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Revista Crítica de Ciências Sociais

On-line version ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.131 Coimbra Sept. 2023  Epub Sep 30, 2023

https://doi.org/10.4000/rccs.14750 

Artigos

O urbano nas margens do campo: por uma sociologia dos espaços e vidas residuais

The Urban of Margins of the Camp: For a Sociology of Spaces and Residual Lives

L’urbain en marge du champ : vers une sociologie des espaces et des vies résiduelles

Wellington Ricardo Nogueira Maciel1 
http://orcid.org/0000-0003-0129-770X

1 Programa de Pós-Graduação em Sociologia/Grupo de Pesquisa Ciências Sociais e Cidade, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, Ceará, Brasil, wellington.maciel@uece.br


RESUMO

Pensada originariamente para descrever e analisar os espaços de extermínio construídos pelos regimes totalitários de meados do século xx, a noção de campo ganhou novos desdobramentos analíticos nas ciências sociais, passando a ser mobilizada também para interpretar o fazer cidade nas fronteiras das urbes do início do século xxi. O presente artigo almeja rediscutir essa noção com base nas transformações do espaço urbano provocadas pelas políticas da vida e da morte na periferia de Fortaleza, Ceará, Brasil. Se as periferias brasileiras sempre foram vistas como espaços de violação de direitos humanos, onde os princípios mais básicos da cidadania nunca se tornaram regra, urge dar atenção às escalas urbanísticas que a necrobiopolítica tem alterado.

Palavras-chave: espaço urbano; estado de exceção; Fortaleza (Brasil); periferia urbana; segurança pública

ABSTRACT

Originally designed to describe and analyze the spaces of extermination built by the totalitarian regimes of the mid-twentieth century, the notion of camp has gained new analytical developments in the social sciences, and has also been used to interpret the making of cities on the peripheries of cities at the beginning of the twenty-first century. This article aims to re-discuss this notion based on the transformations of the urban space caused by the politics of life and death on the outskirts of Fortaleza, Ceará, Brazil. If the peripheries in Brazil have always been seen as spaces where human rights have been violated and the most basic principles of citizenship have never become the rule, it is urgent to direct our attention to the urban scales that necrobiopolitics has altered.

Keywords: Fortaleza (Brazil); peripheral urbanization; public security; state of exception; urban space

RÉSUMÉ

Pensée à l’origine pour décrire et analyser les espaces d’extermination construits par les régimes totalitaires du milieu du xxe siècle, la notion de champ a acquis de nouveaux développements analytiques dans les sciences sociales, en commençant à être mobilisée également pour interpréter le city-making aux frontières des villes au début du xxie siècle. Cet article vise à rediscuter cette notion à partir des transformations de l’espace urbain provoquées par les politiques de vie et de mort dans la périphérie de Fortaleza, Ceará, au Brésil. Si les périphéries brésiliennes ont toujours été perçues comme des espaces de non-respect des droits humains, où les principes les plus élémentaires de citoyenneté ne sont jamais devenus la règle, il est urgent de prêter attention aux échelles urbaines que la nécrobiopolitique a altéré.

Mots-clés : espace urbain; état d’exception; Fortaleza (Brésil); périphérie urbaine; sécurité publique

A cidade se dá ao mesmo tempo a ver e a ler. Ricoeur (2018 [2000]: 159)

Introdução

Em conhecida resposta a uma indagação sobre os usos da teoria, Pierre Bourdieu (2002 [1981]) reconheceu que o papel desta é gerar verdadeiros problemas de investigação. Ao fazê-lo, a teoria se converte em dispositivo de pesquisa, funcionando como uma engrenagem de problemas. Produzir problemas implica do mesmo modo criar dificuldades com as quais o pesquisador lida diariamente no seu fazer sociológico bem como com as maneiras de resolvê-las. Cabe, portanto, a cada pesquisador encontrar os objetos empíricos acerca dos quais podem-se colocar problemas gerais.

É com base nessa provocação que pretendo aqui descortinar os problemas que a noção de campo tem gerado nas ciências sociais. A referência a Bourdieu não permite confundir a ideia de campo aqui explorada com os diversos espaços relativamente autônomos de produção cultural que surgem com a modernidade europeia. Por outro lado, a noção defendida se distancia também da ruralidade comumente contrastada ao urbano. É a Giorgio Agamben que se deve procurar estabelecer conexões de sentido.

Sem ter a pretensão de esgotar o assunto, encaminho a discussão para o modo como o entendimento contemporâneo de campo se articula com os debates sobre aquelas regiões das cidades em que o Estado parece estar ausente, abordadas pela antropologia das margens (Telles, 2007; Das e Poole, 2008 [2004]; Agier, 2015, 2018 [2011]). A partir da confluência entre os problemas gerados por campo e margem, apresento os resultados de minha pesquisa no bairro Jangurussu, na periferia de Fortaleza, Ceará, Brasil, com o intuito de esboçar os contornos do que denomino sociologia dos espaços e vidas residuais.

Se a ideia de espaço urbano residual é uma constante nos discursos de urbanistas e arquitetos, um ponto cego tem vindo a bloquear o olhar que especialistas em violência produzem sobre as transformações urbanas que as políticas da vida e da morte têm provocado. A ausência de uma leitura sociológica adequada sobre os espaços urbanos residuais, onde a necrobiopolítica1 se efetiva, tem levado os cientistas sociais a subdimensionar as potencialidades que esses espaços colocam para a construção do espaço público nas periferias pobres. Pretendo, assim, argumentar que essas urbanidades invisíveis (Fortuna, 2019) podem vir a cumprir a esperança da sociologia como espaço urbano do possível (Lefebvre, 2011 [1968]).

1. O urbano nas margens do campo

Pensada originariamente para descrever e analisar os espaços de extermínio construídos nos limites das cidades pelos regimes totalitários de meados do século xx, a noção de campo ganhou, nos últimos anos, novos desdobramentos analíticos nas ciências sociais.2 Coube à Hannah Arendt o primeiro esforço de sistematização do significado político desses espaços na modernidade. Em suas palavras, “os campos são a verdadeira instituição central do poder organizacional totalitário” (Arendt, 2012 [1973]: 583).

Mesmo considerando que o que se passou no interior dos campos “não pode ser inteiramente alcançado pela imaginação justamente por situar-se fora da vida e da morte” (ibidem: 589), meu objetivo, partindo dos estudos biopolíticos de Agamben e da sociologia urbana, é exercitar a imaginação sociológica para demonstrar que, se o campo ainda continua a ser o nómos político do moderno, uma sociologia auxiliar se faz necessária a fim de analisar o que se passa hoje nas margens do Estado, onde a necrobiopolítica reorganiza os espaços dos citadinos que têm uma vida precária num país como o Brasil.

Entre as razões que motivaram Agamben a escrever Homo Sacer (2014 [1995]) está a constatação da falta de uma problemática biopolítica nos estudos de Michel Foucault sobre os campos de concentração. Agamben recorre a um expediente retórico para afirmar que o estado de exceção, aos poucos e de forma abrangente, deixa de ser uma condição temporária e restrita a uma experiência histórica particular (a Alemanha nazista) para se tornar uma condição política permanente.

Essa temporalidade do estado de exceção “torna-se agora uma nova e estável disposição espacial, na qual orbita aquela vida nua que, em proporção crescente, não pode mais ser inscrita no ordenamento” (Agamben, 2014: 171). O fato novo da política de nosso tempo é o “descolamento crescente entre o nascimento (vida nua) e o Estado-nação […] e aquilo que chamamos de campo é seu resíduo” (ibidem).

Prevalece na análise de Agamben, contudo, uma condição espacial ambígua, instável e móvel, que ele denomina localização deslocante, na qual o campo é “a matriz oculta da política em que ainda vivemos, que devemos aprender a reconhecer através de todas as suas metamorfoses” (ibidem).

A engrenagem do campo, portanto, é a criação de uma brecha em que a vida nua e a norma jurídica se inscrevem num vazio jurídico. São potencialmente definidos como campos os espaços que se caracterizam por certa visibilidade na paisagem urbana, como um estádio de futebol, um velódromo de inverno ou aeroportos internacionais, e os “locais anódinos”, como um hotel por exemplo (ibidem: 169-170). Escapam-lhe, entretanto, os espaços urbanos que, por excesso de visibilidade, cegam, e que se encontram articulados, de algum modo, com o vazio jurídico criado.

Para o filósofo italiano, o campo, e não a cidade, é o paradigma biopolítico do Ocidente, e constitui seu resíduo por ser oculto. O caráter residual do campo conduz Agamben (ibidem: 176) a contestar

os modelos através dos quais as ciências humanas, a sociologia, a urbanística, a arquitetura procuram hoje pensar e organizar o espaço público das cidades do mundo, sem ter uma clara consciência de que em seu centro […] está ainda aquela vida nua que definia a biopolítica dos grandes estados totalitários do Novecentos.

Embora Agamben desloque acertadamente o problema sobre se há ou não um estado de exceção na atualidade para a problemática da identificação dos espaços de exceção que tendem à permanência, falta-lhe, a meu ver, uma leitura mais adequada às metamorfoses do urbano condizente com os debates que se realizam hoje no interior dos estudos sobre cidade.

Nesse sentido, algumas perspectivas complementares podem iluminar o problema original posto pelo campo agambiano, tomando-o como dispositivo de pesquisa. É possível, assim, observar a presença virtual dessa noção na ideia de campo-cidade de Michel Agier (2015, 2018); de campo cego nas abordagens de Michel de Certeau (2003 [1990]) e Henri Lefebvre (2011); de campo de batalha nas análises de Vera da Silva Telles (2007); ou de campo-rizoma em Gilles Deleuze e Félix Guattari (2017 [1980], 2019 [1980]). Conforme Telles (2007: 200-201),

estado de exceção e vida nua são noções que compõem um espaço conceitual que circunscreve outra ordem de problemas, mobiliza outras categorias e outras referências, joga com outra série de determinações do estado de coisas que conformam nossa atualidade.

É reservado à Agier (2018: 40) e à sua “etnografia das ‘margens’ ou dos limites” o trabalho de lançar um olhar original sobre os múltiplos espaços que põem a vida nua de parte nas experiências contemporâneas de fundação de cidades ao redor do mundo. Para este antropólogo, a “cidade nua” compreende os “espaços precários” que surgem “a partir da matéria-prima disponível (terra, água, madeira da floresta) ou da matéria residual de produtos manufaturados” (Agier, 2015: 488), onde têm lugar os processos de começo da cidade e da vida (Agier, 2018: 41). Embora essa condição se aplique às favelas, aos bidonvilles e a outros hors-lieux, lembra Agier (2015), é aos campos de refugiados, o campo-cidade, que ele atribui o urbano desterritorializado.

Agier sugere, assim, dois aspectos que toda e qualquer análise em ciências sociais deve considerar: o primeiro é deslocar o ponto de vista da cidade para os citadinos; o segundo é transferir a problemática do que é cidade para o que faz a cidade. Em outras palavras, é no espaço residual das cidades, como propõe o autor para os campos de refugiados, que a vida nua agambiana é ao mesmo tempo exposta à morte e pode vir a encontrar refúgio diante das investidas da necrobiopolítica.

Assim, é nos espaços sobrantes que se podem encontrar as potencialidades para a análise sociológica, pois é onde se insinuam os “caminhantes, pedestres, […] cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um ‘texto’ urbano que escrevem sem poder lê-lo. Esses praticantes jogam com os espaços que não se vêem; têm dele um conhecimento tão cego como no corpo-a-corpo amoroso” (Certeau, 2003: 171). Quando vistas de perto, as lógicas desses espaços revelam conhecimentos úteis que permitem que a vida prossiga, apesar das mortes.

Em sua análise sobre as práticas do espaço, Certeau (2003) observa que uma certa cegueira tem impedido os planejadores de captar os limiares onde cessa a visibilidade e onde vivem os “praticantes ordinários” da cidade. Essa cegueira é alimentada pela “cidade-conceito”, forma totalizadora da cidade planejada e visível que deixa escapar o não-pensado. Talvez aqui esteja o movimento contraditório que uma sociologia dos espaços e vidas residuais precise captar, uma vez que, se “a linguagem do poder ‘se urbaniza’”, “a vida urbana deixa sempre mais remontar àquilo que o projeto urbanístico dela excluía” (ibidem: 174).

Não há cidade que desconheça a produção de espaços urbanos residuais.3 É nesse sentido que Certeau (2003: 172) recorre ao World Trade Center, em Nova Iorque, como espécie de “atopia-utopia do saber ótico” jamais conhecida no urbanismo ocidental, um exemplo arquitetônico de como “gerir um aumento da coleção ou acúmulo humano” e, porque não dizer, do resíduo urbano. É preciso, portanto, observar que a cidade, ao planejar e organizar espaços, combina operações de “gestão e eliminação”, uma vez que “rejeita tudo aquilo que não é tratável e constitui portanto os ‘detritos’ de uma administração funcionalista” (ibidem: 173).

2. Fortaleza: espaços e vidas residuais

Fortaleza4 é uma cidade que cresceu por todos os lados nos últimos anos e implementa a lógica da gestão e da eliminação dos detritos. Entre 2005 e 2015, a área urbanizada da cidade aumentou em quase 50%, passando de 264,80 para 397,05 km2. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), “desses, 366,69 km2 (92% do total) podem ser considerados área densa, ou seja, ‘de ocupação urbana contínua, com pouco espaçamento entre as construções’”.5 Para o IBGE, a desordenada expansão urbana terá contribuído, assim, para reduzir os espaços residuais devido ao acelerado crescimento horizontal e vertical. Essa expansão foi favorecida pelo incremento de prédios de luxo na zona leste, pelos pequenos condomínios nos bairros de classe média e pelos “puxadinhos” de casas conjugadas em terrenos nos bairros de periferia, em um momento de aumento da renda média da população da cidade.

A cidade relegou áreas distantes e vazios urbanos, a exemplo do bairro Jangurussu, como margem e, na dimensão intraurbana, produziu “uma cidade que se devora” em zonas liminares entre a “urbanidade” e a “exceção” (Fortaleza 2040, 2015: 40). Cabe então perguntar: o que seria esse invisível contexto que ainda não encontrou sua forma urbana, que foge à escala urbanística oficial, onde grassa a prática de crimes e a violência?

Esse parece ser, à primeira vista, o caso dos vazios urbanos que entram no cálculo do planejamento, seguindo a lógica da gestão e da eliminação. Estendendo-se por antigas indústrias, galpões desativados, minas abandonadas, lixões de depósito de resíduos e infraestruturas de transporte, esses espaços são considerados em todo o mundo como zonas mortas. O léxico associado a esses vazios assume uma pluralidade de designações: brownfields, nos Estados Unidos, derelictland no Reino Unido, baldíos industriales y urbanos ou vaciado industrial em castelhano. Na França utiliza-se o termo friches (urbaines et industrielles), sendo que na expressão friche ou terrain vague “prevalece a ideia de espaço urbano residual” (Meneguello, 2009: 129). Vague é o lugar da arquitetura ausente, que transmite um sentido de espaço impreciso, sem limites definidos. Em Portugal, os vazios são vistos como interrupções, locais para a experimentação urbanística (ibidem).

Se toda cidade produz espaços residuais, nem todos os espaços residuais fazem erguer campos, muito menos o seu contraponto, os contracampos. A partir da antropologia das margens argumento que o Estado tem vindo a atuar nas periferias de Fortaleza de modo prioritário sobre esses espaços, retirando deles sua eficácia ao gerir as políticas da vida e da morte.6

Se as periferias no Brasil sempre foram vistas como espaços de violação de direitos humanos e onde os princípios mais básicos da cidadania nunca se tornaram regra (Telles, 2007), urge dar atenção às escalas urbanísticas que a necrobiopolítica tem alterado. Para isso tomo o bairro Jangurussu, na cidade de Fortaleza, como espaço urbano do possível (Lefebvre, 2011).

É, portanto, nos detritos, em complemento a Certeau (2003), que o Estado põe em movimento estratégias variadas de gestão de populações e territórios, pois é nas “margens” que “o Estado está constantemente redefinindo seus modos de governar e legislar” (Das e Poole, 2008: 24; tradução própria). A seguir, considero o bairro Jangurussu um caso típico-ideal de espaço urbano residual e lócus possível para o surgimento de contracampos (espaços ao mesmo tempo de resistência às necrobiopolíticas e de celebração do direito à vida).

Jangurussu é o lugar que condensa o imaginário da pobreza em Fortaleza. É um dos bairros mais pobres da cidade, com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,17. Atualmente, sua população é de 50 479 habitantes, sendo que destes, 10,92%, ou 5511 pessoas, vivem em extrema pobreza (Fortaleza 2040, 2015: 101). O lugar é representativo da confluência entre políticas da vida e da morte em dois momentos principais: é onde se instalou o maior, o mais duradouro e o último aterro sanitário de Fortaleza, que concentrou durante 20 anos (1978-1998) centenas de catadores de lixo em suas estratégias de sobrevivência e na luta diária pelo direito de desconstruir/reconstruir aquilo que a cidade rejeitou (Izaías, 2010: 27); é também onde as políticas de juventude, de segurança pública, de urbanismo e as chamadas facções7 vieram reinscrever novas tramas do urbano nas vidas de homens, mulheres, crianças e jovens.

Após a desativação do aterro, as populações que cresceram no seu entorno (nomeadamente a comunidade do Gereba) ainda vivem das sobras e resíduos produzidos pela cidade, já que o Centro de Tratamento de Resíduos Perigosos substituiu a antiga rampa de lixo, considerada perigosa e insalubre, reunindo até hoje catadores em busca de restos de comida e materiais reaproveitáveis, seja para venda, seja para consumo próprio.

Ao todo, cerca de 1000 moradores vivem no Gereba e sobrevivem do lixo que chega à comunidade. Pude percorrer suas ruas, durante todo o mês de janeiro de 2021, na companhia da presidente da Associação dos Catadores do Jangurussu (ASCAJAN), que é moradora do lugar. Os registros de campo que agora compartilho resultam das observações que fiz do cotidiano da comunidade, com destaque para sua residualidade.

Seis das dez ruas que formam o Gereba possuem nome de santo ou nomes que denotam paz e esperança: Santa Luzia, São Francisco, São José, Santa Madalena, Boa Esperança e Paraíso. Há um padrão no tipo de construção das casas e dos pequenos comércios: predominam as edificações planas e sem reboco ou pintura externa. Algumas ruas possuem asfalto desgastado, sendo a maior parte em chão batido.

A rua São José se liga à de São Francisco por um pequeno trecho em paralelepípedo que atravessa a lateral de um campo de futebol de subúrbio em estado de abandono. É a única com esse formato. Em vários pontos da comunidade é possível encontrar catadores e suas carrocerias com as quais percorrem a cidade. É ainda comum a presença de atravessadores que recebem o material coletado pelos trabalhadores e o vendem aos depósitos de reciclagem, situados dentro e fora da comunidade.

A rua São Francisco faz parte da área mais pobre do Gereba. Esta rua atravessa o sopé do lixão ligando a margem do rio Cocó, principal recurso hídrico da cidade, ao topo do mais antigo aterro sanitário e símbolo emblemático da geografia pobre de Fortaleza. Nessa região, onde o mato camufla o morro de lixo, observa-se o predomínio de casebres feitos a partir de restos de madeira e papelão. Há duas casas construídas com base de alvenaria e coberturas improvisadas com plásticos.

No centro do Gereba, dividindo a rua São Francisco com o restante da comunidade, um extenso muro de pintura envelhecida que circunscreve toda essa área é protegido por uma cerca elétrica. No seu interior se localiza o galpão principal do centro de reciclagem, onde parte dos moradores trabalha. Ainda nesse trecho, grandes sacos de resíduos de propriedade dos catadores e barracos improvisados dominam a paisagem. Em um dos casebres, ramos de flores vermelhas embelezam a entrada de uma casa feita de restos de madeira. A partir desse ponto, é possível obter uma vista panorâmica da cidade de Fortaleza e do Grande Jangurussu8.

Essa espécie de mirante de lixo coberto pela vegetação rasteira permite também avistar, no lado oposto ao antigo aterro, no bairro Barroso, a comunidade conhecida por Babilônia, composta por quatro blocos de apartamentos inacabados do Condomínio Novo Jardim Castelão, obra do projeto Minha Casa Minha Vida, onde residem muitas famílias e que é ocupada pela facção cearense Guardiões do Estado (GDE). Em 2014, a primeira chacina envolvendo conflitos entre traficantes nessa região vitimou quatro jovens entre os 18 e os 23 anos.

Desde 2017 que o controle das fronteiras territoriais entre o Gereba e a Babilônia tem sido o epicentro dos conflitos entre facções criminosas que disputam o mercado de drogas ilícitas em Fortaleza. É por aí que a droga chega e é daí que ela é distribuída por outros bairros da cidade. Nas conversas informais que tive com a diretora da ASCAJAN, nas entrevistas com dois jovens que moram no Gereba e com uma jovem que reside em outro local do Jangurussu, pude acessar algumas dimensões do cotidiano alterado pela presença armada dos grupos criminosos e do Estado.

De modo geral, há um conjunto de condutas e simbologias que é imposto pelas facções aos moradores e que determina as tramas da vida e da morte nesse limite territorial, fenômeno extensível a outras áreas faccionadas ao longo da cidade. A mobilidade dos moradores é reduzida, existindo áreas permitidas para circular e outras interditadas. Ruas e muros são marcados com pichações e barricadas que denotam áreas de domínio de um ou outro grupo armado. É o caso da facção carioca Comando Vermelho (CV), que ocupa o Gereba, e a facção GDE, na Babilônia.

A sociabilidade do lugar é reduzida. São comuns relatos de invasão de casas localizadas em áreas estratégicas para o tráfico. Execuções sumárias, mutilações, torturas e/ou imposição de ordens para carros e motos circularem na comunidade também foram relatadas. Além da presença de grupos empunhando armas, outras regras específicas impõem condutas a quem rouba ou furta no local, envolvendo quase sempre punições extrajudiciais. O objetivo é evitar a presença da polícia que prejudicaria, assim, os negócios do tráfico.

Por último, existem relatos de pessoas deslocadas, que deixaram o Gereba com medo das facções, embora a grande maioria dos que vivem nesse lugar não tenha condições de o abandonar, optando por permanecer na comunidade e aceitar as regras impostas. Esse fenômeno produziu a imagem do refugiado urbano nos órgãos de comunicação social da cidade.

3. O regime de acumulação de espaços e vidas residuais

Modificações recentes no cotidiano dos moradores de favelas no Rio de Janeiro devido à presença armada do Estado e de organizações do crime foram observadas por Machado da Silva e Menezes (2019). Um modelo de segurança pública similar ao aplicado no Rio de Janeiro e em outras cidades brasileiras (Soares, 2019) vem sendo posto em prática, nos últimos anos, em Fortaleza e no estado do Ceará, em resposta ao aumento dos índices de homicídios.9 O objetivo divulgado pelos órgãos de segurança confere a esse modelo a marca da presença policial ostensiva e permanente nos territórios sob conflito entre facções, com a finalidade de garantir os imperativos da lei e da ordem pelo Estado.10

Desde 2014, o governo do estado do Ceará, por meio da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), instituiu as Áreas Integradas de Segurança (AIS), no âmbito do programa Ceará Pacífico, tendo o estado sido divido em 18 AIS. Em Fortaleza, foram mapeadas as áreas integradas de um a seis. As demais áreas foram demarcadas entre a região metropolitana de Fortaleza e cidades do interior. O Jangurussu passou a compor a AIS 3 conjuntamente com mais 12 bairros pobres da periferia, reunindo os piores IDH da cidade.

Em 2016, a Prefeitura de Fortaleza criou o Plano Municipal de Proteção Urbana (PMPU) em sintonia com o mapa da violência na cidade. O plano parte da ideia de territorialidade definida ou restrita, compreendendo-a como política de vigilância sistemática (esquadrinhamento espacial), eletrônica (drones e câmeras) e ostensiva (policiamento em moto, bicicleta e viatura).

Além de uma torre de vigilância, o PMPU previu a instalação, em caráter provisório, de uma tenda da cidadania, com o intuito de ampliar ações que promovam a dignidade humana e o direito à vida. Ações de prevenção primária, como urbanização, lazer e iluminação, também foram informadas. Naquele ano, entre os 10 bairros com maiores índices de homicídios, o Jangurussu foi o que registrou o maior número de mortes de jovens (59 ao todo).

Com base nessa concepção de segurança pública, foi erguida em fevereiro de 2018 a primeira Célula de Proteção Comunitária no bairro, que consiste numa torre de vigilância e monitoramento da área de influência do Centro Urbano de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (CUCA),11 espaço frequentado pela juventude do Jangurussu e de outras localidades próximas. Essa arquitetura foi estendida para mais 15 bairros periféricos, podendo chegar até 30 equipamentos, conforme informou o ex-vice-prefeito de Fortaleza (Torgan, 2019).

Por último, a SSPDS, sobrepondo-se às AIS, criou em 2017 e regulamentou em 2020 o programa estadual de Proteção Territorial e Gestão de Riscos - PROTEGER12 com base na ideia de territórios urbanística e socioeconomicamente vulneráveis. O objetivo é identificar e reduzir atos de coerção ilegítima exercida por grupos criminosos a partir da instalação de contêineres fixos com presença policial em zonas de conflito de facções. Para tal, foram identificadas Áreas Críticas de Interesse da Segurança Pública. A fronteira territorial do Gereba foi escolhida como área prioritária.

Tais estratégias de segurança não deixam de produzir processos contraditórios no que diz respeito às redefinições dos espaços escolhidos para intervenção. É aí onde reside a singularidade do Jangurussu no contexto de Fortaleza: o de ser lugar de acumulação de espaços e vidas residuais. O antigo lixão, que por 20 anos foi fonte de sobrevivência para os catadores do Gereba, não apenas acumulou os resíduos de materiais vindos de diferentes pontos da cidade, mas acumulou também promessas de urbanização. Previsto para encerrar suas atividades em 1988, quando completasse 10 anos de existência e 1500 toneladas de lixo acumulado, o prazo foi estendido por mais 10 anos, o que contribuiu para condensar imagens negativas do local.13

Ao longo dos anos, entre as medidas mais anunciadas e nunca realizadas desde a sua desativação em 1998, estão: dedetização do local, serviços de terraplenagem, compactação e recobrimento do lixo, implantação do sistema de drenagem de gases e de águas pluviais, coleta e tratamento do chorume, revegetação e urbanização do Gereba com implantação de equipamentos esportivos e transformação do antigo lixão em parque urbano. Em 2018, no âmbito do Plano Urbanístico Fortaleza 2040, o zoneamento do lixão foi alterado, passando de Zona de Requalificação Urbana (ZRU) para Zona de Recuperação Ambiental (ZRA).

É nessa região que as políticas de segurança pública e de urbanismo se combinam na produção e reprodução desse espaço heterotópico (Foucault, 2013 [1984]), forma topográfica contemporânea que subjuga a vida ao poder da morte e a lança nos “mundos de morte”, essa forma única e nova de existência social (Mbembe, 2018 [2011]) vivida pelas populações urbanas periféricas.14 É possível afirmar que tanto na fronteira territorial da comunidade quanto no raio de influência do CUCA e da torre do PMPU, os modelos de política de segurança e de desenvolvimento urbano apresentam variações socioespaciais, mas um mesmo tipo de regime de acumulação de espaços e vidas residuais, segundo a presença ou ausência da arquitetura ou da urbanidade.

Enquanto no Gereba o morro de lixo desativado é o símbolo de uma arquitetura ou urbanidade ausente, na praça principal do Jangurussu o CUCA é a marca arquitetônica de um bairro que se urbaniza. Principal equipamento que integra a política de juventude na cidade, o CUCA, quando comparado à função do antigo aterro de lixo no bairro e na cidade, acumula imagens mais positivas, construídas tanto pela gestão urbana quanto por parte dos moradores e dos jovens que o utilizam para a realização de cursos e esportes diversos.

Para a Prefeitura de Fortaleza (Rede CUCA, 2017: 6), a imagem atribuída ao CUCA como “espaço de sociabilidade para a promoção de novas formas de vivências e interações” se sobrepõe às críticas que se têm feito ao seu modo de funcionamento. Em grande parte, essas críticas se dirigem ao aspecto de fechamento arquitetônico do espaço e ao impacto físico e simbólico provocado nos que transitam por suas imediações ou passam a frequentar suas dependências (ibidem: 18-20).

Nesta pesquisa, a juventude de 15 a 29 anos é vista como categoria vulnerável (pobre, negra e periférica), que precisa ser transformada, daí a escolha na avaliação da gestão municipal por uma “teoria da mudança” como forma de medir os impactos do CUCA na vida dos jovens. Nesse sentido, são avaliadas como positivas as melhorias acumuladas no rendimento escolar, nas habilidades emocionais e de socialização criadas, no capital cultural, na conscientização acerca de direitos, na preparação para o mercado de trabalho, no desempenho em atividades esportivas e nas possibilidades de transformação dos seus sonhos em realidade.

Entregue em 2014, o CUCA previa em seu projeto original o cercamento de todo o perímetro do local. Nesse ano, dois assassinatos de jovens envolvidos em conflitos de facções ocorreram no anfiteatro. Segundo o coordenador de Políticas de Juventude da Prefeitura de Fortaleza à época, a área onde os jovens foram mortos não pertencia ao Centro por estar fora da cerca instituída pela gestão anterior. A localização do anfiteatro, da pista de skate e da quadra para esportes na areia fora do perímetro impediria o Instituto CUCA em manter a gestão da área.15

A fala do antigo coordenador parece atribuir ao anfiteatro a qualidade de equipamento público fora de lugar, colocado às margens (tal como os seus usuários) das regulações da vida e suscetível às políticas da morte. O anfiteatro se constitui assim no espaço residual no interior dos espaços da gestão da necrobiopolítica. É nele, paradoxalmente, que o contracampo apresenta suas potencialidades comunicativas para a reativação dos sentidos públicos do urbano.

É no tempo-espaço das batalhas de MCs (mestres de cerimônia) que o espaço dos ensaios abertos entra em conflito com as marcas simbólicas do campo (a torre e o CUCA). É, ainda, nessa escala tempo-espacial que os jovens tensionam a ordem do espaço urbano e jogam com os recursos disponibilizados pela forma urbana que cresce.

Para os jovens que acompanhei em suas práticas culturais nas imediações do equipamento e da torre do PMPU, o CUCA, ao mesmo tempo que é visto como espaço de sociabilidade e de possibilidades, é tomado como campo de batalha, como contraponto para a produção cultural autônoma daqueles que não pretendem ser enquadrados pelos mecanismos da gestão. É nessa região ambígua que, nos últimos anos, veio emergir uma rica experiência cultural de jovens que se reúnem para recitar versos e realizar batalhas de MCs.

Para uma jovem MC, o espaço-tempo das batalhas de rap se constitui em referência para a contestação da ordem construída pelos equipamentos de promoção da necrobiopolítica no bairro.

Quanto mais repressão a gente sofre, mais a cara a gente vai colocando. Então, hoje a gente não está mais nos concentrando 16, entendeu? A gente [es]tá se espalhando cada vez mais. Quando a gente pega o nosso microfone e a gente começa a falar “vai morrer ou vai matar”, significa que eu vou te matar com a minha rima, entendeu? Essa é a forma de usar nossa arma contra tudo, a nossa arma contra a opressão, a nossa arma contra a fome, a nossa arma contra a falta de saneamento básico, a nossa arma contra a falta de recurso. É o microfone. Aos poucos, a gente vai construindo uma imagem de nossos artistas, da nossa cultura e mostrar que a gente não precisa dos restos, a gente precisa do que é nosso por direito.

Como observou Judith Butler (2018 [2015]), a luta contra a vida precária em todo o mundo tem mobilizado principalmente os jovens, que a vivem como uma morte lenta. Para eles, o espaço público não é algo que já está dado, mas uma esfera em permanente construção. Butler (ibidem) sugere que, embora as condições materiais para a assembleia na cidade sejam fundamentais, a política das ruas e praças constrói-se em contradição com a arquitetura.

Os ambientes materiais das assembleias são parte da ação e aquilo pelo qual se luta. Daí que os jovens que utilizam o CUCA e seu entorno desejam, como possibilidade, produzir vídeos na torre do PMPU, conferindo-lhe um uso não militar, como ouvi por diversas vezes em relatos.

Para Butler, cabe à pesquisa captar esses “momentos ou passagens anarquistas”, “momentos de intervalo”, ocasião em que um regime e seus códigos são colocados em questão pelos corpos em aliança. É nesse sentido que ela se questiona:

Como entendemos essa ação conjunta que abre tempo e espaço fora e contra a arquitetura e a temporalidade estabelecidas pelo regime, uma ação que reivindica a materialidade, apoia-se nos seus suportes e recorre às suas dimensões materiais e técnicas para retrabalhar suas funções? Essas ações reconfiguram o que vai ser público e o que vai ser o espaço da política. (ibidem: 84)

Se a violência travada pelas facções e a truculência policial se espalham pelo tecido urbano do bairro, é na invenção do cotidiano por parte dos jovens que o espaço público sobrevive. É nessa estrutura topológica do estado de exceção - esse estar-fora e ao mesmo tempo pertencer (Agamben, 2014: 57), neste caso ao CUCA, ao bairro, à cidade - que, apesar de saberem dos extermínios, os jovens sobreviventes percorrem ainda vivos o caminho da morte (Mbembe, 2018: 62).

Para abordar o urbano reinventado pelas políticas da vida e da morte em bairros periféricos é preciso, portanto, partir da instabilidade do objeto cidade, da forma urbana, uma vez que a acumulação de espaços e vidas residuais se estende numa rede múltipla de direções difíceis de prever e controlar, embora investida permanentemente pelo Estado e pelos bandos armados.17 Essas máquinas de guerra são difusas e polimórficas; sua relação com o espaço é móvel. Até o Estado pode se transformar em uma máquina de guerra, como lembra Mbembe (2018: 54). É assim também que Deleuze e Guattari sugerem importantes pistas para pensar as formas de gestão de populações e territórios nas margens:

O fora dos Estados não se reduz à “política externa”. O fora aparece também nos mecanismos locais de bandos, margens, minorias, que continuam a afirmar seus direitos de sociedades segmentárias contra os órgãos de poder do Estado. [...] Mas a forma da exterioridade da máquina de guerra faz com que esta só exista nas suas próprias metamorfoses [...]. Não é em termos de independência, mas de coexistência e de concorrência, num campo perpétuo de interação, que é preciso pensar a exterioridade e a interioridade, as máquinas de guerra de metamorfoses e os aparelhos identitários de Estado, os bandos, os reinos, as megamáquinas e os impérios. Um mesmo campo circunscreve sua interioridade em Estados, mas descreve sua exterioridade naquilo que escapa aos Estados ou se erige contra os Estados. (2017: 24-25)

Para captar essas diferenças da presença do Estado e das facções na escala do bairro é útil recorrer às análises de Deleuze e Guattari (2017, 2019) sobre a cidade rizoma e as dinâmicas entre os espaços lisos e estriados. O crescimento da geografia de Fortaleza para todos os lados faz da cidade um objeto escorregadio a qualquer modelo de representações urbanas definitivas. A imagem da cidade como fenômeno estável e repleto de espaços geometricamente delimitados não contribui para a compreensão dos fenômenos múltiplos que escapam aos modos consagrados de leitura da cidade.

A instalação de bases fixas de policiamento no Gereba é a principal estratégia de gestão desse território a cargo do Estado, com o objetivo de mapear e afugentar a estrutura do tráfico. Essa base põe em ação a lógica da estratégia militar de saturação, o que faz com que o Estado pressione os grupos criminosos para o confronto ou para a fuga dos territórios ocupados. É comum ouvir dos moradores do Jangurussu e acompanhar a mesma percepção pelos meios de comunicação de massa de que esse tipo de estriamento do espaço pelas forças de segurança tem reduzido os números de homicídios e de outros crimes. Isso verifica-se devido à diminuição dos confrontos entre os bandos armados, das intervenções policiais letais e à interrupção momentânea do fluxo dos comércios ilegais nos locais de influência dos equipamentos criados para a gestão dos designados “riscos em bairros de periferia”.

O retorno das facções ao local ou o deslocamento para comunidades do mesmo bairro ou de bairros vizinhos continua a fluir. A força dessas estruturas rizomáticas está no seu poder de se reconstituir, muito mais do que na demonstração militar da força. Talvez isso se deva ao fato de que os espaços lisos ocupados pelas facções (os espaços urbanos residuais) são “espaços de contato, de pequenas ações de contato, táctil ou manual, mais do que visual” (Deleuze e Guattari, 2017: 40), por oposição ao espaço estriado dos equipamentos de segurança territorial (torre e contêiner). “O espaço liso é um campo sem condutas ou canais. Um campo, um espaço liso” (ibidem).

Esse tipo de presença das facções nos territórios nos permite questionar se não estamos diante de uma estrutura rizomática de novo tipo, que escapa a qualquer tentativa de demarcação, arquitetônica ou urbanística, sem início e sem fim. Para os autores franceses,

um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. [...] É que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal […]. (Deleuze e Guatarri, 2019: 48-49).

4. Por uma sociologia dos espaços e vidas residuais

A cidade, como organismo vivo e rizomático, que cresce em várias direções, precisa ser lida de outra forma. O desafio que a observação de um objeto dessa natureza impõe deve-se ao fato de que os fenômenos mais relevantes na trama da vida e da morte para os sujeitos que habitam os territórios periféricos situam-se a meio caminho entre as construções, nos lugares da ausência ou da presença da arquitetura ou da urbanidade, onde predomina a lógica da gestão e da eliminação dos detritos.

As imagens construídas pelos moradores de Fortaleza sobre os territórios da morte encontram ecos no modo como os espaços residuais são concebidos por urbanistas e arquitetos. Para estes, a arquitetura funciona como suporte para a vida urbana. A sua ausência confere a qualidade de zonas mortas a esses espaços. A cidade, nesse sentido, pode ser lida a partir das relações entre espaços cheios e vazios que as construções configuram. Tanto para os especialistas do urbanismo quanto para os moradores, uma ideia de cidade emerge a partir daí.

De maneira geral, o morador, ao se deparar com vazios urbanos ou espaços entre construções, sente os lugares da arquitetura ausente como projeção da sua insegurança, a expressão sensível do seu medo, espaços incertos. Assim, é possível afirmar que para boa parte dos fortalezenses de hoje os terrenos vazios, as áreas abandonadas, os espaços sem uso, as fissuras entre obras, os becos sem saída, as esquinas, os espaços inusitados na forma ou no volume, os lixões ou locais de depósito dos resíduos sólidos são o outro do urbano, a anticidade.

Nos últimos anos, Fortaleza tem presenciado uma escalada crescente nos índices de homicídios.18 Alguns analistas cearenses (profissionais do direito, sociólogos da violência, jornalistas, etc.) argumentam que o aumento no número de mortes ocorre em razão de dois fatores principais: a urbanização desordenada e a reorganização dos mercados ilícitos no Brasil, atingindo a cidade numa espécie de “nordestinização” da epidemia de violência no país.19 Essas leituras, a meu ver, embora acertadas do ponto de vista do mapa da violência (números e distribuição demográfica de mortes), acabam por deixar de lado o que parece ser a principal novidade: a reinvenção do urbano pelas políticas da vida e da morte nos bairros de periferia.

Uma sociologia dos espaços e vidas residuais deve assim, em primeiro lugar, problematizar a leitura parcial dos especialistas da violência sobre o urbano ausente implícito na ideia de urbanização desordenada. Isso porque o campo-resíduo é onde o urbano se reinventa nos dramas da vida e da morte nos bairros pobres da cidade. Espaço de sobra, lugar da arquitetura ausente, lugar de domínio de facções.

A leitura do urbano ausente está presente, por exemplo, nos discursos de dois especialistas da violência no estado do Ceará. Para um sociólogo entrevistado para o Diário do Nordeste, “as áreas mais degradadas, mais precarizadas, onde a juventude tem menos oportunidade, onde tem condição de habitação pior, é onde realmente a violência e outros problemas sociais profundos encontram lugar para se expandir, se fortalecer”.20 Já num artigo de opinião, um especialista em direito se questiona sobre as causas da violência e dá resposta semelhante:

Essa violência atinge a todos da mesma forma? Vamos olhar os números mais de perto. Se observarmos a idade das vítimas, os jovens são o principal alvo. Em 2017, foram assassinados 35.783 jovens no Brasil (69,9 homicídios por 100 mil jovens). No Ceará, a taxa foi de 140,2, a segunda pior do país. A maior parte do assassinato de jovens ocorreu em territórios marcados pela violência armada entre facções criminosas. Mas, antes da marca da violência, esses territórios são caracterizados pela escassez ou precarização de serviços públicos. A “ausência” do Estado forjou o terreno fértil para a expansão e consolidação das facções.21

Para relativizar essas leituras que atribuem o aumento dos homicídios a uma tendência vinda de fora e a uma ausência, é importante recorrer ao pensamento de Lefebvre sobre o urbano que se faz presente, como virtualidade. Para este autor, “[c]om a sociedade urbana se constituindo sobre as ruínas da cidade, como apreender os fenômenos em toda sua extensão, em suas múltiplas contradições? É aí que está o ponto crítico” (Lefebvre, 2011: 81; itálico no original). Em outra passagem, Lefebvre faz o seguinte alerta: “quem quiser propor uma forma de uma nova sociedade urbana fortificando esse germe - ‘o urbano’ -, que se mantém nas fissuras da ordem planificada e programada, deve ir mais longe” (ibidem: 85).

No Jangurussu e em outros bairros da periferia de Fortaleza com elevados índices de homicídios, os espaços residuais são marcados por um conjunto significante próprio (Lefebvre, 2011). É possível observar uma sonoridade urbana distinta, marcada por rajadas de tiros, que denotam confrontos envolvendo traficantes e policiais, bem como fogos de artifício para comemorar a chegada de cargas de drogas, a conquista de territórios de facções rivais ou de territórios neutros, ou seja, ainda não faccionados.

A tradução pública imediata dos conflitos armados entre as facções é o aumento dos homicídios. O fim da chamada pacificação das periferias não só eleva o número de mortes como é sentido pelo resto da cidade de maneira não imediata, nos ataques a ônibus e a equipamentos de segurança, como as delegacias de polícia. Daí Carlos Fortuna (2009) identificar, como hipótese, um intervalo de vida de espaços com usos só temporariamente urbanos, algo que soa estranho a arquitetos e urbanistas.

Outras dimensões que permitem medir a presença das territorialidades criminais na cidade são sentidas de forma mais particular por moradores de áreas pobres. Nos muros das casas do Gereba, podem-se constatar mensagens como: “Tem que sair. Fora das travessas se não [sic] vai morrer”, grafadas em momentos de acirramento dos conflitos entre facções. No anfiteatro do CUCA, em uma das estruturas da arquibancada, um enorme grafite com a palavra “VIDA” divide o espaço com marcas da facção criminosa CV. Como observa Lefebvre (2011: 68), “[a]o lado da escrita, existe a fala do urbano, ainda mais importante; essas palavras expressam a vida e a morte, a alegria ou a desgraça”.

Os escritos de Lefebvre (2007 [1992], 2011) sobre o direito à cidade e a ritmanálise têm se constituído um importante marco na virada dos estudos urbanos nas últimas décadas. Para o filósofo e sociólogo francês, o direito à cidade não pode ser restrito apenas ao direito de acessar o edificado, o construído. Esse direito só pode ser concebido como direito à vida urbana. Isso se deve à inovação epistêmica trazida pelos seus estudos da cidade em relação a um aspecto crucial: a “não-coincidência entre o território urbanizado da cidade e o modo como se estruturam as práticas, mentalidades e relações sociais que ali se desenrolam” (Fortuna, 2009: 85-86).

Essa não-coincindência, aponta Fortuna (2019), demonstra a contínua capacidade de reinvenção do urbano. Se historicamente as cidades foram demarcadas em oposição ao rural ou à pequena localidade, hoje, os sentidos do urbano devem ser buscados no interior das próprias cidades, contíguo ao espaço urbano. Isso sugere que a cultura urbana vai além da espacialidade e dos limites físicos da cidade. O urbano e o não-urbano convivem cada vez mais lado a lado, nas tensões entre os vazios, o edificado e os espaços outros, heterotópicos, espaços deixados à margem, existentes nas frestas ou a meio caminho entre as construções. É aí onde se encontram os desafios à análise das tramas da vida urbana, da vida e da morte, na cidade.

Considerações finais

Neste artigo, considerei a noção de campo como um dispositivo de pesquisa e uma engrenagem de problemas. Muito mais que uma categoria que diz respeito a processos historicamente situados e datados, demonstrei que o campo-resíduo pode ser útil para a interpretação de alguns fenômenos que atravessam as cidades na atualidade. A partir de contribuições diversas, procurei iluminar uma realidade que vem se desenhando em Fortaleza em decorrência do aumento no número de homicídios e das novas configurações urbanas de uma cidade em acelerado crescimento.

Argumentei que os dramas da vida e da morte vividos por moradores de bairros periféricos, a exemplo do Jangurussu, foram deslocados para os espaços residuais devido ao modo como se estrutura a gestão de territórios e das populações pelo Estado e pelos mercados ilegais nas margens urbanas. Produtos da presença ou da ausência da arquitetura e da urbanidade, os espaços residuais tensionam hoje os principais dilemas do urbano e do não-urbano na cidade. De acordo com escalas tempo-espaciais variadas, predomina aí a lógica da gestão e da eliminação, tanto para os planos e programas de segurança pública e de urbanismo quanto para os negócios dos bandos armados.

No Jangurussu, por conta disso, emergiu uma característica peculiar dentro da nova ordem urbana de Fortaleza: o regime de acumulação de espaços e vidas residuais. A opção por considerar a escala do bairro como objeto de análise se deu por conta dos processos espaciais contraditórios que lá ocorrem e que fogem das leituras mais comuns que tendem a atribuir à urbanização desordenada a principal causa para o aumento das taxas de homicídios. Estudos comparativos posteriores poderão demonstrar se esse tipo de regime se aplica a outros bairros da cidade.

Modo similar de leitura recente das relações entre cidade e dinâmica da violência foi elaborado por Sérgio Adorno et al. (2016) para o caso de São Paulo. Com base em estatísticas diversas e estudos etnográficos, os autores observaram que não é mais possível sustentar uma visão dicotômica para entender a diversidade de formas de organização social nos territórios da cidade e de sua região metropolitana. Para esses autores (ibidem: 383-384), “a distribuição do crime e da violência é antes descontínua e heterogênea”. O aprofundamento dessa hipótese levou à identificação de sete tipos de regimes espaciais, cada qual com um padrão distinto de distribuição de mortes violentas. Daí a opção dos autores de, em vez de falar de uma São Paulo, considerarem o território das “várias” São Paulo e suas desiguais características e situações econômicas, demográficas, sociais e criminais, indicativas de condições e de mortalidade distintas (ibidem).

Para cidades que cresceram bastante nos últimos anos, como é o caso de Fortaleza, repensar o modo como lemos suas dinâmicas e as relações que se estruturam no seu interior e nas suas margens é um requisito básico. Há um lado sensível do urbano e da vida pública que se renova nos sons, nos ritmos e nas cadências cotidianas de uma realidade alterada pela violência e pelos altos índices de homicídios. Ruas interditadas, códigos escritos nos muros e em travessas, confrontos armados, zonas de perigo impõem ritmos e passadas variadas, constituindo-se naquilo que Mbembe (2018) denominou “mundos de morte”, esses lugares nos quais vastas populações das periferias urbanas circulam e sobrevivem, como “mortos-vivos” da contemporaneidade.

Nessa perspectiva, uma sociologia dos espaços e vidas residuais se faz necessária. Em vez de pensar os espaços residuais como opostos da vida urbana, lugares da arquitetura e da urbanidade ausentes, trata-se de enxergá-los como campo-resíduo, o suporte material dos dramas da vida e da morte, de regimes de acumulação, mas também onde se resiste às investidas da necrobiopolítica e se celebra o direito à vida. Seguindo as dicas de Lefebvre (1967 [1965]), os espaços residuais situam-se num campo cego, que ainda não se vê, mas é o insignificante, o irredutível, cujo sentido é dado pela pesquisa. É, portanto, no descarte dos detritos, de espaços e vidas residuais, que pode se concentrar um dos terrenos mais férteis para a análise sociológica da cidade. Cabe à pesquisa reunir os resíduos e encontrar neles as possibilidades do urbano.

Declaração de conflitos de interesse

O autor declara não existir quaisquer conflitos de interesse.

Financiamento

O autor não recebeu apoio financeiro para a investigação, autoria e/ou publicação deste artigo.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer o cauteloso e criterioso trabalho de revisão do texto realizado por Ana Sofia Veloso. Um especial agradecimento aos membros do Grupo de Pesquisa Ciências Sociais e Cidade - CSC da Universidade Estadual do Ceará pelos valiosos momentos de interlocução que mantemos rumo à construção de uma leitura renovada sobre Fortaleza e seus processos, pois, como lembra a epígrafe que abre este artigo, “a cidade se dá ao mesmo tempo a ver e a ler”.

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1 Berenice Bento (2018) entende que “o necrobiopoder unifica um campo de estudos que tem apontado atos contínuos do Estado contra populações que devem desaparecer e, ao mesmo tempo, políticas de cuidado da vida”.

2Sobre o emprego recente da noção de campo no caso brasileiro, conferir Godói (2022) e Augusto (2013).

3O lugar analítico que confiro à gestão dos resíduos em Fortaleza é parte de uma tendência mundial, como alerta Davis (2017).

4Fortaleza é um município do nordeste brasileiro e capital do estado do Ceará. Dentre as capitais, é a que possui maior densidade demográfica (8390,76 hab/km²). A cidade está dividida em 12 Secretarias Executivas Regionais que abrigam 121 bairros ao todo.

5Madeira, Vanessa (2017), “Em 10 anos, área urbanizada da capital cresce 50%”, Diário do Nordeste, 14 de agosto. Consultado a 05.05.2020, em https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/em-10-anos-area-urbanizada-da-capital-cresce-50-1.1804190.

6Não é difícil citar exemplos da atuação letal do Estado com grande repercussão no Brasil. É o caso do bairro Paraisólopis, em São Paulo, onde ocorre o Baile da Dz7, que atrai milhares de jovens moradores de bairros pobres em busca de diversão. Em um dia normal de festa, uma batida policial provocou a morte de nove adolescentes. Para o presidente da União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis: “Foi premeditado. Não foi uma fatalidade, quem fez sabia o que estava fazendo. […] Fecharam uma esquina, fecharam a outra, jogaram bombas de fumaça aqui, as pessoas correram para lá, jogaram mais bombas lá e então as pessoas correram para as vielas... Mas algumas não têm saída” (in Gortázar e Pires, 2019). Segundo a reportagem, os jovens sobreviventes, por conhecerem as vielas, conseguiram “escapar da confusão passando por becos que levavam à saída da comunidade”, pois “[q]uem cresce em Paraisópolis sabe em que direção correr para salvar a pele” (ibidem). Os mortos não eram moradores da região. O espaço urbano residual parece não cegar todos os seus usuários, contrariando, em parte, Certeau.

7As facções são conhecidas como grupos criminosos capilarizados nos presídios e nas áreas mais pobres das pequenas, médias e grandes cidades brasileiras.

8Designação utilizada pela Prefeitura de Fortaleza quando se refere aos bairros que se formaram sob influência do Jangurussu. São estes: Conjunto Palmeiras, Ancuri, Santa Maria, Messejana, Barroso, Passaré e José Walter.

9Conforme indicado no estudo pioneiro Trajetórias interrompidas (UNICEF/Assembleia Legislativa do estado do Ceará/Governo do estado do Ceará, 2017), o estado do Ceará teve um número recorde de casos de violência em 2017 com 5134 assassinatos, número em crescimento desde 2013. Em Fortaleza, no mesmo ano, ocorreram 414 homicídios de jovens entre os 10 e 19 anos, sendo que o bairro Jangurussu foi o que registrou mais homicídios (31 mortes). Ainda segundo este estudo, em 2016 foi criado o Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, a partir de uma articulação entre o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a Assembleia Legislativa do estado do Ceará, o governo do estado do Ceará e setores da sociedade civil.

10Com a criação da Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização - SAP em 2019, novas dinâmicas entre o interior e o exterior das prisões está em curso no estado do Ceará. As implicações políticas, econômicas, penais e jurídicas de tais mudanças fogem ao escopo do presente artigo.

11A Rede CUCA é formada pelos cinco Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte - CUCA, localizados em bairros carentes: Cuca Jangurussu, Cuca Barra, Cuca Mondubim, Cuca José Walter e Cuca Pici.

12Portaria n.º 0881-GS, Diário Oficial do Estado (Série 3, Ano XII, n.º 131), 23 de junho de 2020, pp. 28-29. Consultado a 20.05.2021, em http://imagens.seplag.ce.gov.br/PDF/20200623/do20200623p01.pdf#page=28.

13Documentos à época da desativação do antigo lixão apontavam 400 pessoas vivendo precariamente no local; já relatos de trabalhadores indicavam a existência de quase 3000 catadores - cf. Nascimento, Thatiany (2018), “Lixão do Jangurussu inativo há 20 anos aguarda recuperação”, Diário do Nordeste, 10 de dezembro. Consultado a 10.12.2020, em https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/lixao-do-jangurussu-inativo-ha-20-anos-aguarda-recuperacao-1.2034956.

14No momento em que redijo as últimas linhas deste artigo, o governo do estado do Ceará, por meio da Secretaria da Proteção Social (SPS), lança, no bairro Jangurussu - no Residencial Habitacional José Euclides, uma obra do Projeto Minha Casa, Minha Vida do governo federal -, a primeira unidade do projeto Zona Viva com o intuito de ofertar “qualificação profissional, esporte e lazer para a comunidade” (prevendo-se a instalação de outras unidades em outros conjuntos habitacionais da cidade). A solenidade de lançamento contou com a participação do governador do estado, Elmano de Freitas, do secretário da Secretaria Nacional das Periferias, da secretária da SPS e da defensoria pública do estado do Ceará (Ascom SPS, 2023).

15Castro, Bruno de (2014), “Dois jovens são mortos em frente ao Cuca do Jangurussu”, O Povo, 26 de maio. Consultado a 06.02.2020, em https://www20.opovo.com.br/app/opovo/cotidiano/2014/05/26/noticiasjornalcotidiano,3256518/dois-jovens-sao-mortos-em-frente-ao-cuca-do-jangurussu.shtml. Os limites espaciais originais do projeto CUCA Jangurussu podem ser observados na imagem que acompanha esta matéria.

16Conforme esclarece em outro momento da entrevista, a interlocutora busca ressaltar em sua fala certa tensão em relação à imagem que segmentos acadêmicos e da comunicação social da cidade fazem do Jangurussu como “campo de concentração a céu aberto”.

17A chamada “Chacina da Sapiranga”, de 25 de dezembro de 2021, no bairro de mesmo nome, que vitimou cinco pessoas, feriu outras seis e resultou na prisão de doze suspeitos de participação no crime, revelou novas dobras do caráter rizomático do regime de acumulação de espaços e vidas residuais em trama ao longo de Fortaleza. Na ocasião, “dissidentes” do CV do bairro “rasgaram a camisa da facção” e passaram a se autodenominar “neutros” ou “massa”. A reportagem de Lucas Barbosa (2021) informou que testemunhas ouvidas no inquérito policial do caso relataram que os “neutros” da “Tropa da Fronteira”, “organização criminosa ao lado da comunidade do campo do Alecrim”, dias antes do massacre em uma festa no campo de futebol, “passaram a rondar pelos becos da comunidade atirando”. Na noite do crime, membros de outro grupo, a “Tropa do Alecrim”, foram mortos por permanecerem ligados ao CV.

18Escóssia, Fernanda da (2017), “O raio-X das mortes na capital mais perigosa do Brasil para adolescentes”, BBC Brasil, 6 de junho. Consultado a 20.11.2020, em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-40140922.

19Cruz, Maria Teresa (2019), “Bandido que mata menos, polícia que mata mais: a pacificação contraditória do Ceará”, A Ponte, 26 de abril. Consultado a 06.08.2020, em https://ponte.org/bandido-que-mata-menos-policia-que-mata-mais-a-pacificacao-contraditoria-do-ceara/.

20Thiago de Holanda in Borges, Messias (2021), “Geografia do crime: áreas de Fortaleza com piores IDHs concentram maior número de homicídios em 2020”, Diário do Nordeste, 11 de março. Consultado a 04.04.2021, em https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/seguranca/geografia-do-crime-areas-de-fortaleza-com-piores-idhs-concentram-maior-numero-de-homicidios-em-2020-1.3057840.

21Silva, Cláudio (2019), “Ceará: pensar as cidades para superar a violência”, Brasil de Fato, 4 de setembro. Consultado a 02.01.2020, em https://www.brasildefato.com.br/2019/09/04/ceara-pensar-as-cidades-para-superar-a-violencia.

Recebido: 11 de Janeiro de 2023; Aceito: 18 de Maio de 2023

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