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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.38 no.4 Lisboa Aug. 2022  Epub Aug 31, 2022

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v38i4.13318 

Relatos de caso

Quando não é só uma gripe: relato de caso de uma miosite viral

When it is more than flu: case report of a viral myositis

Miguel Maciel1  , Conceptualização, metodologia, investigação, redação do draft original, revisão, edição, validação do texto final, visualização
http://orcid.org/0000-0003-3453-6578

Francisca Andrade1  , Revisão, edição, validação do texto final, visualização

Carolina Castro2  , Investigação, visualização

Ana Macedo1  , Supervisão

1. Unidade de Saúde Familiar Novo Sentido, ACeS Porto Oriental. Porto, Portugal.

2. Hospital Pedro Hispano. Matosinhos, Portugal.


Resumo

Introdução:

As infeções das vias aéreas superiores (IVAS) em crianças são dos motivos mais comuns de consulta aguda nos cuidados de saúde primários e habitualmente têm bom prognóstico. No entanto, em certos quadros clínicos, as complicações ou doenças menos comuns, como a miosite, devem ser consideradas.

Descrição do caso:

Uma criança de oito anos de idade, previamente saudável, foi observada pela primeira vez no centro de saúde em novembro de 2019 por tosse e febre com dois dias de evolução, sem alterações de relevo no exame objetivo - foi assumida uma IVAS e prescrito tratamento com antipirético e reforço da hidratação oral. O doente volta três dias depois à unidade com manutenção do quadro clínico, marcha anormal e dor na região posterior da perna, na região dos músculos gastrocnemius bilateralmente. Ao exame objetivo e neurológico, além da alteração da marcha, não apresentava outros achados. Pela evolução suspeita do quadro foi referenciado para o serviço de urgência pediátrico hospitalar para avaliação. Não foram encontradas outras alterações ao exame objetivo. Foi submetido a estudo analítico, que revelou uma creatina cinase (CK) de 7110U/L, mioglobina de 1935ng/ml e aspartato aminotransferase (AST) de 191U/L, sem alteração de função renal. Perante resultados sugestivos de miosite foi decidido internamento para fluidoterapia intravenosa. Em regime de internamento foi realizado aspirado nasofaríngeo para cultura e virologia, que testou positivo para vírus Influenza B; foi, assim, assumido o diagnóstico de miosite vírica por Influenza B. O doente recebeu tratamento com oseltamivir durante quatro dias em regime de internamento, com boa resposta. Teve alta hospitalar após estes quatro dias, assintomático e com indicação para repouso e reforço da hidratação oral.

Comentário:

Devemos estar atentos a sintomas menos comuns em casos de presumíveis de IVAS e aumentar a acessibilidade dos cuidados de saúde primários para reavaliações de certos casos.

Palavras-chave: Influenza; Gripe; Miosite

Abstract

Background:

Upper respiratory tract infections are one of the most common motives for acute consultation in primary health care in children. Regardless, less common diseases, such as myositis, should be considered.

Content:

Our eight-year-old male was observed at our primary health care unit in November 2019 with a two-day evolving fever and cough with no findings in the physical examination - a viral upper respiratory tract infection was assumed and treatment with antipyretic drugs and oral hydration was indicated. Three days later he returned with the maintenance of his clinical status, regardless of treatment, with abnormal gait and bilateral pain in the gastrocnemius muscle. The neurological and osteoarticular physical examination had no abnormalities. Nevertheless, he was referred to the pediatric emergency department for further evaluation. The emergency department had no additional findings in the physical examination. Blood tests were performed, which revealed a creatine kinase of 7110U/L, myoglobin of 1935ng/mL, and aspartate aminotransferase of 191U/L, with no changes in renal function. He was then admitted for intravenous fluid therapy with suspected myositis. The nasopharyngeal aspirate culture was performed and tested positive for Influenza B virus - Influenza B myositis was the presumed diagnosis. Treatment with oseltamivir was done for four days with a good response. He was discharged after four days with an indication to increase oral hydration and rest.

Conclusion:

One should look for rarer symptoms in flu-like presentations and increase accessibility for patient re-evaluation.

Keywords: Influenza; Flu; Myositis

Introdução

A miosite aguda benigna da infância é uma doença muscular rara que acompanha infeções virais agudas e é observada principalmente em crianças em idade escolar.1 Tem uma incidência estimada, durante a época de gripe, de 2,6 casos por 100.000 crianças. 2

Trata-se de uma doença que é reportada sobretudo durante as epidemias de Influenza A e B, por estar relacionada com estes vírus. 3-4 Ocorre normalmente 24 a 48h depois da resolução dos sintomas respiratórios superiores iniciais (febre, tosse, coriza) e é habitualmente autolimitada. A queixa principal é a mialgia, que surge mais frequentemente na região do dorso e membros inferiores (sendo comum dor nos gastrocnemius), podendo dificultar a marcha. 1 Apresenta-se tipicamente com um quadro de uma criança que se recusa a andar por dor súbita nesta região, associada a marcha em pontas por dor à tentativa de dorsiflexão dos pés. 5-6

Existe elevação das enzimas de lesão muscular até 20 a 30 vezes superior ao normal, embora a rabdomiólise seja rara. O diagnóstico faz-se pela clínica, associada a elevação da CK e estudo virológico de secreções. (11) O quadro tipicamente resolve-se entre três a dez dias, com necessidade apenas de tratamento de suporte. 7,11

O presente relato de caso pretende alertar para este diagnóstico, pouco frequente nos cuidados de saúde primários, cuja clínica súbita leva a preocupação dos pais, devendo ser corretamente avaliada e referenciada de forma atempada. Apesar de situações de rabdomiólise serem raras beneficiam de urgente avaliação e estudo analítico para adequado tratamento.

Descrição do caso

Criança do sexo masculino, oito anos, de nacionalidade portuguesa, raça caucasiana, a frequentar o 3º ano escolar com bons resultados. Inserido numa família nuclear na fase IV do ciclo familiar de Duvall. Vive com os pais numa habitação com boas condições higieno-sanitárias e tem um cão desparasitado e vacinado.

Como antecedentes pessoais apresenta: parto pré-termo de 34+5 semanas, com necessidade de internamento no serviço de neonatologia por baixo peso e icterícia; seguimento em consulta de cardiologia até aos quatro anos por sopro cardíaco, que resolveu espontaneamente; adenoidectomia e amigdalectomia bilateral em 2019. Desde a alta de internamento no período neonatal apresenta desenvolvimento estato-ponderal harmonioso e adequado à idade. Sob alimentação diversificada e sem intolerâncias. Sem antecedentes familiares de relevo. Tem o Plano Nacional de Vacinação atualizado, incluindo vacina BCG e duas doses da vacina contra o rotavírus.

Recorre à consulta aberta em novembro de 2019 por febre com pico máximo de 38,8 °C, que cede ao paracetamol, e tosse com dois dias de evolução, sem diarreia, vómitos ou outra sintomatologia. Ao exame objetivo não apresentava alterações de relevo. Foi medicado com paracetamol para controlo da temperatura e reforço de hidratação oral.

Volta à consulta aberta três dias depois por manutenção do quadro de febre, com cerca de quatro picos diários, que cediam ao paracetamol, tosse com acessos emetizantes. Associadamente refere desenvolvimento de dor na região do músculo gastrocnemius bilateralmente, associada a dificuldade na marcha.

À observação objetiva-se orofaringe ruborizada, dor à palpação dos gastrocnemius bilateralmente e marcha em pontas com incapacidade total de colocar a planta do pé no chão.

Foi referenciado para avaliação no serviço de urgência hospitalar pediátrico, que confirmou a história clínica e exame objetivo, motivando a realização de estudo analítico. Este revelou elevação de AST 191U/L [N: 5-34U/L], CK 7110U/L [N: 30-200U/L], mioglobina 1935ng/mL [N<146,9ng/mL], função renal e ionograma sem alterações (Na+ 139mEq/L, K+ 3,8mEq/L, CL- 101mEq/L). Realizou ainda sedimento urinário, que não apresentou alterações. Por suspeita de miosite vírica foi proposto internamento para fluidoterapia intravenosa e manutenção de cuidados, o qual foi aceite pelo tutor da criança.

No primeiro dia de internamento foi identificado o vírus Influenza B no estudo virológico de aspirado nasofaríngeo e iniciada terapia antivírica com oseltamivir, que cumpriu durante quatro dias. Determinou-se, assim, o diagnóstico de miosite vírica por Influenza B.

Teve alta por melhoria clínica e analítica (AST 58U/L, CK 784U/L, mioglobina 27,6ng/mL à data de alta) após quatro dias de internamento, com indicação para reforço da hidratação oral e repouso no domicílio.

Comentário

A infeção pelo vírus Influenza pode despoletar o atingimento de diversos órgãos e sistemas. Na maioria dos casos apresenta-se como um quadro ligeiro, mas pode levar a complicações como pneumonia, encefalite, miocardite e miosite. Nestes casos é importante um diagnóstico rápido e uma abordagem urgente das complicações. 8 Com este relato de caso pretende-se alertar para potenciais complicações que possam advir de um diagnóstico vulgar de infeção da gripe sazonal.

A miosite vírica pode ser compreendida como uma complicação rara da gripe sazonal que, apesar de maioritariamente benigna na idade escolar, pode complicar ainda com rabdomiólise e subsequente lesão ou falência renal.9 Na maioria dos casos, a miosite vírica surge com mialgias ligeiras que, por conferir uma clínica mais frustre, pode não sugerir o diagnóstico. 11

Como evidenciado no caso relatado, o prognóstico de miosite por Influenza B é bom e não existe risco de evolução para miosite crónica, como na maioria das miosites víricas. As exceções de organismos potencialmente causadores de miosite crónica são o Echovirus e o vírus da imunodeficiência humana. 10

Nos cuidados de saúde primários, o médico de família deve estar alerta para a sintomatologia adicional suspeita e menos habitual de quadros víricos, para efetuar uma referenciação e investigação atempada e adequada. Sabe-se que a rabdomiólise pode ocorrer até 14 dias após início dos sintomas respiratórios superiores, devendo este ser um diagnóstico à cabeça sempre que existir história de sintomas respiratórios ligeiros nas duas semanas anteriores. 11

Realça-se o benefício de aumentar a acessibilidade na reavaliação de certos casos com sintomatologia respiratória aguda, minimizando complicações e eventuais sequelas que possam advir de quadros víricos com atingimento de outros órgãos. Ainda mais num período de pandemia, em que o atendimento de doentes respiratórios é realizado com um elevado número de condicionantes, é importante definir meios para feedback e reavaliação dos doentes. Como meios de feedback sugerem-se, como alternativas: a) agendamento de consulta telefónica para o médico de família para reavaliação do quadro após um a três dias; b) criação de contactos de email ou telefónico específicos para a necessidade de reavaliação de situações agudas, fornecidos em consultas que o médico entende ser necessário - a resposta a estes contactos poderia ser feita em horário específico com escala médica rotativa; c) elaboração de documento de autorização de consulta extra horário, a ser fornecido pelo médico em situações específicas e a ser efetivado de acordo com os sinais de alarme explicitados; d) alocação de uma a duas vagas de consulta aberta/agudos por dia e por unidade para situações de reavaliação de quadros agudos previamente observados num dos recursos de consulta do ACeS.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Referências bibliográficas

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3. Mall S, Buchholz U, Tibussek D, Jurke A, der Heiden MA, Diedrich S, et al. A large outbreak of influenza B-associated benign acute childhood myositis in Germany, 2007/2008. Pediatr Infect Dis J. 2011;30(8):e142-6. [ Links ]

4. Koliou M, Hadjiloizou S, Ourani S, Demosthenous A, Hadjidemetriou A. A case of benign acute childhood myositis associated with influenza A (H1n1) virus infection. Clin Microbiol Infect. 2010;16(2):193-5. [ Links ]

5. Middleton PJ, Alexander RM, Szymanski MT. Severe myositis during recovery from influenza. Lancet. 1970;2(7672):533-5. [ Links ]

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9. Agyeman P, Duppenthaler A, Heininger U, Aebi C. Influenza-associated myositis in children. Infection. 2004;32(4):199-203. [ Links ]

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11. Bhai S, Naddaf E, Dimachkie MM. Overview of viral myositis. UpToDate; 2019 [updated 2022 May 31]. Available from: https://www.uptodate.com/contents/overview-of-viral-myositisLinks ]

Recebido: 31 de Julho de 2021; Aceito: 28 de Novembro de 2021

Endereço para correspondência Miguel Maciel E-mail: miguelaamaciel@gmail.com

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