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Sisyphus - Journal of Education

versão impressa ISSN 2182-8474versão On-line ISSN 2182-9640

Sisyphus vol.10 no.3 Lisboa fev. 2023  Epub 16-Nov-2022

https://doi.org/10.25749/sis.27551 

Artigos

Experiências Sensoriais em Pessoas com Autismo e o Ensino de Ciências

Sensory Experiences of Autistic People and Science Teaching

Experiencias Sensoriales en Personas con Autismo y Enseñanza de las Ciencias

Tiago Fernando Alves de Mourai 
http://orcid.org/0000-0003-4963-5587

Eder Pires de Camargoii 
http://orcid.org/0000-0003-2577-9885

iDepartamento de Educação, Faculdade de Ciências, Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho, Câmpus de Bauru, Brasil

iiDepartamento de Física e Química, Faculdade de Engenharia, Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho, Câmpus de Ilha Solteira, Brasil


Resumo

Esse artigo tem como objetivo apresentar e discutir as contribuições da utilização de materiais multissensoriais no desenvolvimento de estudantes com autismo em aulas de Ciências. Para tal, elaborou-se uma sequência de ensino investigativa na qual um carrinho move-se sobre um plano inclinado. A atividade permitiu explorar os conceitos físicos de força e movimento. Como instrumentos para a coleta de dados utilizou-se registros em áudio, que posteriormente foram transcritos, e anotações em cadernos de campo. Os dados obtidos foram tabulados e categorizados atendendo as diferentes etapas de uma Análise de Conteúdo. Os materiais multissensoriais contribuíram com o processo de ensino/aprendizagem dos estudantes ao contemplarem distintos estilos perceptivos, como a visibilidade e os efeitos sonoros do carrinho. A manipulação dos objetos propiciou o trabalho em grupo e o desenvolvimento de habilidades sociais e psicomotoras. Por meio da atividade, os aprendizes compartilharam e reformularam hipóteses sobre o fenômeno apresentado.

Palavras-chave: autismo; ciências; multissensorial; sequência de ensino investigativa; força e movimento

Abstract

This article aims to present and discuss the contributions of the use of multisensory materials in the development of students with autism in science classes. For this purpose, this study presents an inquiry-based teaching approach in which a toy car moves on an inclined plane. Teaching/learning situations were used in which the concepts of force and movement were explored. As instruments for data collection, audio records were used, which were later transcribed and annotated in field notebooks. The data obtained were tabulated and categorized according to the distinct stages of a Content Analysis. The multisensory materials contributed to the teaching/learning process of the students by contemplating different perceptive styles, such as the visibility and sound effects of the toy car. The manipulation of objects provided group work and the development of social and psychomotor skills. Through the activity, the learners shared and reformulated hypotheses about the physical phenomena presented.

Key words: autism; science; multisensory; inquiry-based teaching approach; force and movement

Resumen

Este artículo tiene como objetivo presentar y discutir las contribuciones del uso de materiales multisensoriales en el desarrollo de estudiantes con autismo en clases de ciencias. Para este propósito, se desarrolló una Secuencia Didáctica de Investigación en el que un carro de juguete se mueve en un plano inclinado. Se utilizaron situaciones de enseñanza/aprendizaje en las que se exploraron los conceptos de fuerza y ​​movimiento. Como instrumentos para la recolección de datos se utilizaron registros de audio, que luego fueron transcritos y anotados en cuadernos de campo. Los datos obtenidos fueron tabulados y categorizados según las distintas etapas de un Análisis de Contenido. Los materiales multisensoriales contribuyeron al proceso de enseñanza/aprendizaje de los estudiantes al contemplar diferentes estilos perceptivos, como la visibilidad y los efectos sonoros del carro de juguete. La manipulación de objetos facilitó el trabajo en grupo y el desarrollo de habilidades sociales y psicomotrices. A través de la actividad, los alumnos compartieron y reformularon hipótesis sobre los fenómenos físicos presentados.

Palabras clave: autismo; ciencias; multisensorial; secuencia didáctica investigativa; fuerza y movimiento

Quando criança, eu tinha uma bola de plástico verde fluorescente que tinha um certo som quando tocada, uma certa textura quando arranhada (...). Depois disso, qualquer coisa com a mesma superfície, com o mesmo som, com a mesma cor - uma régua verde fluorescente, uma garrafa de plástico, uma capa de apoio de braço em vinil, qualquer que fosse sua natureza no mundo interpretativo do significado - era de alguma forma ‘parte’ dessa bola original, deixava-me satisfeita. Williams, 2006, p. 46.

Introdução

O presente artigo é um recorte de um estudo realizado durante um mestrado acadêmico em Educação para a Ciência (Moura, 2020). Nele apresenta-se uma proposta pedagógica que teve como intuito contribuir para o desenvolvimento integral de seis estudantes com idades entre nove e treze anos diagnosticados com autismo1. Com tal intento, utilizou-se materiais multissensoriais em conjunto com uma sequência de ensino investigativa (SEI), fundamentada na proposta de Carvalho (2013) e Carvalho, Vannucchi, Barros, Gonçalves e Rey (1998). Empregou-se situações de ensino/aprendizagem nas quais os conceitos de força e movimento e as percepções multissensoriais dos aprendizes foram exploradas. O objetivo central da atividade relacionava-se com a apresentação e discussão do conceito físico de força por meio da investigação de uma situação-problema, na qual um carrinho de brinquedo variava sua velocidade ao descer sobre um plano inclinado (Camargo, 2005).

Inicialmente buscou-se investigar na literatura científica possíveis preconcepções de crianças sobre os conceitos discutidos na atividade. Segundo Driver, Squires, Rushworth e Robinson (2006), as concepções das crianças sobre a natureza das forças foram identificadas a partir de uma quantidade substancial de pesquisas relacionadas ao movimento. Dentre as concepções apresentadas, destacam-se: (1) o fato de que crianças costumam associar a ideia de força e movimento às ações de puxar ou empurrar alguma coisa. Essa compreensão, embora correta, é incompleta, pois a ideia de puxar ou empurrar está quase sempre associada à ideia de contato, o que exclui uma característica fundamental da noção de força: a ação à distância; (2) a força da gravidade ocorre pela pressão do ar; (3) a gravidade é uma propriedade do objeto (tendência de o objeto cair em seu lugar natural); (4) quando um objeto se move, há uma força agindo nele, sempre no mesmo sentido do movimento; (5) se a velocidade de um objeto aumenta, então, a aceleração aumenta; (6) aprendizes com idades entre sete a nove anos podem pensar em força, em termos de raiva ou sentimento; (7) se há movimento, há uma força agindo; (8) se não existe movimento, não há nenhuma força agindo; (9) Não pode haver força sem movimento; (10) um objeto em movimento para quando sua força é usada; (11) um objeto em movimento tem uma força dentro dele, que mantém o movimento; (Driver et al., 2006).

Pontua-se, ainda, que as pesquisas sobre concepções prévias analisadas foram realizadas com estudantes sem autismo. Deste modo, a presente pesquisa pretende contribuir com a área apresentando aproximações e distanciamentos entre as concepções já presentes na literatura e as concepções de estudantes com autismo colaboradores dessa pesquisa. Em janeiro de 2019, ao efetuar buscas na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), utilizando os seguintes descritores no campo de busca avançada “(Autismo) AND (Ensino) AND (Ciências)”, Moura (2020) verificou que apenas três dissertações investigavam o Ensino de Ciências para estudantes com autismo, implicando a existência de um número reduzido de trabalhos nacionais envolvendo a escolarização de estudantes com TEA. Esses resultados condizem com as análises apresentadas por Rodrigues e Angelucci (2018), pesquisa na qual as autoras realizaram uma análise bibliométrica e de conteúdos de 88 produções que versavam sobre a escolarização de estudantes com autismo. As pesquisadoras consultaram diversos bancos de dados tais como: Scientific Eletronic Library Online (SciELO), Biblioteca Virtual em Saúde (BVS-Psic) e o BDTD.

Em relação às experiências sensoriais de pessoas com autismo, Bogdashina (2016) e Robertson e Baron-Cohen (2017) relatam que, embora as questões sensoriais tenham sido observadas desde os primeiros relatos acerca do autismo, elas têm sido pouco compreendidas ou apreciadas, sendo historicamente interpretadas apenas como aspectos secundários da cognição autista. Superando essa concepção, propõe-se levar em consideração a multiplicidade sensorial e as singularidades dos indivíduos a fim de, como apontado por Oliveira, Miranda, Vilas Boas e Shaw (2022), compreender quais características podem interferir nos processos de ensino e na aprendizagem de pessoas com autismo. Isso significa, portanto, que os professores devem promover a imersão desses sujeitos em experiências pedagógicas cujas práticas possibilitem conectar diferentes percepções.

Sistemas Sensoriais e Percepção

“Relaxe, inspire profundamente, sinta o ar expandindo seus pulmões, expire devagar”. Instruções semelhantes estão presentes na maioria das técnicas de meditação e, geralmente, podem estar acompanhadas por questionamentos como, por exemplo: “Existe algum cheiro que lhe chama a atenção? Como suas mãos estão posicionadas? Você sente o tecido de suas roupas em contato com sua pele? Em relação ao ambiente que lhe cerca, alguma das imagens, sons, cheiros ou sabores lhe faz lembrar de alguma coisa? Se sim, que sensação essa recordação lhe traz?”. Este tipo de exercício é uma maneira simples e efetiva de proporcionar consciência dos sistemas sensoriais que contribuem para a percepção do mundo ao nosso redor (Heffernan, 2016).

O questionamento sobre como os seres humanos e outras espécies são capazes de lidar com múltiplas fontes de informações sensoriais são de grande interesse na contemporaneidade. Essa indagação, no entanto, não é nova, e tem estado nas mentes de filósofos e psicólogos por séculos. Como destaca O'Callaghan (2019, p. 7): “a busca pela compreensão da interface entre a mente e o mundo motivou toda uma tradição filosófica”. Cita-se como exemplos de reflexões sobre o tema: os clássicos Teeteto2 de Platão (2010) e Da alma3 (De Anima) de Aristóteles (2006). O autor destaca ainda que, desde a idade moderna até o presente, existe uma primazia da visão em detrimento dos demais sentidos no que tange à busca pelo conhecimento. Essa concepção hegemônica da visão perante os demais sentidos é exposta por Masini ao argumentar:

Assim, não dizemos "ouve como brilha", "cheira como resplandece", "saboreia como reluz", "apalpa como cintila". No entanto podemos dizer que todas essas coisas se vêem. Por isso não só dizemos "vê como isto brilha" - pois só os olhos podem sentir - mas também "vê como isto soa, vê como cheira, vê como sabe bem, vê como é duro". (1994, p. 77)

Deste modo, reflexões e investigações acerca da percepção e seu significado tem sido, ao longo do tempo, moldadas com um notável enfoque pelo sentido da visão, enfatiza-se, porém, que somos dotados de outros sentidos. Como lembrado por Camargo (2000, p. 88): “situações cotidianas estão repletas de experiências, experiências estas que são de várias naturezas, como de naturezas sensoriais, e aqui incluímos os sentidos visão, audição, paladar, tato e olfato, bem como naturezas de ordem sociais”. A importância das experiências sensoriais para entendermos como sentimos e percebemos o mundo é, portanto, inegável.

A fim de continuar a discussão é necessário, contudo, tecer uma breve distinção entre os conceitos de sensação e percepção. De acordo com Schiffman:

A sensação refere-se ao processo inicial de detecção e codificação da energia ambiental. Daí se segue que a sensação é pertinente ao contato inicial entre o organismo e seu ambiente. Sinais de energia potencial provindos do ambiente emitem luz, pressão, calor, substâncias químicas e assim por diante, e os nossos órgãos dos sentidos - nossas janelas para o ambiente - recebem essa energia, transformando-a em um código neural bioelétrico que é enviado ao cérebro. (2005, p. 2)

Por outro lado, o processo pelo qual um organismo coleta, interpreta e compreende informações do mundo exterior por meio dos sentidos é chamado de percepção. Segundo Schiffman (2005, p. 4): “A percepção refere-se ao produto dos processos psicológicos nos quais significado, relações, contexto, julgamento, experiência passada e memória desempenham um papel”. Ou seja, a percepção envolve a organização, interpretação e atribuição de sentido para aquilo que os órgãos sensoriais processaram inicialmente. Deste modo, uma vez que as informações recebidas tenham passado por áreas específicas do cérebro, as percepções sensoriais são unidas com associações, com experiências e memórias, contribuindo para a formação de conceitos (Bogdashina, 2016).

A percepção depende, portanto, tanto do aprendizado quanto do amadurecimento. Um recém-nascido, por exemplo, não nasce com conhecimentos e estratégias prontos para perceber as complexidades dos estímulos ambientais. Essa habilidade se desenvolve com o tempo, com a maturação. Os bebês adquirem, então, informações sobre o mundo e aprendem com essas informações. Esse processo é justamente o que caracteriza a percepção: a extração de informações por meio dos estímulos (Gibson, 1969).

Outro conceito crucial para se compreender os processos sensoriais e sua relação com a percepção refere-se à diversidade humana. A sociedade é um espaço que clama pelo convívio das diferenças. Entretanto, diversos estudos apontam que o mito do indivíduo ideal (a falácia de uma suposta universalidade humana) tem causado opressão para aqueles que destoam do suposto padrão de normalidade. Nesse sentido, destaca-se o conceito de neurodiversidade: referindo-se as possíveis variações no funcionamento cognitivo, afetivo e sensorial, que destoam da maioria da população geral, identificados como neurotípicos (pessoas não autistas) (Bertilsdotter, Chown, & Stenning, 2020). Esse artigo evidencia, especialmente, os estudantes com autismo e suas experiências sensoriais no contexto do ensino dos conceitos científicos de força e movimento.

Experiências Sensoriais no Autismo

Desde a primeira identificação do autismo4 muitas pesquisas foram realizadas para estudar essa condição sob diferentes perspectivas, concentrando-se, principalmente, nas dificuldades sociais, de comunicação e cognitivas atreladas a esse diagnóstico. Pesquisas recentes, entretanto, têm contribuído por meio da investigação de outro aspecto crucial da experiência autista: o processamento sensorial (Bogdashina, 2016; Heffernan, 2016; Robertson & Baron-Cohen, 2017).

Estima-se que experiências sensoriais atípicas possam ocorrer em até 90% das pessoas com autismo e possam afetar todas as modalidades sensoriais, tais como: paladar, tato, audição, olfato e visão (Robertson & Baron-Cohen, 2017). De acordo com Cunha, a estimulação das percepções sensoriais pode contribuir para o desenvolvimento de abstrações, pensamentos e ideias de pessoas com autismo. Em relação às experiências sensoriais, o autor complementa:

Existem uma hipersensibilidade aos estímulos do ambiente exterior e uma pungente busca por sensações. O tato, a audição e a visão são campos perceptivos extremamente sensíveis. Às vezes, os autistas não suportam barulhos, assustando-se. Outras vezes, atraem-se por algum ruído. Há um ativo interesse em tocar os objetos insólitos ou levá-los a pele. No campo visual, orientam-se, preferencialmente, para os aspectos locais da informação. Ficam, por vezes, presos à observação de um pequeno detalhe no ambiente (...) não atentando-se para todo o resto. (2010, p. 36)

Deste modo, embora as pessoas com autismo vivam no mesmo mundo físico que os indivíduos sem autismo, seu mundo perceptivo acaba sendo notavelmente diferente do vivenciado pelas pessoas não autistas. Esse fato está intrinsecamente relacionado com a capacidade de interpretação do mundo, que como já apresentado, é baseada na imaginação, memória e experiência. Portanto, a percepção é um processo ativo, de mão dupla, na qual as informações dos órgãos dos sentidos são influenciadas pelas “informações internas” (referente à singularidade do indivíduo) (Bogdashina, 2016). Assim, duas pessoas com autismo, dado suas idiossincrasias, não terão exatamente os mesmos padrões, a mesma percepção em relação às experiências sensoriais. Podemos, contudo, distinguir algumas características comuns que podem se apresentar em pessoas com autismo (Bogdashina, 2016; Cunha, 2010):

  • Dificuldade para distinguir informações de primeiro plano e de fundo: existem evidências de que pessoas com autismo podem apresentar dificuldade em discriminar estímulos relevantes e irrelevantes. Visualmente, pode existir grande dificuldade em focalizar um único detalhe em uma determinada cena ou dificuldade de separá-lo de toda a imagem. Por outro lado, podem ficar, por vezes, presos à observação de um pequeno detalhe no ambiente, possivelmente, imperceptível para neurotípicos. Em relação à audição, pode existir dificuldade em se concentrar, por exemplo, em um estímulo auditivo específico, como a voz de alguém em meio a ruídos ambientais: como ventiladores funcionando, portas se abrindo, carros passando etc.

  • Hipersensibilidade e/ou hipossensibilidade aos estímulos do ambiente exterior: às vezes, pessoas com autismo podem não suportar barulhos, assustando-se. Outras vezes, podem ser atraídas por algum ruído. É possível existir um ativo interesse em tocar objetos insólitos ou levá-los a pele.

  • Inconsistência de percepção: podem existir flutuações entre os estados de hipersensibilidade e hipossensibilidade, resultando em dificuldades para modular adequadamente a integração sensorial.

  • Agnosia sensorial: pode ser considerada uma espécie de “percepção literal” a um estímulo, por exemplo, uma pessoa com autismo pode ver ou ouvir coisas sem conseguir interpretá-las ou compreendê-las. Pode existir, portanto, dificuldade em interpretar um ou mais sentidos.

Diante das características apresentadas, crianças com autismo parecem desenvolver estratégias para tentar controlar sua percepção aos estímulos sensoriais recebidos. Para evitar a sobrecarga de informação sensorial, pessoas com autismo podem se concentrar em um único sentido, por exemplo, a visão, de modo a conseguirem visualizar cada detalhe minucioso de um objeto. Por outro lado, enquanto sua concentração está direcionada totalmente ao sentido visual elas podem perder a consciência de qualquer informação que advenha por meio de outros sentidos. Deste modo, enquanto a pessoa visualiza algo, ela pode não ouvir nada, não sentir nenhum toque, cheiro ou sabor (Bogdashina, 2016).

Esse monoprocessamento, essa fragmentação perceptiva, pode causar dificuldades para que as pessoas com autismo compreendam o ambiente exterior, por exemplo, uma criança pode precisar tocar um objeto para produzir sons a fim de reconhecer o que é, pois seu reconhecimento visual pode estar fragmentado e sem sentido. Outras podem necessitar cheirar o objeto para identificá-lo. Portanto, em relação à prática pedagógica, é fundamental fornecer informações sensoriais de modo que os aprendizes possam percebê-las e processá-las.

Estratégias Multissensoriais e as Sequências de Ensino Investigativas

O termo “estratégias multissensoriais” está relacionado com o uso de estratégias instrucionais que envolvem múltiplos sistemas sensoriais, tais como: visuais, auditivos e tátil-cinestésicos nos processos de ensino e de aprendizagem. Deste modo, diferentes canais sensoriais se complementam podendo oferecer aos aprendizes diferentes tipos de informação, contribuindo, portanto, com a equidade de condições para o aprendizado, em uma perspectiva educacional inclusiva. Para além de fornecer possibilidades de percepção aos estudantes, as estratégias multissensoriais podem contribuir para a evolução da compreensão dos sentidos para estudantes com e sem autismo, de modo que: “não basta só saber olhar, é preciso saber ver; não basta só saber escutar, é preciso saber ouvir, etc.” (Ballestero, 2006, p. 2).

Em sua pesquisa, Soler (1999) destaca que o Ensino de Ciências Naturais costuma apresentar predileção por utilizar enfoques com elementos puramente visuais. Essa predileção, como consequência, limita os processos de ensino e a aprendizagem dos estudantes, pois ignora informações advindas dos demais sentidos. Deste modo, a aprendizagem será mais completa a partir do momento em que os aprendizes possam experienciar (percebendo, analisando e sintetizando) os fenômenos a serem estudados em toda sua multiplicidade perceptiva. Portanto, mesmo quando simples, “a experimentação, como prática de classe, será sempre muito mais completa se utilizarmos todos os sentidos possíveis” (Ballestero, 2006, p. 2).

Portanto, ao se trabalhar com estudantes com autismo, o processo de ensino e de aprendizagem deve contemplar uma criteriosa relação entre mediação pedagógica, cotidiano e formação de conceitos. É de fundamental importância explorar as sensibilidades dos estudantes, objetivando perceber “quais são os significados construídos e quais conceitos que estão sendo formados” (Orrú, 2012, p. 102). Salienta-se que, durante a etapa do ensino fundamental, o principal objetivo do ensino de ciências não é formar pequenos cientistas, mas sim ofertar um ambiente investigativo onde o aprendiz possa ir ampliando sua cultura científica, expondo suas ideias, testando suas hipóteses e, com a contribuição do professor e dos colegas, ter contato com os conhecimentos socialmente e historicamente construídos nas Ciências (Carvalho, 2013).

A abordagem educacional aqui apresentada é fundamentada na proposta de Ensino de Ciências por investigação. O artigo é fundamentado, principalmente, nas pesquisas de Carvalho et al. (1998). Nessa abordagem, cabe ao professor planejar a sequência de ensino investigativa (SEI) que será utilizada, desde sua concepção até à execução e avaliação. De acordo com Carvalho:

As sequências de ensino investigativas (SEIs), isto é, sequências de atividades (aulas) abrangendo um tópico do programa escolar em que cada atividade é planejada, do ponto de vista do material e das interações didáticas, visando proporcionar aos alunos: condições de trazer seus conhecimentos prévios para iniciar os novos, terem ideias próprias e poderem discuti-las com seus colegas e com o professor passando do conhecimento espontâneo ao científico e adquirindo condições de entenderem conhecimentos já estruturados por gerações anteriores. (2013, p. 9)

Dentre as etapas usuais de uma SEI, destacam-se: (a) distribuição dos materiais a serem utilizados; (b) proposição de um problema pelo professor ou mediador; (c) ação dos estudantes sobre os objetos a fim de verificarem como eles reagem; (d) ação dos estudantes sobre os objetos a fim de obter os efeitos desejados para resolver o problema; (e) tomada de consciência dos estudantes sobre como foi produzido o efeito desejado; (f) a apresentação das explicações causais pelos estudantes (em grupo); (g) sistematização individual do conhecimento: nessa etapa os aprendizes verbalizam, escrevem ou desenham sobre o que aprenderam na aula (Carvalho, 2013).

Durante a SEI, fatos e conceitos são apenas um dos conteúdos a serem ensinados, o professor não deve se fixar apenas nesse tipo de conteúdo, visto que outras habilidades devem ser desenvolvidas no processo; destacam-se: selecionar informações pertinentes, trabalho em equipe, solidariedade e respeito pelos companheiros, entre outros (Carvalho et al., 1998).

As estratégias multissensoriais atreladas a uma SEI podem, portanto, contribuir com os processos de: (I) descrição (verbal, textual ou iconográfica) dos fenômenos percebidos; (II) análise e síntese dos fenômenos, percebidos por meio da multiplicidade dos sentidos; (III) reconhecimento de formas, texturas, sons, sabores e cheiros; (IV) autoconhecimento sensorial em relação a gostos e desgostos; (V) criatividade na elaboração de estratégias para resolução do problema proposto e da exploração dos materiais e socialização com os pares. Destaca-se o fato de que, de acordo com o levantamento bibliográfico realizado por Moura (2020), nenhuma das pesquisas analisadas utilizou-se de SEIs nas interações didáticas com estudantes com autismo justificando, portanto, a relevância da realização desta pesquisa.

Aspectos Metodológicos

Para a constituição de dados, utilizou-se parâmetros de uma Pesquisa Qualitativa em Educação. Esta modalidade de pesquisa compreende o contexto educativo como síntese da ação de múltiplas fontes de evidência, agindo e interagindo de modo concomitante, ao invés de se basear-se em uma única fonte. Desenvolve-se a investigação a partir de um problema que desperta o interesse do pesquisador, demandando seu envolvimento com o contexto e o local onde os fenômenos ocorrem. Por conseguinte, ao se utilizar ferramentas e técnicas de coletas de dados, pode-se melhor compreender o fenômeno investigado (Lüdke & André, 2013).

Participaram do processo de coleta dos dados, um dos pesquisadores (primeiro autor do artigo) e seis crianças, meninos e meninas, na faixa etária entre nove e treze anos, todas diagnosticadas com autismo. Por motivo de sigilo, as crianças são identificadas pelos nomes fictícios: Março, Abril, Junho, Julho, Agosto e Setembro. No Quadro 1 são apresentadas algumas informações sobre os aprendizes:

Quadro 1: Informações sobre os aprendizes 

Identificação Informações
Março Estudante do sexo masculino, 9 anos de idade, necessidade de pouco apoio, por vezes apresenta dificuldades para iniciar interações sociais, entretanto, uma vez iniciada a interação, tem facilidade para se comunicar verbalmente. Apresenta dificuldades na comunicação escrita. Gosta de brinquedos relacionados a super-heróis.
Abril Estudante do sexo masculino, 13 anos de idade, apresenta a necessidade de apoio substancial, demonstra dificuldades para iniciar e manter interações sociais além de dificuldades na comunicação verbal e não verbal. Gosta de brincar com carrinhos e aviões.
Junho Estudante do sexo feminino, 9 anos de idade, apresenta a necessidade de apoio substancial, demonstra dificuldades para iniciar e manter interações sociais além de dificuldades na comunicação verbal e não verbal. Gosta de momentos de lazer em parques, nos quais, costuma tocar flores e árvores.
Julho Estudante do sexo feminino, 9 anos de idade, apresenta a necessidade de pouco apoio, demonstra dificuldades para iniciar interações sociais, porém, uma vez iniciada, é verbalmente comunicativa. Demonstra dificuldades na comunicação escrita. Segundo relatos da estudante, gosta de ouvir músicas, principalmente de filmes da Disney.
Agosto Estudante do sexo masculino, 10 anos de idade, pouca necessidade de apoio. Apresenta dificuldades para iniciar interações sociais, porém, uma vez iniciada a interação, é verbalmente comunicativo. Demonstra dificuldades na comunicação escrita. Gosta de brincar com aviões e foguetes. Costuma assistir a documentários e vídeos sobre os temas.
Setembro Estudante do sexo masculino, 10 anos de idade, pouca necessidade de apoio. Apresenta dificuldades para iniciar interações sociais, porém, uma vez iniciada a interação, é verbalmente comunicativo. Demonstra dificuldades na comunicação escrita. Gosta de filmes, desenhos e jogos do super-herói homem-aranha

Fonte: Elaborado pelos autores.

A atividade proposta foi realizada presencialmente, antes da pandemia desencadeada pelo COVID-19, durante o segundo semestre de 2019 em parceria com uma Associação de Pais e Amigos dos Excecionais (APAE) em uma cidade localizada no interior do estado de São Paulo, Brasil. A instituição caracteriza-se como uma organização social, cujo objetivo principal é promover a atenção integral à pessoa com deficiência, fornecendo às crianças assistência médica, física e cognitiva. Em relação aos aprendizes com autismo, crianças com diagnósticos médicos semelhantes permanecem em uma mesma sala, onde cada estudante possui seu próprio ambiente de trabalho (formado por uma mesa, cadeira e prancheta). Há em cada sala uma grande mesa de madeira destinada a atividades colaborativas. Em documento orientador, publicado em julho de 2001, a Federação Nacional das Apaes (FENAPAES), exprime sua convicção a respeito da modalidade de Educação Especial, suas principais diretrizes e objetivos. Dentre os diversos pontos levantados, destaca-se:

O currículo, em qualquer processo de formação, transforma-se em síntese básica da educação. Isto nos possibilita afirmar que a busca da construção curricular deve ser entendida como aquela garantida na própria LDB, complementada, ou não, com atividades que possibilitem o acesso do aluno que possui necessidades educacionais especiais, por serem portadores de deficiência, ao ensino, à cultura e à cidadania. (Federação Nacional das Apaes, 2001, p. 25)

Muitos pais optam por matricular seus filhos com deficiência em escolas especializadas, em detrimento do ensino regular comum, acreditando que, nesses ambientes, o estudante terá melhores oportunidades de aprender e se desenvolver. Essa ação geralmente é motivada pela concepção de que existe despreparo das escolas de ensino regular em ofertar condições adequadas para a educação de estudantes com deficiências. Pontua-se, contudo, que durante muitos anos as escolas de educação especial praticaram uma filosofia do acolhimento, da educação pautada no Déficit, treinando os aprendizes apenas para realização de tarefas do dia a dia, como escovar os dentes, tomar banho, entre outras - objetivando, sobretudo, que o estudante não se torne um adulto incapaz de realizar tarefas cotidianas. Nesta perspectiva, não se utiliza o Currículo funcional e prático como um currículo a ser complementado com outras atividades - como conteúdos acadêmicos - pelo contrário, concede-o como único Currículo possível. Propicia-se, assim, um ensino reducionista e normativo (Orrú, 2012).

Objetivando superar esta perspectiva, propõe-se que o ensino de Ciências pode fornecer um contexto no qual os estudantes podem desenvolver a aprendizagem conceitual de conteúdos historicamente e socialmente construídos enquanto também desenvolvem atividades funcionais. Por exemplo, enquanto aprendem sobre o conceito físico de velocidade, os estudantes podem praticar a leitura de horas, minutos e segundos em um relógio, contribuindo com sua autorregulação e gestão do tempo. Com tal intuito, nos primeiros meses do ano letivo, houve o acompanhamento do dia a dia dos aprendizes na instituição. Deste modo, a metodologia para coletas de dados contou com: (A) observação in loco das aulas, nas quais buscou-se conhecer as idiossincrasias dos aprendizes, percebendo quais objetos ou atividades mais os atraiam, bem como o andamento habitual das aulas por intermédio do acompanhamento das interações da professora com os aprendizes, registrando esses dados em um diário de campo; (B) planejamento conjunto do pesquisador com a professora, buscando adequar e sincronizar as atividades propostas com os conteúdos desenvolvidos com os estudantes; (C) aplicação da SEI envolvendo os conceitos de força gravitacional e variação da velocidade; (D) análise das produções dos estudantes, na qual, utilizou-se o registro auditivo, por meio da áudio-gravação do encontro e posterior transcrição, tabulação e categorização (Bardin, 2002).

O tempo total para o desenvolvimento da atividade foi de aproximadamente 90 minutos. Para realizar a SEI foram utilizados (figura 1):

  • um carrinho de brinquedo adaptado com alarme sonoro;

  • uma superfície de madeira com 1,5m de comprimento e 12cm de largura, utilizada como uma rampa;

  • fitas de papel de alumínio de aproximadamente 15cm de comprimento por 1cm de largura;

  • 50 blocos de madeira com largura de 1,5cm, altura de 3cm e comprimento de 9cm, utilizados como suporte para superfície de madeira.

Figura 1: Rampa e Carrinho com alarme sonoro em: (a) fios; (b) visão lateral (Fonte: Elaborado pelos autores). 

Objetivando confeccionar os materiais utilizados na SEI, colou-se as tiras de papel de alumínio na rampa de madeira, deixando uma distância de 15cm entre as fitas. Adaptou-se um carrinho de brinquedo vermelho, instalando um alarme sonoro em seu interior, de modo que o circuito elétrico do alarme ficasse com os fios de ligação expostos do lado de fora do carrinho, na parte inferior. Dessa forma, durante a descida no plano inclinado, o alarme dentro do brinquedo emite um “bip” quando os fios de ligação tocam a parte condutora do plano inclinado (papel de alumínio), fechando o circuito. O brinquedo deixa de emitir som quando os fios condutores tocam a parte isolante, ou seja, a madeira. Este mesmo experimento foi realizado no estudo de Camargo (2005) com estudantes com deficiência visual, a escolha pela utilização do experimento está relacionada com o fato dele permitir a exploração de sensações auditivas, relacionadas aos conceitos abordados, estratégia que experimentos tradicionais em física costumam não abordar.

Os dados obtidos foram tabulados e categorizados atendendo às diferentes etapas de uma Análise de Conteúdo proposta por Bardin (2002). De acordo com a autora: “As diferentes fases da análise de conteúdo, (...) organizam-se em torno de três polos cronológicos: (1) a pré-análise; (2) a exploração do material; (3) o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação” (2002, p. 95). As categorias para análise foram fundamentadas, principalmente, no trabalho de Camargo (2005) que as estruturou a partir de Bardin (2002). Definiu-se três categorias de análise, criadas a priori: Categoria (1): observação - destinada a analisar se a interação entre as crianças e os materiais utilizados nos encontros propiciaram condições para que os estudantes percebessem os fenômenos que estavam sendo apresentados; Categoria (2): compreensão - relacionada à compreensão dos aprendizes sobre o fenômeno estudado durante o encontro; e Categoria (3): mediação - elaborada e utilizada tanto para analisar as interações do pesquisador com os aprendizes quanto a interação dos próprios estudantes com seus pares. O Quadro 2 sistematiza os elementos verificados nas categorias de análise.

Quadro 2: Elementos que fundamentam as categorias de análise utilizadas  

CATEGORIA 1 (observação) CATEGORIA 2 (compreensão) CATEGORIA 3 (mediação)
(1.1) descreveu percepções sobre os experimentos ou eventos (2.1) compartilhou hipóteses sobre o fenômeno (3.1) trabalhou em grupo na resolução do problema
(1.2) descreveu percepções sobre os materiais (2.2) questionou hipóteses sobre o fenômeno (3.2) partilhou os materiais ofertados na atividade com os pares
(1.3) propôs experimentos (2.3) reformulou hipóteses (3.3) respeitou o tempo de fala do pesquisador e dos colegas
--------------------- (2.4) manipulou os materiais e descreveu os procedimentos de suas ações (3.4) demonstrou sentimentos em resposta a ação do pesquisador ou dos colegas
------------------- ---------------------- (3.5) demonstrou atenção aos interesses e singularidades dos estudantes (em relação ao pesquisador)

Fonte: Elaborado pelos autores.

O encontro ocorreu na sala de aula da instituição, com a presença da professora da turma. A análise do encontro foi realizada a partir das etapas propostas por Carvalho (2013), a saber: (a) distribuição do material; (b) proposição do problema; (c) manipulação dos materiais; (d) resolução do problema pelos estudantes; (e) sistematização dos conhecimentos. Iniciou-se a atividade solicitando que os aprendizes se sentassem em grupo, ao redor da grande mesa de madeira, posicionada do lado esquerdo da sala, de frente para a porta. Para deslocar a rampa até a escola foi utilizada uma capa bag para guitarra, a qual continha a rampa em seu interior.

Resultados e Discussões

Na sequência, apresenta-se a análise dos dados utilizando como referenciais teóricos a SEI e as categorias elaboradas por Camargo (2005) já explicitadas na metodologia. Durante a primeira etapa da sequência - distribuição dos materiais a serem utilizados - o estudante Março, por meio de sua percepção visual da capa bag para guitarra, inicia uma série de questionamentos:

Quadro 3: Fragmento do diálogo ocorrido durante a distribuição da rampa de madeira 

Linha Participante Diálogos e ações observadas
1 Março O que tem naquela caixa de papelão? (Aponta para uma capa Bag de guitarra trazida pelo pesquisador).
2 Agosto É um avião?
3 Pesquisador Um avião? Não...
4 Agosto É um tanque de guerra?
5 Pesquisador Tangue de guerra? (Risos). Não. Mas é algo que acredito que vocês irão gostar.
6 Junho É de fazer música?
7 Agosto É uma pizza?
8 Pesquisador Não. Infelizmente não é uma pizza (risados). (O pesquisador abre a bag). Como a Junho comentou, essa capa serve para guardar guitarra, mas utilizei para guardar e trazer uma coisa diferente. (Pesquisador retira a rampa de madeira)
9 Março É uma pista para carrinhos?
10 Pesquisador Isso! Gostaria que vocês fossem passando, podem colocar a mão e mexer..., mas.... Por favor, não retirem essa fitinha (aponta para a fita de papel alumínio). É uma pista de madeira, com várias fitinhas de papel alumínio.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Por meio do fragmento de diálogo apresentado no Quadro 3 é possível perceber a curiosidade emanada pelos aprendizes que, mesmo antes do pesquisador distribuir os materiais, mostravam-se intrigados com o conteúdo que estaria dentro da capa bag. Mediante os estímulos visuais, hipóteses foram levantadas sobre o conteúdo da capa de guitarra. Dentre as várias hipóteses, destaca-se o questionamento de Junho: “É de fazer música?” (Linha 6). Possivelmente, assim como exposto por Schiffman (2005), a percepção da estudante estaria relacionada com algum tipo de experiência passada ou memória sobre o objeto percebido (neste caso, uma capa para guardar violão ou guitarra). O mesmo ocorreu com Março que, ao observar a rampa de madeira, rapidamente associou-a com uma “pista para carrinhos” (Linha 9). Na sequência, apresentou-se aos estudantes o carrinho adaptado com alarme sonoro.

Quadro 4: Fragmento do diálogo ocorrido durante a distribuição do carrinho com alarme acoplado 

Linha Participante Diálogos e ações observadas
11 - 12 (...).
13 Pesquisador (Entrega o carrinho aos estudantes.).
14 Estudantes (Manuseiam o carrinho).
15 Pesquisador O que vocês podem me dizer sobre este carrinho? (Aponta para o brinquedo).
16 Estudantes Ficam em silêncio.
17 Pesquisador Existe alguma coisa diferente nesse carrinho? (...). Existe alguma coisa na parte debaixo do carrinho?
18 Agosto Sim!
19 Pesquisador O que?
20 Agosto Um fio.
21 Pesquisador Sim! Muito obrigado! Todos perceberam que existe um fio embaixo do carrinho?
22 Estudantes Sim.
23 Pesquisador E por que será que esse fio está aí?
24 Março Eu acho que é porque ele queimou!
25 Pesquisador Ótima resposta! Será que ele queimou? Vamos verificar! Você poderia colocar o carrinho em cima da pista Março? (A pista estava em cima de uma das carteiras dos estudantes).
26 Março (Ao colocar o carrinho em cima de uma das fitas de alumínio o carrinho começa a sinalizar um ruído, um “bip” constante).
27 Julho Alarme?
28 Pesquisador Sim! O carrinho está fazendo um barulho, igual a um alarme. Dentro dele existe um alarme e uma pilha.
29 Agosto Pode abrir?
30 Pesquisador Infelizmente ainda não, pois precisaremos utilizar o carrinho. Mas após isso, poderemos abri-lo.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Inicialmente (tabela 4), após o questionamento do pesquisador (Linha 15), os estudantes permanecem em silêncio. Uma provável causa para o silêncio pode estar relacionada a generalização, ou falta de direcionamento do questionamento do pesquisador - dado que a indagação: “O que vocês podem me dizer sobre este carrinho”; é demasiadamente aberta. Como lembrado por Bogdashina (2016), pessoas com autismo podem apresentar dificuldades em discriminar estímulos relevantes e irrelevantes, deste modo, é possível que os aprendizes tenham tido dificuldades em focalizar ou separar detalhes do carrinho analisado. Após novo questionamento e direcionamento pelo pesquisador (conduzindo o olhar dos estudantes para a parte inferior do brinquedo, Linha 17), Agosto observa os fios expostos (Linha 20) enquanto Março levanta a hipótese de que o carrinho, por estar com os fios expostos, estaria queimado e não irá funcionar (Linha 24). É interessante notar que a hipótese de Março possui muito sentido, dado que, geralmente, quando percebemos fios expostos, os circuitos elétricos dos equipamentos geralmente estão abertos, e os equipamentos não funcionam, devido à falta de corrente elétrica ou o mau funcionamento de algum componente. Julho, ao ouvir o barulho emitido pelo carrinho, logo o associa ao barulho de um alarme (Linha 27). Pode-se perceber, nessa etapa, diversos elementos relacionados as categorias observação e compreensão: 1) Agosto identifica os fios expostos do carrinho de brinquedo; 2) Março levanta a hipótese de que o carrinho estaria queimado; 3) Julho relaciona o ruído emitido pelo carrinho a um alarme. Após a entrega dos blocos de madeira aos estudantes, foi proposto o problema a ser resolvido.

Quadro 5: Fragmento do diálogo ocorrido durante a apresentação do problema 

Linha Participante Diálogos e ações observadas
31 Pesquisador O problema que temos que resolver é: usando essas peças de madeira, que acabei de entregar (aponta para os blocos de madeira), e a pista de carrinho (aponta para a rampa). Como podemos fazer para que o carrinho se mova sem precisar empurrar ou puxar ele com as mãos?
32 Estudantes (Manipulam os materiais e conversam entre si. Essa ação leva aproximadamente 10 minutos).
33 Setembro O que tem que fazer?
34 Pesquisador Precisamos descobrir uma maneira de fazer o carrinho se mover, sem que precisemos empurrar ou puxar ele, usando a pista de carrinhos e os bloquinhos de madeira. Será que existe alguma maneira de fazer isso?

Fonte: Elaborado pelos autores.

Aparentemente o problema não fora compreendido pelos estudantes (tabela 5), dado que, dez minutos após a proposição do questionamento, Setembro diz não ter compreendido o que deveria ser feito (Linha 33). Após a percepção de que os estudantes não estavam conseguindo propor ideias para resolver o problema, além de demonstrarem agitação e frustração, o pesquisador realiza uma intervenção evitando, contudo, compartilhar a solução.

Quadro 6: Fragmento do diálogo ocorrido durante a intervenção do pesquisador 

Linha Participante Diálogos e ações observadas
35 - 38 (...).
39 Pesquisador (Observa que Julho está empilhando os blocos de madeira, duas fileiras com 3 blocos empilhados). Olha, que legal o que a Julho está fazendo. (Aponta para a estudante). Será que poderíamos usar essa ideia para mover o carrinho?
40 Estudantes (Ficam em silêncio).
41 Pesquisador E se colocarmos a pista para o carrinho apoiada nos bloquinhos que a Julho empilhou? Vamos tentar?
42 Agosto (Enquanto manipula a rampa de madeira apoia uma das extremidades nos blocos empilhados por Julho). Uma rampa!
43 Março Mas será que o carrinho anda?
44 Pesquisador Vamos testar? Verificar se o carrinho se move? Agosto, onde colocamos o carrinho para verificar se ele se move?
45 Agosto Aqui em cima? (Aponta para a parte da rampa apoiada sobre os blocos de Madeira).
46 Pesquisador Muito bem! Pode colocar o carrinho aí. Vamos verificar o que acontece. (Após Agosto colocar o carrinho na rampa (pista) os alunos percebem que o carrinho não se moveu).
47 Março Não fez nada!
48 Pesquisador Muito bem observado. O carrinho não se moveu. O que podemos fazer para que ele se mova?
49 Agosto (Empurra o carrinho com a mão). Assim?
50 Pesquisador Muito bom! É uma ótima maneira de mover o carrinho, mas estamos procurando uma maneira na qual, não será preciso utilizar as mãos para empurrar o carrinho. O que a gente pode fazer?
51 Março Eu não sei! (Grita, demonstrando grande irritação e frustração).
52 Pesquisador Tudo bem. Não precisa ficar chateado, iremos descobrir. Irei dar uma sugestão. E se aumentarmos o número de bloquinhos? Temos duas colunas com três bloquinhos, um em cima do outro, não é? E se aumentarmos para cinco bloquinhos? Será que o carrinho se move?
53 Março Sim!
54 Pesquisador Vamos testar?
55 Estudantes (Março coloca mais 4 bloquinhos, dois em cada coluna. Após isso, Agosto novamente coloca o carrinho no topo da pista e solta-o. O carrinho começa a descer a rampa emitindo um “bip” cada vez que passa pelas tiras de alumínio).
56 Março Está mexendo!
57 Julho Faz barulho!

Fonte: Elaborado pelos autores.

A intervenção realizada foi necessária pois, como sinalizado pela fala de Março (Linha 51), o fato do aprendiz não conseguir resolver o problema, estava gerando grande frustração e irritação. Uma possível estratégia que poderia ter sido utilizada pelo pesquisador - buscando uma apresentação mais adequado do problema - seria dividi-lo em “partes menores”, pois como expresso por Cunha (2010, p. 60) ao se trabalhar com educandos com autismo: “a fala do professor precisa ser serena, explícita e sem pressa”. Nesse sentido, poder-se-ia solicitar que os estudantes: a) primeiramente empilhassem os blocos de madeira; b) na sequência manipulassem a superfície de madeira (rampa) e c) propusessem uma maneira de mover o carrinho sem precisar empurrá-lo ou puxá-lo.

Agosto se anima quando o carrinho, após Março aumentar o número de bloquinhos, começa a descer a rampa. Destaca-se o fato de Março nomear a estrutura como “pista para carrinho” (Quadro 3, Linha 9), enquanto Agosto identifica-a como “rampa” (Linha 42), aparentemente relacionando a estrutura com outros objetos já conhecidos. Além disso, foi possível verificar que a estimulação sensorial - assim como proposto por Cunha (2010) - pode contribuir de maneira distinta com a percepção dos estudantes sobre o fenômeno apresentado. Enquanto Março destacou o aspecto visual do deslocamento do carrinho: “Está mexendo!” (Linha 56), Julho novamente atentou-se a questão sonora: “Faz barulho!” (Linha 57). Ao serem questionados sobre o barulho do alarme, e se ele estaria de algum modo gerando desconforto ou dor, os estudantes responderam que não. Nesse sentido: “estimular a percepção de uma criança ajuda o desenvolvimento de abstrações, pensamentos e ideias” (Cunha, 2010, p. 35).

Após todos os estudantes manipularem o carrinho, fazendo-o descer pela rampa, vários testes foram realizados, como a variação da angulação da rampa, por meio da adição ou subtração de blocos de madeira. Inicialmente, com a colaboração com Agosto, o tempo gasto para o carrinho descer a rampa foi cronometrado, encontrando-se o valor de cinco segundos. Após o questionamento: “O que podemos fazer para o carrinho descer mais rápido? Agosto responde: “Acelerar ele!”. Em seguida, empurra o carrinho com a mão. Destaca-se que, até aquele momento, a palavra “aceleração” não havia sido citada pelo pesquisador. Ao ser indagado sobre o que seria “aceleração”, o estudante complementa: “É só fazer igual ao meu pai quando liga o carro de manhã, acelera ele!”. Portanto, o aprendiz enuncia uma concepção prévia entre os conceitos de aceleração e movimento explicitando uma relação entre suas percepções, vivências e memória, apontando que: para aumentar a velocidade do carrinho seria necessário acelerá-lo.

Quadro 7: Fragmento do diálogo ocorrido durante a sistematização do conhecimento 

Linha Participante Diálogos e ações observadas
58 - 63 (...).
64 Pesquisador Existe alguma maneira de aumentarmos a velocidade do carrinho, sem precisar empurrá-lo com as mãos?
65 Agosto Abrir o capô?
66 Pesquisador Seria uma ótima ideia para testarmos, infelizmente o capô desse carrinho é colado, não abre. Mas, e se colocássemos mais pecinhas de madeira? Uma em cima da outra?
67 Agosto Iria mais rápido! (Agosto coloca mais quatro peças de madeira, duas em cada coluna montada por Julho. Em seguida solta o carrinho do topo da rampa).
68 Julho O barulho, é mais rápido! (Animada, movimentando as mãos, Julho esbarra nos blocos que sustentam a pista, toda estrutura cai). Quebrei!
69 Pesquisador Não tem problema. Não quebrou. Montamos de novo.
70 Estudantes (Montam novamente a estrutura Junho, Abril e Setembro realizam a atividade, soltando o carrinho do topo da pista).
71 Junho Consegui! Desceu. Fez barulho!
72 Abril Mexeu o carrinho vermelho!
73 - 88 Estudantes (Manipulam os materiais ofertados).
89 Março Olha! Quando encosta o fio, um no outro, faz barulho! (Alarme soando).
90 Pesquisador Sim! Parabéns! Muito bem observado. E na pista? O fio encosta um no outro?
91 - 93 Março (Posiciona o carrinho sobre a rampa plana, de forma que os fios ficam encostados na madeira). Não faz barulho. Não encosta).
94 - 98 Pesquisador Verdade. Todos estão vendo que os fios estão encostando na madeira? Março, por favor, você pode mover o carrinho um pouco para frente? (Ao mover o carrinho o alarme começa a soar).
99 Pesquisador Os fios, estão relando um no outro?
100 Março Não.
101 Pesquisador Eles estão relando na madeira?
102 Março Não. Está nisso. (Aponta para uma fita de alumínio).
103 Pesquisador Muito bom, bem observado! Os fios estão relando na fita de alumínio. Esta fita, ela é uma ponte, como se ela encostasse um fio no outro. Ela liga os dois fios. A madeira não é uma boa ponte, ela não consegue ligar os fios, eles não se juntam...
104 Março Ai o carrinho não apita!
105 - 108 (...)
109 Pesquisador Em relação ao movimento do carrinho descendo a rampa. (Realiza novamente a demonstração do carrinho no plano inclinado). O que está empurrando ou puxando o carrinho para baixo quando solto ele na rampa?
110 Março Ninguém.
111 Agosto Ele está indo sozinho!
112 Março Mas, por que ele está se movendo sozinho?
113 Pesquisador Ótima pergunta Março! Por que será que ele está se movendo sozinho?
114 Março É por que ergueu!
115 Pesquisador Por que ele está em cima da rampa? No alto?
116 Março Sim! É por que ele está no alto!
117 Pesquisador Muito bem observado! O carrinho estava longe do chão, da mesa. No alto. Quando soltamos ele tende a voltar para mesa.
118 Março Quanto mais ergue, ele vai mais rápido!
119 Estudantes (Novamente manipulam o carrinho na rampa).
120 Março A Julho fez o carrinho descer bem rápido! Mas, ela empurrou com o dedo!
121 Pesquisador Verdade! Ela aumentou a velocidade do carrinho empurrando-o com o dedo. Vamos nomear, dar nomes para algumas coisas. Quando empurramos ou puxamos algo, como o carrinho, estamos aplicando uma Força. Então a Julho aplicou uma força no carrinho, empurrando-o com o dedo. Mas, existe outra força que está puxando o carrinho, essa força sempre puxa tudo em direção ao chão, nós chamamos essa força de Gravidade. Vocês já ouviram essa palavra? Gravidade?
122 Estudantes Não.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Agosto, por meio de suas memórias e vivências, propõe que, para “aumentar a velocidade do carrinho” seria necessário realizar uma “manutenção” no automóvel, inspecionando seu capô (Linha 65). Sua intenção demonstra criatividade na elaboração de uma estratégia para resolução do problema proposto. Em relação as percepções dos aprendizes sobre a relação entre a descida do carrinho e a variação da inclinação da rampa, por meio da adição de mais blocos em uma das extremidades, destaca-se: (a) Julho compartilha a informação de que o “barulho” estaria mais rápido (Linha 68). Essa constatação é condizente com os resultados obtidos por Camargo (2005), no qual é relatado que, em um experimento semelhante, estudantes com deficiência visual relatam a percepção da diminuição do intervalo de tempo entre dois sinais consecutivos emitidos pelo alarme, indicando um aumento de velocidade; (b) Junho, assim como Julho, chama a atenção dos colegas para a percepção auditiva do fenômeno (Linha 71); (c) Abril destaca percepções visuais sobre o brinquedo, em especial, identifica-o pela cor vermelha (Linha 72).

Março compartilha sua descoberta com os colegas, explicitando que, quando os dois fios expostos do carrinho são conectados, o alarme começa a soar. É interessante destacar sua frase: “Olha! Quando encosta o fio, um no outro, faz barulho!” (Linha 89). Como apresentado por Masini (1994), a frase apresenta uma concepção hegemônica da visão perante os demais sentidos, pois, apesar do fenômeno ser percebido por meio da sensibilização auditiva, o estudante exclama: “Olha!”. Por meio de uma sequência de questionamentos (Linhas 90 - 104), o estudante constata que: quando os fios expostos do carrinho tocam as fitas de alumínio o alarme soa, o mesmo fenômeno não ocorre quando os fios entram em contato com a madeira (Linhas 102 e 104). Objetivando explicar o fenômeno observado por Março, utilizou-se uma analogia, comparando as fitas de alumínio e a madeira com pontes que podem/ ou não conectar duas cidades, as quais, nessa analogia, seriam os fios.

Na sequência, foi proposta uma nova discussão. Partindo da compreensão de que, para mover um carrinho de brinquedo que se encontra parado (em repouso), é necessário a ação de uma força (como alguém puxando ou empurrando), questionou-se os aprendizes sobre qual seria a força responsável por alterar o estado de repouso do carrinho na rampa (Linha 109). A princípio Março e Agosto constatam que não existe “ninguém” puxando ou empurrando o carrinho, como exposto pelos estudantes, seu estado de movimento haveria se alterado por conta própria (sem influência de ninguém) (Linhas 110 - 111). A indagação possibilitou, contudo, que Março questionasse sua própria afirmação (Linha 112). Afinal, se não existe uma pessoa puxando ou empurrando o carrinho, o que estaria possibilitando sua mudança de estado, do repouso para o movimento?

Relembrando as ações realizadas, e analisando as variáveis envolvidas no procedimento, Março expõe que o ato de se ter levantado o carrinho, colocando-o no alto da rampa, foi a ação que motivou o movimento do carrinho (Linha 114). O aluno expõe ainda, uma relação de causa e efeito, diretamente proporcional, a saber: quanto mais alto o carrinho estiver, maior será sua velocidade (Linha 118), uma relação fisicamente correta, dado que, quanto mais alto o carrinho estiver posicionado na rampa, maior será sua energia potencial gravitacional, e consequentemente, maior será sua energia cinética e velocidade no ponto mais baixo da trajetória quando comparado com o sistema anterior. Ao final do encontro buscou-se apresentar uma breve discussão sobre o conceito físico de força gravitacional, força esta, responsável por puxar (atrair) o carrinho em direção ao solo.

Considerações Finais

Analisou-se, nesse artigo, uma proposta pedagógica na qual, materiais multissensoriais foram associados a uma perspectiva de ensino por investigação, objetivando proporcionar aos estudantes com autismo oportunidades de utilizar seus sentidos para coletar, interpretar e compreender informações sobre fenômenos envolvendo a temática força e movimento. A provisão de múltiplas modalidades sensoriais, das quais destaca-se: a audição, visão e tato representaram fontes complementares de informação sobre o ambiente e os fenômenos investigados pelos aprendizes.

Os resultados sugerem que os estudantes com autismo apresentam distintos estilos de percepção, de modo que, enquanto a visibilidade do movimento do carrinho de brinquedo ou sua cor pode atrair a atenção e o interesse de determinados aprendizes, outros interessaram-se pelas percepções auditivas. Portanto, o fascínio por certos estímulos sensoriais pode potencializar os processos de ensino e aprendizagem em aulas de Ciências para estudantes com autismo. É necessário, contudo, que os educadores se atentem para questões envolvendo as perturbações sensoriais, o outro lado da moeda, na qual, certos estímulos podem causar dor ou incómodo para esses estudantes. O diálogo, a atenção as peculiaridades dos aprendizes com autismo é, portanto, fundamental para o processo educacional.

Salienta-se a importância do direcionamento e da mediação durante a realização da SEI. Por vezes, a atenção dos aprendizes precisou ser direcionada para aspectos específicos, como por exemplo: a visualização dos fios expostos na parte inferior do carrinho de brinquedo. Além disso, os constantes questionamentos e indagações proporcionaram aos estudantes a oportunidade para que apresentassem descrições sobre os materiais ou fenômenos percebidos, cita-se como exemplos: (I) Abril e a descrição da cor do carrinho adaptado por meio da percepção visual (Quadro 7, Linha 72); (II) Julho e Junho e a atenção aos efeitos sonoros do carrinho (Quadro 6, Linha 57 e Quadro 6, Linha 71); (III) Março e a percepção espacial do carrinho em relação à rampa. Nesse sentido, a SEI proporcionou ainda, a oportunidade para os estudantes refletirem sobre suas ações, como exemplo, cita-se a indagação de Março ao questionar: “Mas, por que ele está se movendo sozinho?” (Quadro 7, Linha 112), referindo-se ao carrinho movendo-se no plano inclinado. Como comentado, o próprio estudante sugere que a resposta estaria relacionada com a altura e o posicionamento do brinquedo na rampa (Quadro 7, Linha 114).

A manipulação dos materiais ofertados, a fim de obter os resultados desejados, pode contribuir para o desenvolvimento psicomotor dos aprendizes. Além disso, o trabalho em equipe propiciou um ambiente favorável para a socialização dos aprendizes. Portanto, dada a importância social e cultural da escola na vida das crianças, é fundamental que o ambiente educacional seja propício para permitir que as pessoas com autismo tenham as mesmas oportunidades de aprendizagem que as pessoas sem autismo. Com tal intento, é preciso que exista um reconhecimento por parte das escolas em proporcionar um ambiente de aprendizagem adequado a suas peculiaridades. Isso significa adotar uma abordagem flexível, criativa e individualizada para apoiar os aprendizes.

Nesse sentido, as sequências de ensino investigativas propiciaram desenvolvimentos: (I) conceituais: permitindo explicações mais completas sobre a temática ar e movimento; (II) procedimentais: por meio da manipulação dos materiais ofertados a fim de obter os resultados desejados, contribuindo com o desenvolvimento psicomotor; (III) atitudinais: por meio do trabalho em grupo, compartilhando materiais e ideias - propiciando o desenvolvendo habilidades sociais. Destaca-se ainda, que apesar da SEI aqui apresentada ter sido desenvolvida com estudantes com autismo, ela pode, e deve, ser utilizada com todos os aprendizes, estudantes com e sem deficiências, em uma perspectiva de educação inclusiva. Deste modo, o ensino de Ciências pode propiciar a oportunidade de uma formação mais completa, possibilitando que saberes científicos, construídos historicamente e socialmente, possam fazer parte dos conhecimentos e experiências dos aprendizes.

Agradecimentos

Os autores do artigo expressam seus sinceros agradecimentos aos estudantes e professores que colaboraram com a pesquisa. Somos gratos pela parceria com a equipe gestora, que não mede esforços para edificar espaços de aprendizagem por meio de práticas pedagógicas inovadoras e não excludentes que contemplem todos os aprendizes.

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1 A fim de contemplar o modelo social sobre a concepção de deficiência utilizamos aqui a nomenclatura “pessoa e/ou estudante com autismo”. Para mais informações sugerimos a leitura da pesquisa de Palacios (2008), em especial, destacamos sua conceitualização de modelo social da deficiência: de acordo com a autora, esse modelo considera que as causas que originam as deficiências não são religiosas, nem científicas, mas, em grande medida, sociais.

2O diálogo Teeteto coloca em questão a natureza do conhecimento. Na narrativa, Euclides, ao encontrar Térpsion, recorda o debate entre Sócrates, Teeteto e seu mestre, o geômetra, Teodoro de Cirene. Após uma introdução dramática, que gradualmente vai assumindo uma função metodológica, Sócrates lança a pergunta - “O que é o saber?”. Dentre as respostas apresentadas por Teeteto, destaca-se sua primeira resposta: “Saber não é outra coisa que não perceção” (Platão, 2010, p. 25). Por conseguinte, Platão busca conferir um estatuto cognitivo à sensibilidade.

3Nesta obra, constituída por anotações usadas por Aristóteles no Liceu, investiga-se a alma como princípio vital comum a todos os seres animados. Busca-se explicar a diversidade e a totalidade das manifestações da vida por meio de reflexões acerca do intelecto, da percepção sensível, do movimento e repouso, e ainda relacionando o movimento com a nutrição, o decaimento e o crescimento (Aristóteles, 2006).

4De acordo com Orrú (2012, p. 17), “autismo é um termo empregado pela psiquiatria para nomear comportamentos humanos reunidos ao redor de si mesmos, replicados para a própria pessoa. Esse termo tem sua origem na palavra grega autos, que quer dizer por si mesmo”. As manifestações do autismo podem variar, dependendo do nível de desenvolvimento e da idade cronológica dos indivíduos por esse motivo, utiliza-se o termo “espectro” (leve, moderado e severo). Deste modo, os níveis de comprometimento estão relacionados com o suporte de apoio que os indivíduos demandam. O Nível 1 é caracterizado pela exigência de apoio: os indivíduos enquadrados nessa categoria são considerados com um grau leve de autismo, em relação a comunicação social - na ausência de apoio, podem apresentar dificuldades para iniciar interações sociais. Podem apresentar ainda: inflexibilidade de comportamentos, dificuldades para trocar de atividade, problemas de organização e planejamento. O Nível 2 é caracterizado pela exigência de apoio substancial: indivíduos enquadrados nessa categoria são considerados com um grau moderado de autismo, apresentando déficits graves nas habilidades de comunicação social e verbal e não verbal e prejuízos sociais aparentes mesmo na presença de apoio. Suas interações podem se limitar a interesses especiais. O Nível 3 é caracterizado pela exigência de apoio muito substancial: indivíduos enquadrados nessa categoria são considerados com um grau severo de autismo, apresentando déficits graves nas habilidades de comunicação social verbal e não verbal, reposta mínima a aberturas sociais que partem de outrem. Raramente, pode iniciar interações apenas para satisfazer suas necessidades Orrú (2016).

Recebido: 30 de Junho de 2022; Revisado: 13 de Setembro de 2022; Aceito: 12 de Outubro de 2022

Concetualização: Tiago Fernando Alves de Moura e Eder Pires de Camargo; Metodologia: Tiago Fernando Alves de Moura e Eder Pires de Camargo; Análise formal: Tiago Fernando Alves de Moura e Eder Pires de Camargo; Investigação: Tiago Fernando Alves de Moura; Curadoria dos dados: Tiago Fernando Alves de Moura e Eder Pires de Camargo; Redação do rascunho original: Tiago Fernando Alves de Moura e Eder Pires de Camargo; Redação - revisão e edição: Tiago Fernando Alves de Moura e Eder Pires de Camargo.

Tiago Fernando Alves de Moura é bacharel em Física Médica pela UNESP, campus de Botucatu (2017), mestre em Educação para a Ciência pela UNESP, campus de Bauru (2020), licenciado em Física pela UNESP, Campus de Bauru (2022). Atualmente é doutorando no programa de pós-graduação em Educação para Ciência da UNESP, campus de Bauru. É professor da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, atuando nas disciplinas de Física e Ciências. E-mail: tiago.moura@unesp.br Morada: Avenida Engenheiro Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01 - Vargem Limpa - Bauru/SP - CEP 17033-360

Eder Pires de Camargo é Livre Docente em ensino de física pela Universidade Estadual Paulista, Júlio de Mesquita Filho, Campus de Ilha Solteira (2016) e Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Possui graduação em Licenciatura em Física (1995), mestrado em Educação para a Ciência (2000) e Pós-doutorado (2006) pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" Campus de Bauru. É docente do Departamento de Física e Química da UNESP de Ilha Solteira E-mail: eder.camargo@unesp.br

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