, morais, ou de trajetória pessoal/profissional, mobilizados na execução de uma missão pedagógica e, sobretudo, no processo de relato sobre o que se presenciou. A obra permite, também, evidenciar a circulação de ideias pedagógicas entre dois países europeus no início da década de 1830, nesse caso, a França e um de seus espelhos (Matasci, 2010).

Por um lado, visando uma delimitação mais adequada para as dimensões de um artigoii, o foco recairá sobre a primeira parte do Rapport..., composta por cinco cartas produzidas nos primeiros dias de Cousin na Alemanha e, assim como a segunda parte - dedicada à Prússia - endereçadas ao Ministro da Instrução Pública francesa. Por outro, tal mirada revela-se provocativa pelo fato de que, sendo a Prússia o destino original, posteriormente evidenciado no título dado à obra publicada, Cousin acabou detendo-se, a caminho de Berlim, capital do então estado prussiano, em outras cidades alemãs: “[...] grandes estabelecimentos de instrução pública de todos os graus e de todos os gêneros, em Frankfurt, em Weimar, em Leipzig: eu não podia ignorá-los [...]” (Cousin, 1832, secção “Avant-propos”, par. 1).

Esses contatos, a princípio imprevistos, levaram-no a dispender alguns dias em visitas e a escrever sobre o que via, gerando as cinco cartas - consideravelmente extensas - que compõem e nomeiam a primeira parte do Rapport..., servindo-lhe, de acordo com Cousin, como uma espécie de introdução. As missivas foram escritas uma a uma nos próprios locais, no fim do dia, após o trabalho de observação em campo, “[...] de certa forma, sob o próprio ditado dos fatos, no movimento e na precipitação da viagem” (Cousin, 1832, secção “Avant-propos”, par. 2). Pode-se aventar, certamente, a possibilidade de terem sido editadas em alguma medida quando da publicação. De sua parte, Cousin assegura ao leitor que as cartas eram ali impressas “quase como foram escritas e enviadas imediatamente ao Ministro” (Cousin, 1832, secção “Avant-propos”, par. 2). Em todo o caso, a intenção foi a de apresentá-las como um relato mais ou menos coerente, compilado a partir de partes construídas dia a dia conforme avançava em terreno alemão.

O campo da educação comparada: da emergência no século XIX às mudanças contemporâneas

Aquela era uma época que iniciava a constituição do território do que se passaria a nomear Educação Comparada. Considera a literatura específica acerca do tema que os estudos comparativos sob a clivagem da ciência foram inaugurados por Marc-Antoine Jullien, em Paris no ano de 1817. Em sua obra intitulada Esquisse et vues préliminaires d’un ouvrage sur l’éducation comparée, Jullien coloca como finalidade desse novo campo o aperfeiçoamento dos sistemas nacionais de educação. Ali, ele desenhava um claro sistema e um método de pesquisa comparada na educação: “propôs um estudo analítico da educação em todos os países, com a finalidade de aperfeiçoar os sistemas nacionais, levando-se em conta as modificações e as transformações que as circunstâncias e as condições locais exigissem” (Hans, 1971, p. 3). Jullien descrevia o que supunha ser o estado atual de uma apreensão científica dos fenômenos educacionais a partir da “comparação de informações estatísticas produzidas pelos governos de vários países sobre financiamento para educação, matrícula de alunos, número de professores e outros aspectos dos sistemas educacionais” (Roldán Vera e Fuchs, 2021, p. 8).

A Educação Comparada, enquanto novo campo dos estudos pedagógicos tributário da História da Educação, foi então, marcada pela mobilização, não apenas da Estatística, mas também da Filosofia da Educação. Em uma primeira etapa de constituição do terreno da Educação Comparada, ocorria meramente uma catalogação descritiva dos dados: “fazia-se a comparação das informações reunidas para possibilitar a transplantação das melhores práticas de um país para o outro” (Bereday, 1972, p. 34). Estudavam-se os sistemas estrangeiros para saber quais eram as práticas a serem emprestadas. Os métodos de comparação se apropriariam, posteriormente, de conhecimentos da Sociologia, da Antropologia e da Economia.

Conforme destaca Nicholas Hans, a Educação Comparada configurar-se-á historicamente como um sinal de consolidação do caráter nacional. Mais do que isso, “a educação passa a ser um novo fator na modelagem desse mesmo caráter nacional” (Hans, 1971, p. 15). A propósito disso, Hans evoca as palavras de I. L. Kandel em 1933, nos seus Studies in comparative education, livro que teria sido adotado como manual didático para uso em universidades daquele tempo. Nesse livro, o problema da comparação era apresentado como um elemento de determinação do caráter dos sistemas nacionais de educação: “os problemas e os fins da educação em geral tornaram-se algo semelhantes em muitos países, mas as soluções adotadas foram influenciadas pelas diferenças existentes entre as tradições e as culturas de cada um” (Kandel apudHans, 1971, p. 7). No limite, os estudos comparados da educação pretenderam conferir maior cientificidade ao referido campo pedagógico. Nóvoa (1994, p. 12) ressalta, a propósito disso, a “invenção do raciocínio estatístico” como um vetor fundamental da configuração da disciplina de Educação Comparada.

Mecanismos de cooperação internacional, como a UNESCO, OCDE, Banco Mundial, são criados especialmente na segunda metade do século XX, indicando uma institucionalização dos caminhos da Educação Comparada. De acordo com Nóvoa, entretanto, foi a partir dos anos 70 do século XX que, pela primeira vez, o território da Educação Comparada foi interpelado, de maneira mais rígida, pelas teorias do sistema mundial. Citando John Meyer e seu trabalho sobre a irradiação da escola de massas em todo o mundo, Nóvoa conclui que a expansão da escola para todos corresponde “a um processo mais influenciado pela posição que cada país ocupa no sistema mundial do que pelas suas características nacionais” (Nóvoa, 1994, p. 15). Nóvoa já indica aqui a relativização dos fatores de ordem exclusivamente nacional para focar na ideia de um sistema mundial no qual as ações estabelecem redes variadas de entrecruzamento. A escola, para Nóvoa, é uma instituição mundial e, ao mesmo tempo, uma realidade nacional. De alguma maneira, a escola transforma as crianças em alunos (Boto, 2012). A Educação Comparada, por sua vez, debruça-se sobre a mensuração dos dados a propósito de tais alunos, com toda uma “aritmética de Estado” e com a definição de um “raciocínio populacional - que trata os alunos como populações e encontra diferentes estratégias para as gerir”2. Trata-se, nesse sentido, de procurar regularidades, permanências, mas identificar também as particularidades, nessa arqueologia de organização estatística que mapeia os diferentes Estados e suas diferentes culturas. Nóvoa e outros3 concluíam em Seminário de Trabalho do grupo Prestige que a Educação Comparada que, àquela altura, estava consagrada internacionalmente, precisava se dotar de um novo repertório teórico e de práticas diferenciadas.

No mesmo documento, Nóvoa e outros4 apontam que a história necessita de uma perspectiva problematizadora; e o desafio da Educação Comparada é também o de transcender uma perspectiva descritiva, para que se possa efetivamente estabelecer uma reflexão comparativa que coloque em causa “as unidades tradicionais de comparação, tanto as unidades de observação como as unidades de análise, situando as questões nacionais no contexto mais amplo do sistema mundial”5. Tratava-se, nessa medida, de confrontar os padrões e as escalas, mas também de identificar parâmetros de relações e interações entre as diferentes culturas sociais e culturas escolares.

Com o passar do tempo, a Educação Comparada entrou em refluxo e tem sido atualmente substituída por aquilo que se convencionou chamar de História Transnacional da Educação. Essa nova tendência difere da perspectiva anterior basicamente por dois aspectos: primeiramente porque descoloniza o território, desloca a perspectiva, recusa a ideia de influência e passa a compreender a dimensão da circularidade nas trocas interculturais, ou seja: não se transfere algo de lá para cá; ou dos países ditos mais desenvolvidos para aqueles considerados subdesenvolvidos. Há uma via de mão dupla nessa interação, mediante a qual se procede a mecanismos recíprocos de apropriação. Além desse aspecto, como bem sinalizam Alexandre Ribeiro e Silva, Ana Carolina de Carvalho Guimarães e Diana Gonçalves Vidal, a ideia de história nacional e a ideia de escola nacional - e poderíamos acrescentar, a própria ideia de educação comparada - “tenderam a naturalizar o Estado-Nação, encapsulando as análises e obstaculizando a percepção de conexões, contatos, trânsitos entre e através das fronteiras” (Silva, Guimarães e Vidal, 2021, p. 2). O pressuposto da história transnacional é o de que os fenômenos educativos transcendem a esfera nacional; indo além do nacional e, muitas vezes, desconsiderando mesmo a escala da nação. É o que dizem Eugenia Roldán Vera e Eckhardt Fuchs (2021, p. 6) quando argumentam que tal perspectiva é antes uma abordagem de pesquisa do que um método de intervenção. Substitui-se, portanto, a perspectiva internacional e comparada, à luz de uma outra referência que pressupõe a circulação mais ampla e mais livre de práticas e de saberes.

Abordando explicitamente o conceito de Educação Comparada, Roldán Vera e Fuchs vinculam essa disciplina e o território que lhe é próprio à crença na existência de valores humanitários universais:

Esse paradigma em parte alimentou a suposição de que países poderiam apreender uns com os outros em termos de políticas e filosofias educacionais e que estas últimas poderiam ser transferidas de um contexto para o outro para promover o desenvolvimento, pois, em última análise, todos estavam em estágios diferentes do mesmo caminho para a civilização ou modernização. Esse paradigma e as premissas relacionadas se tornaram muito menos explícitos e passaram por uma crítica considerável nas últimas três décadas, com o foco do campo cada vez mais voltado para a transmissão transcultural do conhecimento educacional e para as implicações políticas, sociais e econômicas das tendências voltadas à internacionalização da educação. (Roldán Vera e Fuchs, 2021, p. 9)

Com a globalização, todo um sistema de interconectividade se estabeleceu. A circulação em rede de mensagens, de informações e de conhecimentos possibilitou um deslocamento desse olhar, já que a passagem de um objeto de um local para o outro não significa, em primeiro lugar, que o objeto é necessariamente arrastado do contexto mais desenvolvido para um contexto por ele, portanto, colonizado. Além disso, não significa também que esse objeto não se reconfigure ao penetrar em outra realidade cultural (Espagne, 2013, p. 1). Daí a possibilidade de se considerar a dinâmica de hibridações e de circulação cultural - tal como concebe Michel Espagne. Porém, como assinalam Bernhard Struck, Kate Ferris e Jacques Revel (2011, p. 579), a história transnacional não recusa o impacto da nação na constituição de subjetividades e também de práticas sociais e culturais. Mas a nação deixa, entretanto, de ser a principal narrativa. Aliás, como bem assinala Benedict Anderson, a definição correta de nação seria “comunidade imaginada”: “é imaginada porque até os membros da mais pequena nação nunca conhecerão, nunca encontrarão e nunca ouvirão falar da maioria dos outros membros dessa mesma nação, mas, ainda assim, na mente de cada um existe a imagem de sua comunhão” (Anderson, 2012, p. 25). A nação, a despeito de tudo, permanece como um referente silencioso, à espreita de todas as interpretações que se proponham a esfumaçá-la. Nós veremos adiante como a questão da nação - ainda que se configure como uma comunidade imaginada - impacta os parâmetros de comparação entre França e Alemanha no relatório de Cousin.

A missão pedagógica e a primeira parte do rapport...: relato de circulação de ideias pedagógicas e propostas reformistas

Veja-se, de início, o trajeto realizado por Victor Cousin nos primeiros dias da missão. O filósofo partiu de Paris às seis horas da noite do dia 24 de maio, chegando em Metz na noite de 25 para 26 e partindo imediatamente para Frankfurt, por onde adentrou o território alemão na noite seguinte, dia 27. Ali, durante todo o dia 28, realizou o primeiro trabalho de observação nos estabelecimentos de instrução pública e compôs a primeira carta. Abrindo o texto, tem-se um breve sumário dos assuntos nele encontrados - procedimento que se repetiria ao longo de toda a obra: “Um dia em Fankfurt sobre o Meno. - Estabelecimentos científicos e literários. - Instrução popular. - Escola média. - Escola modelo. - Ginásio. Sua constituição interior. Plano de estudos. Quadro de repartição das lições. - Conclusões práticas” (Cousin, 1832, p. 1).

No dia seguinte, Cousin se deslocou para o Grão-Ducado de Saxe-Weimar, mais especificamente, para a cidade de Weimar, onde chegou na madrugada de 30 para 31 de maio. Ali pôs-se ao segundo dia de trabalho, cujo fruto foi a segunda carta, também escrita ao fim da jornada, abordando os seguintes tópicos: “Grão-Ducado de Saxe-Weimar. - Organização geral da instrução pública. - Instrução popular. Escolas de vila. Escola burguesa de Weimar. Escola normal primária” (Cousin, 1832, p. 18). Já no primeiro parágrafo, Cousin anuncia ter tomado a decisão de passar dois dias em Weimar, o que lhe permitiria observar “[...] o primeiro sistema um pouco amplo de instrução pública que se apresenta a mim” (Cousin, 1832, p. 18).

Assim procedeu, uma vez que o dia 1º de junho foi igualmente dedicado a Weimar, data em que redigiu a terceira missiva, sumarizada da seguinte forma: “Retorno sobre a instrução primária. - Instrução secundária. O ginásio de Weimar. - O seminário filológico. - Universidade de Jena. - Orçamento. - Conclusões” (Cousin, 1832, p. 47). Cada uma das duas cartas dedicadas a Weimar tem 28 páginas, quantidade bem superior à única dedicada a Frankfurt, cujo relato soma 16 páginas. Isso se explica naturalmente pelas diferenças na extensão da malha de instrução pública entre as localidades, já que em Weimar Cousin pôde analisar estabelecimentos que não existiam em Frankfurt, nomeadamente, um seminário para formação de professores secundários e a universidade.

Após dois dias em Weimar, Cousin rumou a Leipzig em 2 de junho. No caminho, um desvio no plano: durante a manhã, deteve-se algumas horas em Pforta, onde encontrou um ginásio que funcionava em regime de internato. Esta instituição chamara sua atenção pois, após ter visitado e escrito sobre ginásios de alunos externos tanto em Frankfurt como em Weimar, revelou-se “[...] impaciente por ver um estabelecimento desse gênero na Alemanha” (Cousin, 1832, p. 76). Julgando importante a questão, aproveitou aquela oportunidade e escreveu a sua quarta carta, cujas 14 páginas são dedicadas unicamente ao pensionato de instrução secundária em Pforta.

Essa missiva foi redigida em 2 de junho, já em Leipzig, indicando que Cousin ali chegou no mesmo dia, após a parada momentânea mencionada acima. Nesse ponto, destaca algo das impressões que colhera até então:

“À medida que avanço na Alemanha, a instrução pública se apresenta a mim sobre uma maior escala, mas sobre o mesmo plano. O fundo é quase o mesmo, porque, no final das contas, a Alemanha é uma; as diferenças são reflexo dos diversos estados da Alemanha; e, quanto mais aqueles que encontro se aproximam da França por sua grandeza e sua extensão, mais eles me fornecem interessantes assuntos de estudos” (Cousin, 1832, p. 91).

Em Leipzig, cidade pertencente ao Reino da Saxônia, Cousin dispendeu dois dias de observação, registrados na quinta carta, datada de 4 de junho, onde aborda: “Reino da Saxônia. Organização geral da instrução pública. - Instrução primária. - Ginásios. Escola de São-Tomás. - Seminário filológico. - Universidade de Leipzig” (Cousin, 1832, p. 91). Nesse ponto, finda-se o conjunto de missivas publicado como a primeira parte, ou introdução do Rapport..., e inicia-se a segunda parte, com o relato a partir de Berlim.

Uma vista rápida sobre os tópicos enumerados ao início de cada carta fornece um bom panorama dos temas educacionais analisados por Cousin. Um modo mais elementar de perceber o conjunto seria o de acompanhar a exploração progressiva realizada pelos níveis de ensino, começando pela instrução primária, passando para a secundária e, por fim, alcançando o ensino superior, tal como a ordem geralmente adotada na disposição dos assuntos. Outra classificação possível, similar àquela e de alguma maneira complementar, é repartir o relato segundo os tipos de estabelecimentos e suas variações: escolas primárias/populares, ginásios de externos ou pensionatos, estabelecimentos de formação de professores primários e secundários, e universidades.

Esses dois modos seriam suficientes para entrever a diversidade de temas abordados por Cousin ao passar por todos os níveis de ensino e suas diferenciações internas. No entanto, de alguma forma costurando por entre as cinco cartas, procuraremos pinçar quatro dos tópicos analisados no Rapport..., atentando para os diferentes tipos de dados ou evidências e o modo com que foram colhidos nas diversas situações. Dessa forma, a partir de agora, o texto passeará, à maneira de Cousin, pelos lugares que este visitou, evidenciando de modo transversal - e propositalmente mais descritivo - alguns elementos que compõem a plêiade de tópicos educacionais construída nas comparações entre os países alemães visitados e a França.

Livros de leitura

Em um primeiro momento, esse tema aparece como algo não planejado. Iniciando sua viagem rumo a Frankfurt, trajeto durante o qual não disporia de tempo para visitar escolas, Cousin teve seu olhar capturado pelo que julgou serem “sinais inequívocos” do estado avançado em que se encontraria a instrução popular naqueles territórios: “Por toda parte, nas menores vilas, encontrei bandos de crianças da mais tenra idade, a maior parte pertencendo às últimas classes do povo, sem sapatos, com a blusa azul e o cinturão de couro, e sob o braço uma ardósia e um livro de leitura, Lesebuch” (Cousin, 1832, p. 2). Guiado pelo interesse, alega ter, mais de uma vez, descido de seu carro e ido examinar tais livros de leitura, que considerou bem arranjados, descrevendo em resumo a organização dos conteúdos, com destaque para a gradação destes - iniciando com o alfabeto e progredindo até palavras e, por fim, frases. As crianças de mais idade tinham por livros de leitura e estudo a Bíblia, na tradução de Lutero - considerada por ele superior à que era utilizada na França -, o Catecismo e a História Bíblica.

Aqui, além de tecer elogios à educação alemã a partir dos livros carregados pelas crianças, Cousin aproveita para expor seu pensamento sobre a instrução pública, especialmente no que concernia ao papel da aprendizagem da leitura junto ao povo: “Esses três livros compõem aqui a base da instrução popular; e todo homem sábio se regozijará com isso, porque, para três quartos dos homens, a única moral é a religião. Os grandes monumentos religiosos dos povos são seus verdadeiros livros de leitura [...]” (Cousin, 1832, p. 2). Leitura, moral e religião andavam em conjunto na formação das classes populares. Sobre o tópico, arremata, estabelecendo a função de cada livro: “As santas Escrituras, com a História bíblica que as explica, e o Catecismo que as resume, devem fazer a biblioteca da infância e das escolas primárias” (Cousin, 1832, p. 2).

O filósofo adentraria novamente o tema em suas observações sobre a instrução primária em Weimar, especificamente, na terceira carta. Cousin chama atenção para os livros utilizados nas diversas escolas populares de Saxe-Weimar. Nesse quesito, como em outros, seu país de origem é retratado em desvantagem: “Nada é mais difícil de se fazer bem do que semelhantes livros, e a falta de obras convenientes nesse gênero é uma das grandes chagas da instrução popular na França” (Cousin, 1832, p. 48). Em seguida, analisa quatro livros de leitura oficialmente adotados pelo consistório - órgão responsável pela inspeção do ensino - para uso com alunos de diferentes faixas etárias, dos mais novos aos mais velhos. Fornece uma visão detalhada das obras, indicando título e organização dos conteúdos e, às vezes, ano de edição e quantidade de páginas.

Ao fim, apresenta-se uma avaliação geral dos livros: “O caráter comum dessas quatro obras é, em diferentes graus, a solidez que o talento consciencioso dos alemães leva a toda parte, com uma certa gravidade interior que acompanha sempre o sincero amor à coisa sobra a qual se escreve” (Cousin, 1832, p. 51). Porém, mais que tecer elogios, Cousin expõe seu pensamento sobre um tema mais amplo, qual seja, a aprendizagem na infância, e de que forma os livros deveriam conduzi-la. Em um dos extremos a serem evitados, estaria o pedantismo e, no outro, a pretensão de tornar tudo demasiadamente fácil. Agindo com equilíbrio, o ensino ideal demandaria das crianças a atenção que podem dar, nem mais, nem menos. Para ele, o pior serviço que poderia ser prestado era fazerem-nas crer que o aprendizado é livre de dor, de sacrifício.

Essas considerações endereçavam-se inicialmente ao que Cousin chamou de “lado científico” dos conteúdos a serem aprendidos na infância. Havia também a aquisição da moralidade, ponto que o levava a criticar o que considerava como o grande defeito dos livros escolares para crianças, um “insípido sentimentalismo” que seria mais adequado “[...] para se chamar ao coração e à imaginação do que à razão e ao espírito” (Cousin, 1832, p. 51). Advogava contra uma tal “fraca instrução” a aprendizagem racional dos “princípios verdadeiros sem os quais não há moral alguma” (Cousin, 1832, p. 51). Nessa perspectiva, era necessário não subestimar a capacidade infantil: “Longe disso, penso, com Kant, que as crianças são mais susceptíveis do que pensamos de compreender os princípios da moral em toda a sua verdade, ou seja, em toda a sua seriedade, quando lhes são bem explicados” (Cousin, 1832, p. 51).

A questão central, era, portanto, de método, nesse caso, da organização dos saberes nos livros. Novamente, as obras francesas eram postas em xeque: “[...] temo que a maior parte dos livros que colocamos entre as mãos da infância, à força de serem superficiais e insípidos, sejam mais perigosos que úteis” (Cousin, 1832, p. 51). Faltar-lhes-ia austeridade, precisamente o que caracterizaria a moral. Sintetiza, assertivo: “Esforço e sacrifício, essas são as condições para saber alguma coisa e para ser honesto” (Cousin, 1832, p. 51), as quais não deveriam ser disfarçadas na infância. Desse modo, declarava preferir “[...]à leveza e sentimentalismo dos nossos livros populares, a solidez e a seriedade dos da Alemanha. Ao menos estes são instrutivos, falam com autoridade, contêm uma profusão de coisas úteis e o povo, ao sair das escolas, consegue lê-los e relê-los sem cessar com proveito.” (Cousin, 1832, p. 51-52).

Classificação das escolas primárias

Um ponto ao qual Cousin se refere constantemente são os diferentes tipos de escolas primárias existentes na Alemanha, pois cada um possuía conteúdos, públicos, preços e finalidades distintas. Por exemplo, em Frankfurt as mais simples eram as escolas populares, ou Volkschule. Em seguida, ocupando uma espécie de lugar intermediário entre os níveis primário e secundário, havia a escola média - école moyenne, ou Mittelschule, para meninos e meninas, onde oferecia-se, na avaliação de Cousin, uma instrução um pouco mais elevada que nas primeiras, porém, não muito. O francês concordava com esse modelo, divisando para ele uma função bastante precisa junto à sociedade: “É uma grande escola primária, como é necessário nas cidades para as crianças que não devem seguir uma profissão liberal, e que, no entanto, precisam de uma cultura mais extensa que a dos filhos de camponeses ou das crianças pobres” (Cousin, 1832, p. 4). Entre suas preocupações estava algo que poderíamos chamar de utilidade social dos conteúdos escolares:

O objetivo desta escola é dar às crianças que a frequentam toda a cultura que lhes é necessária, sem lhes fazer entrar no domínio dos estudos clássicos. Dá-se uma cultura moral pelo ensino da religião; uma cultura intelectual pela leitura, escrita, história natural, geografia, história, cálculo e geometria; enfim, uma cultura aestética, como se diz na Alemanha, pelo canto e pelo desenho (Cousin, 1832, p. 4).

Anexa à escola média, existia uma escola modelo, Musterschule, onde o ensino era um pouco mais elevado, o que Cousin demonstra a partir de um quadro de repartição semanal das aulas. Em Weimar, foram verificados também dois tipos de escola primária: as escolas de vila, pertencentes às localidades menores, e a “grande escola primária”, chamada de Bürgerschule, ou escola burguesa.

Cousin adotou, mais de uma vez, a abordagem de deslocar os estabelecimentos alemães para a lógica da organização francesa. Nesse caso, a escola primária burguesa de Weimar foi traduzida como “escola primária do primeiro grau”, nome que a ela seria dado na França. Tratava-se de um estabelecimento aberto a todas as crianças da cidade, meninos e meninas. As famílias burguesas mais ricas enviavam seus filhos, que se encontravam com os das mais pobres. A instrução era quase a mesma que nas outras escolas primárias, porém mais cuidadosa, então o preço era mais elevado. Dividia-se em quatro classes, e cada uma com várias subdivisões. Cousin apresenta o quadro de distribuição das lições, de acordo com as diferentes classes e horas do dia. Em seguida, faz considerações sobre o prédio e sobre a organização dos alunos nas salas. Não chega a falar de métodos de ensino, mas afirma ter assistido a aulas de diversas classes e descreve uma, de instrução moral e devoção, para meninas, que lhe impressionara particularmente.

Em Leipzig, Cousin destaca dois grandes estabelecimentos de instrução primária; um destinado a atender gratuitamente crianças pobres - Freyshule - e também uma Bürguerschule, como em Weimar, para alunos advindos da burguesia. Sobre ambas, foram apresentados detalhes como graduação em classes, programas de ensino, valores pagos e quantidade de alunos.

Formação de professores: aperfeiçoamento pela prática

Em Weimar, Cousin observou estabelecimentos de formação de professores primários, a escola normal primária, e também secundários - uma instituição nomeada como seminário filológico -, descritos na segunda e terceira cartas, respectivamente. Entretanto, gostaríamos de chamar atenção para outra maneira de formação, ou mais adequadamente, aperfeiçoamento, de mestres das escolas primárias.

O olhar de Cousin foi atraído por determinadas práticas adotadas naquela cidade, ou, nas suas palavras, “[...] alguns costumes que seria possível transportar para a França, e que dão aqui os mais felizes resultados” (Cousin, 1832, p. 35). As atividades voltavam-se essencialmente para os professores primários, visando a construir, ou mesmo, controlar, seus saberes e práticas. Em primeiro lugar, a realização, duas vezes por ano, de uma conferência entre professores de vilas circunvizinhas para discutirem métodos e resultados obtidos, de forma a aperfeiçoá-los e propagar aqueles reconhecidos como os melhores durante a reunião.

Fora instituído, também, um círculo de leitura por meio do qual enviavam-se aos mestres as melhores revistas e livros publicados sobre instrução primária; esse material, destinado a circular entre esses sujeitos, era financiado por cotas pagas por eles mesmos, ao que socorriam, quando necessário, os fundos da comuna, da igreja ou da caixa geral. O procedimento teria efeitos não somente práticos, mas também na representação sobre os professores: “Sua instrução eleva sua posição e os tornam homens consideráveis em suas localidades” (Cousin, 1832, p. 36). A consideração, note-se, é semelhante à imagem construída acerca dos professores-reitores dos ginásios, que provavam seu valor a partir da produção intelectual.

Outra medida consistia em visitas feitas por mestres a escolas vizinhas, configurando uma espécie de aprendizagem prática do ofício. Algumas vezes, estes eram autorizados a passar algum tempo observando os trabalhos da escola primária de Weimar - equivalente a uma escola burguesa na França, ou seja, de um grau já mais avançado -, tida por Cousin como a melhor de seu gênero, ao passo que também poderiam assistir a aulas na escola normal, também localizada em Weimar, chamada Seminário para os mestres de escola.

Ideias sobre formação de professores secundários: a escola normal francesa como modelo

Como dito no item anterior, Cousin teve contato com a formação de professores secundários na Alemanha em Weimar, além de Leipzig. É oportuno deter-se no tema, ainda que brevemente, visto que as ideias expostas nessa ocasião permitem perceber um redimensionamento na imagem francesa perante a alemã, quer dizer, um ponto em que o sistema educacional francês se encontrava em vantagem.

O órgão em questão era denominado seminário filológico, e Cousin inicia sua análise, com efeito, pelo nome. Segundo ele, tal denominação já fornecia uma ideia do tipo de ensino aí predominante, e, recuperando suas críticas ao programa ginasial, afirma que um reproduzia a falta característica do outro: se os ginásios eram demasiado filológicos, era porque o seminário também o era. O instituto, de acordo com Cousin, era falho, pois não formava professores de matemática, nem de física e história natural, nem de filosofia, o que redundava na falta de mestres qualificados nessas matérias para atuarem nos ginásios, ou, mesmo, na total ausência destes.

Invertendo por um momento a lógica comparatista, Cousin apresenta o modelo francês como a melhor solução para a Alemanha:

Se se quer elevar a instrução matemática e filosófica dos ginásios, é preciso estabelecer seminários de filosofia e de matemática, assim como o seminário filológico, ou, preferivelmente, é necessário fundi-los todos juntos em um seminário completo destinado a formar professores para todas as seções do ensino dos ginásios, quer dizer, criar uma escola normal semelhante à nossa (Cousin, 1832, p. 58).

Ao fim desse trecho, Cousin inseriu uma nota de rodapé convidando à consulta de uma edição de outubro de 1830 do Moniteur, periódico francês em circulação na época, na qual constavam os novos regulamentos da escola normal de Paris. Assim, em um duplo movimento, Cousin afirma a superioridade tanto da formação de professores secundários, quanto do programa de ensino francês para esse nível, e faz propaganda de uma medida renovadora de uma importante instituição educacional francesa que era, não por acaso, um de seus lugares de atuação.

Conclusão

Nas descrições do percurso da Educação Comparada, o Rapport... figura entre os pioneiros dessa disciplina, atuantes na primeira metade do século XIX. Holmes (1981), por exemplo, identifica naquele momento o “empréstimo cultural seletivo”, tendência em que aloca Victor Cousin e seu estudo sobre a instrução pública na Prússia, e ressalta a confiança deste na capacidade francesa de não perder sua identidade ou unidade das tradições ainda que se alimentasse dos aspectos considerados positivos de um modelo estrangeiro. Para Holmes (1981), o empréstimo cultural seria uma espécie de “educação comparada mal concebida”, substituída por tendências posteriores surgidas com o desenvolvimento do campo.

Ao discutir a questão da coleta de dados, considerada um dos componentes históricos da Educação Comparada, Holmes (1981) avalia que os trabalhos iniciais da área pouco contribuíram para uma “ciência do comparativo”, pois teriam dado pouca atenção ao problema da observação e classificação dos fatos educacionais. Ao analisar o relatório de Cousin sob esse prisma, o autor restringe-se a reproduzir sua afirmação de que procedera sempre da mesma forma na Prússia, iniciando pela legislação e em seguida inspecionando-a. De fato, esse trecho, visto isoladamente, dá a impressão de certa superioridade das leis e regulamentos na construção do olhar de Cousin sobre seu objeto.

Entretanto, se observarmos as cartas sobre os outros países alemães visitados, é possível afirmar que há diversidade, ao invés de unicidade, nos tipos de evidências coletados pelo filósofo francês. Certamente, leis foram citadas e transcritas em alguns momentos, porém, dividem espaço com programas de aulas semanais, conteúdos de livros de leitura, títulos de dissertações escritas por professores e descrições de rituais escolares. Em termos procedimentais, além do estudo de leis e regulamentos, Cousin lançou mão também de entrevistas com diretores de estabelecimentos e observação de trabalhos intelectuais produzidos por estes, além de assistir a algumas aulas, destacando métodos de ensino.

Beech (2006), ao discutir o tema da transferência educacional na Educação Comparada ao longo do tempo, aponta para continuidades e mudanças, destacando, assim como Holmes, a seletividade de Cousin ao procurar escolher o que poderia ser tomado de empréstimo do exterior para melhoria do sistema educacional nacional - pensamento típico daquele momento do século XIX. Nesse sentido, Cousin via a transferência como possível e desejável, acompanhada por um processo adaptativo quando o contexto local assim o ditasse. Porém, diferentemente de Holmes (1981), Beech (2006) não situa o trabalho do francês como ponto primitivo em uma linha evolutiva da Educação Comparada, o que é mais profícuo em termos de análise.

Uma questão instigante sobre os trabalhos produzidos pelo comparatista educacional Victor Cousin são as leituras realizadas por seus contemporâneos. É o caso, por exemplo, da análise de Goodman (2002) sobre a tradução do Rapport... para o inglês realizada por Sarah Austin em 1834. A autora demonstra que não houve uma simples passagem de um idioma a outro, mas também a intenção de fornecer evidências para o debate político sobre educação nacional na Inglaterra, questão ainda controversa à época. Austin “[...] entrou ela própria no debate, esboçando no ‘Prefácio’ suas próprias apaixonadamente guardadas perspectivas” (Goodman, 2002, p. 428).

Goodman (2002) destaca que, para Sarah Austin, a tradução não implicava apenas achar as palavras corretas para demonstrar o significado ao público, embora fosse bastante hábil nesse aspecto. Para além disso, seu trabalho envolvia práticas editoriais para abreviar ou alterar o texto de modo a torná-lo compreensível e comercializável entre o público inglês. No caso do Rapport..., decidiu publicar um volume pequeno e barato, de modo a difundir o texto para um maior número de pessoas. Havia, também, o componente político que mais lhe interessava: “Em seu desejo de defender um sistema nacional de educação popular, ela omitiu a parte do relatório de Cousin que tratava de educação secundária” (Goodman, 2002, p. 430). Com efeito, o título dado à tradução, Report of the state of public instruction in Prussia, indica que foi vertida apenas a segunda parte do original, elidindo-se a primeira parte, na qual o autor tratou de outros três países alemães menores, suas paradas antes de Berlim. No prefácio, Austin (Cousin, 1834) explica que excluiu, com a aquiescência de Cousin, exatamente as partes referentes a Saxe-Weimar e Saxônia pelos motivos acima mencionados.

O Rapport... ainda se apresenta como fonte prenhe de possibilidades a serem exploradas, tanto em seu conteúdo, quanto nas maneiras como foi construído por seu autor, e também como foi lido e apropriado após sua publicação. Se o relato sobre a Prússia parece ter ganho estatuto de obra independente, a primeira parte formada pelo conjunto das cartas sobre Frankfurt, Saxe-Weimar e Saxônia merecem igual atenção, afinal, constituem, de maneira um tanto improvisada, o que primeiro se apresentou a Cousin em terras alemãs.

O encontro com os estabelecimentos educacionais alemães, fossem primários, secundários ou universitários, provocava reflexões em Cousin. A partir dos trechos apresentados neste artigo, percebemos que, ao construir seus argumentos comparatistas e sugestões de reforma, o francês mobilizava sua própria trajetória como sujeito atuante no sistema educacional de seu país. Nesses momentos, seu relato sobre o que via no exterior lhe proporcionava a oportunidade de fortalecer argumentos que já carregava consigo, ou, mesmo, já havia expressado de alguma forma, como quando remete à sua atuação no Conselho Real de Instrução Pública. Entrevê-se aí um Cousin político, desejoso de fazer do Rapport..., para além de exercício intelectual, mais uma instância de argumentação a seu favor no debate político-educacional francês.

Em outros casos, o contato com práticas e estabelecimentos de ensino alemães alimentava seu repertório com novas ideias que gostaria de ver aplicadas na França. Diferentemente, usava também da comparação para afirmar que os franceses estavam no caminho certo e nele deveriam permanecer. Por meio de um jogo complexo, Victor Cousin relacionava sua experiência e pensamentos prévios com a realidade que se descortinava ao seu olhar francês.

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ii Esta investigação insere-se no âmbito do doutoramento de Alexandre Ribeiro e Silva, sob orientação de Carlota Boto, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, e intitulado Circulação nacional e transnacional de modelos pedagógicos e reformas da instrução pública: Maranhão, Rio de Janeiro e França na década de 1850, com financiamento pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo FAPESP n. 2020/11928-8). Vincula-se ao Projeto Temático Saberes e práticas em fronteiras: por uma história transnacional da educação (1810-...) (Processo FAPESP n. 2018/26699-4).

1 Todas as traduções efetuadas neste trabalho são de nossa responsabilidade.

2NÓVOA, António et al. (1998) - Seminário de Trabalho - PRESTIGE (Portugal-Brasil). Lisboa, p. 13 (texto manuscrito).

3Ibidem

4Ibidem

5Idem, p. 32

Recebido: 29 de Julho de 2021; Aceito: 01 de Abril de 2022

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