A tecnologia é uma área em constante desenvolvimento e com grande potencial, tendo conquistado progressivamente o seu lugar no nosso dia-a-dia, funcionando como facilitador nas mais variadas vertentes da vida diária, desde a comunicação ao acesso fácil e rápido a grande quantidade de informação praticamente ilimitada. Também a medicina beneficia da expansão da indústria tecnológica, não só pelo acesso privilegiado e facilitado a informação científica de qualidade, mas também na área da investigação clínica, desde a fisiopatologia a novas abordagens diagnósticas terapêuticas, entre outras.
Com o advento dos smartwatches e com a sua utilização crescente, a tecnologia passou a fazer parte integrante da atividade física, permitindo monitorizar o exercício realizado em termos de intensidade, duração e de gasto energético, por exemplo. Mais recentemente, estes dispositivos foram equipados com sensores que permitem também a monitorização da frequência e ritmo cardíacos, abrindo-se a janela para a sua utilização na deteção de alterações do ritmo cardíaco, nomeadamente a fibrilação auricular (FA). Esta é a arritmia mais frequente, sendo uma importante causa de morbimortalidade, sobretudo devido ao risco de acidente vascular cerebral (AVC) que lhe está associado.
De acordo com os dados do estudo Safira, a prevalência global de FA na população portuguesa com mais de 65 anos é de 9%. Existem vários fatores de risco que lhe estão associados, sendo a idade e a hipertensão arterial os fatores com maior peso no desenvolvimento desta entidade. Dada a forte associação entre o desenvolvimento de FA e a idade é expectável que a sua incidência e prevalência aumente nas próximas décadas, devido ao envelhecimento populacional, o que reforça a necessidade de desenvolvimento de estratégias que permitam a deteção precoce desta arritmia, principalmente episódios em indivíduos assintomáticos e durante fenómenos paroxísticos, permitindo a intervenção atempada de modo a prevenir a ocorrência de eventos tromboembólicos e suas consequências. (1
A FA pode ser classificada em vários tipos; quando se trata de uma FA paroxística, a sua natureza pode condicionar o atraso no diagnóstico de FA através do eletrocardiograma (ECG). Neste contexto, Perez e seus colaboradores desenvolveram o Apple Heart Study, cujos resultados foram publicados em novembro de 2019. Este é um estudo de coorte prospetivo, open-label, constituído por um único grupo de participantes, selecionado de acordo com critérios de elegibilidade definidos, de entre os quais se destaca a idade igual ou superior a 22 anos e a posse de iPhone ou Apple Watch. (2
O objetivo primário do estudo era a notificação após a deteção de pulso irregular durante um período superior a 30 segundos, confirmado posteriormente com um patch de monitorização eletrocardiográfica, enviado para o domicílio dos indivíduos notificados, que deveria ser utilizado durante sete dias, com o intuito de confirmar a existência de FA. (2
Num universo de 419.927 participantes, apenas 24.626 (5,9%) apresentavam idade superior ou igual a 65 anos. Da totalidade dos participantes receberam a notificação de pulso irregular 2.161 (0,52%) participantes, sendo que 3,2% apresentavam uma idade igual ou superior a 65 anos. (2
Apenas 0,16% dos participantes com idade inferior a 40 anos foram notificados, sendo que neste grupo a taxa de concordância com confirmação de FA em monitorização prolongada foi mais baixa (18%) do que nos restantes, traduzindo a história natural da FA, com o predomínio de FA paroxística nos estádios iniciais da doença. A taxa global de deteção de FA na monitorização prolongada de doentes que receberam notificação foi de 34%, sendo clinicamente relevante pois 89% tinham períodos em FA superiores a 60 minutos, condicionando uma carga arrítmica importante. (2
Os resultados têm uma validade ambígua. Apesar da probabilidade de notificação de pulso irregular ser baixa, e de apenas 33% dos participantes notificados utilizarem o patch, os dados obtidos foram concordantes com a presença de FA em cerca de 84% dos casos que usaram o patch de monitorização e o devolveram. Sete participantes notificados (0,8%) e 321 não notificados (0,1%) receberam o diagnóstico de AVC durante o período do estudo. (2
Foram assinaladas várias limitações pelos autores, desde o perfil dos participantes com destaque para a idade, o facto de serem exclusivamente utilizadores de iPhone e Apple Watch e à perda de follow-up. Os autores referem que o estudo não apresentava como objetivo avaliar a sensibilidade, especificidade ou falsos positivos do algoritmo nem avaliá-lo como método de rastreio de FA, pelo que apenas participantes com probabilidade de elevada carga arrítmica foram notificados. No entanto, concluíram que os dados obtidos corroboravam a hipótese de o algoritmo detetar corretamente FA e permitir notificar os participantes de forma a ser efetuado estudo adicional. A ausência de notificação não exclui a possibilidade de diagnóstico de FA. (2
Após a publicação do Apple Heart Study foram várias as críticas e comentários aos seus resultados. Segundo Campion e seus colaboradores, a importância do estudo não está na validade do algoritmo per si, mas no que este estudo representa: a evolução tecnológica em que um smartwatch tem a capacidade de detetar arritmias que justifiquem avaliação e tratamento médico precoce. (3)-(4
Atualmente, a aplicação Apple Watch ECG está aprovada pela US Food and Drugs Administration (FDA) e classificada como dispositivo de classe II apenas na deteção de FA. Não está recomendada na deteção de outras arritmias. (5
Na atual temática da pandemia que abalou o mundo, a utilização dos smartwatches na monitorização do ritmo cardíaco mostrou a sua relevância ao proporcionar a possibilidade do acompanhamento à distância. Perante a inexistência de um tratamento eficaz para a COVID-19, foram várias as terapêuticas propostas e utilizadas, numa perspetiva de controlo sintomático, curativo ou com impacto prognóstico na morbimortalidade. Destas, a associação de hidroxicloroquina e azitromicina foi uma das terapêuticas mais utilizadas, mas também uma das que mais preocupações gerou entre os clínicos ao considerar complicações graves que podem advir da sua utilização, nomeadamente o potencial arritmogénico caracterizado pelo prolongamento do intervalo QT. Deste modo, foram estabelecidas estratégias de monitorização do intervalo QT. (6
Neste contexto, Strik e seus colaboradores desenvolveram um estudo que tinha por objetivo a validação da Apple Watch ECG na medição do intervalo QT, com recurso a posições alternativas à derivação DI (punho esquerdo), nomeadamente no tornozelo esquerdo e na grelha costal esquerda. (6
Foi avaliada uma população de 100 indivíduos com ECG em ritmo sinusal, com predomínio do sexo masculino (59%), com uma média de idades de 67±7 anos, sendo que 35% apresentava diagnóstico prévio de patologia cardíaca. Oito indivíduos foram identificados com sendo de alto risco, todos através do smartwatch. O estudo concluiu que a aplicação permitiu a monitorização adequada do intervalo QT sempre que o smartwatch era utilizado no punho esquerdo em 85% dos indivíduos e em 94% dos casos quando utilizadas as posições alternativas. No geral concluiu que facilitava a monitorização à distância do intervalo QT, inclusive em doentes de ambulatório em quarentena sob terapêuticas com potencial para prolongamento do intervalo QT. (6
Os estudos anteriormente referidos revelam a relação estreita entre a evolução tecnológica e o avanço da medicina. O desenvolvimento de dispositivos ou aplicações úteis, práticas e facilmente integradas no quotidiano podem aliar fitness, saúde e bem-estar com a monitorização do ritmo cardíaco, permitindo a deteção precoce de anomalias significativas que necessitem de eventual investigação e tratamento modificador de prognóstico adicional.
No entanto, a sua utilidade enquanto método de rastreio de FA é controversa, dada a sua especificidade e sensibilidade limitadas, bem como a sua custo-efetividade.
Refira-se ainda a problemática associada ao desenvolvimento tecnológico, e apontada por alguns autores: o sobrediagnóstico nos indivíduos notificados após deteção de pulso irregular apenas no smartwatch, conduzindo a uma marcha diagnóstica exaustiva, sobretratamento e ansiedade nos utilizadores. (4
Apesar de a sua utilização apresentar algumas limitações como, por exemplo, o custo elevado e a adesão de grupos etários mais jovens, a tendência é para o aumento progressivo do número de utilizadores. No entanto, importa referir que os dispositivos e aplicações não substituem a avaliação clínica nem exames complementares de diagnóstico e, acima de tudo, não permitem efetuar diagnósticos. Podem, sim, alertar precocemente o clínico para determinado problema de saúde que, por sua vez, deve conduzir a uma investigação adicional, eventual diagnóstico e orientação clínica.