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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.132 Coimbra dez. 2023  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.4000/rccs.15123 

Artigos

O encadeamento do luto: uma abordagem pragmatista da continuidade da vida após o contato com a morte violenta na cidade do Rio de Janeiro

The Contexture of Grief: A Pragmatist Approach on the Continuity of Life after Violent Death Experiences in the City of Rio de Janeiro

La chaîne du deuil : une approche pragmatiste de la continuité de la vie après un contact avec la mort violente dans la ville de Rio de Janeiro

1 Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, vittorio.talone@gmail.com


Resumo

A partir de um trabalho de campo com dois grupos distintos de apoio que oferecem suporte a pessoas que tiveram contato com uma “morte violenta”, analisam-se as diferentes dimensões e características de suas vidas que compõem o luto. Mobilizando uma abordagem pragmática e pragmatista, sugere-se que existem diferentes fases/âmbitos (não lineares) marcados por um trabalho em grupo sobre a lembrança pessoal e sobre as sensações íntimas, cujo objetivo é fazer a pessoa enlutada enxergar possibilidades de futuro em sua vida. Passa-se dos rompimentos com hábitos passados causados por um evento marcante à investigação de novas potencialidades de ação, em que se almeja a construção de novos hábitos estáveis. Mostra-se como a transformação das sensações e o engajamento em atividades coletivas também compõem esse período indefinido de “provação de vida”, qualificado como luto pelas pessoas dos grupos estudados.

Palavras-chave: grupos de apoio; luto; memória; morte; pragmatismo; violência urbana

Abstract

Based on the fieldwork done with two support groups for people who had contact with a “violent death”, this article examines the different dimensions and characteristics of these individuals’ lives that shapes what we call grief. Mobilizing a pragmatic and pragmatist approach, I argue that there are different (non-linear) phases/scopes characterized by a collective work on personal remembrance and on intimate sensations, whose objective is to encourage people in mourning to conceive future possibilities in their lives. The process goes from the breaking with past habits caused by the extreme event to the investigation of new potential for action which aims to build new stable habits. I show how the transformation of sensations and the engagement in collective activities contribute to this indefinite period as a “life ordeal”, characterized as mourning by the groups and individuals studied.

Keywords: death; memory; mourning; pragmatism; support groups; urban violence

Résumé

À partir d’un travail sur le terrain mené auprès de deux groupes de soutien qui offrent un accompagnement aux personnes ayant été en contact avec une « mort violente », nous analysons les différentes dimensions et caractéristiques de leur vie qui composent le deuil. En mobilisant une approche pragmatique et pragmatiste, nous suggérons qu’il existe différentes phases/portées (non linéaires) marquées par un travail de groupe sur les souvenirs personnels et les sensations intimes, dont l’objectif est de faire voir aux personnes endeuillées des possibilités d’avenir dans leur vie. Nous passons des ruptures avec les habitudes passées provoquées par un événement marquant à la recherche de nouveaux potentiels d’action, dont le but est de construire de nouvelles habitudes stables. Nous montrons comment la transformation des sensations et l’engagement dans des activités collectives composent aussi cette période indéfinie d’« épreuve de la vie », qualifiée de deuil par les personnes des groupes étudiés.

Mots-clés: deuil; groupes de soutien; mémoire; mort; pragmatisme; violence urbaine

Introdução1

Marcela2 perdeu o seu filho caçula em um atropelamento perto de sua residência, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro (Brasil), no final de 2016. Nos meses seguintes, membros de sua família a incentivaram (e a pressionaram) a procurar o Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre (DPVAT) para receber uma indenização.3 Ao mesmo tempo, suas colegas de igreja - Marcela era missionária atuante em uma igreja evangélica - tentaram estimulá-la para que continuasse frequentando todas as atividades que promoviam. Segundo Marcela, isso não deu certo: ela logo começou a perceber mudanças repentinas em seu corpo (como queda de cabelo) e a ser acometida por sensações incômodas. Com isso, decidiu visitar e depois frequentar o Núcleo de Apoio à Vítima de Trânsito (NAVI) do Departamento de Trânsito do Estado do Rio de Janeiro (Detran-RJ), que conheceu por ser um dos pontos de entrada no seguro DPVAT. Ao se consultar com uma psicóloga do núcleo e ao conversar com outras mães de vítimas no trânsito, ela percebeu que não estava respeitando o seu próprio luto. A pressão pela indenização e o estímulo para continuar ativa em suas atividades “camuflaram” a dor da perda do filho. Embora frequentasse o núcleo há poucos meses, ela desabafou sobre a perda da criança, conseguiu enfrentar o processo para a indenização e decidiu mudar a sua rotina em busca de novas possibilidades de vida, sentindo-se, a partir de então, saudável.

Esse caso é exemplar quanto à percepção de muitas pessoas assistidas pelo NAVI sobre o próprio luto após a morte violenta de um ente querido: trata-se de um encadeamento não-linear de certas fases sem um fim exato, marcando uma nova forma de a pessoa se pensar e se relacionar com terceiros e com o ambiente em torno de si. O presente artigo toma apoio nos dados recolhidos em dois grupos:4 pessoas cujos familiares (filhos/filhas, marido/esposa, pai/mãe, etc.) foram vítimas fatais no trânsito carioca5, tendo sido assistidas pelo NAVI; e civis e ex-policiais que sofreram com graves acidentes, atualmente cadeirantes e atletas treinados através do projeto Renascer, Servir e Proteger (daqui em diante referido apenas como Renascer), que opera em um centro da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ). Tais pessoas viveram diferentes tipos de experiências extremas que afetaram a compreensão de seus próprios selves (Pollak, 1990; Lemieux, 2008; Talone, 2023a) e a ideia delas mesmas como um todo minimamente coerente que, frente a percalços mais ou menos graves, perdura no tempo.

Em ambos os grupos de apoio, encontram-se pessoas com uma experiência em comum: todas vivenciaram situações de “contato concreto com a morte” (Talone, 2023b), direta ou indiretamente causadas por terceiros, seja no âmbito daquilo representado mais comumente como “violência urbana”, envolvendo signos como trocas de tiros, agressões e balas perdidas (Porto, 2006; Silva, 2016; Caminhas e Beato, 2021; Misse, 2022), ou da chamada “violência no trânsito” (Russo, 2012), englobando atropelamentos e colisões de meios de transporte nas vias urbanas. O luto aqui não se traduz apenas no momento subsequente à morte de um ente querido, mas se concretiza em uma mudança profunda de vida. Assim, abordo-o como categoria analítica: 1) do NAVI, com base no discurso das mulheres participantes do núcleo; e 2) relativa a um rompimento gerado quanto ao corpo e à vida “normal” anterior a um acidente.

Para analisar algo tão complexo e multiforme, a abordagem pragmática (Barthe et al., 2016; Boltanski e Thévenot, 2020) oferece suportes e formas de investigação/compreensão relevantes. Mobilizo seu arcabouço para lidar conjuntamente com a multiplicidade de pessoas e de elementos não humanos que atuam situacionalmente e que resultam em qualificações relativas ao luto. As pessoas estudadas nesta pesquisa pensam, lembram, agem e projetam seus futuros em termos de “situações”: situações anteriores ao acidente/perda de um ente querido, traduzindo o passado estado de “normalidade” (almoços e jantares em família, a prática de algum esporte com amigos); a situação de ferimento, tensão e morte; situações de busca por apoio; situações de divulgação da sua história pessoal para angariar recursos para o grupo;6 situação de ingresso em/percepção de um novo estado de normalidade (no qual já se veem capazes de ajudar outros com experiências recentes semelhantes e estar mais uma vez ativos profissionalmente), etc.

Em cada uma dessas situações, uma enorme quantidade de objetos pessoais e recordações é envolvida: as pessoas tiveram/terão que os mobilizar, e com eles estar em coordenação (Thévenot, 2002) a fim de efetivar ações. Seguem-se alguns exemplos: mães devem lidar cuidadosamente com os objetos remanescentes de seus filhos e/ou filhas, podendo encarar um desapego forçado (situações de parentes coagindo-as a se desfazerem de tais pertences no intuito de ajudar a “esquecer logo”), e passar pela dificuldade de enfrentar/sair do processo de luto (deixar o quarto da vítima intacto por anos) ou pela ressignificação (poder doar as roupas e outros objetos, asseguradas de que continuarão com lembranças felizes do ente querido); ex-policiais e demais pessoas assistidas através do Renascer têm de lidar com seus corpos agora mediados por uma série de itens até então estranhos, como cadeiras de rodas, sondas ou próteses. São objetos que compõem as situações, ainda que por lembranças, e influenciam emoções, algo central para compreendermos o processo do luto.

O objetivo do texto é destacar como o luto pode ser composto por diferentes fases (não lineares ou sequenciais), apuradas nas seções seguintes: 1) quebras de “crença” e de noções de self passadas - por experiências que passam a assombrar as pessoas no presente (Das, 2007); 2) processos investigativos - no sentido desenvolvido por John Dewey (1938) - por novos “sentidos de vida”, em que as pessoas lidam com os efeitos da morte violenta em suas lembranças, emoções e potências de agir (Deleuze, 2017); e 3) um trabalho íntimo e coletivo de ressignificação de sensações e de lembranças relativas às mudanças no âmago do self, em que se busca costurar narrativas coerentes de si e construir futuros possíveis “melhores que o agora”.

Antes de dar sequência à discussão, cabe destacar que a minha entrada nos grupos foi mediada pelas psicólogas e coordenadoras de cada um. Meu contato com o NAVI se deu dentro do chamado “Detran Social”, setor da instituição que desenvolve projetos de educação e conscientização no trânsito. Nele, após uma primeira reunião conjunta com a sua coordenação de educação, fui apresentado à coordenadora do NAVI, com quem conversei diversas vezes para combinar o trabalho específico a ser realizado. Ela me apresentou às pessoas assistidas do grupo e passei a frequentar algumas de suas atividades, como aulas de dança e confraternizações. Nestes momentos, eu apresentava mais detalhadamente o meu trabalho e, caso a pessoa se sentisse à vontade e concordasse em participar, conversávamos sobre suas histórias. Posteriormente, mantínhamos contato por meio de visitas minhas ao núcleo e/ou por telefone e redes sociais. A psicóloga coordenadora e eu julgamos adequado que a pesquisa abarcasse apenas pessoas que já estavam há mais tempo no grupo, que estivessem realizando consultas com psicólogas/os, e que estivessem confortáveis para abordar suas trajetórias de vida. A pesquisa era apresentada (ou relembrada) e explicada para elas em todos os nossos encontros. O mesmo aconteceu no projeto Renascer. Especificamente em relação ao trabalho para este grupo, para o realizar, tive de entregar à PMERJ uma série de documentos: termos de compromisso (garantindo a anonimidade das pessoas e dos lugares estudados) e o termo de proposta da pesquisa - indicando os métodos a serem utilizados. Fui apresentado aos/às atletas pela psicóloga coordenadora, e mantive igualmente contato com eles por meio de minhas visitas ao projeto e por telefone. Em todos os casos, sempre que uma pessoa quisesse parar uma conversa ou entrevista, ou retomar um relato antes interrompido, era dado a ela todo o apoio para tal. Demais informações sobre o trabalho de campo e o contato com as pessoas entrevistadas estão detalhadas em Talone (2023b: 66-157).

1. O rompimento com a crença

Proponho a compreensão dos “estados de normalidade” anteriores à experiência extrema como aquilo nomeado por Charles Peirce (1877) de crença. O sentimento de crença é uma indicação mais ou menos segura de se encontrar estabelecido na natureza, no ambiente e no próprio self hábitos indicando ações regulares. Para William James (1890), essa crença ainda diz respeito a ações ligadas a uma certa variação estável de sensações. É formada por tonalidades afetivas (Corrêa, 2021) regulares e sem grandes alterações ao longo das atividades cotidianas e pelo ambiente comum encontrado, tomado por garantido - ainda que pensemos situações de perigo/risco, fragilidade e rompimento, mas tidas como “parte da vida” (Kleinman, 2007).7 Por exemplo, a rotina com o ente querido antes de seu falecimento e o corpo sem graves sequelas possibilitariam um leque “normal” de ações, tidas como naturais, compondo uma visão de mundo que “sempre foi daquela forma”. A vida cotidiana e cada uma das ações que a compunham eram conduzidas tomando a saúde do corpo, a motivação no trabalho exercido e a presença de certos atores como dados adquiridos. Mas as pessoas mudam singularmente a partir da “violência” de experiências extremas, alterando seus próprios selves vigentes (Archer, 2000).

O Quadro 1 a seguir compreende o encadeamento do luto, elaborado a partir das construções das próprias pessoas estudadas:

Quadro 1 Guia de encadeamento do luto 

Fonte: Talone (2023b: 411).

Embora o quadro aponte para um modelo de processo do luto, cada um o vive de acordo com as especificidades de sua experiência extrema e de sua memória, ou seja, há variação no encadeamento em termos de tempo e de intensidade. E não se trata de um caminho sequencial linear, a numeração foi proposta conforme problemas e “fases” descritos (não necessariamente por ordem) pelas próprias pessoas após a proximidade com a morte. Elas transitam pelos pontos e voltam aos anteriores ao longo do tempo, ainda dependendo se são vítimas diretas ou indiretas,8 o contexto da morte, se têm ou não apoio da família, se participam ou não de um grupo de apoio, entre outras possibilidades. No NAVI e no Renascer, o vetor do número quatro ao cinco é marcado pela ressignificação e pela resiliência respectivamente, ideias muito trabalhadas nos dois grupos, e é subentendido que não existe um “final do luto”. A nova crença apenas marca um novo equilíbrio, uma forma de se estar engajado no mundo, sem uma vivência marcada por um “sofrimento contemplativo” ou “passivo”. O conjunto dos pontos dois, três e quatro chamo de provações de vida (Lemieux, 2008).9

No caso das vítimas indiretas, como é o caso da maioria das pessoas atendidas no NAVI, Joana10 argumenta com base em sua experiência e na de suas colegas: “O luto tem várias fases. Então, é natural. Nem todo mundo sente na mesma ordem, mas passa pelas mesmas coisas que todo mundo passa”. As pessoas assistidas reconheceriam umas nas outras as fases do luto, pois seria algo comum na fase pós-morte. Roberta, uma pessoa assistida que perdeu o companheiro de décadas em um atropelamento por moto, diz que o luto não “é botar uma roupa preta [e se] recolher, [mas é] uma coisa muito mais profunda [com a qual se aprende] a conviver [tornando-se gradualmente] um processo menos pesado”.

A fundadora do NAVI11 me exibiu um texto de uma amiga - cujo filho morreu -, por conter uma descrição precisa (para ela) sobre o luto após a perda de um ente querido de forma violenta:

O luto é o início do rompimento do laço apertado entre duas pessoas que se amam incondicionalmente. [...] O luto não é fácil, ele não pede licença para entrar e muito menos deixa pistas de que um dia irá terminar. O luto se instala nas entranhas, passou a fazer parte da minha vida, do dia a dia. O luto me fez chorar, me fez rir, me fez enxergar o que antes eu sequer poderia imaginar. O luto não é só tristeza, é aprendizado, é solidariedade, é caridade, é amor, é amizade, é aproximação com Deus, é evolução espiritual, é exploração de novos pontos de vista, é a transformação do que nunca mais seremos para o que podemos ser.

O apego ao passado e a dor consubstanciada nas lembranças e nas projeções passadas são comuns entre as pessoas dos dois grupos, mas parece ser algo mais moroso/penoso para as mães. Autoras como Juliana Farias (2007; 2014) e Jussara Freire (2017) mostraram - no contexto de mães que perderam seus filhos/as, em geral, pela violência do Estado (Alves, 2022) - a magnitude do luto para as mães de vítimas mortais. Há certo luto/luta protagonizado/a pelas mães (Leite e Farias, 2009) a partir da sua memória dos/das falecidos/as - no caso da presente pesquisa, temos a luta contra a violência no trânsito.12

Quanto aos/às atletas e cadeirantes atendidos no Renascer, por mais que às vezes seja relatado um desejo de voltar às “coisas como antes”, eles afirmam que é preciso “prosseguir com a vida”. Procura-se deixar a crença anterior e a experiência extrema no passado de forma a não assombrar as novas motivações, almejando atividades e formas de estar no mundo renovadas. A relação buscada com o passado é distinta: ex-policiais militares e cadeirantes tentam o compreender como definitivamente pretérito, algo para o qual não adianta se voltar senão como qualquer outra pessoa; para as pessoas assistidas, o passado (com os entes queridos vivos) deve ser lembrado saudavelmente e ser verbalizado com orgulho.

Estudos sobre o luto já focaram o seu âmbito coletivo (Mauss, 1979), o peso vigente do passado fantasmagórico (Das, 2007), o estado de passagem enfrentado (Glaser e Strauss, 1965), os padrões de comportamento e as dinâmicas emocionais em câmbio (Koury, 2014), e os seus enquadramentos e as possíveis ontologias (Butler, 2015), para citar alguns exemplos. Para adensar a discussão, minha abordagem recupera a ideia de investigação desenvolvida por Dewey (1938), a relacionando com o rompimento de uma crença. A investigação (como um momento do luto) é um processo contínuo, de efeito cumulativo, que visa a convergência das velhas e novas lembranças e das situações com que as pessoas se deparam: é a transformação controlada ou dirigida de uma situação indeterminada (Auray, 2011).

2. Do rompimento à dúvida e à investigação

A experiência subjetiva de “choque” é a modificação radical na intensidade e no ritmo, antes cotidiano, de atenção para com situações no mundo (Schütz, 1979). A experiência de self passa por um forte choque e pela alteração nos vetores crençarompimentodúvida.

Joana afirma ter sempre tido “equilíbrio”, mas conta como foi movida pelo sentimento de “fazer justiça” após a morte da filha, buscando por filmagens e por testemunhas sobre o que “realmente aconteceu” e amargando um processo judicial fora de seu controle (somando-se à tristeza do contexto): “Você pensa ‘que dinheiro vai trazer minha filha’? Minha filha valia quanto? [...] Então, tive que trabalhar também isso, né, para não ficar vivendo com essa angústia”. O choque com a morte da filha única, a “razão de sua vida”, traduziu-se em um contexto de forte rompimento. A incerteza sobre o que fazer, a ausência da filha e as lembranças do ocorrido foram acompanhadas pela queda de seus dentes e por uma “catarata repentina”.

Outra pessoa assistida, Cláudia, perdeu o filho caçula em um acidente de moto. Após a perda, ela ficou mais de três anos sem realizar uma refeição adequada. Apenas bebia água e comia pão e biscoito. O momento de rompimento marcou a vontade de se distanciar de casa, de não mais realizar o que antes fazia e a suspensão de sua alimentação, coisas antes realizadas tomadas por garantidas. Outros conflitos, como com seu marido, eclodiram de forma mais acentuada: “[Eu] não vivia a vida normal. Eu falei para ele: ‘Eu não vou passar, eu não vou lavar, eu não vou cozinhar. Eu não vou ter uma vida normal’”. Tornou-se o momento que classifico como dúvida.

O rompimento, para Marcela, traduziu-se em querer ficar sozinha e deitada, trancada em um quarto. O apoio recebido nos momentos de dúvida, após a experiência extrema, foi limitado: “As pessoas só ficam do seu lado naquele momento, o enterro, e acabou”. Como muitas pessoas enlutadas, ela parece sentir uma dor singular, i.e., apenas a própria pessoa entende o que está passando, isolada de outros em suas sensações. Em relação a mudanças possíveis, ela repensa sobre a indenização após as conversas com outras pessoas assistidas pelo NAVI, fazendo-a investigar outros sentidos relativos à quantia: “Não vai trazer seu filho de volta, nem nada. Mas às vezes a gente perde a estabilidade, entendeu? [...] E sua vida dá uma parada, dá uma embolada, entendeu?”.13 A “vida estagnada” por uma dor singular encontra-se entre os pontos dois e quatro do encadeamento do luto, quando as pessoas assistidas pelo NAVI chegam ao núcleo e participam de reuniões para “ressignificar” suas vidas.

Roberta, em seus “altos e baixos” no luto, tinha dificuldade em ficar na própria casa, sentindo-se sozinha e deprimida pelas lembranças suscitadas ou ativamente recuperadas. No rescaldo do rompimento, ela era atendida por uma profissional perto de sua casa duas vezes por semana. Apesar de ter tido alta em seu tratamento, ela afirma que “depois eu tive uma pequena recaída. Eu tive que retomar o tratamento”. A variação nas fases do luto é relatada como normal pelas pessoas assistidas, pois as lembranças de dor ou de sofrimento podem surgir repentinamente, levando-as a momentos de dúvida e árdua investigação novamente. Roberta diz ter desenvolvido doenças até anos depois das mortes de seus entes queridos, lidando com elas ainda hoje.

A fundadora do NAVI, em um primeiro momento, não conseguia ir para o trabalho e sentia-se completamente sozinha, afirmando não ter assimilado o que tinha acontecido com ela. Como descrito em um relato:

Fiquei em choque. [...] Às vezes, quando acordava, não sabia se aquilo era verdade. Quando “caía na real”, chorava muito. Alguns pediam para eu não chorar, mas como não chorar a dor que me invadia a alma, fazendo doer meu corpo? Dias depois, me olhei no espelho e vi que era tempo de despertar. Retornei ao trabalho. Lembro-me de que algumas pessoas fugiam de mim e eu me sentia abandonada. [...] No trabalho, quis me recolher, mas muitas vezes não me entenderam, quis falhar, mas me cobraram, e a vida seguia, enquanto me reerguia em minha solidão. (apudAmaral, 2012: 85; grifos meus)14

Para ela, em sua formação e experiência como psicóloga, seria importante deixar a pessoa enlutada lidar com suas próprias dúvidas e avançar na vida conforme julgue ser mais adequado para si mesma: “Não tem certo ou errado. Faça aquilo que você tem vontade. Isso faz toda a diferença”. É a mensagem trabalhada pelos profissionais do núcleo.

Em relação aos/às atletas do Renascer, os/as cadeirantes passariam primeiramente pela fase de negação após o rompimento. Fred, um ex-policial militar que foi alvejado em serviço, teve grande choque ao perceber que não mais andaria; Lucas, um segurança de caixa-forte que foi baleado durante um roubo, permaneceu anos em casa sem querer ir às ruas; e Melissa, cujo atropelamento em cima de uma calçada ocasionou o desenvolvimento de uma doença genética que carregava, ignorou suas dores e não quis passar às muletas - até um tombo derradeiro que a levou para a cadeira de rodas. Nessa fase, busca-se o afastamento para com outras pessoas (e.g., Lucas apenas lidava com sua esposa e Melissa separou-se do namorado) e sente-se vergonha da cadeira de rodas, pois revelaria uma “fraqueza” do self ao olhar estigmatizante de terceiros (Goffman, 2008). A policial e psicóloga fundadora do projeto comenta ser comum as pessoas assistidas ficarem intolerantes para com terceiros e/ou chegarem a pensar em suicídio.

Sobre o momento de dúvida, ela afirma: “Depois da ocorrência, a pessoa se vê com um corpo novo, [...] não é mais a mesma coisa. Não se controla mais a urina, as fezes, feridas vão aparecendo, é um corpo novo”. A investigação passa por lidar com a própria corporeidade e suas potencialidades no ambiente vivido. Fred diz ter ficado “em um buraco”, sem se aceitar; Lucas ganhou muito peso ao ficar sete anos praticamente trancado em casa, o que prejudicou ainda mais a sua saúde. No início, o incômodo de estar sempre dependendo da cadeira de rodas seria forte, e a vivência no começo da lesão é “pior” se a pessoa “não tiver cabeça boa”, “só ficar em cima da cama”, e se “[tiver] vergonha de tudo, [de] tirar urina, usar fralda”, como relatam.

Melissa diz ter se forçado a não ficar deprimida, pois sua lesão foi menos grave do que o esperado: “Escutei a notícia e segui, engoli o baque. A minha lesão subiu na vertical, podia ter sido bem pior”. Ela demorou a “se aceitar”, continuando a vida após o atropelamento como se nada tivesse acontecido. Evitando um total rompimento, chegou a fazer uma prova física para um concurso de bombeiro e andou forçosamente até tombar, escondendo o problema de pessoas próximas. Depois se viu “presa” em seu condomínio, pois não havia estrutura para a sua locomoção independente - os condôminos e o síndico se recusaram a colaborar com uma taxa mensal por tempo limitado para tornar o condomínio acessível.

Quando falo de investigação, refiro-me às experimentações das pessoas assistidas como tateamentos incertos (Auray, 2011). No entanto, não é uma simples abertura ao inesperado, mas uma prática ativa consequente do evento perturbador, “integrando-o, assimilando-o, vinculando-o a um estado anterior e relacionando-o a uma sucessão de eventos e ações” (ibidem: 31). E há a expectativa de cessamento dos “choques” ou das tonalidades afetivas de surpresa. A investigação como tateamento é uma forma dos selves fragilizados e marcados por incompletudes geradas na experiência extrema se engajarem com o ambiente de uma nova forma. Falo de tateamento pois é algo feito sem um plano geral, mas em busca da estabilização das lembranças/emoções, definindo situações correntes e futuras de acordo com a violência sofrida por cada pessoa.15 Ou seja, busca-se outra forma de engajamento com as coisas e com o ambiente, uma nova forma de estar e ser (Thévenot, 1990, 2006). Assim, o processo de luto pode conter experiências de aprendizado (Davies, 2005), embora composto por sensações/afetos intensos de dor. Há tateamento pois a perda não pode ser antecipada, não há “treino” ou “preparação possível”: o contato com a morte fratura os engajamentos correntes e, como lembrança, pode despertar uma dimensão dolorosa do luto (Talone, 2022, 2023b). Isso implica um próximo passo, o de observar os novos significados desenvolvidos pelas pessoas assistidas sobre suas experiências e sua relação com significados passados. Desta forma, surgem propostas e planos para agir de acordo com as condições existentes da vida íntima (Corrêa, 2021) - trata-se do vetor do número quatro ao cinco, quando é possível uma nova coerência.

3. Ressignificação e resiliência

Abordo agora a passagem do ponto quatro ao ponto cinco (investigaçãonova crença). Nessa parte do encadeamento, as pessoas buscam diferentes relações com suas próprias lembranças e afetos/emoções, permitindo ações presentes de acordo com as potencialidades de um self não reduzido pelas violências sofridas. Deliberações internas (Archer, 2000) levando em conta as experiências e as reminiscências na memória, conjugadas como ambiente e com as relações com terceiros, levam à ressignificação e/ou resiliência - conceitos estes explorados no NAVI e no Renascer por psicólogos e pessoas assistidas a partir, sobretudo, das rodas de conversas e reuniões.

Na parede da sala de reuniões do NAVI, há frases cujo objetivo é antecipar para os recém-chegados como é possível a (difícil) passagem do rompimento à nova crença. Joana selecionou umas frases do poema “A partida”, e destacou uma fala de seu autor em entrevista sobre o ocorrido: “O dia 17 de junho ainda é estranho. Mas cheguei à conclusão de que o dia 17 também se tornou um aniversário dele. É o dia em que o Gabriel nasceu do outro lado. Fica mais leve pensar assim”.16 Estas frases seriam, para ela, um exemplo da ressignificação.

Para Joana tratou-se de lidar com a culpa e com as suas próprias necessidades na continuidade da vida: “Como que você consegue comer, como que você consegue ter sede e ter perdido uma filha? Mas não é assim. A gente sente sede, a gente sente fome”. Sua forma de pensar sobre atividades comuns ou mesmo naturais (como a alimentação) no cotidiano foi mudando com o tempo e o apoio recebido. Sua solução foi pensar de forma diferente sobre a filha, estimulando lembranças de alegria, permitindo um viver estável e sem culpa, não se pensando como ex-mãe:

- [Ela] era muito linda, muito sorridente. Muito. Então, eu falei assim: “Ah, eu vou atrás dessa luz”, né? [...] Aí, fui entendendo, né? O prazer de ter sido mãe, pelo menos, da Mariana. [...] Usavam muito esse termo [ressignificar] e eu falava “mas eu não consigo”, né? [...] Só que você vai trabalhando, vai conhecendo outras mães. Aqui no grupo vai chegando mãe nova: “ah, eu tenho isso”, “ah, eu não comi mais aquilo”, “ah, eu fiquei com a memória... Vou procurar um psiquiatra porque eu tô com a memória fraca”. É natural.

Na passagem da investigação para a ressignificação, “você vai quebrando tabus”, i.e., volta a comer, a trabalhar, a lidar com os pertences do falecido, e com o intuito ainda de auxiliar outras vítimas. Após anos em atendimento com psicólogos, Joana conclui que sua filha ainda vive por meio dela, guiando o seu caminho positivamente: “É isso que eu quero para mim, essa alegria dela, entendeu? Não posso deixar isso se apagar. [...] É como se fosse uma luz, né, que eu dei, é minha luz. [Es]tá iluminando o meu caminho para eu seguir [em frente] da melhor forma possível”.

Cláudia voltou aos poucos a se alimentar adequadamente, deixando de “testar” - como disse em uma conversa - sua própria saúde/vida em reação à morte de seu filho. Tendo chegado uma “planta murcha” após o rompimento sofrido, como relata, o NAVI a “regou”, fazendo-a “renascer”. Assim, ela decidiu ser “outra pessoa”, se alimentando, andando sozinha pelas ruas e discorrendo sobre seu filho com segurança. O que chamo de “nova crença”, pessoas assistidas como Cláudia e Marcela entendem que é “recomeçar a vida”, algo possível pela ressignificação das próprias lembranças carregadas a partir do contato com outras pessoas que vivenciaram experiência semelhante. Marcela diz: “vamos carregar nossos entes queridos sempre em nossos corações, mas agora temos um novo recomeço em nossas vidas”. O luto aqui não é o avanço em um período de tempo (variável) com a finalidade de esquecimento de uma dor, mas sim um processo em que se aprende a lidar com as experiências de contato com a morte, as lembranças-imagens e as emoções envolvidas, no sentido de estabilizar um self não definido apenas por dor e sofrimento (Talone, 2023b).

Para Roberta, os enlutados “[têm] que aprender a viver e a conviver com aquela situação” de perda. Seria um exercício árduo e possível apenas com a passagem do tempo e com cuidados com a saúde emocional. Ela, em seu processo de investigação, mudou o layout de sua casa e tentou nela permanecer sem se deprimir - algo que julgava impossível na fase de rompimento e dúvida. Sobre ressignificar, ela diz “que é [...] dar um novo sentido à vida. O que significava para você de uma forma agora passa a significar de outra forma, de outra maneira. [...] Pela visão que você tem, pelo que você passa a sentir”.

A ressignificação, para a fundadora do NAVI, concretizou-se na própria ideia do núcleo:

E eu acho que o maior fator terapêutico que eu tive [...] foi poder trocar minha experiência com essas pessoas. [...]. [No] dia seguinte a minha vida tinha que seguir, entendeu? Eu colocava minha roupa, ia trabalhar, entendeu? E o meu sentimento se dava mais, assim, na intimidade, entendeu? Então, quando eu pude também falar de mim, o que acontece? Quando você fala, você também se ouve, entendeu? E, aí, isso vai te ajudando a ressignificar a sua dor, o seu sofrimento, entendeu? Então, quando eu pude falar verdadeiramente do que me afligia internamente, isso me causou um maior conforto por eu ter encontrado pessoas que igualmente passavam por isso, né? E poder, de alguma forma, ir me fortalecendo. Isso, para mim, foi assim... muito grande, sabe?

Para ela trata-se de “dar um significado diferente [à] perda”, algo possível pelo trabalho em grupo e com a passagem do tempo (que “suavizaria” a dor). Como também foi o caso de Joana, Cláudia e Marcela, um passo importante é não mais singularizar a dor, não em termos de minimizar o próprio sofrimento, mas de pensar-se solitariamente no tipo de experiência violenta vivida. O núcleo permitiria essa generalização da causa (Boltanski, 2000) do sofrimento que tem um efeito íntimo nas pessoas: elas passam a tolerar e a conseguir carregar suas “pesadas” bagagens de experiências e de lembranças. Aqui há a transição para um self engajado (Talone, 2023a), transformando a dor em motivação para ações de conscientização, reconstruindo o quebra-cabeças de seus próprios selves não mais reduzidos pela violência sofrida. Como exemplificou a fundadora do NAVI:

Por exemplo, eu posso ver minha perda como uma coisa muito negativa. Mas quando você para e pensa, “Caramba, mas por que comigo?” ... [Por outro lado] Mas por que com o outro? Entendeu? Então você vai entendendo que a gente [es]tá na vida, que a gente [es]tá sujeito a isso tudo. Isso vai te dando, assim, uma resignação maior. Vai te ajudando a se resignar, a aceitar melhor seu luto, a sua perda, entendeu? Então, você acaba dando um significado novo internamente a isso tudo. Cada vez que você mexe você vai se rearrumando internamente, entendeu? Você se despedaça e depois vai arrumando os pedaços... Através da forma que você passa a ver aquela dor, aquele sentimento e o sofrimento que emerge da perda. [...] A dor, com o tempo, ela vai suavizando. E quando a dor vem suavizando, aí vem a saudade. Aí, surgem as mudanças, né? Aí, é uma música, é um lugar na mesa, é uma cor, um passeio, uma comida. A gente tem muitas lembranças e muitas lembranças boas, entendeu? Lembrança de carinho, lembrança de tudo, lembrança de todas as coisas. Então, quando a gente começa a dizer assim: “Caramba, eu posso agradecer a Deus por ter me dado a oportunidade de ter vivido pelo menos esses anos com essa pessoa”. Porque tem pessoas, Vittorio, que nascem desprovidas de tudo, entendeu? Nascem com doenças graves, nascem com uma série de problemas. Então, ter tido o privilégio de passar alguns anos com a pessoa e ter lembranças tão felizes também é muito importante.

Joana, em acordo, acrescenta: “vai entendendo que foge ao controle da gente, né? [...] Quer dizer, se coloca no lugar do outro”. Parte da “força para continuar” está em oferecer essa mesma força como suporte a outras pessoas, algo que se torna possível apenas na reelaboração sobre a própria memória. Os profissionais auxiliam as pessoas assistidas ao estabelecerem contato com outras que enfrentaram situações semelhantes e hoje seguem “com muita força”. O âmbito do luto nessa dimensão do encadeamento se dá em consonância com aquilo descrito por Marcel Mauss (1979) ao argumentar que o luto é um rito que compreende modos de manifestar certos sentimentos aos outros.

Ressignificar envolve aprender a conviver com a ausência da pessoa próxima, nunca a superar ou a esquecer. Por isso é possível se voltar aos estágios anteriores de luto, pois não há um corte definitivo para com a sensação de rompimento ou uma nova crença inteiramente independente dos esquemas de relevância pretéritos (Schütz, 1979; Pollak, 1990). E, embora seja possível retrabalhar as lembranças e sensações, muitas reminiscências permanecem como antes, podendo retornar repentinamente.

No Renascer, a coordenadora descreve a resiliência a partir da perspectiva dos/das cadeirantes se descobrindo de forma “repaginada”. A independência conquistada em relação a terceiros seria o principal:

- [É] no contato com os outros [cadeirantes], vendo gente até em situação pior conseguir atingir uma série de objetivos que para eles parecem impossíveis, que se chega à autonomia e autoestima. E sabe o que mais? Se recobre a autoeficácia. Eles frequentando aqui já começam a falar em dirigir, juntar dinheiro e comprar carro. Fazem tudo sozinhos. Não querem ajuda. Vão conseguindo sozinhos. Se levantam, fazem os exercícios, procuram a gente, vem para cá, ajudam os outros. A eficácia vai sendo retomada. Eles descobrem que podem ter de novo. De um jeito diferente, mas podem. E é importante também no contato com os outros ter isso. Não só de escutar dos mais velhos [de idade], mas também dos mais “velhos” - aqueles que passaram por todos os problemas e hoje em dia estão levando uma vida cheia de objetivos - para os mais novos. Partilhar a experiência em que se venceu, em que buscou fazer as coisas darem certo. Isso dá outra perspectiva a eles.

De acordo com suas falas e as das pessoas assistidas entrevistadas, também há o movimento de se “dessingularizar” a dor e o sofrimento17 (Talone, 2023b). A coordenadora do Renascer afirma: “Enquanto ele tá preso no ‘Por que que aconteceu comigo?’, ele não consegue ampliar a visão dele. Agora, quando ele começa a dar sentido e resolver essa questão do acidente, [...] acalma fisiologicamente”. A experiência extrema seria mais pujante se pensada como atuando somente sobre si. Saber dos acidentes de outros/as colegas, das dificuldades enfrentadas e superadas por demais civis e policiais, seriam fatores essenciais à investigação ou ao tateamento dos/das cadeirantes em vias de novos hábitos.

Fred comenta como o Renascer lhe deu “uma nova luz”, abrindo para ele várias possibilidades, sendo agora um atleta paraolímpico de destaque que alcançou o pódio em competições nacionais e internacionais. Da situação de tiroteio à negação da cadeira de rodas e à circulação opulenta de lembranças de quando podia andar, ele conseguiu reelaborar os actantes de sua memória (Talone, 2023a, 2023b), “batalhando muito” diariamente para construir e sustentar seu novo self. Lucas acrescenta que a pessoa cadeirante deve vencer o medo de não mais ter o movimento das pernas, assimilando a nova situação. Para ele, “a vida não acabou”, o rompimento não pode “definir o resto [da] vida”. Com o apoio de sua família em todo o processo, ele não abaixa mais a cabeça perante andantes (como dizia fazer), afirmando ser um igual como qualquer outro, não tendo mais vergonha. A resiliência passa pela aceitação do próprio corpo/self pós-acidente e pelo desejo de alcançar novos objetivos:

Depois que você SE aceitar, as pessoas começam a TE aceitar. Se você não se aceitar, não muda nada: “Ele não se aceita, por que eu vou aceitar ele?”. Cara, se tu for ver, tem um senhor que vem aqui, o cara é policial militar. [Ficou] na cadeira, não mexia mais nada... O cara falou: “Cara, não aguento mais. Não aguento mais”. Ficou com a gente uma semana, duas semanas. O cara chegou aqui para baixão mesmo. Aí, hoje o cara vem para cá com sorrisão, sorrindo, barba feita, cabelo cortado, o filho traz. [Ele fala:] “E aí, tudo bem? Vamos jogar”. Então, mudou a autoestima do cara. Você vem para cá, as coisas mudam, cara. Aqui você começa a conviver, você começa a conhecer.

No caso de Lucas, todo o processo de tateamento, chegando à ressignificação e à resiliência, passou pela prática do esporte. Em sua mente, deixaram de ser pujantes as lembranças da “vida como antes”. Para Melissa, o novo passo veio quando decidiu aceitar a ajuda de seu pai e de sua família, retomando o relacionamento com o namorado e assumindo a cadeira de rodas. Pela participação nas rodas de conversa do Renascer, diz ter começado a se defender frente a ofensas, não quer mais se sentir presa em casa, deixando de ir à rua, ou culpada “por dar trabalho”.

Portanto, quando uma conduta é impedida (rompimento pela experiência extrema), a transação que acontecia até aquele momento sem entraves entre o organismo e seu ambiente é perturbada (choque). A perturbação rompe com os hábitos da vida: as pessoas deixam seus regimes de conduta habitual - ponto 1 - e elaboram uma forma de experiência reflexiva (Cefaï, 2019) - pontos três e quatro. A tomada de consciência induz uma nova experiência do ambiente, de si mesmo e do outro (tateamento/investigação), e a perturbação vai, aos poucos, se especificando; as consequências do contato com a morte vão sendo delimitadas e reelaboradas.18 Quando se pensa no contato de pessoas assistidas e de atletas do NAVI e do Renascer entre si, tem-se algo como a adoção da “perspectiva de um público” (ibidem: 5), tornando possível aos membros se distanciarem da situação problemática e de a transformarem em um objeto de investigação e intervenção. Os núcleos estudados, tanto pelo papel dos/das psicólogos/as e dos/das coordenadores/as quanto pela ação das pessoas assistidas, seriam fundamentais nos pontos três e quatro e, sobretudo, na passagem do quatro ao quinto.

Segundo George Mead (1913), uma solução quanto aos “choques” à nossa volta é alcançada pela construção de um novo mundo que harmoniza os interesses conflitantes nos quais entra o novo self. Mas, neste trabalho empírico, as pessoas, antes de tudo, se harmonizam “internamente” e se aceitam frente a um mundo sobre o qual não têm controle e, nesse ambiente, passam a buscar por atividades que permitam a continuidade de suas vidas. Posteriormente, sim, buscam promover mudanças no mundo (tais como mitigar preconceitos, falta de acessibilidade, tabus, etc.).

Considerações finais

A partir de meu trabalho de campo, propus um caminho para a compreensão do luto por meio de pessoas que vivenciaram certas formas de experiências extremas e foram assistidas por grupos e projetos de apoio. Com um olhar pragmatista, é possível perceber o luto como um encadeamento não linear de fases pelas quais as pessoas atravessam ao longo do tempo. O encadeamento varia pelo diferente tateamento (Auray, 2011) dos seres em suas investigações dos elementos que se lhes apresentam e/ou das lembranças repentinas e/ou recuperadas. As causas do sofrimento projetadas a partir de certas situações vividas e as sensações relativas a terceiros ou atmosferas de certos ambientes são reinterpretadas, o que altera a “caminhada” das pessoas. Mesmo que partindo de um mesmo tipo de vivência (violência urbana/de trânsito), há diferentes trajetórias possíveis e retraçáveis (Chateauraynaud, 2011): os atores orientam ou reorientam as lembranças de suas experiências de formas diversas, projetando sentidos sobre seus efeitos, alterando suas condutas presentes e seus planejamentos futuros.

O caráter indeterminado de tais trajetórias pessoais advém de fricções irredutíveis, múltiplas e largamente imprevisíveis em seus efeitos (Chateauraynaud, 2011). Mas todo esse caminho é influenciado pelas ações de conscientização dos grupos de apoio, pelas conversas e partilhas de experiências, pelos atendimentos com psicólogos/as, entre outros elementos. Assim, o luto é direcionado para a abertura de novas formas de viver, embora isso não “conclua” a causa em que essas pessoas se envolvem e nem signifique o fim da dor. O objetivo é esboçar um futuro em que uma vida saudável, ativa ou “normal” ainda é possível, não estando substantivamente marcada por um “sofrimento incapacitante” (Talone, 2023b). Isso não se traduz em um uso “funcional” ou “estratégico” do sofrimento, mas na transformação dos sentidos e das lembranças da experiência de violência em força para prosseguir. Por fim, esses exemplos de “contato concreto com a morte” são, em algum momento das trajetórias abordadas, vivenciados como situações “catastróficas” e de experiências extremas, que levam as pessoas incialmente à paralisia - a uma hiper-reflexividade sem prise com o mundo que se abre e consigo mesmos (Corrêa e Talone, 2021).19 O encadeamento do luto, mediado pelos grupos de apoio, visa dar aderência à nova preensão de si.

Declaração de conflitos de interesse

O autor declara não existir quaisquer conflitos de interesse.

Declaração de ética

No âmbito da pesquisa realizada, entregou-se à Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ): termos de compromisso (garantindo a anonimidade das pessoas e dos lugares estudados para evitar qualquer tipo de vazamento de informações confidenciais) e termo de proposta da pesquisa - indicando o(s) lugar(es) a ser(em) pesquisado(s) e os métodos a serem utilizados. Trata-se de um processo estabelecido pela Coordenação de Assuntos Estratégicos da PMERJ. Aprovada a proposta, o Quartel-General da PMERJ emitiu os ofícios relativos à autorização. O processo se deu ao longo de 2017.

Financiamento

Este artigo resulta de pesquisa de doutorado, financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Código de Financiamento 001 -, fundação vinculada ao Ministério da Educação do Brasil, e de reflexões no âmbito de pós-doutorado financiado pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, processo E-26/2020

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1 Este artigo baseia-se e retoma excertos da minha tese de doutorado que, entretanto, foi publicada em livro (cf. Talone, 2023b), tendo ainda incorporado reflexões no âmbito de pós-doutorado que estou realizando na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

2 A fim de preservar as identidades das pessoas pesquisadas, utilizo apenas nomes fictícios.

3 Quando alguém falece em um acidente de trânsito, parentes próximos têm direito a dar entrada no seguro DPVAT por indenização relativa à morte. Na época de realização desse trabalho de campo, a Seguradora Líder administrava os processos. Essa é apenas uma, entre outras, modalidade de sinistros e de prêmios.

4 O trabalho de campo foi realizado como uma grounded theory (Glaser e Strauss, 1967) por meio de observação participante, conversas informais e entrevistas compreensivas (Kaufmann, 2013 [1996]) com os grupos supracitados. Tratou-se de uma pesquisa empírica - que decorreu entre 2017 e 2018 e foi realizada no âmbito do meu doutorado - envolvendo agrupamentos distintos de pessoas em uma análise simétrica (Latour e Woolgar, 1997 [1979]: 23-24), cujo objeto foram as vivências e as lembranças de situações de ferimento, tensão e morte violenta causadas por outrem, tendo como consequência o contato com o óbito de terceiros próximos e/ou a possibilidade de sua própria morte.

5 Termo que se refere à cidade do Rio de Janeiro.

6 Integrantes dos grupos procuram apresentar-se em reuniões, palestras e congressos contando suas histórias de forma a angariar mais apoio (sobretudo financeiro) para as suas causas. Eles argumentam que angariar recursos é essencial para a existência e execução desses projetos coletivos que, apesar de funcionarem em instituições estatais, são conduzidos e viabilizados por pessoas individualmente e pelas relações próximas que estas conseguem construir. Portanto, não são casos de grupos que recebem recursos ou outros incentivos para aderir a determinadas políticas (Azevedo et al., 2020), por exemplo.

7 Nos termos de Veena Das (2007), as fronteiras entre o comum/ordinário e o evento marcante são traçadas em termos de fracasso da gramática do comum. Essa “falha da gramática” ou “fim dos critérios” é o que Das interpreta como sendo a experiência de violência aniquiladora e produtora do tipo de luto que estuda: o ritual-mimese estabelecido entre corpo e linguagem por meio do trabalho de uma coletividade.

8 Termos mobilizados pelas próprias pessoas estudadas.

9 Algumas pessoas relatam como se tivessem sido “amputadas” de certas dimensões de suas vidas repentinamente. A mudança é bruta, violenta, exige trabalho para impedir a dissolução de selves sob a pressão de tensões íntimas. Falo de provação no sentido de um momento em que os indivíduos, suas relações mútuas e a própria ordem social projetada são transformados (Pollak, 1990). É provação de vida no sentido em que tensiona a capacidade dos indivíduos de identificar a si mesmos como seres em coerência ou continuidade mínima com o próprio passado (distante ou próximo).

10 Uma das pessoas assistidas mais atuantes no núcleo, que perdeu a sua filha única em um atropelamento quase em frente ao seu trabalho, em 2011.

11 Ela perdeu a mãe e a filha única em um mesmo acidente, um atropelamento por ônibus em 2000. Anos depois, trabalhando no Detran-RJ, teve a ideia de fundar um núcleo que apoiasse (a princípio, juridicamente) aqueles buscando dar entrada na indenização por morte no trânsito. No entanto, há já alguns anos que ela não frequenta o núcleo, que passou por transformações nas gestões posteriores.

12 Todo esse processo envolve diversos estados afetivos e emocionais. Para uma leitura das variadas composições dos relatos sobre dores, doenças e ônus domésticos nesses contextos, ver Vianna e Farias (2011), Vianna (2015) e Freire (2017). Para um estudo sobre a transformação dessas “tonalidades afetivas” por grupos de apoio, ver Talone (2023b). E sobre o luto e os “poderosos estados emocionais viscerais”, cf. Rosaldo (1993: 171).

13 Zelizer (2011), em análise sobre seguro de vida, mostra como foi apenas na última parte do século xix que a definição econômica do valor da morte tornou-se mais aceitável. Na presente pesquisa, em geral, as pessoas sentiam a morte do ente querido em profunda dissonância com transações monetárias.

14 Em minha análise, além do trabalho de campo e das entrevistas realizadas, utilizei duas fontes de relatos não produzidas no âmbito da pesquisa. Entre elas, o livro Seguindo a estrada: trajetórias de perdas repentinas/precoces no trânsito, de 2012, e que compreende relatos diversos de pessoas atendidas pelo núcleo ao longo dos anos 2000, inclusive o da fundadora do NAVI.

15 Cabe destacar que, para lidar com as emoções comunicadas e descritas pelas pessoas entrevistadas, dialoguei com a discussão de Dewey (1938). Pensei as emoções como dotadas de uma expressão corporal distinta, com estados corporais simultâneos à percepção. A emoção começaria e terminaria por efeitos ou manifestações, pois a vida mental está entrelaçada com a nossa estrutura corporal (James, 2013 [1884]). Um indicador de como trabalhei essas questões, então, se dá pelo consequencialismo, pelos efeitos constatados nas pessoas, chamando-os de “dor”, “tristeza”, “raiva”, “uma coisa esquisita”, “um formigamento nervoso”, “ansiedade extrema”, etc. Marieze Torres (2009) afirma que grande parte das divergências quanto às abordagens atuais da sociologia das emoções refere-se, ainda hoje, às concepções de emoções como as propostas por James e por Dewey, indicando a relevância atual de seus escritos.

16 Poema de autoria de Bruno Gouveia, que perdeu o filho de dois anos e a mulher em um acidente de helicóptero na Bahia em 17 de junho de 2011 - ano da morte da filha de Joana. O poema pode ser consultado em https://www.srzd.com/brasil/vocalista-do-biquini-cavadao-emociona-em-missa-de-adeus-ao-filho/ e a entrevista mencionada, que foi publicada no Globo, pode ser consultada em https://oglobo.globo.com/rio/bruno-gouveia-saudade-o-museu-do-amor-8690517 (última consulta dos links a 18.12.2023).

17 Não no sentido de dilatá-los como “mais uma história entre outras”, mas sim no de partilhá-los.

18 Em outro espaço, junto de um colega (Corrêa e Talone, 2021), foi esboçada a compreensão da reflexividade a partir dos efeitos de gradações de indeterminação nas mais diversas situações e contextos em que as pessoas estão inseridas. Diante de uma variação de indeterminação e de intensidade da reflexividade desde o hábito (na rotina), a situações de desestabilização, à reformulação de si alcançada por uma pessoa ou por um grupo de pessoas na sequência de experiências extremas, abordei neste artigo aquela relativa ao “choque paralisante” (ibidem). Com uma perspectiva deweyiana e da sociologia pragmática, em que a ação reflexiva está ligada à indeterminação, por meio do encadeamento do luto é possível identificar uma forma de reflexividade composta por gradações intensivas de indeterminação “intoleráveis”, em que os entes queridos em questão perdem a preensão (Chateauraynaud, 2011) comum que antes caracterizava suas vidas - o que se diferencia de indeterminações e da hiper-reflexão como no caso dos experts.

19Prise (aqui apresentado igualmente como “preensão”) é um termo de Francis Chateauraynaud (2011). O conceito foi desenvolvido para a análise da aderência que existe ou que deve existir na relação de um organismo com um ambiente.

Recebido: 23 de Março de 2023; Aceito: 16 de Novembro de 2023

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