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Revista Crítica de Ciências Sociais

On-line version ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.129 Coimbra Dec. 2022  Epub Dec 31, 2022

https://doi.org/10.4000/rccs.13942 

Dossier

Trabalho e nomadismo digital: práticas, sentidos e regulações. Uma introdução

Ana Paula Marques1  2  3  , Concetualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-9458-2915

Elísio Estanque4  5  , Concetualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0001-6992-3397

Esser Jorge Silva6  , Concetualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-7426-352X

Ricardo Colturato Festi7  , Concetualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0001-6360-2875

1 Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga, Portugal, amarques@ics.uminho.pt

2 Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho, Braga, Portugal

3 Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais - Polo Universidade do Minho, Braga, Portugal

4 Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal, estanque@fe.uc.pt

5 Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal

6 Instituto Politécnico do Cávado e do Ave Barcelos, Portugal, ejsilva@ipca.pt

7 Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil, ricardofesti@gmail.com


A questão laboral tem vindo a sofrer desde há décadas uma sucessão de etapas de transformação com impactos decisivos em toda a sociedade. Ao longo do século xx, o trabalho industrial e a racionalidade que procurou organizá-lo obedeceram a ritmos, conceções, modelos e dinâmicas socioeconómicas muito variados.

Os contributos trazidos pela ciência e técnica são, no passado como no presente, fundamentais para entendermos a centralidade do trabalho na sociedade e para captar as tendências em curso nas sociedades modernas. Pode dizer-se que a era da Revolução Industrial inaugurou esse processo, desde logo, com a inovação e o maquinismo a contribuírem para o arranque do movimento operário e do sindicalismo na Inglaterra, ou seja, foram os fatores determinantes da formação da classe operária, como mostrou Edward Palmer Thompson (1963). Assim, as visões mais idealizadas e utópicas de um maravilhoso mundo das máquinas foram, à partida, objeto de questionamento e controvérsia que perduram até hoje, nomeadamente em torno da questão de se saber se a inovação tecnológica é essencialmente um fator de destruição ou de recriação do emprego e das profissões. O “maravilhoso mundo” foi, como se sabe, objeto de crítica e de sátira na literatura e no cinema (como são exemplo as obras de Aldous Huxley, George Orwell, Fritz Lang ou Charlie Chaplin) ao mesmo tempo que a nova tecnocracia pretendia atribuir cientificidade ao sistema produtivo.

Mas enquanto se assistia ao sucesso do modelo de gestão desenvolvido por Frederick W. Taylor nos princípios do século xx, a dita organização científica do trabalho sacralizou-se sob a égide do produtivismo ocidental. Pode dizer-se que o regime taylorista-fordista se tornou dominante à escala internacional, mas foi no contexto europeu que - dada a herança social-democrata e a força da cultura operária - a dinâmica reformista e a abordagem sociopolítica mais frutificaram, inclusive no próprio tecido industrial. Na Europa, a institucionalização do conflito e as reformas desencadeadas no terreno socioeconómico reforçaram os mecanismos de diálogo social, sob a influência da social-democracia, estimulando o pluralismo político como eixo central da democracia moderna. Assim, os consensos sistémicos e organizacionais foram triunfantes durante décadas, sobretudo no pós-guerra, beneficiando do forte crescimento económico mas inspirados em valores de coesão e justiça social. Paradoxalmente, a concentração industrial promoveu a massificação e a alienação do trabalhador, mas ao mesmo tempo fez germinar a consciência coletiva e identidades de classe que erigiram o operariado em protagonista central do capitalismo moderno, não apenas em contextos revolucionários, mas também em períodos de estabilidade e harmonia social - como foi o caso dos trinta anos dourados na Europa ocidental. Por outro lado, deu-se uma crescente fragmentação da classe trabalhadora, com a implosão do operariado industrial e consequente crescimento do setor dos serviços, ao mesmo tempo que se assistiu a um lento mas progressivo “Adeus ao proletariado” conforme o diagnóstico premonitório de André Gorz (1980).

Se durante esse período se acreditou numa sociedade de bem-estar, regulada por um Estado providência eficaz e irreversível, o certo é que desde a década de 1970 se foram avolumando sucessivas crises, desdobradas em vários ciclos, até que, sobretudo após o Consenso de Washington, ocorreu uma mudança de paradigma na economia global que abriu caminho ao neoliberalismo e obrigou a inúmeros retrocessos nos direitos laborais, fazendo disparar a precariedade e a informalidade em todos os continentes. A inovação tecnológica e a revolução informática, com a imparável vertigem dos novos gadgets do mundo comunicacional e digital, são acompanhados de um poderoso marketing promotor da ideia de uma aldeia global e de um empreendedorismo que traria a riqueza e o sucesso garantido para todos - ou para os mais aptos a triunfar num mundo que se queria competitivo e sem freios.

O legado histórico dos sentidos do trabalho tem permitido atualizar na contemporaneidade traços estruturantes das relações sociais em que este se manifesta. Sem se pretender recuar nas origens do que significa trabalhar, assume-se que este tem variado enquanto experiência portadora de sentidos contraditórios: por um lado, positivos e de integração social ou, por outro, como fonte de sofrimento e penosidades crescentes. Da “centralidade” do trabalho como argumento presente nos debates académicos desde os finais do século xx, convocam-se posicionamentos fragmentados na atualidade, em articulação com a desregulação laboral e a disseminação de modelos produtivos flexíveis (cf. Dörre et al., 2015; Antunes, 2018; Huws, 2019). Na verdade, as profundas transformações ocorridas nas últimas décadas alteraram radicalmente o mundo laboral, marcado cada vez mais por infinitas fragmentações e vulnerabilidades, mas onde também alguns - poucos - alcançaram privilégios à sombra de uma disputa global em que a economia e os mercados foram muito além dos investimentos produtivos, inventando cadeias de valor com base na multiplicação de capitais e, muitas vezes, na especulação financeira. O capital a gerar capital tornou-se mais aliciante e auspicioso do que os projetos de investimento produtivo, enquanto a inovação no campo da informática e do digital ajudavam a suprimir milhões de empregos substituídos pelos novos equipamentos informáticos e pela automação. Daí a proliferação de novas divisões sociais, novas subclasses, a criação de fraturas abissais e desigualdades, entre incluídos e excluídos, ricos e pobres, homens e mulheres, Norte e Sul global e tudo isto vem ocorrendo em paralelo com um reforço do poder capitalista que opera na escala do planeta, como bem argumenta Klaus Dörre (2022), uma expropriação dos subalternos para os mais poderosos, praticamente sem resistência ou lutas sociais significativas. Perante a multiplicação e desdobramento de novos e mais frágeis vínculos laborais - com as subcontratações, o tráfico ilegal de mão de obra, as formas flexíveis de trabalho temporário cada vez mais associadas à expansão do campo digital, dos platform workers, da “uberização” e, em geral, das novas ocupações desreguladas e sem direitos - cresceu todo um exército de espoliados, segmentos vulneráveis da força de trabalho - ainda que em muitos casos com qualificações escolares avançadas, como ocorre na Europa - que, no entanto, parecem aceitar sem resposta a sua condição precária e servil. Nasceu e consolidou-se, como denunciou Ricardo Antunes (2018) uma nova “classe-que-vive-do-trabalho” onde grassa, sob diversas formas, a exploração e a precariedade, inclusive apoiadas nas plataformas digitais que aceleram e replicam a ausência de mecanismos de regulação da força de trabalho (Huws et al., 2017). Perante tal cenário, parece-nos difícil diagnosticar, na linha de Guy Standing (2013), que tais camadas constituem uma nova “classe em formação” (o precariado) a não ser que - muito voluntariamente - se imagine que este “exército de precários” algum dia dará origem a um ator coletivo no sentido dado por Thompson (1963), capaz de se organizar politicamente ou que possua algum esboço de identidade coletiva ou ainda uma “experiência ou consciência de classe”. Acresce que essa “classe-que-vive-do-trabalho”, que é constituída por uma miríade quase ilimitada de condições, formas contratuais, informalidades, tráfico de mão de obra, trabalho doméstico, nomadismo digital, etc., não pode deixar de fora o pequeno empreendedor, o microempresário, o homem do quiosque que trabalha arduamente com a sua família para poder viver do seu pequeno negócio.

É inquestionável que o final do milénio se revelou um espaço temporal de grandes transformações na relação do trabalho, a partir das quais se evocaram promessas para um admirável mundo novo no qual a tecnologia funcionaria como salvação. Saber de que modo seriam geridos os ganhos de tempo impostos pela hiperaceleração e pela progressiva substituição do humano pelas máquinas, apesar de central, permanece como resposta suspensa para as consequências das mudanças em curso. Dominada pela ideia de progresso como princípio da existência, o enunciar da substituição do homem pela máquina parecia colocar em causa o papel histórico e libertador que a tecnologia havia fornecido à condição humana (Arendt, 1958). Como hoje se constata, essa hesitação no debate antecipado abriu caminho às dinâmicas do capitalismo neoliberal no enfraquecimento da ação coletiva do trabalho.

O período de confinamento imposto em todo o mundo pela COVID-19 não só recuperou a noção de facto social total (Mauss, 1923-1924), como se constituiu num catalisador que acelerou os processos do trabalho, em transformação nos últimos 25 anos. A ausência de regulação e, em certas circunstâncias, de legislação - resultante da implementação e rápido avanço de novas formas de realização do trabalho assentes em plataformas digitais - constitui uma das marcas mais evidentes dos mecanismos de desvalor e proletarização da contemporaneidade.

É, pois, com este pano de fundo que o presente dossiê programou um conjunto de abordagens focadas nas transformações das condições de produção e reprodução dos atores sociais nos interstícios de uma “sociedade de risco digital” (Lupton, 2019) e de “pandemia da precarização” (Choonara et al., 2022) que a todos e a tudo chega.

Assim, acobertadas por uma permanente capacidade transmutável, estas reconfigurações encontraram, no processo de mudanças introduzidas pela tecnologia acelerada, oportunidade para a supressão de direitos laborais e a transferência dos riscos das organizações para os trabalhadores. Estes foram, entretanto, transformados numa condição híbrida, com a função dual de empresários e funcionários de si próprios, porém em posição social dominada não só pela instabilidade e insegurança, como destituídos de qualquer forma de poder sindical. Plataformização, “uberização”, entregadores de comida, transporte em veículo descaracterizado (TVDE) são expressões que caracterizam atividades laborais de uma imensa população trabalhadora, destituída de proteção e abandonada à sorte da lei da oferta e da procura de emprego, concebida segundo a “lei da selva”. No fundo, como explicam Hermes Costa, José Soeiro e Vamberto Miranda Filho no primeiro artigo deste dossiê, além de estarmos perante plataformas que desafiam e resistem à organização laboral, estas não só contrariam as formas de trabalho digno como usam a sua natureza flexível para “dissimularem os tipos de subordinação laboral que exercem e […] fugirem à regulação existente” - explicação que se aproxima da figuração camaleónica do capitalismo neoliberal. A investigação desenvolvida por estes autores, sobre transporte de passageiros e entrega de comida (através de crowdsourcing), mostra como estes operadores são apresentados como empresários ou trabalhadores independentes enquanto na verdade prestam trabalho vivo executado “fora da rede”, algoritmicamente monitorizado e, em consequência, com comportamentos controlados e avaliados.

A experiência da plataformização em Portugal, que sustenta a pesquisa anteriormente aludida, parece não divergir da do resto do mundo. Com base na experiência brasileira, Sidnei Machado e Michael Willian Conradt debatem as particularidades idiossincráticas das plataformas digitais perante um quadro legislativo, tanto a nível sindical como do direito laboral desconexo com as novas configurações do trabalho a que os trabalhadores estão submetidos. Numa e noutra geografia, assim como previsivelmente em todo o mundo, o rápido crescimento destas atividades laborais desreguladas evidencia a necessidade de novas formas de mobilização coletiva dos trabalhadores.

De acordo com Evelyn Lima e Marcos Vinícius Sales, que se baseiam em Michel Foucault, as alterações legislativas recentemente implementadas, geralmente atribuídas a um certo imperativo de modernização do trabalho, seguem uma perspetiva despossuída de racionalidade, acentuando no agir prático uma perspetiva ideológica neoliberal contrária aos fundamentos de racionalidade atribuídos a este princípio. O aumento de empresas e aplicativos digitais protegidos pela ordem jurídica e caracterizados por uma oferta de empregos temporários atribuindo uma “suposta vantagem de fazer seu próprio tempo de trabalho” descaracteriza e enfraquece a noção histórica de trabalho e trabalhador. No caso dos jovens brasileiros, em grande medida transformados em trabalhadores “uberizados”, além de estes serem afetados por fatores psicológicos negativos, sobra o eterno adiar do futuro a que se junta a impossibilidade de ascensão social.

Pela sua natureza híbrida e multifacetada - empresários e funcionários de si próprios - os trabalhadores da big economy estiveram em grande destaque durante a pandemia, com repercussões nos mercados de trabalho do mundo inteiro. Com o fomento do teletrabalho durante os períodos de confinamento, novas dimensões de estudo ganharam relevância. A transferência de local da atividade laboral para o espaço familiar recrudesceu e ampliou as perspetivas de estudo sobre conflito no trabalho. O entrecruzamento de interações e a impossibilidade de repartição de energias entre os papéis da relação trabalho-família constituem o ponto de partida para um estudo de natureza psicossocial, centrado no Sri Lanka e realizado durante a pandemia de COVID-19, por Vathsala Wickramasinghe e Isuri Nakandala. Os resultados convidam à reflexão sobre o papel futuro das organizações no provimento de condições favoráveis tendo em consideração as dimensões work-family conflict e family-work conflict.

Apesar de a relação entre as tecnologias digitais e o mundo do trabalho revelar que as transformações se mostram negativas para os trabalhadores, nada determina que estas ferramentas não possam ser usadas em benefício das atividades profissionais. A realidade demonstra que os trabalhadores estão dispostos a integrar estas ferramentas de forma a valorizarem as suas atividades laborais. Por outro lado, a predominância das tecnologias digitais, as suas consequências e formas de integração no quotidiano profissional, não só se alarga a vários domínios como convocam diferentes abordagens disciplinares. O estudo de José Genival Bezerra Ferreira, perspetivado a partir da Linguística Cognitiva e realizado através da análise fenomenologia junto de professores de várias universidades, mostra como a metáfora conceptual, além das “suas implicações no processo de ensino-aprendizagem” pode revelar-se uma pertinente estratégica “para dar sentido às novas formas de ensinar, por meio das tecnologias digitais”.

Revisto por Ana Sofia Veloso

Referências bibliográficas

Antunes, Ricardo (2018), O privilégio da servidão - O novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo: Boitempo. [ Links ]

Arendt, Hannah (1958), The Human Condition. Chicago: University of Chicago Press. [ Links ]

Choonara, Joseph; Murgia, Annalisa; Carmo, Renato do (2022), Faces of Precarity. Critical Approaches to Precarity: Work, Subjectivities and Movements. Bristol: Bristol University Press. [ Links ]

Dörre, Klaus (2022), Teorema da expropriação capitalista. São Paulo: Boitempo . Tradução de Cesar Mortari Barreira e Iasmin Goes. [ Links ]

Dörre, Klaus; Lessenich, Stephan; Rosa, Hartmut (2015), Sociology, Capitalism, Critique. London: Verso. [ Links ]

Gorz, André (1980), Adieux au prolétariat. Au de-là du socialisme. Paris: Galilé. [ Links ]

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Lupton, Deborah (2019), “Digital Risk Society”, in Adam Burgess; Alberto Alemanno; Jens O. Zinn (orgs.), The Routledge Handbook of Risk Studies. London: Routledge, 301-309. [ Links ]

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Mauss, Marcel (1923-1924), “Essai sur le don. Forme et raison de l’échange dans les sociétés primitives”, l’Année Sociologique, seconde série, tome I. [ Links ]

Thompson, Edward Palmer (1963), The Making of the English Working Class. New York: Vintage Books. [ Links ]

Recebido: 06 de Dezembro de 2022; Aceito: 14 de Dezembro de 2022

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