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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.102 Coimbra dez. 2013

 

RECENSÃO

 

Didier Fassin (2013), Enforcing Order. An Ethnography of Urban Policing

 

Susana Durão*

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Brasil. ssbdurao@gmail.com

 

Didier Fassin (2013), Enforcing Order. An Ethnography of Urban Policing. Malden: Polity Press, 320 pp.

 

Disponível numa excelente tradução em língua inglesa da obraLa force de l’ordre: Une anthropologie de la police des quartiers (2011, Paris: Seuil), Enforcing Order é uma etnografia sobre brigadas anticrime nas banlieues parisienses nos anos 2000. O autor discute, com grande detalhe, como se conjuga um processo político, legal e policial que não só legitima como apoia e estimula os agentes a encabeçar policiamentos repressivos, ineficazes e contraprodutivos. A tese central é que tais unidades não servem para manter a ordem pública mas para garantir a manutenção da ordem social, através de rotinas e interações subjetivas: uma economia moral e emocional que passa por humilhação, raiva e vingança.

O autor defende que nos anos 1990, em França, foi dilatado um modelo de segregação espacial de migrantes e minorias étnicas em complexos habitacionais afastados dos centros urbanos. Enquanto isso, foi sendo constituído um braço armado da política – as brigadas – com uma iconografia, fardamento e tecnologias especiais. Embora de reputação mista, estas ampliaram a margem de discricionariedade para agir com brutalidade apenas nesses lugares e com determinadas parcelas da população (jovens de classes populares, maioritariamente oriundos da África do Norte e Subsariana). Privilegiando o caso francês, o autor não esconde a ambição de fornecer um retrato global sobre o policiamento em curso nas periferias e nos designados bairros de realojamento social.

O livro respeita o modelo da boa monografia clássica. Primeiro, baseia-se em uma pesquisa de campo longa pelos meandros da atividade quotidiana das brigadas. Segundo, evidencia como as categorias são local e interativamente constituídas através de uma análise que não se deixa subsumir na tentação hermenêutica. Terceiro, é uma monografia que foca evidências sociológicas, embora sublinhe arranjos subjetivos que conduzem a padrões de entendimento do agir policial. Quarto, discute com a literatura relevante (maioritariamente em língua inglesa) mas oferecendo o olhar crítico de um antropólogo francês. Quinto, há afinação entre descrições fenomenológicas e inteligibilidade dos dados. Sexto, embora particularizando, o autor desvia-se habilmente da crença na intencionalidade individual, promovida na ideia de cultura policial, preferindo analisar a atmosfera política e policial.

Se a desigualdade social é objetiva, a injustiça é subjetiva. O aforismo teórico rege a etnografia que vamos ler. Nos capítulos introdutórios e finais Fassin mobiliza a sua biografia, bem como ambiguidades do discurso académico, para lidar com uma questão epistémica: o relevo de subjetividades e emoções nos recursos morais acionados interativamente. No capítulo “Situação”, Fassin faz equivaler a relação dominante entre polícias e jovens das banlieues – jovens a quem os polícias chamam “filhos da puta” e “selvagens” – a uma “situação colonial”. O presente retém traços de um passado com o qual deixou de existir vínculo formal. Imagens e retóricas associam o trabalho policial a uma guerra contra inimigos, vincando nos polícias exterioridade e aversão, tão sociológicas quanto morais. O policiamento passa por demonstrar, em situação, quem está em controlo. No capítulo “Quotidiano” o autor disseca o efeito perverso da “cultura dos resultados” em rotinas marcadas pelo tédio e pela frustração. Em vez de objetivos e eficácia, a divisão moral do trabalho baseia-se em princípios ideológicos, onde agentes “fazem” lei, por entre intervalos das leis da droga e da imigração, em busca de presas fáceis. Em “Interações” vemos as paragens e revistas, já antes denunciadas por autores como discriminatórias, serem acionadas sem base em suspeita. Práticas de subjugação seletiva de jovens migrantes geram momentos de tensão, vergonha e humilhação: é a rotina mortificante para quem fica refém da repetição contínua da experiência apenas por residir nos bairros. Jogos verbais e shows trágico-cómicos ajudam à interiorização de posições sociais, afastando do Estado, e mesmo da política, parte substancial da população.

Em “Violência” fica evidente que as brigadas são parte do problema das periferias, não da solução. Descrevendo um caso excecional e tíbio de penalização da ação violenta de polícias, Fassin recusa limites normativos da definição sociológica. É insuficiente mimetizar critérios da administração policial e judicial que reduzem abuso à força física com consequências identificáveis (agressões, morte). Para o autor, violência é interação que afeta a dignidade individual, não apenas corpo e carne; está enraizada e não vista porque é moral. A violência banaliza-se em seu arsenal retórico, invisibiliza-se a partir do uso de categorias legais que ofuscam práticas, como “resistência com agressão aos agentes da autoridade”. Engolir a frustração e a raiva é parte integrante da violência quotidiana exercida sobre jovens migrantes que, por experiência, conhecem os custos da denúncia. A análise adensa-se no capítulo “Discriminação”, onde Fassin não acua mediante as complexidades do problema. O autor evidencia deslizes e dinâmicas cruzadas entre discriminação, por um lado, e racismo, por outro; a racialização instrumental e a discriminatória/seletiva. Considera as práticas coletivas, não apenas imputáveis a indivíduos; fala em racismo institucional. O habitus dominante nas brigadas é racista e discriminatório porque fruto de décadas de políticas de concentração e segregação urbana de migrantes pobres e populações minoritárias.

Os últimos capítulos do livro são particularmente inovadores e recuperam dimensões trabalhadas pelo autor em outras obras. Em “Política” não lemos sobre formas abstratas ou modelos de governo, mas antes as afiliações políticas de polícias que aderem a ideologias de extrema-direita em França e a movimentos paramilitares. Impressiona a liberdade e tolerância em relação à exposição de símbolos xenófobos no espaço público das delegacias, por contraste com a total intolerância de simbologias de resistência juvenis nas ruas dos bairros. Com base empírica, Fassin retoma a tensão teórica entre a perspetiva marxista da instrumentalização governamental/elitista das polícias e a proposta weberiana da insularidade funcional-burocrática. Conclui que ambas – instrumentalização e insularidade – se alimentam em uma circularidade codependente. A organização policial torna-se autónoma ao tornar sua a responsabilidade sobre o que lhe é imposto. Depois dos motins nas banlieues, em 2005, os profissionais passam a apresentar-se, pública e mediaticamente, como vítimas vulneráveis; reclamam o direito a sofrer mesmo quando diminuem os indicadores de violência física sobre eles. Defendem ser vítimas de uma causa externa contra si (as periferias, a “selva”); traumatizados, como sujeitos normais, afetados por eventos anormais (causados pelos “filhos da puta”). Fassin argumenta: a vitimização é uma resposta à criminalização da sociedade, fermento de uma economia moral onde os agentes das brigadas são os protagonistas. No capítulo “Moralidade” Fassin analisa a melancolia e o desconforto dos agentes perante os fracos resultados das suas intervenções e o anseio de substituírem a sua justiça à dos juízes. A radicalização do discurso público contribui para produzir e legitimar um ethos policial que gera hostilidade no mundo social e exige mais medidas punitivas. Esta é uma ordem emocional que apoia formas de ressentimento moral e gera humilhação. Fassin fornece exemplos que mostram como nas brigadas a norma é a insensibilidade e a compaixão desviante, embora atente para variações individuais éticas possíveis. Concluindo, com “Democracia”, é discutido o preço a pagar em termos de cidadania.

Ao lado de Steve Herbert (Policing Space. Territoriality and Los Angeles Police Department, 1997) e de Andreas Glaeser (Divided in Unity. Identity, Germany, and the Berlin Police, 2000), Fassin veio refrescar os estudos policiais. Mas a leitura da obra não esgota o que a antropologia tem a dizer sobre polícia e justiça em vários lugares do mundo. Enforcing Order é sobre um tema central: efeitos morais das deturpações do poder. Falta integrar, nas nossas etnografias, o peso de pressões sociais pelo restauro de autoridades morais policiais, tanto quanto políticas. Fassin escreve sobre operacionais e comissários das brigadas anticrime. É igualmente importante detalhar o trabalho e as consequências da pedagogização de oficiais superiores no anseio de “democratizar a partir de cima”. O próprio autor não esconde o otimismo com que ouviu um comissário revelar impasses morais e apreciar a leitura de Foucault. Que usos terão estes saberes na prática profissional e na história? Por fim, esta é uma etnografia sobre a perversa economia moral de polícias treinados para interagir com pessoas e lugares que perspetivam como inimigos que devem subjugar. Em policiamentos orientados para cidadãos, tendo de lidar com vítimas de terceiros (como no caso das violências de género ou conjugais) outras configurações morais, baseadas em impotências e recuo no poder, podem ser vislumbradas.

 

NOTAS

* É professora de Antropologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Brasil. É investigadora associada no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Tem estudado dinâmicas do Estado, burocracias da segurança, circulação de pessoas, conhecimentos e modelos policiais em Portugal e no Brasil.

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