SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.39 número1Hipercolesterolemia de difícil controlo: caso clínicoUma fratura femoral atípica: relato de caso índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.39 no.1 Lisboa fev. 2023  Epub 30-Mar-2023

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v39i1.13479 

Relatos de caso

A tuberculose esquecida: um relato de caso

The forgotten tuberculosis: a case report

M. Francisca Amorim1 
http://orcid.org/0000-0003-0963-3683

João Nunes Sousa1 

1. USF Oceanos, ULS Matosinhos. Matosinhos, Portugal.


Resumo

Introdução:

A articulação entre os cuidados de saúde primários e secundários e os Centros de Diagnóstico Pneumológico reveste-se de particular importância na gestão de uma doença insidiosa e com grande impacto na saúde pública como a tuberculose. O presente caso destaca o papel do médico de família na articulação de cuidados e a importância desta para a identificação e orientação de um possível quadro de tuberculose.

Descrição do caso:

Adolescente do sexo feminino, 16 anos de idade, com antecedentes de tiroidite autoimune sob levotiroxina, anemia ferropénica sob suplementação e perturbação da ansiedade. Recorre a consulta com a médica de família em 2019 por adenomegalia cervical com duas semanas de evolução, sem sinais de alarme, tendo sido prescrito anti-inflamatório. Referenciação a consulta de cirurgia pediátrica de um hospital central, por indicação do atendimento pediátrico urgente do hospital de referência, por persistência da adenomegalia após tratamento antibiótico empírico e estudo analítico normal. Realizada biópsia aspirativa cinco meses depois, com alta da consulta por ausência de malignidade, sem outras informações relevantes. Observada em contexto de urgência no hospital de referência, seis meses depois, por adenomegalias cervicais de novo, tendo sido feito alerta pela médica de família após deteção de isolamento de Mycobacterium tuberculosis em biópsia ganglionar. Consequente seguimento no Centro de Diagnóstico Pneumológico por tuberculose ganglionar e pulmonar, tendo sido submetida a exérese ganglionar e encontrando-se sob tratamento antibacilar, com evolução clínica favorável.

Comentário:

A tuberculose constitui um particular desafio clínico pela diversidade de apresentações. Este caso demonstra a complexidade da gestão destes doentes e a importância da criação de alertas em caso de resultado micobacteriológico positivo. O papel do médico de família, dado ser frequentemente o primeiro contacto do doente com os cuidados de saúde e a ponte com os restantes serviços, acarreta uma importante responsabilidade na identificação destes doentes e na prevenção da cadeia de transmissão.

Palavras-chave: Tuberculose; Linfadenopatia; Cuidados de saúde primários; Relato de caso

Abstract

Introduction:

The articulation between primary care and secondary care and the Pulmonology Diagnostic Centers is particularly important in the management of an insidious disease with a great impact on public health such as tuberculosis. The present case highlights the role of the family doctor in the articulation of care and its importance in the identification and guidance of a possible tuberculosis condition.

Case description:

Female adolescent, 16 years old, with a history of autoimmune thyroiditis under levothyroxine, iron deficiency anemia under supplementation, and anxiety disorder. Refers to a consultation with the family doctor in 2019 due to a cervical adenomegaly with two weeks of evolution, without warning signs, and an anti-inflammatory was prescribed. Referral to pediatric surgery consultation at a central hospital through urgent pediatric care at the referral hospital, due to persistent adenomegaly after empirical antibiotic treatment and normal analytical study. An aspiration biopsy was performed five months later, with discharge from the consultation due to the absence of malignancy, with no other relevant information. Observed in an emergency context at the referral hospital, six months later, due to new cervical adenomegaly, an alert was made by the family doctor after the detection of isolation of Mycobacterium tuberculosis in a lymph node biopsy performed at the central hospital. Consequent follow-up at the Pneumological Diagnosis Center for lymph node and pulmonary tuberculosis, having undergone lymph node excision and under anti-bacillary treatment, with a favorable clinical outcome.

Comment:

Tuberculosis is a particular clinical challenge due to the diversity of presentations. This case demonstrates the complexity of managing these patients and the importance of creating alerts in case of a positive mycobacteriological result. The role of the family doctor, as it is often the patient's first contact with healthcare and the bridge to other services, entails an important responsibility in identifying these patients and preventing the chain of transmission.

Keywords: Tuberculosis; Lymphadenopathy; Primary health care; Case report

Introdução

A tuberculose, causada pelo Mycobacterium tuberculosis ou bacilo de Koch, permanece como uma das principais causas infeciosas de morte em adultos em todo o mundo. Apesar do atingimento pulmonar constituir uma percentagem significativa dos casos, outros órgãos podem ser atingidos, em simultâneo ou de forma isolada (tuberculose extrapulmonar), com sintomatologia diversa associada. Em Matosinhos, as taxas de notificação e incidência de tuberculose, em 2019, foram superiores às taxas nacionais.1

A articulação adequada e eficiente entre os cuidados de saúde primários e secundários e os Centros de Diagnóstico Pneumológico reveste-se de particular importância na gestão de uma doença insidiosa e com grande impacto na saúde pública como a tuberculose. A gestão eficiente dos cuidados de saúde e a comunicação entre os vários profissionais envolvidos são essenciais para a minimização do erro clínico e para o diagnóstico e tratamento precoces. 2

O presente caso destaca o papel do médico de família na articulação de cuidados e a importância desta para a identificação e orientação de um possível quadro de tuberculose.

Descrição do caso

Adolescente do sexo feminino, 16 anos de idade, natural e residente em Matosinhos, a frequentar o 10.o ano de escolaridade. Inserida numa família do tipo alargada, de classe social média-baixa. Antecedentes pessoais de tiroidite autoimune sob levotiroxina 0,075 mg/dia, anemia ferropénica (por menorragias) sob complexo hidróxido férrico-polimaltose 357 mg/5 mL e amigdalectomia aos quatro anos. Seguimento em consulta hospitalar de pediatria por dificuldades de aprendizagem associadas a cognição média baixa, baixa autoestima e perturbação da ansiedade. Menarca aos 14 anos, sob anticoncecional oral combinado desde 2019. Sem alergias medicamentosas conhecidas. Programa Nacional de Vacinação atualizado, com duas doses de VHA e uma dose de BCG como vacina extraplano.

Em maio/2019 recorre a uma consulta não programada na sua Unidade de Saúde Familiar (USF) por cervicalgia com cerca de duas semanas de evolução (Figura 1). Ao exame objetivo apresentava uma adenomegalia cervical bilateral, orofaringe ruborizada e cerúmen obstrutivo bilateral, sem outras alterações. Foi requisitada uma ecografia dirigida à região da tumefação e prescrito anti-inflamatório oral. Duas semanas depois, a mãe recorre a consulta aberta com a médica de família para entregar resultado de ecografia e refere que a filha apresenta apenas rinorreia. A ecografia cervical descreve alterações tiroideias sugestivas de tireoidite e “nas cadeias jugulo-digástricas, particularmente numerosos e de maiores dimensões à esquerda, múltiplos gânglios linfáticos aumentados de tamanho, de contornos regulares, alguns deles com critérios de adenopatia (que atingem 21 mm de maior eixo à direita e 23 mm à esquerda), e que evidenciam ecoestrutura hipoecogénica, minimamente heterogénea, demonstrando-se, nos maiores, vascularização interna sem que claramente se objetive a presença de um hilo adiposo ecogénico central. Alguns deles evidenciam morfologia arredondada, particularmente à esquerda. Poderão estar em relação com processo inflamatório/infecioso, contudo, outra etiologia não pode ser descartada, atendendo às características. Sugere-se valorização clínica e reavaliação ecográfica a muito curto prazo, sendo de ponderar citologia aspirativa da adenomegalia palpável à esquerda”. É requisitado estudo analítico alargado, com marcadores inflamatórios e serológicos dos principais vírus, e prescrita antibioterapia com amoxicilina + ácido clavulânico 875 mg + 125 mg, a qual cumpriu.

Figura 1 Linha cronológica do caso. Legenda: CDP = Centro de Diagnóstico Pneumológico; HR = Isoniazida e rifampicina; HRZE = Isoniazida, rifampicina, pirazinamida, etambutol; MTC = Mycobacterium tuberculosis complex; TC = Tomografia computorizada; USF = Unidade de Saúde Familiar. 

Em junho recorre novamente a consulta não programada, com a médica de família, para conhecer resultado de estudo analítico: velocidade de sedimentação de 29 mm/hr, proteína C reativa de 12,40 mg/dL, anemia normocítica e normocrómica sobreponível aos valores prévios, com Hb 11,1 g/dL. Objetiva-se persistência da adenopatia cervical posterior ao músculo esternocleidomastoideu, quase occipital, com cerca de 3 cm de maior diâmetro, dolorosa à palpação, sem edema ou rubor associados. É contactado o Atendimento Pediátrico Referenciado (APR) do hospital de referência, que deu indicação de ser referenciada a consulta de cirurgia pediátrica de um hospital central.

É observada em outubro/2019, em consulta de cirurgia pediátrica do hospital central, tendo sido objetivada a adenomegalia e realizada punção aspirativa com agulha fina (PAAF) no final do mês, que mostrou “processo granulomatoso necrosante de etiologia não esclarecida”. Teve alta da consulta em novembro, após constatação de ausência de malignidade e perceção de diminuição do tamanho da adenomegalia à palpação, sem outras indicações de relevo no relatório da alta.

Em abril/2020 é enviada ao APR do hospital de referência, pela consulta de endocrinologia, por noção de aparecimento de nova adenomegalia cervical à esquerda com aumento dimensional desde há três semanas. Referia rinorreia com secreções sanguinolentas, negando febre, anorexia, hipersudorese ou conviventes com sintomatologia respiratória. No exame objetivo são descritas duas tumefações cervicais à esquerda com cerca de 2,5 cm e 1,5 cm de maior diâmetro e uma à direita com 0,5 cm de maior diâmetro, moles, não aderentes, ligeiramente dolorosas ao toque, bem delimitadas. A médica de família, ao rever o processo clínico do hospital central, deteta exame micobacteriológico não descrito pelo cirurgião pediátrico e pedido aquando da biópsia ganglionar, que refere isolamento de Mycobacterium tuberculosis complex (MTC) sensível a isoniazida, pirazinamida, estreptomicina, etambutol e rifampicina. O médico do APR é informado, requisita ecografia cervical, com descrição de várias adenomegalias cervicais com liquefação, à esquerda, e radiografia torácica, com hipotransparência heterogénea periférica no campo pulmonar superior direito (Figura 2). É requisitada colheita de amostras de secreções respiratórias e contactado o Centro de Diagnóstico Pneumológico (CDP) de referência para início de tratamento e seguimento.

Figura 2 Radiografia do tórax (abril/2020): hipotransparência heterogénea periférica no campo pulmonar superior direito (seta). 

A tomografia computorizada (TC) do tórax (Figura 3), requisitada em consulta no CDP, evidenciou múltiplas bronquiectasias de paredes espessadas e lesão cavitada subpleural com 18 mm de maior diâmetro e nível hidroaéreo no lobo superior direito, a traduzir um aparente processo de patologia bacilar ativa, com isolamento de MTC em amostras de expectoração. Negava antecedentes pessoais conhecidos de tuberculose, mas com antecedentes familiares (mãe em criança), sem referência conhecida a outros contactos ou exposição. Negava consumo de tabaco, álcool ou drogas. Sem estados de imunossupressão conhecidos ou medicação imunossupressora em curso.

Figura 3 Tomografia computorizada do tórax (julho/2020): lesão cavitada subpleural com 18 mm de maior diâmetro e nível hidroaéreo no lobo superior direito (estrela). 

Assim, após diagnóstico de tuberculose ganglionar e pulmonar, inicia, em maio/2020, terapêutica antibacilar quádrupla HRZE (isoniazida, rifampicina, pirazinamida, etambutol) em regime de toma observada diretamente. Transição para esquema HR com isoniazida e rifampicina em agosto/2020, com duração total de tratamento prevista de 12 meses. Não foi identificado nenhum caso de tuberculose bacilífera ou latente nos familiares e conviventes.

É registada melhoria clínica e radiológica pulmonar e negativação do exame cultural às seis semanas de tratamento, mas com aumento dimensional das adenomegalias, com drenagem esporádica, constatado em TC, em fevereiro/2021 (Figura 4) em relação a setembro/2020, com maior componente necrótico. Após observação no CDP de outra área de influência em abril/2021, é solicitada observação por cirurgia pediátrica para realização de biópsia com exame anatomopatológico e pesquisa de micobactérias. A excisão de adenomegalia cervical direita ocorre em abril/2021, com isolamento de MTC.

Figura 4 Tomografia computorizada cervical (fevereiro/2021), com identificação e medição (a verde) das adenomegalias cervicais. 

Mantém seguimento em consulta em ambos os CDP, com acompanhamento na médica de família, com evolução favorável.

Comentário

A tuberculose extrapulmonar é mais frequente em imunodeprimidos e crianças e constitui um particular desafio clínico pela diversidade de órgãos envolvidos e formas de apresentação. A tuberculose ganglionar é a apresentação extrapulmonar mais frequente, caracterizando-se por adenomegalias sólidas, duras, mais frequentemente cervicais, inicialmente indolores e sem sinais inflamatórios cutâneos e com crescimento gradual, havendo envolvimento pulmonar em 41% dos casos. Como relatado no presente caso, as adenomegalias podem surgir 12 meses antes do diagnóstico, o qual é efetuado através de biopsia ganglionar aspirativa/excisional e ecografia de partes moles. A radiografia do tórax deve ser realizada se se suspeitar de tuberculose pulmonar. 3-8

O tratamento com antibacilares preconizado é o esquema HRZE durante dois meses, seguido de HR durante quatro meses. A resposta ao tratamento é caracteristicamente lenta, podendo este ser prolongado e as adenomegalias aumentarem durante ou após a interrupção do tratamento. 6 Como sucedeu neste caso, a exérese ganglionar terapêutica está apenas indicada em situações excecionais, não dispensando o tratamento com antibacilares. 3-8

O presente caso demonstra algumas dificuldades que surgem na gestão de doentes com queixas inespecíficas e com avaliação por múltiplos profissionais, sem coordenação entre os mesmos ou organização temporal do quadro clínico. Poderia ser relevante a criação de um alerta informático em caso de resultado micobacteriológico positivo ou um sistema mais eficaz de articulação dos cuidados de saúde secundários com o médico de família do utente, sobretudo nos casos em que o hospital não é o de referência, sendo, portanto, mais “distante”.

A articulação entre os cuidados de saúde primários, os cuidados de saúde secundários e os CDP permitiu a melhor orientação desta adolescente e o início do seguimento e tratamento adequados. A médica de família teve, neste caso, um papel preponderante no diagnóstico, ao acompanhar a evolução do processo da utente e ao confirmar o resultado das amostras em curso, não descritas anteriormente, informando atempadamente os serviços hospitalares.

O papel do médico de família, dado ser frequentemente o primeiro contacto do doente com os cuidados de saúde e a ponte com as restantes especialidades e serviços, 2 acarreta uma importante responsabilidade na identificação destes doentes e na prevenção da cadeia de transmissão.

Agradecimentos

Os autores expressam o seu agradecimento à Dra. Susana Ribeira.

Contributo dos autores

Conceptualização, MFA; investigação, MFA e JNS; redação, revisão e validação do manuscrito final, MFA e JNS.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Financiamento

O trabalho relatado neste manuscrito não foi objeto de qualquer tipo de financiamento.

Referências bibliográficas

1. Direção-Geral da Saúde. Relatório de vigilância e monitorização da tuberculose em Portugal: dados definitivos 2018/2019. Lisboa: DGS; 2020. ISBN 9789726753148 [ Links ]

2. European Academy of Teachers in General Practice. The European definition of general practice/family medicine: short version. WONCA Europe; 2011. Available from: https://www.woncaeurope.org/file/3b13bee8-5891-455e-a4cb-a670d7bfdca2/Definition%20EURACTshort%20version%20revised%202011.pdfLinks ]

3. Antunes A, Carvalho AC, Gonçalves AF, Ferreira B, Ribeiro C, Santos CL, et al. Manual de tuberculose e micobactérias não tuberculosas: recomendações. Lisboa: Direcção-Geral da Saúde; 2020. ISBN 9789726753087 [ Links ]

4. Silva SF, Costa N, Lança IB, Seves G, Cavaco A, Gaspar M. Tuberculose infantil: a importância do rastreio. Rev Port Med Geral Fam. 2013;29(3):180-4. [ Links ]

5. Pereira L, Marques L, Castro C, Vaz LG. Diagnóstico e tratamento da tuberculose em pediatria. Rev Port Med Geral Fam. 2003;19(6):643-6. [ Links ]

6. Yu SN, Cho OH, Park KH, Jung J, Kim YK, Lee JY, et al. Late paradoxical lymph node enlargement during and after anti-tuberculosis treatment in non-HIV-infected patients. Int J Tuberc Lung Dis. 2015;19(11):1388-94. [ Links ]

7. World Health Organization. Guidance for national tuberculosis programmes on the management of tuberculosis in children. 2nd ed. Geneva: WHO; 2014. ISBN 9789241548748 [ Links ]

8. World Health Organization. WHO guidelines on tuberculosis infection prevention and control: 2019 update;. Geneva: WHO; 2019. Available from: https://apps.who.int/iris/handle/10665/311259 [ Links ]

Recebido: 03 de Março de 2022; Aceito: 02 de Outubro de 2022

Endereço para correspondência M. Francisca Amorim E-mail: mfranciscamorim@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons