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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.37 no.5 Lisboa Oct. 2021  Epub Oct 31, 2021

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v37i5.13232 

Opinião e debate

Idosos autónomos: uma reflexão ética

Autonomous elderly: an ethical discussion

Rita Gaspar Marques1 
http://orcid.org/0000-0002-6515-0531

Pedro Augusto Simões1  2 

Bárbara Santa Rosa3  4 

Margarida Silvestre3  5 

1 USF Pulsar, ACeS Baixo Mondego. Coimbra, Portugal.

2 Departamento de Ciências Médicas, Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade da Beira Interior. Covilhã, Portugal.

3 Instituto de Bioética, Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal.

4 Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses - Delegação do Norte. Porto, Portugal.

5 Serviço de Medicina da Reprodução, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Coimbra, Portugal.


Resumo

O aumento atual da população idosa obriga a uma adequação constante dos cuidados de saúde e da atuação médica. As particularidades desta população levantam várias questões éticas que têm de ser discutidas num âmbito alargado, para melhorar a prestação de cuidados e facilitar a atuação médica aquando do surgimento de dilemas éticos. Neste contexto, uma das questões éticas mais frequentes prende-se com o respeito pela autonomia dos idosos, já que muitas vezes se associa a idade avançada à perda de capacidades físicas e psíquicas e, portanto, de autonomia. Porém, a idade, por si só, não determina a incapacidade de tomar decisões nem a vulnerabilidade. Ou seja, embora o contexto e as circunstâncias que rodeiam os idosos possam influenciar negativamente ou mesmo limitar a sua autonomia, o médico não pode assumir uma atitude paternalista e decidir pelo doente. O médico deve fazer um esforço especial para analisar e compreender a capacidade de decisão do doente e todo o contexto que o envolve, nomeadamente as suas vulnerabilidades, experiência de doença, perspetivas de vida e influência da família. Assim, o médico poderá utilizar este conhecimento para promover a capacidade de decisão do idoso, de modo a garantir autonomia, equidade e justiça para estes doentes. Além disso, promover a autonomia potencia também a participação ativa na comunidade, envelhecimento ativo e qualidade de vida. O médico de família tem um papel privilegiado e preponderante nesta tarefa. A sua proximidade, a possibilidade de contactos frequentes e prolongados no tempo e o conhecimento que tem das suas vidas, perspetivas e valores permitem a estes profissionais fomentar e promover a autonomia dos idosos.

Palavras-chave: Idosos; Decisões; Autonomia; Ética; Vulnerabilidade; Cuidados de saúde primários

Abstract

The current increase of the elderly population requires a constant adjustment of health care and in medical acting. The particularities of this population raise several ethical issues that must be discussed in a wide scope, to improve health care and facilitate medical acting towards ethical dilemmas. One of the most frequent ethical issues concerns respect for the autonomy of the elderly since old age is often associated with loss of physical and mental health and, therefore, autonomy. However, age alone does not determine the inability to make decisions, nor vulnerability. Although the context and circumstances surrounding the elderly may influence or even limit their autonomy, the physician cannot assume a paternalistic attitude and decide for the patient. The physician should make a special effort to analyse and understand the patient's decision-making capacity and the context that involves him, namely his vulnerabilities, illness experience, life perspectives, and family influence. Thus, the physician can use this knowledge to promote the decision-making capacity of the elderly, in order to guarantee autonomy, fairness, and justice for these patients. In addition, by promoting autonomy, participation in the community, active aging and quality of life are also enhanced. General practitioners have a privileged and predominant role in this task. Their proximity, the possibility of frequent and prolonged contacts over time, and the knowledge they have about their lives, perspectives, and values, allow these professionals to foster and promote the autonomy of the elderly.

Keywords: Aged; Decision making; Personal autonomy; Ethics; Vulnerable populations; Primary health care

Introdução

Compreender um problema real

Oenvelhecimento da população mundial, principalmente nos países ocidentais, é uma realidade já bem estabelecida. O desenvolvimento científico e tecnológico na saúde, a par com a melhoria das condições socioeconómicas das famílias em geral e um conjunto de outras circunstâncias bem estudadas na literatura, permitiram o aumento da esperança média de vida, com o consequente aumento da população idosa. Na medicina, esta situação desencadeou uma intensa investigação e desenvolvimento do conhecimento para adequação das atitudes clínicas e prestação de melhores cuidados de saúde que a especificidade desta faixa etária exige.

O idoso é, no seu todo, um ser complexo, cheio de particularidades clínicas, pessoais e sociais. Por esta razão, surgem inevitavelmente questões éticas associadas à prestação de cuidados de saúde: benefício versus prejuízo de determinadas terapêuticas, suspensão de tratamentos, obstinação terapêutica, respeito pela autonomia e privacidade, entre outras. Pelas peculiaridades e universalidade desta população, a ética associada à medicina geriátrica deve ser cada vez mais explorada e requer que os profissionais adquiram competências de deliberação ética, de modo a permitir melhoria nos cuidados de saúde prestados, com consequente melhoria da qualidade de vida dos idosos.1

São a ética e a deontologia médicas que orientam a boa prática clínica; daí a necessidade de refletir sobre as questões que se colocam aos médicos no seu dia-a-dia. Estas discussões éticas não são meramente teóricas, exclusivas a filósofos ou eticistas. A reflexão ética faz parte e é necessária na prática clínica diária dos médicos. Não é possível assumir uma prática médica, segundo as leges artis, sem questionar cada ação e sem analisar cada dia de trabalho. Assim, a ética e a sua discussão devem ser participadas por cada um, de modo a melhorar o ato médico e, principalmente, a auxiliar o médico a estar mais confortável na resolução de conflitos de valores e princípios.

Um dos temas éticos mais desenvolvido nas últimas décadas prende-se com o respeito pela autonomia do doente.1 A medicina deixou de ser exercida de forma paternalista, em que o médico decidia e tratava o doente segundo o que seria melhor para este, sem que o doente pudesse perguntar ou decidir sobre a própria saúde. Evolui-se desta relação vertical para uma relação horizontal, em que doente e médico estão no mesmo nível e as decisões são partilhadas. Nem sempre é fácil para o médico manter a relação terapêutica desta forma, pois os constrangimentos da prática diária, as particularidades de cada doente e alguns hábitos antigos podem dificultar o estabelecimento de uma relação não paternalista. Nos idosos, esta questão assume especial relevância pelas suas características particulares e complexidade assistencial. Consequentemente, os médicos assumem mais facilmente posturas paternalistas,2-5 o idoso deixa de compreender a sua saúde e a sua doença e deixa de tomar decisões para si próprio. Este é um problema significativo na prática médica diária. Se, por um lado, se motiva e promove o envelhecimento ativo, com desenvolvimento e manutenção da capacidade de participação ativa dos idosos na sociedade, por outro, verifica-se a facilidade com que o idoso fica entregue nas mãos do clínico ou da família, deixando de ter qualquer tipo de participação na sua saúde (Figura 1).4-6 Pelos motivos apresentados, é fundamental refletir e discutir as razões que motivam o deficiente respeito pela autonomia de doentes idosos e quais as possíveis soluções para este problema.

Figura 1 Autonomia dos idosos na saúde: um problema real! 

A medicina geral e familiar (MGF) tem um papel fundamental na discussão ética deste problema específico, pois encontra-se numa posição privilegiada de proximidade e acompanhamento da maioria dos idosos e das suas famílias. O médico de MGF deve compreender a fase de vida do idoso, na qual é essencial apoiar, proteger e promover a sua dignidade, aliviar o sofrimento, evitar danos não necessários e obstinação terapêutica.5 Isto só é possível numa relação terapêutica de confiança. É aqui que o problema do respeito pela autonomia dos idosos e o processo de decisão são passíveis de serem explorados e solucionados. O médico de família deve motivar a relação de decisão partilhada com o idoso, promovendo a sua autonomia e vontade de participar nas questões relativas à própria saúde.

Considerando os pontos elencados, os objetivos deste trabalho são analisar o conceito de autonomia, explorar os seus fatores determinantes e as suas limitações no idoso, fazer a discussão ética do exercício da autonomia por idosos e, finalmente, fornecer ferramentas de reflexão e decisão ética para a aplicação destes conceitos nos cuidados de saúde primários.

Discussão

Autonomia: um direito a ser respeitado

A autonomia é um direito dos doentes e permite-lhes tomar decisões relativas à sua saúde: aceitar ou recusar a realização de exames complementares de diagnóstico e propostas terapêuticas, de forma livre e esclarecida. Uma decisão só é autónoma quando é feita com intencionalidade, conhecimento, compreensão e capacidade de ponderação da situação clínica e possíveis tratamentos, e ausência de coerção ou influência indevida.1-3,7-9 Já o respeito pela autonomia tem de ser analisado de uma perspetiva diferente, pois é uma obrigação do médico. Faz parte dos quatro princípios éticos para a atuação médica propostos por Beauchamp e Childress: beneficência, não maleficência, respeito pela autonomia e justiça.1,8 No entanto, o respeito pela autonomia não se resume ao ato de “deixar o doente decidir”. Este princípio pressupõe promover a autonomia e facilitar a tomada de decisões, avaliando a capacidade de decidir, fornecendo informações corretas e compreensíveis e confirmando o entendimento da situação pelo doente. Este princípio também envolve uma função ativa por parte do médico.3-4,7

O respeito pela autonomia é um processo que pode ser complexo, principalmente quando entra em conflito com aquilo que são as perspetivas do próprio médico. Porém, permitir a tomada de decisões informadas e autónomas é uma forma de desenvolver a relação terapêutica, capacitar o doente e promover a co-responsabilidade entre os dois membros desta relação.10

Respeitar a autonomia parece ser particularmente difícil ao médico quando o doente é idoso. Isto porque persistem algumas ideias erradas de que os idosos não são capazes de decidir por si, não compreendem a informação, são vulneráveis, não querem decidir, etc.1-2,7 Esta situação é ainda mais vincada quando o idoso já se encontra num estado de fragilidade, com défices cognitivos ou até com dependência física. É um facto que estes são preconceitos relativos à idade que podem prejudicar a relação médico-doente e, consequentemente, o bem-estar do idoso. Na verdade, a idade, por si só, não determina incapacidade, quer física quer cognitiva. Além disso, o grupo dos idosos é muito heterogéneo em todas as vertentes: patologias e prognóstico, capacidade funcional, competência de decisão, valores e preferências. Isto obriga a uma avaliação e a uma valorização integrais e individualizadas.3,5,11

Determinantes e limitações da autonomia nos idosos

De uma forma geral, os idosos são considerados um grupo vulnerável, o que tem um impacto negativo significativo na relação médico-doente. A vulnerabilidade de um doente é determinada por um conjunto de fatores e circunstâncias que tornam o indivíduo mais suscetível a tomar decisões que poderão ser prejudiciais para si, embora este julgue serem a melhor opção. Considerar que um indivíduo é vulnerável não significa assumir que este perdeu a capacidade de tomar decisões, mas que o contexto onde toma essa decisão poderá limitar a sua autonomia.12-13 Desta forma, isoladamente, a idade não pode ser vista como um determinante de vulnerabilidade.1,11

Porém, a vulnerabilidade pode advir de outros fatores presentes na vida do idoso.3 Na maioria das vezes, as decisões são feitas em contexto de doença, frequentemente com uma perspetiva de longevidade diminuída, perda de controlo sobre a doença e sobre si próprio e incertezas relativamente ao futuro.10 Além disso, existem ainda fatores internos que podem afetar a decisão: experiências de vida, acontecimentos prévios marcantes, ideias e crenças sobre o mundo, emoções, etc. Contudo, sabe-se que não é possível tomar uma decisão completamente livre destas influências pessoais,7 mas é necessário que o médico as compreenda, as explore e perceba se têm tal importância que podem levar o idoso a tomar uma decisão potencialmente perigosa para si.

Deve ainda ser pesquisada e analisada a interferência do contexto cultural, social e familiar. O próprio idoso pode considerar que, pela boa vontade dos profissionais e da família, eles decidirão o que será melhor para a sua saúde.6-7,10 No fundo, entregam-se nas mãos dos outros que lhes querem bem. Estes idosos mais facilmente aceitarão qualquer tratamento proposto, nomeadamente em contexto de investigação, sem compreender os verdadeiros riscos,7 pelo que os profissionais não devem, de forma alguma, servir-se desta fragilidade. Quando o idoso assume esta postura é fulcral que o profissional identifique a responsabilidade que é colocada sobre si4,6 e procure atuar de forma cuidadosa, de modo a não influenciar totalmente a decisão do doente.

A avaliação da dinâmica familiar é também essencial. A família pode ser um apoio importante na relação terapêutica e tomada de decisões, promovendo o bem-estar do doente, a confiança e segurança nas decisões tomadas e a própria autonomia.10,14 Ao mesmo tempo, a família pode ter uma influência contrária na decisão do idoso, pois este pode decidir apenas no sentido de não prejudicar a família, de não ser um “fardo” para os que o rodeiam.7,15 E esta ideia, isoladamente, pode ter consequências graves aquando das decisões em saúde. Assim, o médico de MGF, com o conhecimento que tem sobre o doente e a família, pode perceber qual o impacto que a família tem nas decisões do idoso; porém, como médico de família, tem também que avaliar qual o peso que esta responsabilidade tem na família e se esta está preparada para tal função, pois só assim será possível uma verdadeira promoção da autonomia do doente.14-15 Não se pode esquecer que este envolvimento da família deve ser discutido previamente com o doente e que este deve dar autorização para a partilha de informações confidenciais.

A presença de algumas patologias, quer sejam tratáveis ou não, podem potenciar a vulnerabilidade dos idosos e limitar a sua autonomia. Destacam-se as lesões cerebrais consequentes de traumatismos ou doenças cerebrovasculares, alterações metabólicas ou circulatórias, demência senil, doença de Alzheimer e patologia psiquiátrica.1 Como qualquer outro indivíduo, o idoso toma decisões sobre a própria saúde de acordo com os seus valores, crenças, medos, esperanças e contexto familiar, social e cultural. Idealmente, esta capacidade de tomar decisões deve permitir a ponderação de riscos e benefícios das diferentes opções, de acordo com todas as influências previamente referidas. Conclui-se também que a idade, por si só, não determina a incapacidade de decisão e/ou vulnerabilidade do indivíduo, mas que esta deve motivar uma especial atenção ao contexto que envolve o idoso quando este tem de decidir.1,4,14 Daí que seja função do médico identificar e compreender o contexto que rodeia o idoso e de que forma este o pode tornar vulnerável, para que o médico possa promover a sua autonomia de acordo com esse conhecimento. O que importa não é conhecer as vulnerabilidades e fragilidades dos idosos, mas o modo como as compreendemos e as usamos, para garantir igualdade, autonomia e justiça para os mesmos.1,4,14-15

Avaliação da capacidade de autonomia nos idosos

Existem várias situações na prática clínica que podem dificultar o respeito pela autonomia do doente. É necessário efetuar sempre a avaliação cuidada e individual de cada caso, prevenindo, assim, erros de avaliação da capacidade de autonomia.

Em idosos cuja capacidade de decisão está muito diminuída ou mesmo ausente, o respeito pela autonomia toma contornos diferentes dos habituais. Em situações de alteração da consciência (coma, obnubilação, etc.), alterações severas do comportamento e doenças mentais graves e avançadas (e.g., esquizofrenia e doença de Alzheimer), o doente não está capaz de tomar uma decisão, seja de forma permanente ou temporária.7 Nestes casos deve ser designado um familiar ou outro representante legal que tomará as decisões pelo doente. Ainda assim, o médico mantém um papel importante nestas decisões, ajudando o representante e procurando continuar a respeitar aquilo que seria a expectável decisão do doente. Assim, o médico deve preocupar-se em compreender o doente que tem perante si, os seus valores, o seu contexto pessoal, familiar, social, económico e cultural. Portanto, deve manter um diálogo constante e aberto com o representante, para que se tomem as decisões que visam o melhor interesse do doente.1,3 Poderá até existir uma Diretiva Antecipada de Vontade (DAV) ou um Procurador de Cuidados de Saúde nomeado previamente pelo doente. O médico deve consultar o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV) e respeitar o que o doente decidiu autonomamente. Se existir conflito entre a DAV e a posição do Procurador de Cuidados de Saúde prevalece a primeira, segundo a Lei n.º 25/2012.16

Noutras situações, a atuação do médico pode ainda ser mais complexa. É o caso dos idosos com alterações cognitivas ligeiras, patologia mental e física ou que, aparentemente, não têm doenças que possam interferir com a capacidade de decisão. É então mais difícil perceber se a autonomia do idoso está verdadeiramente limitada e se existe incapacidade para decidir, ou se a condição clínica do doente influencia, mas não limita a sua autonomia. Existem várias ferramentas de determinação da capacidade de decisão de um doente, como, por exemplo, MacArthur Competence Assessment Tool for Treatment (MacCAT-T), Hopemont Capacity Assessment Interview (HCAI) e Capacity to Consent to Treatment Instrument (CCTI). Estes instrumentos de avaliação podem ser utilizados em MGF, sendo o MacCAT-T aquele que tem maior validade científica e maior aplicabilidade perante diferentes situações. Embora possam ser úteis na prática clínica, a maioria destes instrumentos tem utilização e aplicação complexas e morosas, exigem aprendizagem específica e apresentam uma variabilidade inter-utilizador significativa. Além disso, frequentemente subestimam os fatores emocionais e os valores do doente.7,14 Assim sendo, a avaliação da capacidade de decisão poderá ser feita de forma informal em contexto de consulta, sendo, porém, necessário apreciarem-se as seguintes competências: i) compreensão da informação sobre diagnóstico, tratamentos disponíveis e possíveis consequências; ii) apreciação das várias opções disponíveis e integração destas na situação pessoal e individual; iii) ponderação entre as opções; e iv) expressão e transmissão da decisão.4,7,14

Ao avaliar a capacidade de decisão existem outras dimensões da saúde que devem ser consideradas nos idosos: a perspetiva pessoal de qualidade de vida (capacidades, atividades e relações); as crenças em relação à longevidade versus qualidade de vida; e as preferências em relação ao próprio papel na tomada de decisão (preferência por autonomia total, decisão partilhada ou indiferença nas decisões).3-4,7,17 Mais importante do que utilizar os diferentes instrumentos será avaliar cuidadosamente estes aspetos e garantir que não existem outros fatores que possam comprometer a decisão. Se após esta avaliação cuidada o médico entender que o doente é capaz de decidir autonomamente, o passo seguinte será compreender as vulnerabilidades apresentadas pelo doente e a forma de as colmatar ou atenuar, promovendo a sua autonomia.

Promover a autonomia

A promoção da autonomia do doente é um processo complexo e que apenas pode existir numa relação terapêutica de confiança, em que as decisões são partilhadas. Existem muitas formas de incentivar e ensinar o doente a tomar as suas próprias decisões, cabendo ao médico optar pelas formas mais adequadas para cada doente em concreto.3

Em primeiro lugar, o médico deve ter as competências e a experiência necessárias para cuidar de idosos. Isto inclui possuir conhecimentos de técnicas de comunicação adequadas, de modo a estabelecer uma relação terapêutica que permita “empoderar” o idoso, de forma a procurar o bem-estar do doente, respeitando a sua autonomia.3,5 Existem autores que apontam algumas características e atitudes que os médicos que cuidam de idosos devem possuir e aplicar: prudência, justiça, compromisso, lealdade, benevolência, paciência, veracidade, perseverança, humildade intelectual, autocontrolo, competência científica, empatia, fidelidade, etc.5 Consequentemente, deve existir formação específica em geriatria para quem cuida destes doentes, a qual deve incluir não só conteúdo técnico-científico, mas, tão ou mais importante do que isso, o treino de competências éticas e humanas para tratar destes doentes altamente vulneráveis.

É também fundamental que a própria comunicação e transmissão de informação ao doente sejam eficazes. O médico é responsável por fornecer toda a informação que considerar necessária. Esta deve ser dada de forma clara e precisa, com adequação da linguagem a cada doente em concreto, de forma que este a possa compreender. Depois, é necessário perguntar e confirmar se o doente entendeu verdadeiramente todos os aspetos importantes.1-2,15 De notar que, por vezes, em estado de choque ou negação, o doente poderá não perceber bem a informação transmitida. Para facilitar a transmissão de informação pode ainda optar-se por fornecer material escrito ou aconselhar websites informativos sobre os temas em questão, para que o idoso possa integrar melhor a informação verbal e, se desejar, partilhá-la com a família ou outros.14

A relação terapêutica deve ser fundada na confiança,10 no conhecimento das expectativas e necessidades dos doentes, na informação necessária e adequada, e ainda na confirmação de que o doente tenha apreendido essa mesma informação.4 A decisão partilhada assume, assim, particular importância, pois permite respeitar os valores e objetivos do doente e direcionar os cuidados para as suas necessidades e experiência de doença.1,17-18 É também neste contexto que o médico deve abordar quais os desejos e preferências para o futuro do doente, para que se estabeleçam planos e estratégias de atuação numa fase precoce. Poderá mesmo ser importante falar na DAV.5,15 Além disso, também se deverá perceber e até discutir com o idoso se o envolvimento familiar pode ou não ser um fator de promoção ou limitação da autonomia.2,4,10 Este tipo de relação terapêutica não só facilita a abordagem clínica do médico, mas também melhora os cuidados de saúde prestados ao idoso, promovendo a educação e a literacia do doente e da família, aliviando medos e ansiedades e melhorando o suporte emocional.15,18-19

Como anteriormente analisado, parte da dificuldade em tomar decisões pode advir de algumas patologias. Então, é necessário tratar e estabilizar essas mesmas doenças, nomeadamente as patologias mentais, como a ansiedade e a depressão.3

De uma forma mais alargada, poderão ainda ser implementadas medidas de sensibilização e educação de profissionais, doentes, família, administração de saúde e decisores políticos.2-3

Conclusão

É fundamental que as questões éticas sejam discutidas mais frequentemente, não só por profissionais de saúde, mas também no ensino pré-graduado nas várias áreas de formação em saúde. Isto facilitaria a atuação em situações de dilemas éticos na prestação de cuidados.

Os dilemas e a deliberação ética fazem parte do trabalho diário de qualquer médico de família. Enquanto a maioria das decisões pode ser fácil de tomar, existem situações complexas que colocam muitas dúvidas. Estas incertezas de atuação ética são uma causa importante de sobrecarga emocional dos médicos e de conflito com doentes. Por isso, a ética médica deve ser um tema a abordar em reuniões de serviço e formações clínicas, quer através de apresentações formais sobre o assunto quer através da reflexão, partilha e discussão de casos clínicos concretos. É, portanto, essencial que os serviços promovam esta aquisição de competências e criem espaços e tempos para o debate interpares.

As dificuldades do médico de MGF em respeitar a autonomia do idoso são frequentes, pois estes são doentes com particularidades clínicas, pessoais e sociais que exigem do médico especial esforço, dedicação e preparação científica e bioética adequadas. Habitualmente, os idosos são vulneráveis por todas as condições e contextos que os rodeiam e que podem influenciar ou limitar a sua autonomia. No entanto, o médico deve respeitar a sua autonomia e não pode assumir uma atitude paternalista por um suposto dever de proteção. É fundamental que conheça e compreenda os fatores de vulnerabilidade presentes e que seja capaz de analisar a vulnerabilidade e de que forma esta influencia a escolha do doente e como deve ser utilizada para promover e potenciar a sua autonomia. Depende, então, de o médico desenvolver uma relação terapêutica de confiança e baseada na decisão partilhada e numa comunicação eficaz. Também a família pode ter um papel importante na promoção da autonomia do idoso, se este assim o entender. Mais uma vez, a idade não é fator limitante de autonomia e, por isso, é necessário fazer uma avaliação cuidada e individual de cada idoso, da sua autonomia e das suas vulnerabilidades. O médico de família tem um papel privilegiado de proximidade e conhecimento do seu doente idoso, que lhe permite abordar de forma completa todas estas questões. Importa realçar que, ao promover a autonomia do idoso, está-se também a contribuir para o seu envolvimento na comunidade e envelhecimento ativo, que estão fortemente associados a uma melhoria da qualidade de vida.

Agradecimentos

Um agradecimento à turma do Curso de Especialização de Ética em Saúde, de 2020, da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, pelo empenho, motivação e pelas intensas discussões éticas.

Um agradecimento à minha orientadora de formação em MGF, Teresa Pascoal, e à Beatriz Silva, pelo apoio sempre presente, pelas críticas e, especialmente, pelo entusiasmo.

Conflito de interesses

Os autores declaram não ter quaisquer conflitos de interesse.

Financiamento

Os autores declaram não ter existido qualquer financiamento.

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Recebido: 22 de Abril de 2021; Aceito: 24 de Junho de 2021

Endereço para correspondência Rita Gaspar Marques E-mail: ritamarques10@hotmail.com

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