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Sisyphus - Journal of Education

versão impressa ISSN 2182-8474versão On-line ISSN 2182-9640

Sisyphus vol.11 no.2 Lisboa out. 2023  Epub 25-Jul-2023

https://doi.org/10.25749/sis.27340 

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Crónica de um Projeto de Investigação: Os Testemunhos Pessoais dos Seus investigadores em Tom de Contra-Memória

Chronicle of a Research Project: The Personal Testimonies of its Researchers in a Counter-Memory Tone

Crónica de un Proyecto de Investigación: Los Testimonios Personales de sus Investigadores en Tono de Contramemoria

i Departamento Ciências e Técnicas do Património (DCTP), Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Portugal


Resumo

Integro a equipa de investigadores de um Projeto de investigação financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, assente na investigação-ação e muito orientado para a promoção do desenvolvimento local, nomeadamente da região de Murça, zona nordeste interior de Portugal. A autorreflexão desejável dos seus investigadores foi auxiliada desde o início pela realização de um registo de testemunhos pessoais sobre a implementação da investigação, através da escrita continuada de um ‘caderno’, denominado Crónica, que rodou pelos investigadores e bolseiros do Projeto. É esse material escrito que o artigo se propõe analisar, socorrendo-se em termos teóricos das noções de contra-memória e dos princípios da ego-investigação. Abordo a Crónica como corporização do próprio processo de implementação do Projeto, cuja análise proporciona alguma horizontalização das suas memórias, já que estas não se restringem à voz institucional dos relatórios oficiais, e uma compreensão abrangente de como as narrativas pessoais podem produzir teoria.

Palavras-chave: equipa de investigação; contra-memória; ego-investigação; testemunhos pessoais; processo de Investigação

Abstract

I am part of the team of researchers of a research project funded by Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), a Portuguese institution supporting scientific research, based on action-research and greatly oriented to the promotion of local development, in particular the Murça region, in the north-eastern interior of Portugal. The team researchers’ desirable self-reflection was helped from the beginning by carrying out a record of personal testimonies on the implementation of the research, through the continued writing of a “notebook”, called Chronicle, which was passed around the researchers and fellows. It is such written material that this article proposes to analyse, using the theoretical notions of counter-memory and ego-research principles. I approach the Chronicle as an embodiment of the Project's own implementation process, whose analysis provides some horizontalization of its memories, since these are not restricted to the institutional voice of official reports, and a comprehensive understanding of how personal narratives can produce theory.

Keywords: research team; counter-memory; ego-research; personal testimonies; research process

Resumen

Formo parte del equipo de investigadores de un proyecto de investigación financiado por la Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), una institución portuguesa que apoya la investigación científica, basado en la investigación-acción y muy orientado a la promoción del desarrollo local, en particular de la región de Murça, una zona del interior noreste de Portugal. La deseable autorreflexión de sus investigadores se vio favorecida desde un inicio por el registro de testimonios personales sobre la implementación de la investigación, a través de la redacción continuada de un “cuaderno”, denominado Crónica, que fue manejado por los investigadores y becarios del Proyecto. Es ese material escrito el que este artículo se propone analizar, utilizando las nociones teóricas de contramemoria y los principios de la ego-investigación. Me acerco a la Crónica como una materialización del propio proceso de implementación del Proyecto, cuyo análisis permite lograr cierta horizontalización de sus memorias, ya que estas no se restringen a la voz institucional de los informes oficiales, y una comprensión ampliada de cómo las narrativas personales pueden producir teoría.

Palabras clave: equipo de investigación; contramemoria; ego-investigación; testimonios personales; proceso de investigación

Introdução

Michel Foucault, na sua obra de 1972, Nietzsche, a Genealogia, a História (Foucault, 1994), secundando o filósofo alemão, critica a filosofia metafísica e a historiografia por estas duas tradições serem orientadas pela perseguição da verdade em eventos originais. Como contraponto, defende que não há “significado essencial”, sendo a apresentação do desenvolvimento da humanidade uma “série de interpretações” que não estão desconectadas de tudo, atemporais e objetivas. Pelo contrário, essas interpretações são infletidas pelas lutas subjacentes ao discurso histórico, cujo conhecimento é condicionado também pelo poder. O texto centra-se, então, na discussão do conceito de genealogia, que M. Foucault procura opor à história, e em sequência faz emergir a noção de contra-memória como oposta à memória. Nessa argumentação, a história monumentaliza as realizações do passado, enfatizando a sua magnitude contra o sentido banal do presente, pelo que conduz e pede a veneração do passado. Nesse processo, a história reclama a obtenção de uma verdade absoluta, sacrificando no fim o sujeito que produz o conhecimento. Contra esta noção metafísica da história, é então proposta a genealogia como “uma outra história”. Na genealogia, o conhecimento é perspetivado, reconhecendo-se que as verdades reivindicadas são uma sucessão de interpretações. A contra-memória a ela associada surge como capaz de questionar a memória autorizada, já que não assenta na veneração e reivindicação de uma verdade absoluta, mas dá espaço a memórias menos monumentais e canónicas. Isso permite o estabelecimento de uma memória relativizada e/ou relacionada com contextos particulares.

Tendo em mente esta noção de contra-memória de M. Foucault (1972) (1994), cujo alcance é fundamentalmente epistemológico, vejo-a como aplicável e útil a propósito da consideração dos testemunhos pessoais reunidos em Crónica e produzidos pelos investigadores e bolseiros do Projeto em questão. Trata-se de um projeto de investigação transdisciplinar, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia e sedeado em Murça, que definiu como seus objetivos principais a concretização de quatro tarefas. A salvaguarda e reutilização do património cultural regional, entendendo-o como recurso endógeno da região, é uma delas. Outra tarefa, é a formação de recursos humanos que possam obviar à proteção e exploração da herança cultural regional, enquanto via de valorização económica e meio de coesão social pelo potencial desenvolvimento do turismo cultural. Uma terceira, é a criação de um Centro de Memória da Educação, sedeado num dos edifícios de um antigo núcleo escolar da Vila, composto por três edifícios e áreas de recreio adjacentes, cuja preservação fornece uma ilustração representativa da evolução dos edifícios escolares ao longo de todo o século XX. E, finalmente, a promoção de formas inovadoras de democracia cultural recorrendo ao Centro como sua plataforma de realização e/ou divulgação, por forma a que este espaço patrimonial disponibilizado pela Autarquia possa ser dinamizado e, em simultâneo, transformado num potenciador das iniciativas dos agentes sociais locais.

Em termos metodológicos, o Projeto recorre a múltiplas estratégias que passam pelas recolhas etnográfica e arquivística, a história oral e os estudos de cultura material, mas tudo isso tendo subjacente uma visão ampla moldada pela ideia de investigação-ação. Tratando-se de um projeto de investigação que reúne pessoas oriundas de áreas disciplinares tão diversas como as ciências da educação, história, museologia e antropologia, artes e geografia, numa reunião para dar início ao seu arranque efetivo, a coordenadora científica do Projeto sugeriu à equipa que, em paralelo com as atividades de investigação a serem concretizadas, fossem também sendo escritos testemunhos pessoais e individuais sobre a respetiva participação na equipa. Para tal efeito, foi apresentado um ‘caderno’ onde tais comentários deveriam ficar registados. É ao material reunido nesse caderno, onde todos nós como investigadores e bolseiros deixámos o nosso depoimento, que designo a partir de agora por Crónica e procuro olhar através da noção de contra-memória.

Para além dessa noção teórica, a presente análise será igualmente orientada pelos princípios da ego-investigação. Sobre esta, impõe-se começar por esclarecer a que me refiro, já que, no interior de diferentes disciplinas, designações distintas são utilizadas para nomear abordagens bastante próximas ainda que não completamente sobrepostas. Nos estudos literários fala-se de ‘autobiografia’, na antropologia de ‘autoetnografia’ e na história de ‘ego-história’, sendo constatável que a todas une a referência a práticas discursivas de teor autorreflexivo ou biográfico. Essas narrativas biográficas são, contudo, utilizadas e valoradas de modo diverso segundo as disciplinas, em função do contrastante posicionamento epistemológico adotado acerca da relevância do indivíduo e da sua experiência particular na produção de conhecimentos (Silva, 2015).

Os fundamentos epistemológicos dominantes na teoria literária sustentam a visão de que as características particulares de um autor se manifestarão inevitavelmente nas suas obras e, em sentido inverso, é afirmada também a inultrapassável dimensão sociocultural de toda a obra literária. Portanto, não seguindo um referencial cartesiano de oposição entre objetividade e subjetividade - ou de separação estanque entre objeto de estudo e sujeito de estudo - para a teoria literária, a autobiografia é apenas a intensificação da dimensão subjetiva presente na produção de todo o conhecimento. É, assim, olhada como um material rico de significados a levar em conta (Gusdorf, 1991).

No caso da antropologia, desde o começo da sua prática no início do século XX, que o tradicional relato etnográfico é olhado como abarcando uma dupla vertente. Sem deixar de satisfazer as exigências do discurso académico-científico, ele traduz também a experiência individual única por que o investigador passou no terreno. Contudo, pelo final do século XX, o movimento de autocrítica que assola a disciplina vai exigir que aquele reconhecimento do teor subjetivo e culturalmente determinado da narrativa etnográfica deixe de ser apenas tácito e seja, efetivamente, assumido e discutido. No âmbito das discussões iniciadas em Palo Alto, nos Estados Unidos, e que culminarão com a publicação coletiva de Writting Culture: the poetics and politics of Ethnography, obra editada por James Clifford e Georg Marcus (1986), a autoetnografia emerge como um desdobramento dos debates acerca da necessidade de explicitar a subjetivação inerente à produção do texto antropológico (Versiani, 2005). A prática da autoetnografia surge como um meio que permitirá narrar o próprio processo de investigação nos seus acertos e hesitações. Auxiliará a questionar em que medida nos estudos culturais as conceções/ pretensões habituais de verdade e objetividade não foram meios sobretudo de legitimação de um discurso eurocêntrico, produzido sobre as sociedades não-europeias (Rosaldo, 1989). Verifica-se, portanto, que a inflexão prescrita para a prática antropológica e etnográfica se dá no sentido da valorização da autoanálise e do reconhecimento do carácter intersubjetivo da experiência. Os diários de campo ganham um relevo acrescido enquanto meios para aumentar a autorreflexão sobre o próprio processo de construção do conhecimento.

No caso da história, é possível afirmar que a proeminência concedida à fonte sobre o narrador conduziu ao ideal do relato ‘objetivo’, tornando mais ilegítima a valorização do vivido pelo indivíduo (Silva, 2015). É verdade que a partir dos anos de 1980, a emergência da designada micro-história pôde produzir alguma inflexão no sentido de redimensionar a categoria ‘indivíduo’, já que a sua proposta central é a ideia da variação nas escalas de observação dos fenómenos trazer benefícios heurísticos. Porém, de um modo geral, esta nova proposta foi recebida com muitas reticências e considerada incómoda pela maioria dos historiadores (Revel, 2010). A novidade que consegue ir mais longe, e abrir algum caminho no sentido da aceitação da experiência pessoal como possível fonte de validação teórica, é o livro coletivo Essais de Ego-histoire, organizado e apresentado por Pierre Nora (1987). A obra reúne textos de sete grandes historiadores franceses como Jacques Le Goff ou George Duby, aqueles que aceitaram responder ao desafio epistemológico e metodológico de explorarem as suas memórias individuais enquanto historiadores, tentando explicitar “a ligação existente entre a história que cada um fez e a história que fez cada um” (Nora, 1987, p. 7). Se se atender: quer ao reduzido número dos que aceitaram o desafio de P. Nora; quer ao facto do foco dos textos produzidos ainda tender a surgir limitado à respetiva trajetória intelectual, sem haver a exposição de escolhas mais pessoais; quer ainda à confissão do desconforto provocado pelo exercício (Duby, 1987); compreende-se que para os historiadores esta inflexão não surge como fácil de concretizar. Ainda assim, é possível afirmar que também na história se vislumbra o início da mudança de paradigma em direção à legitimação do biografismo ou das narrativas pessoais como detentoras de potencial heurístico.

Levando em linha de conta o acabado de expor, deve então ficar compreendido que, com a utilização do termo ‘ego-investigação’, não pretendo remeter para os posicionamentos de nenhuma área disciplinar específica. Pelo contrário, naquilo que os une, pretendo reenviar para os diversos desenvolvimentos interdisciplinares recentes relativos à legitimidade e ao mérito reconhecidos às narrativas de teor biográfico. Neste artigo, portanto, os princípios da ego-investigação ligam-se de modo abrangente ao uso de narrativas pessoais enquanto veículos de autorreflexão acerca de processos investigativos nos quais os sujeitos de estudo participam. A subscrição deste posicionamento epistemológico - menos positivista e mais consentâneo com a ideia de que qualquer investigação é sempre um processo social de construção - ajuda a explicitar a intersubjetividade inerente aos resultados produzidos e permite evidenciar o caráter múltiplo e reconstruído das identidades dos implicados.

Assim, a Crónica é abordada como uma corporização do próprio processo de investigação do Projeto. Através da sua análise, pretendo alcançar uma certa horizontalização das memórias relativas ao Projeto, já que este não será relembrado apenas através de uma única voz, a institucional; e pretendo também compreender como as narrativas pessoais produzem teoria no interior do Projeto. O trajeto relatado acima sobre a questão da legitimidade das narrativas pessoais entre as diferentes áreas disciplinares deixa antever, desde logo, como escrever ou falar sobre si próprio parece acarretar muitas dificuldades. Veremos até onde os investigadores do Projeto foram capazes de as expor e de se exporem.

Quanto à metodologia adotada para esta análise da Crónica deve ficar clarificado que depois do processo inovador que foi o próprio registo continuado de narrativas individuais escritas por parte de todos os investigadores da equipa, a sua abordagem enquanto objeto de estudo é da exclusiva responsabilidade da autora deste artigo. Ou seja, todos os investigadores da equipa são os autores das narrativas individuais que constituem a Crónica, mas não lhes pode ser reconhecida a condição de autores do presente texto. Subscrevendo, contudo, o princípio geral de que a subjetivação é inerente à produção de qualquer texto, a interpretação analítica que elaborei da Crónica como um todo foi disponibilizada aos investigadores do Projeto para que a pudessem comentar. Dessa consulta prévia de que o presente artigo beneficiou resultaram dois desenvolvimentos. Por um lado, para lá da concordância geral com o teor do texto, a auscultação feita permitiu a emergência de indicações de alteração, nomeadamente, de alguns dos depoimentos antes selecionados, tidos como demasiado “pessoais ou identificativos” de cada um dos investigadores em questão. Por outro lado, a consulta do texto do artigo forneceu como que uma ilustração concreta do potencial heurístico das narrativas pessoais, assim contribuindo também para legitimar o exercício de biografismo realizado.

A Crónica e as suas narrativas

Tomando a Crónica como objeto de estudo, é apenas por facilidade de exposição que subdivido a sua análise, focando em primeiro lugar o tópico das contra-memórias do Projeto e deixando para um segundo momento de análise o deslindar das características e tendências de autorreflexão das narrativas que a compõem. Ver-se-á que esta compartimentação nem sempre é fácil de organizar.

Antes disso, contudo, devo sistematizar alguns dados e começo por referir que a Crónica reúne onze narrativas individuais, cuja ordem de escrita foi arbitrária, excetuando a primeira, já que se entendeu dever ser a coordenadora do Projeto a iniciar o registo. A primeira das narrativas foi escrita a 5 de janeiro de 2019, cerca de três meses depois do início efetivo do Projeto, e a última a 1 de abril de 2020, o que significa que entre uma e outra decorreram 15 meses, implicando, portanto, a consideração de momentos diferentes do próprio processo de implementação do Projeto. A narrativa inicial, a produzida pela coordenadora do Projeto, é bastante explícita quanto a subscrever a ideia de que o “registo de impressões” na forma de Crónica será um meio eficaz de criar canais de comunicação entre todos os membros da equipa, permitindo pontes entre “idades, formações, experiências e expectativas” diversificadas. Reconhece também as suas potencialidades heurísticas em termos das opções teóricas a tomar e dos resultados a alcançar:

(…) estamos todos em igualdade ao partilharmos as perspetivas, impressões, reações, críticas acerca do processo, o que, acredito, dissolverá o receio de nos expressarmos. Com esta narrativa mais pessoal ficamos todos/as na posse de elementos que nos permitirão fazer uma análise do processo, confrontando as nossas opiniões ao longo do percurso. Permitirá avaliar melhor o que fizemos, as nossas limitações e fragilidades, dos nossos parceiros institucionais e adaptarmos/modificarmos o que for considerado necessário. Ficaremos, assim com dados, individual e coletivamente, que nos permitirão refletir sobre a metodologia seguida, produzir relatórios que traduzem de forma mais rica o processo, avaliar os efeitos do trabalho e produzir conhecimento metodológico. (R1)

Pode-se, então, fazer notar que, nessa primeira narrativa, há como que a subscrição implícita das duas linhas de análise que aqui adoto para tentar deslindar o conteúdo da Crónica do Projeto: o seu potencial enquanto meio de contra-memórias e enquanto componente de uma ego-investigação coletiva. Em paralelo, contudo, a mesma narrativa denota também a consciência da sua autora quanto às reservas que a sugestão de se escrever a Crónica poderia ou iria levantar entre alguns membros da equipa:

Esta narrativa devia ter começado logo. Tive receio de alguma relutância e guardei para mais tarde a proposta. Este primeiro momento da narrativa retrata, por isso, de forma amalgamada, estes três meses de projeto. O objetivo é ter para cada momento, a partir daqui uma narrativa de cada um/a. (R1)

É possível afirmar que este depoimento reflete a ‘viragem biográfica’ que a história da educação concretiza durante a década de 1990 em vários países (Passeggi et al., 2011). Tal viragem traduz-se num crescente número de docentes a refletirem sobre as suas experiências e respetivos processos de formação. Em simultâneo, reflete igualmente a consciência de que a assunção da dimensão subjetiva e biográfica, na academia e entre os membros da equipa, não estará generalizada. Antecipa que alguns dos investigadores, porque com formação na área da antropologia, adeririam mais espontaneamente ao espírito da Crónica: “teria preferido que fosse A. ou B. a iniciar o registo, pois têm formação de antropologia”. Mas também há a convicção de que o prolongamento do exercício durante toda a investigação e por toda a equipa viria a confirmar os seus contributos para o Projeto. Assim parece ser e isso surgirá depois também confirmado pela eleição da Crónica como objeto de análise deste artigo. Importa, contudo, dar conta de que o objetivo acima referido de registar narrativas pessoais de todos para cada momento do Projeto não pôde ser completamente concretizado, em virtude da pandemia covid-19 e subsequente primeiro confinamento geral, decretado, em Portugal, a partir de 18 de março de 2020. Esse novo contexto com todos os seus impactos, logísticos, mas igualmente de dimensão emocional muito significativa, provocou a interrupção de quase todas as atividades do Projeto. Desde logo porque diversas instituições encerraram portas e a deslocação dos investigadores para/no terreno se tornou impossível durante várias semanas seguidas, mas também porque diversos membros da equipa e seus co-residentes e/ou familiares não passaram incólumes o período de suspensão da normalidade que se vivia, sendo atingidos em graus variados pelos efeitos do covid-191. Toda a situação vivida acaba por determinar que a narrativa registada a 1 de abril, com a qual se fechava uma ronda por todos os membros da equipa, se torne a última e se decida não prosseguir com novas rondas de registos. Isso significou diminuir o volume total de depoimentos e, para cada investigador, reduzir o respetivo exercício de escrita biográfica a apenas uma experiência. Tais factos colocam algumas limitações à dimensão da Crónica do Projeto, mas entendo que não anulam a pertinência da sua análise.

Mantendo-nos ainda ao nível das características gerais da Crónica, há outros dois aspetos que merecem ser comentados. Por um lado, e atendendo ao conjunto das narrativas, surge como flagrante a centralidade da coordenadora do Projeto. Esta sobressai como a sua efetiva mentora, um pilar que muitos expressamente referem a vários títulos e que emerge claramente como o eixo em redor do qual todos tinham orbitado, a partir de muitas vias. É em função de uma ligação a ela que acabaríamos todos por nos cruzarmos neste Projeto. Por outro lado, em simultâneo com o tom geral de reconhecimento da centralidade daquela personagem e da vontade em corresponder ao seu desafio das narrativas pessoais, não se verifica uma adesão uniforme ao solicitado. Esta é dificultada pela multiplicidade de comunidades de pertença epistemológica a que os diferentes membros da equipa se sentem filiados. Ou seja, porque o conjunto dos investigadores não detém uma identidade investigativa totalmente partilhada, a ultrapassagem do mito da objetividade científica, pelo permitir que as autonarrativas assumam um tom mais pessoal, sofre gradações significativas e, até, diferenciados esforços para conseguir concretizar-se. Curiosamente, em termos amplos parece ser possível afirmar que os onze registos têm subjacente a ideia geral de que um discurso construído na primeira pessoa (do singular) não implica necessariamente abordar questões pouco significativas. Nesse sentido, todos fornecem alguns enfoques subjetivos que tornam a Crónica uma fonte rica de informações e merecedora de atenção. Retenho apenas um exemplo que julgo ilustrativo:

Confesso que não sei bem por onde começar, nem onde irei terminar. Nada de novo, portanto. Sou geógrafo… (…) Cedo percebi que gosto muito de geografia, mas que a ‘minha’ geografia, essencialmente histórica, não está propriamente na moda entre os geógrafos. Sempre que envio um resumo para um congresso de geografia têm de arranjar uma secção especial para mim. Fico, em regra, na ‘sala dos restos’, onde se acumulam as comunicações sem tipologia. Esse carinho pela geografia histórica fez de mim alguém que ‘já não pertence ao bando’, que é mais historiador do que geógrafo. (R5)

Em paralelo, contudo, é igualmente detetável que para alguns dos investigadores não é fácil, ou mesmo possível, libertarem-se completamente das configurações habituais do discurso académico mais ortodoxo. Isso faz com que as suas narrativas oscilem entre a tentativa de um tom pessoal e confessional e, um outro, que procuram manter ancorado nos princípios da abordagem cartesiana de referência, olhada como a única via para se alcançar uma ambicionada objetividade. Neste caso, são particularmente ilustrativas as situações em que os autores das autorreflexões exibem a necessidade de usar referências bibliográficas, e mesmo citações, apresentadas lado a lado com outras partes de uma narrativa de cariz pessoal. É verdade que a utilização desta estratégia é um mecanismo de legitimação da narrativa produzida e uma forma de demonstrar erudição e a posse de conhecimentos academicamente validados. Mas essa estratégia é também contraditória com o solicitado para a Crónica, na medida em que implica o não abandono do tipo de registo que dominará nos restantes materiais produzidos no âmbito do Projeto. Aí, cumprir-se-ão obrigatoriamente os requisitos do discurso académico-institucional. Na medida em que fazer uma citação, seguindo as regras académicas corretas, implica ter de ir procurar (e encontrar!) o respetivo texto a citar, a narrativa pessoal produzida na Crónica acaba por ser o oposto do que se pretendia. Vejo esta atitude como reflexo de uma filiação epistemológica com a qual pode não ser fácil romper prontamente. Mas vejo-a igualmente como ligada à dificuldade sentida por todas as pessoas das nossas sociedades - sociedades que não são de oralidade primária - perante a solicitação de um exercício que é escrito, mas, ainda assim, se pede que detenha uma fluidez e uma espontaneidade mais próxima da oralidade do que os habituais textos produzidos por estes investigadores.

Dito isto, importa frisar que, embora ocorra algumas vezes este caso extremo de não abandono da fundamentação/legitimação intelectual, a situação inversa é muito mais frequente. São numerosas as ocasiões em que as narrativas assumem um teor de reflexão pessoal e os seus autores aceitam abordar e expor dimensões efetivamente biográficas.

E foi assim que me fui constituindo como profissional e como pessoa que ainda consegue ser sonhadora, que gosta de fazer as coisas acontecerem, criativa e determinada. Essa determinação (…), diria, trouxe-me até Murça, seguindo o projeto. Murça talvez (nunca temos a certeza de nada) o final da minha trajetória (…). (R11)

Pergunto-me se não ter sido capaz de antecipar esta maior convergência não resulta de algum preconceito meu acerca das ciências da educação; aceitação mais ou menos inconsciente daquela sentença segundo a qual todas as áreas científicas que precisam colocar na sua designação ‘ciência’ é porque estão sob ameaça de desqualificação enquanto tal. (R3)

O projeto diz-me muito, em termos pessoais (filha, neta, bisneta de professores primários) e profissionais (cheguei a frequentar até ao 2º ano o curso do magistério primário) porque interessada nos processos de aprendizagem, da perceção do que é (era) uma escola. (R4)

Sou sindicalizada e ativa, como expressão do meu compromisso cívico. (R1)

Depois de ler a Crónica na totalidade das narrativas que a compõem - como tive de fazer tendo em vista a sua análise para o presente artigo - fiquei a conhecer facetas e dimensões da vida dos meus colegas da equipa de investigação que até então desconhecia. E, curiosamente, pude igualmente compreender que a narrativa escrita por mim não era das mais biográficas. Pressupor que assim seria, talvez agora seja evidente ser algo sem fundamento, reconheço. Porém, a minha ligação à antropologia e à sua habitual prática de imersão cultural, com uso recorrente dos diários de campo como instrumentos de trabalho, ter-me-ão induzido nesse sentido. Assim não é. Constato que a narrativa por mim escrita não escamoteia o carácter autorreflexivo solicitado e detém um tom pessoal, dando espaço a alguns estados de alma. Contudo, há outros membros da equipa que se expõem mais em termos biográficos, na medida em que incluem nos registos, por exemplo, dados relativos às respetivas relações familiares.

As contra-memórias proporcionadas pela Crónica

Passando ao tópico das contra-memórias como eixo de análise da Crónica, trata-se agora de averiguar quais as ‘outras histórias do Projeto’ a que podemos aceder através dela. A noção de contra-memória, como formulada por M. Foucault (1994) e explicitada na Introdução deste artigo, remete para a consideração de marcos e referências menos monumentais ou autorizados. Neste caso, significa aceder a memórias menos institucionais do que as produzidas pelos relatórios oficiais e pelos eventos e/ou produtos científico-académicos organizados, memórias aqui visualizadas através dos depoimentos pessoais reunidos na Crónica. Não se trata de contestar ou desvalorizar os relatórios regularmente produzidos, nem os impactos positivos já suscitados pelas realizações concretizadas, nomeadamente na comunidade da Vila, mas tão só de os complementar através de contra-memórias, normalmente sem espaço onde sejam consideradas. A ideia é proporcionar uma certa horizontalização das memórias do Projeto através do acesso a contra-memórias que permitem reconstituir o processo de investigação de modo diferente. Agora, servindo-se de referenciais mais parcelares e relativizados que permitem incluir até vertentes contraditórias entre si, porque cruzadas com contextos particulares de decisão ou ação. Com isso, a memória resultante do processo de investigação será menos taxativa e mais diversa, atendendo de modo mais efetivo ao coletivo de investigadores que compõem a sua equipa multidisciplinar.

Como primeira contra-memória que deve aqui ser referida destaco a própria pandemia do covid-19. De facto, apenas a última narrativa menciona o covid-19 e como os seus efeitos devastadores obrigaram à interrupção das atividades programadas que, então, começavam a ganhar algum fôlego. Mas é incontestável que todos os membros da equipa estão impossibilitados de recordar o Projeto sem lhe associar o contexto pandémico. E este, ainda que de modo indireto, fez-se efetivamente sentir no conteúdo da Crónica, na medida em que foi por causa da situação pandémica e dos confinamentos obrigatórios sucessivos que não se continuou com a segunda ronda de narrativas. Deve também ser referida a grande dificuldade que foi conseguir fazer chegar fisicamente até mim o ‘caderno’ que corporizava a Crónica, já que quando pretendi iniciar a sua análise, este se encontrava na casa de um membro da equipa entre cujos residentes havia familiares com diagnóstico positivo ao covid-19 e, entretanto, tinha sido decretado mais um período de confinamento geral. A chegada do objeto material da Crónica até mim implicou, por isso, algumas peripécias e um hiato de tempo significativo.

Outra contra-memória, esta profusamente enunciada na Crónica, diz respeito às angústias e hesitações sentidas por todos os investigadores acerca da operacionalização do Projeto. Por contraste com o tom genericamente afirmativo e assertivo típico dos relatórios, na Crónica emerge a constância das angústias sobre como, de modo concreto, conseguir alcançar os objetivos do Projeto e efetivar os seus resultados no terreno e, especificamente, na comunidade da Vila. Através da Crónica acede-se a um coro de várias vozes bastante preocupadas com a urgência de concretizar linhas de ação para chegar às comunidades, nelas estabelecer contactos e obter a sua participação; de como conseguir essa rápida implementação do Projeto, que é muito exigente em termos de disponibilidade de tempo e dedicação, quando os membros da equipa não se lhe dedicam a tempo inteiro e têm muitos outros compromissos fora de Murça; e quando as pessoas que trabalhariam em exclusivo para o Projeto ainda não tinham sido contratadas; de como conseguir uma eficaz cooperação entre os diversos membros da equipa; de como conseguir ultrapassar as dificuldades encontradas ao nível do relacionamento com as entidades públicas locais, que se reconhecem como um parceiro imprescindível, nomeadamente, para o apetrechamento mínimo do Centro que se pretende tornar um foco dinamizador da vida sociocultural local… Pelo acesso a esta contra-memória, o processo de investigação surge exposto como um processo muito menos taxativo e linear, tornando-se percetível de um modo muito mais aproximado ao da sua real implementação. Fica claro que esse processo implicou - como implicará sempre, mas cuja factualidade é, normalmente, obliterada - o ultrapassar de muitas dúvidas e ansiedades. Transparece, assim, um outro discurso muito mais hesitante sobre as decisões tomadas e onde são inúmeras as perguntas deixadas.

Nunca é demais enfatizar que estes espaços são lugares inseparáveis das/e profundamente enredados nas questões e contextos locais. Este Centro de Memória estará localizado numa comunidade, fazendo parte dela. Mas não será suficiente que se torne parte da comunidade: a comunidade também precisa tornar-se parte essencial deste Centro. Estaremos prontos a deixar que moldem práticas, programas e políticas? (…) Como podemos deixar ‘entrar’ a comunidade? A comunidade está separada e fora deste Projeto, precisando ‘ser deixada entrar’? O que significa ‘comunidade’? (R2)

(…). Somos pessoas com idades e experiências distintas, formações e expectativas diversas. Tudo isso, que me entusiasma, me deixa também inquieta quanto à possibilidade de trabalho coordenado, de atingirmos os objetivos a que nos propomos. Estamos também a lidar com o poder local, com todas as potencialidades e incertezas, o que me deixa apreensiva. (…) (R1)

Agora, de um modo mais exclusivo, a questão que me angustia é como ajudar a concretizar a mediação entre o futuro Centro de Memória e a sua comunidade envolvente;(…). Eu sei que ‘para dar certo’ o Projeto tem de ‘trabalhar com as populações’ e não ‘para as populações’!! Então não há outro modo de avançar que não seja avançar para o terreno!! Mas a primeira tentativa de encontrar e motivar pessoas locais para o Projeto através do curso de formação na Escola Profissional foi um relativo fiasco e a formação para professores ainda anda perdida nos trâmites burocráticos; não conseguimos pôr no terreno qualquer estudante de mestrado; o doutorado também ainda não foi encontrado; (…). (R3)

Entretanto fomos conhecendo melhor as ‘esquinas’ do que pretendemos fazer, apalpamos terreno, conhecemos os espaços e demos formação (mas eram tão poucos!). Sinto que ainda estamos na fundação da caixa (…). (R5)

Uma terceira contra-memória materializa-se pelo acesso a uma reconstituição das etapas de implementação do Projeto, menos por referência à concretização dos quatro grandes objetivos pré-definidos, e mais pelo recordar de alguns contextos particulares de ação que foram ocorrendo e correlativos momentos de sociabilidade fraterna estabelecidos entre os membros da equipa e várias outras pessoas. Esses momentos concretos de encontro, onde se articulam em graus diversos trabalho e sociabilidade mais e menos alargada, surgem como os marcos mais palpáveis da implementação do Projeto no território. A Vila e alguns dos membros da sua população aparecem como entidades reais sobretudo através destes registos, já que os dados reunidos não são suscetíveis de caber no formato mais formal dos relatórios oficiais produzidos. É igualmente pelas narrativas da Crónica que surgem explícitos, quer a adesão e entusiasmo com o Projeto por parte de várias entidades e pessoas locais, quer os agradecimentos, entendidos como devidos por todos sem exceção, para com o membro da equipa que é natural e residente na Vila, cuja disponibilidade, constância e entusiasmo são inexcedíveis.

(Comecei) a estar em contacto com diversas gentes, a criar rotinas - gastronómicas, por exemplo, entre outras - e conseguir apreender os imaginários do local (…). Dessas idas à região comecei a ter contactos com elementos da edilidade e convívio com professores, com gente comum, com jovens e, naturalmente, com o próprio espaço. Momentos houve, como aquando do I Colóquio (…), onde vi emergir a vivacidade e a vontade de se materializar o Centro de Memória da Educação. (…). No dia 1 de fevereiro de 2019, fui de novo à Vila, agora como formador. Um temporal medonho afastou os jovens da ação de formação; só um heroicamente compareceu. Fomos gerindo o tempo: trocando ideias (…). Almocei com a Dra. I.B., que, da parte da tarde, me conduziu (com perspicácia e saber pelas geografias do concelho. (…) (R8)

Numa dessas reuniões, com o Dr. V. decidimos participar no Campo de Férias de Verão, organizado pela Câmara Municipal. Juntamente com a professora I. preparamos e dinamizamos as atividades na sala de outros tempos e no recreio do Centro de Memória para as crianças e jovens. Então, na semana de 15 a 18 de julho vim para a Vila. (R10)

Uma grande mais-valia tem a ver com uma forte união de esforços e um trabalho de fundo entre o Centro de Memória da Educação e o Agrupamento de Escolas, sem esquecer a Escola Profissional. (…). Por sua vez, as famílias tentaram fazer a retrospetiva das suas histórias familiares (filhos, netos, avós, bisavós). (R7)

Nas idas à Vila, a I. B. primou sempre pela hospitalidade e fez-nos sentir em casa, dando explicações muito pertinentes e oportunas que podíamos acrescentar a um guia de viagem ou de incursões à região. (R6)

(…). E não posso também esquecer a hospitalidade, incluindo jantar, dormida e pequeno almoço, disponibilizado pela I. na sua casa na Vila, aquando da minha sessão do curso de formação na Escola Profissional. (R3)

Uma última contra-memória surge ainda detetável, se bem que expressa de uma forma muito mais ténue e comportando vários aspetos interligados. Ainda que de um modo muito subtil, é constatável o auto-entendimento dos membros da equipa como se subdividindo por dois subconjuntos: os seniores e os juniores. A questão pode ser tida como expectável, na medida em que a Crónica também comporta narrativas dos bolseiros e as idades de todos os membros da equipa se distribuem entre os 68 e os 24 anos de idade. Mas não é apenas disso que se trata. Em paralelo com a já referida centralidade, desempenhada e reconhecida, da coordenadora do Projeto, há dois grupos de pessoas que se referem mutuamente de modo distinto. Um conjunto de pessoas nomeia-se entre si apenas pelo nome próprio, incluindo quando referem a coordenadora, enquanto outro grupo faz essas nomeações utilizando sempre o título académico, seguido do respetivo nome e apelido. Por outro lado, em simultâneo é igualmente constatável que quase todos fornecem informação acerca da respetiva idade, o que deixa transparecer a importância atribuída a esse dado biográfico. A maioria dos membros da equipa indica os anos que tem, mas, curiosamente, os mais velhos optem pela possibilidade alternativa de indicarem o ano de nascimento. Por fim, com uma subtileza ainda maior, são percetíveis cumplicidades, mas também insatisfações ou desencontros mínimos, deixando divisar alguma potencial tensão. Através desta contra-memória tão ténue transparece, então, como a equipa funciona no quadro de uma hierarquia não completamente ausente, onde nem todos detêm idêntico poder e relevância, nem se sentem merecedores da mesma exata deferência. Tudo isto pode surgir expresso tão só através da escolha da primeira ou terceira pessoa do plural para referir a equipa como um todo: ‘todos nós pretendemos’ ou ‘todos pretendem’ é diferente apenas de um modo quase impercetível.

O autobiografismo das narrativas e o potencial heurístico da Crónica

Para iniciar a segunda linha de análise da Crónica do Projeto, orientando-a pelos princípios da ego-investigação como enunciei na Introdução deste artigo, preciso abordar um ponto prévio que é a questão da especificidade do discurso construído na primeira pessoa. Como já se pôde compreender pelos comentários produzidos sobre as narrativas e pelos seus fragmentos transcritos, o desafio de escrever a Crónica foi um desafio aceite pela equipa de investigadores e a questão da sua legitimidade e utilidade heurística foi também assumida. Portanto, se havia alguma dificuldade ela terá sido superada, tendo igualmente já sido referido o nível elevado de biografismo que alguns dos relatos se mostram capazes de materializar. Sob este ângulo, a questão está clarificada e deixo para mais tarde, neste mesmo ponto, a elucidação de outras dimensões heurísticas da Crónica.

De imediato, porém, é preciso confrontar o facto de as narrativas autorreflexivas produzidas comportarem alguma especificidade relativamente ao que pode tomar o nome de práticas discursivas autobiográficas. As narrativas pessoais reunidas não cumprem integralmente as características do género, na medida em que cada exercício individual de autorreflexão tem uma dimensão algo diminuta e, no seu reverso, são componentes de um conjunto mais volumoso, mas, enquanto tal, coletivo. É verdade, portanto, que as narrativas que compõem a Crónica não apresentam o ponto de vista totalizante e retrospetivo de uma vida, característico da autobiografia. Nesse sentido, não detêm, sequer remotamente, qualquer correspondência com As Confissões de J-J. Rousseau (1782), autobiografia filosófica do autor iluminista que P. Lejeune (2008, p. 65) considera como estabelecendo as diretrizes do género2. Isso é claro e nunca pretendi que fosse diferente.

Para além desse abismo, contudo, as narrativas da Crónica mantêm um traço de afinidade inultrapassável com o género autobiográfico, sendo apenas em função dele que se podem constituir como a base de uma ego-investigação coletiva. Esse traço de afinidade é a ‘consciência de si’ que as narrativas manifestam. Ou seja, ainda que com as especificidades apontadas, os registos da Crónica cabem no modelo discursivo da “escrita de si” de que fala M. Foucault (1992, pp. 129-160): uma manifestação discursiva em que o sujeito se coloca em relação consigo mesmo. A este nível, portanto, é mais útil um autor como G. Gusdorf (1991), para quem a autobiografia não é identificável por nenhum formato particular, antes se definindo pela intenção de oferecer ao seu leitor um acesso privilegiado sobre o sujeito que a escreve. Em relação aos materiais em análise, importa, portanto, confirmar este carácter de autoimplicação e autorreflexão manifesto nas narrativas, mesmo que outras características do género autobiográfico não estejam presentes. As narrativas da Crónica podem ser alvo desta segunda linha de análise, olhadas como meios de uma ego-investigação, exatamente na medida em que se constituem como registos de pensamentos e impressões pessoais. São exercícios cujo caráter confessional não é desprezível e onde a escrita e a meditação exigidas são aceites como contributos para uma melhor organização de ideias e tomada de decisões.

Esclarecido este aspeto, posso agora avançar com a análise a que me propus, procurando evidenciar as dimensões heurísticas da Crónica. Trata-se de explicitar o modo como as narrativas se constituem em meios de autodiscussão e autoconsciencialização relativamente ao processo de investigação em que os seus autores estão implicados. Devo começar por relembrar que os onze investigadores escreveram as suas impressões sabendo, à partida, que todos realizariam tarefa idêntica e, inicialmente, havendo o plano dessa tarefa se repetir ao longo de toda a investigação. Por outro lado, embora nada de concreto tivesse ficado decidido sobre o tratamento que haveria de ser dado àquele material, também desde o começo, tinha ficado implícito que alguma análise abrangente lhe viria a ser aplicada. Estes dois fatores terão funcionado como incentivos à própria escrita das narrativas, na medida em que traduziam uma sua valorização implícita. Em paralelo, funcionaram também como facilitadores da perceção de que as narrativas individuais integravam um produto coletivo mais amplo, que era a própria Crónica.

Olhando, então, agora para a Crónica como objeto de estudo, mas considerando-a enquanto exercício de ego-investigação, uma primeira constatação que deve ser feita diz respeito ao seu desempenho no reforço do sentimento de que todos são membros da equipa. A consolidação do sentimento de pertença grupal, mesmo que possa permanecer difuso, é um fator importante pelo que facilita em termos de troca de conhecimentos e de circulação de aprendizagens entre os membros da equipa. Lendo a Crónica na totalidade das suas narrativas, surge bastante claro que as pessoas corresponderam de modo positivo ao desafio colocado. Mas, mais do que isso, aceitaram jogar o jogo na expectativa da sua utilidade para a persecução do Projeto. Adotem uma tonalidade mais pessoalizada ou mais intelectualizada para o registo da sua trajetória individual no Projeto, sobressai o tom de entusiástica conversão à nova prática metodológica. Isso, para lá de todas as hesitações e ansiedades expressas que também possam manifestar. Sem pretender atribuir-lhe uma importância excessiva, reitero que essa ideia sai reforçada pelo contributo do presente artigo, cuja redação, auscultação prévia sobre o texto e posterior publicação como que outorgam à Crónica um estatuto heurístico que inicialmente apenas tinha ficado latente.

Os comentários alinhavados nestas linhas e as reflexões que eles me suscitaram (…) fizeram-me compreender que participei no conjunto das tarefas iniciais do Projeto como que à procura de um sentimento de integração na própria equipa, sentindo-a como pré-condição que precisava ser satisfeita antes de poder efetivamente contribuir para o Projeto. Acho que isso foi alcançado. (R3)

Falando do Projeto, recordo a sua génese difícil, trabalhosa (…). O resultado do seu financiamento foi uma herança pesada devido aos enormes compromissos e responsabilidades inerentes ao Projeto. Importa, neste momento, reconstituir uma narrativa de cumplicidades, encontros, desencontros e felizes coincidências (…). (R6)

Outro desempenho da Crónica que merece destaque como mais um útil exercício de ego-investigação é a revisão panorâmica que consegue proporcionar sobre o próprio processo de investigação que vai sendo concretizado. A sucessão das suas narrativas permite obter uma imagem bastante multifacetada e com significativo índice de pormenores sobre o processo de investigação levado a cabo e suas vicissitudes. O potencial heurístico das narrativas pessoais torna-se evidente pelo que através delas se consegue compreender das dificuldades, hesitações e acertos que tiveram de ser confrontados até se obviar à construção de conhecimento e se poder falar de resultados. Emergem como especialmente notórias a falta de tempo e a premência da expansão do trabalho de campo, o que tem o efeito teórico de evidenciar a pertinência do trabalho empírico neste tipo de investigação.

(…) os meus contributos seriam sobretudo metodológicos, apoiando as recolhas de materiais e os contactos com as pessoas da comunidade, bem como na ligação aos aspetos ‘museológicos’ do Projeto e à proposta de programação do futuro Centro da Memória. (…). De forma avulsa tenho tentado reunir documentação diversa e pré-equacionado algumas linhas de intervenção (desde a organização de festivais, por exemplo de jogos de recreio ou de contos tradicionais, ao uso da chamada fotografia participativa) (…). (R3)

Na construção do puzzle Centro da Memória da Educação, considero que todos fazemos parte de um todo, que a todos diz respeito. Nesse sentido: há entrevistas feitas pelas estagiárias T. e M. a várias pessoas da comunidade, as quais muito bem retratam alguns dos anseios dessas pessoas em relação ao Centro. Essas pessoas poderão trazer outras (…), com elas se poderão fazer workshops e/ou oficinas (…). Uma grande mais valia tem a ver com uma forte união de esforços e um trabalho de fundo (…), sobretudo com os mais novos e suas famílias (…). Também acho que é imprescindível e muito urgente estarmos mais no terreno, ouvir mais as pessoas e, consequentemente, haver mais ação. (…). Mais ainda, aquela situação de se apresentar uma proposta estruturada do Centro ao executivo da Câmara Municipal de modo a que, facilmente, seja aprovada na Assembleia Municipal…é mais do que URGENTISSÍMA! (R7)

A comunidade não é apenas uma associação de pessoas em torno de interesses comuns ou mesmo uma geografia partilhada, mas sim a forma pela qual esses entendimentos partilhados agem coletivamente. Talvez este seja um dos nossos maiores desafios (e encontrar o/s vocabulário/s para o fazer!). Desafio que implica trabalhar transversalmente e trabalhar noutros espaços de política e de poética. (R2)

Sinto falta de elementos que possam trabalhar a tempo inteiro, que nos ajudaria a todos. O processo de contratação vai ser demorado. (…). Apreciei a proposta da C. sobre dedicar uma reunião à discussão de conceitos, para se criar uma perceção comum. (…) Precisamos de pensar os espaços/funções/objetivos/ viabilidade do Centro a criar, apresentar uma proposta estruturada, mas sinto que algo me escapa. Como conseguir reunir com o arquiteto da Câmara? Como devemos apresentar a proposta, para que possa ser aprovada pelo executivo e apresentada com facilidade à Assembleia Municipal? (R1)

Por fim, deve ainda ser salientado um último desempenho da Crónica relacionado com a sua capacidade de se constituir como uma espécie de arquivo totalizante do Projeto. Pelo elencar dos múltiplos eventos e atividades em que cada um dos investigadores participou, as suas narrativas críticas e autorreflexivas permitem reconstituir um conjunto muito alargado de acontecimentos, retendo datas e dinâmicas pelas quais se alcança uma espécie de repositório global de todas as fases de implementação do Projeto.

As primeiras reuniões da equipa do Projeto foram justamente, para mim, uma iniciação (e aproximação) ao local; outubro de 2018 marca indelevelmente as idas a Vila (…). Talvez em outubro de 2018 - ou no próprio dia do Colóquio, já não recordo bem - visitei as Escolas Adães Bermudes onde o Centro de Memória tem a sua sede. O percurso da Biblioteca (onde a equipa do Projeto e o consultor prof. A. E. tiveram uma reunião com os membros da Câmara) até às Escolas possibilitou-me apreender a organização do espaço urbano; (…). Nas Escolas estava patente a Exposição ‘Memórias da Educação de Outros Tempos’. Retive-me com particular atenção em cinco fotografias. (…). Em novembro de 2019, na altura do II Colóquio: Educação, Herança Cultural e Desenvolvimento, tive oportunidade de me reencontrar com a M.J.S. (…) em outubro, tinha estado na Vila para uma sessão da ação de formação para professores. (…) esta mensagem foi magnificamente captada pelos professores e ilustrada nos seus trabalhos finais, apresentados e discutidos a 7 de dezembro. (R8)

Entretanto, a ida a Berlanga del Duero no início de março, aproveitando a ponte do Carnaval para visitar o CEINCE e tentar compreender a sua dinâmica de atuação, se bem que tenha sido eficaz para eu consolidar o tal sentimento de integração na equipa de que falei antes, foi, contudo, de pouca utilidade para me fornecer sugestões relativas a linhas de intervenção a aplicar neste Projeto. (R3)

Nestes últimos seis meses entendo que o Projeto avançou muito, ainda que muito haja ainda para se fazer. O Centro já está em funcionamento com mobiliário, internet, limpeza, funcionário, contrato assinado com a FCPE e a Autarquia. Parcerias com o Agrupamento de Escolas e Escola Profissional, Estagiário de Fotografia, duas Exposições temporárias, o II Colóquio Internacional, uma formação de professores, alguns artigos científicos escritos, instalações de apoio para a guarda dos objetos. Penso e fico feliz por esta jornada. (R11)

Apesar de todas as minhas dúvidas, o Colóquio revelou uma vontade de colaborar muito genuína da parte das instituições locais. As Escolas (Agrupamento e Escola Profissional) foram de uma colaboração notável, assim como a Câmara, a Agência Nacional do Vale. A questão que se me coloca é: como transformar a colaboração pontual em continuada? Saiu notícia num jornal local, o que dá visibilidade ao Projeto. (R1)

Para falar do Projeto sinto-me quase obrigada a fazer uma pequena viagem no tempo. A minha inclusão neste Projeto começou há quase três anos quando ingressei no mestrado (…). O meu interesse em trabalhar em locais ligados à educação não formal (conduziu ao) Centro de Memória da Educação e à possibilidade de realizar lá o estágio curricular (…). O CME passou a ser para mim um grande objetivo que queria ver realizado (…) fui-me integrando na comunidade, mantendo contactos e deixando impressões. Deixei a Vila em março de 2018, sempre com a esperança de que este Projeto ia vingar e que eu iria voltar. Foi em abril de 2019 que soube que iria abril o concurso para encontrar um bolseiro de investigação (…). Voltei a 15 de outubro de 2019. (R9)

Nota final

A obra Confissões, escrita por Santo Agostinho no século IV, é para William Spengemann (1980) o grande modelo da autobiografia ocidental. Assim a considera por nela já aparecerem como centrais a reflexão e a memória enquanto meios de autoconhecimento. De forma detalhada, W. Spengemann (1980, p. 32) demonstra como a obra abriga o que identifica como as três dimensões características do discurso construído na primeira pessoa: a lembrança histórica de si mesmo, a autoinvestigação filosófica e a autoexpressão poética. A Crónica que aqui elegi como objeto de análise não é - nem nunca pretendi que fosse - uma autobiografia, mas a ‘consciência de si’ que as suas narrativas exibem, fazem com que também consiga satisfazer aqueles requisitos. Olhada pelo ângulo das contra-memórias através do qual fornece acesso a dados de outro modo escamoteados, ou pela via da ego-investigação que consegue proporcionar, a Crónica apresenta um potencial heurístico nada desprezível. A análise realizada é elucidativa quanto à questão do autobiografismo não ser a negação de uma real capacidade heurística. De igual modo, demonstra também como, apesar de serem notórias algumas resistências, os investigadores do Projeto não esbarraram com obstáculos intransponíveis ao exercício de se colocarem em relação consigo mesmo, no contexto de um processo de investigação. Ainda que com gradações assinaláveis, são pouco apertados os limites da subjetivação que cada um definiu para si próprio e aceitou incorporar no processo de produção de conhecimentos.

Como comentário final quero apenas fazer notar como o exercício solicitado de manter um registo pessoal de depoimentos se repercute de modo percetível na possibilidade de conversão a nova prática metodológica e a novo paradigma epistemológico. Primeiro, a escrita das narrativas individuais na Crónica e, depois, a proposta da sua análise tendo em vista a publicação do presente artigo não deixam de ter efeitos assinaláveis, quer em termos de uma maior consciencialização quanto a integrar uma equipa de investigação multidisciplinar, quer quanto ao carácter não rigorosamente linear de qualquer processo de investigação. Por essa via, saem reforçados a abertura à participação entre pares e o sentimento de integrar uma equipa de investigação, bem assim como uma compreensão mais aprofundada dos processos investigativos com suas hesitações e limitações.

Agradecimentos

A autora agradece a colaboração de toda a equipa de investigadores do Projeto REduf (Referência PTDC/CED-EDG/30342/2017), concluído em 2022.

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1E, por esta altura, não se sabia ainda que as determinações de confinamento geral haviam de se repetir por três vezes em Portugal, com breves interrupção entre si.

2Segundo P. Lejeune (2008, pp. 65-66), as diretrizes do género autobiográfico presentes em As Confissões são: a utilização de técnicas romanescas para falar do passado e da narrativa pessoal para criar aproximação com o leitor; o próprio relato ser tido como meio de ampliar o conhecimento sobre si mesmo; a ênfase nos relatos de infância e a importância desta para a personalidade adulta; o abordar de novas dimensões da personalidade pela descrição de experiências laterais ou ridículas.

Recebido: 07 de Junho de 2022; Revisado: 20 de Dezembro de 2022; Aceito: 11 de Abril de 2023

Alice Duarte é Professora da Faculdade de Letras, Universidade do Porto (FLUP), Departamento Ciências e Técnicas do Património (DCTP); investigadora integrada do Instituto de Sociologia Universidade do Porto (IS-UP); investigadora colaboradora do Centro de Estudos Africanos Universidade do Porto (CEAUP). Licenciada em Antropologia Social e Cultural (FCSH-UNL), Mestre em Antropologia e Etnomuseologia (UM), Doutora em Antropologia Sociedades Complexas (ISCTE-IUL). Tem dois livros (Experiências de Consumo - Estudos de caso no interior da Classe Média, 2009; O Consumo para os Outros: os Presentes como Linguagem de Sociabilidade, 2011) e múltiplos artigos publicados nas áreas: Antropologia do Consumo, Museologia, Estudos Patrimoniais e Estudos Pós-coloniais. Orientação numerosas dissertações e teses. E-mail: alice_duarte@hotmail.com Morada: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Via Panorâmica, s/n. 4150-564 Porto

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