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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Print version ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.37 no.3 Lisboa June 2021  Epub June 30, 2021

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v37i3.12852 

Revisões

Opioides em ambulatório na dor não oncológica: uma revisão sobre os desafios da farmacologia no envelhecimento

Opioids in the ambulatory setting in non-oncological pain: a review about the challenges of pharmacology in aging

Hugo Ribeiro1  2 
http://orcid.org/0000-0001-6623-7420

João Rocha-Neves3  4 

Carla Lopes-Mota2  5 

Manuel Teixeira-Veríssimo6  7  8 

Marília Dourado8  9  10 

José Andrade4  11 

1 Médico especialista em Medicina Geral e Familiar. USF Barão do Corvo. Portugal.

2 Médico da Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos de Gaia. Portugal.

3 Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular, Centro Hospitalar e Universitário de S. João. Portugal.

4 Unidade de Anatomia, Departamento de Biomedicina, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Porto, Portugal.

5 Grupo de Estudos de Cuidados Paliativos, Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar. Lisboa, Portugal.

6 Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Coimbra, Portugal.

7 Unidade Curricular de Geriatria, Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal.

8 Institute for Clinical and Biomedical Research (iCBR), Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal.

9 Centro de Estudos e Desenvolvimento de Cuidados Continuados e Paliativos, Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal.

10 Unidade Curricular de Cuidados Paliativos e Terapêutica da Dor, Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal.

11 Center for Health Technology and Services Research, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Porto, Portugal.


Resumo

Objetivos:

Sistematizar e contribuir para o melhor conhecimento das características farmacocinéticas e farmacodinâmicas dos medicamentos opioides disponíveis em Portugal para o tratamento da dor não oncológica e, desta forma, contribuir para a escolha mais informada e adaptada ao doente, o que permitirá potenciar a eficiência, reduzindo a incidência de efeitos adversos.

Métodos:

Realização de uma revisão narrativa da bibliografia sobre esta temática, utilizando os termos Medical Subject Headings (MeSH) Analgesics, Opioid e Pharmacology, Clinical. Foram também utilizados os resumos das características do medicamento de todos os opioides disponíveis em Portugal, assim como as características farmacocinéticas e farmacodinâmicas destes medicamentos registadas no DrugBank.

Resultados:

Selecionados 22 artigos para leitura, dos quais 14 são revisões da literatura, quatro manuais de referência e quatro normas de orientação clínica, para além da utilização das bases de dados do INFARMED e do Drugbank. No envelhecimento há uma diminuição de cerca de 50% da taxa de filtração glomerular dos 40 até aos 70 anos, obrigando a reduções de dose e cuidados especiais na utilização de fármacos eliminados por esta via, sendo que no caso dos opioides os únicos que não têm eliminação renal são a hidromorfona e a buprenorfina. São igualmente mais frequentes a obesidade central e o aumento da α1-glicoproteína ácida, aumentando o volume de distribuição de fármacos lipossolúveis e de bases, como são os opioides, sendo que os únicos que não são lipossolúveis são a morfina e a hidromorfona. Relativamente ao metabolismo, para além de ocorrer uma diminuição do metabolismo de fase 1, a polifarmácia nos idosos é mais frequente, pelo que poderão ser preferencialmente escolhidos os opioides com metabolismo de fase 2, como o tapentadol, a hidromorfona e a morfina.

Conclusões:

O reconhecimento das características individuais de cada doente idoso, associado ao conhecimento da farmacologia básica de cada opioide disponível em Portugal, poderá garantir maior segurança e salvaguardar uma maior adesão à terapêutica.

Palavras-chave: Opioides; Geriatria; Dor crónica; Farmacologia

Abstract

Objectives:

Systematize and contribute to a better understanding of the pharmacokinetic and pharmacodynamic characteristics of opioid drugs available in Portugal for non-oncological pain and contribute to a more informed and adapted choice for the patient, which will enhance the efficiency and reduce the incidence of adverse effects.

Methods:

A narrative review of the bibliography on this theme was done using the terms Medical Subject Headings (MeSH) ‘Analgesics, Opioid’ and ‘Pharmacology, Clinical’. The Summary of Product Characteristics of all opioids available in Portugal was also used, as well as the pharmacokinetic and pharmacodynamic characteristics of these drugs registered in the DrugBank.

Results:

Twenty-two articles were selected for reading, of which 14 are literature reviews, four reference manuals, and four clinical guidelines, in addition to the use of INFARMED and DrugBank databases. In aging, there is a decrease of about 50% in the renal function from 40 to 70 years old, forcing dose reductions and special care in the use of drugs eliminated by this route. Hydromorphone and buprenorphine are the only opioids that don’t have renal elimination. Central obesity and an increase in acid α1-glycoprotein are also more frequent, increasing the volume of distribution of fat-soluble drugs and bases, such as opioids. Morphine and hydromorphine are the only ones that are not fat-soluble opioids. Regarding metabolism, in addition to a decrease in phase 1 metabolism, polypharmacy in the elderly is more frequent, so opioids with phase 2 metabolism, such as tapentadol, hydromorphone, and morphine, may be preferable.

Conclusions:

The recognition of the individual characteristics of each elderly patient, associated with knowledge of the basic pharmacology of each opioid available in Portugal, may ensure greater safety and safeguard greater adherence to therapy.

Keywords: Opioids; Geriatrics; Chronic pain; Pharmacology

Introdução

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o envelhecimento é “um processo de diminuição orgânica, funcional e social, não consequente de doença ou de acidente, e que ocorre inevitavelmente com o passar do tempo”.1 É sabido que, com o envelhecimento, os indivíduos apresentam particularidades e necessidades de saúde que são diferentes das apresentadas pelos mais jovens. Sendo assim, os idosos, pessoas com idade igual ou superior a 65 anos, além de cada vez mais numerosos, necessitam de abordagens médicas e terapêuticas diferenciadas que podem ser obtidas com os cuidados geriátricos.1 Como grupo altamente heterogéneo, consideramos que não é possível balizar a decisão da escolha de um fármaco e da sua dose numa idade fixa, mas nas características individuais dos doentes.

De modo sucinto, a geriatria é o ramo da medicina que se ocupa da saúde nos aspetos clínicos, sociais, preventivos e curativos das doenças no envelhecimento.2 Estas doenças são maioritariamente incapacitantes, crónicas e degenerativas, quase sempre acompanhadas por dor ou que contribuem para a génese da dor.3 De facto, cerca de 50% dos idosos na comunidade e 83% se institucionalizados têm dor crónica moderada a severa.3 Por esta razão, o conhecimento da medicina da dor, abrangendo desde a neurofisiologia à farmacologia e terapêutica, é fundamental para uma prestação de cuidados geriátricos otimizados.

A dor crónica, como qualquer outra doença, necessita de tratamento adequado. A OMS preconiza a utilização de medicamentos opioides para o tratamento da dor moderada a severa.4 Sabe-se que a utilização destes fármacos acarreta riscos, mas também se reconhece que os opioides disponíveis em Portugal não são iguais, apresentando características farmacocinéticas diversas.

Assim, o objetivo deste trabalho é sistematizar e contribuir para o melhor conhecimento das características farmacocinéticas e farmacodinâmicas dos medicamentos opioides disponíveis em Portugal para o tratamento da dor não oncológica e, desta forma, contribuir para a escolha mais informada e adaptada ao doente, o que permitirá reduzir a incidência de efeitos adversos e aumentar a eficiência dos cuidados. Não existia, até ao momento, uma abordagem totalmente centrada no doente como a que é proposta neste trabalho.

Métodos

Para este artigo de revisão narrativa foi realizada uma pesquisa bibliográfica nas bases de dados PubMed/MEDLINE, Database of Abstracts of Reviews of Effects, The Cochrane Library, National Guideline Clearinghouse, National Health Service Evidence e Index das Revistas Médicas Portuguesas. Para a seleção dos artigos e outros documentos foram utilizadas equações com os seguintes termos Medical Subject Headings (MeSH): Analgesics, Opioid e Pharmacology, Clinical. Foram também utilizados os resumos das características do medicamento de todos os opioides disponíveis em Portugal, através de pesquisa na página eletrónica da Autoridade Nacional do Medicamento e dos Produtos de Saúde (INFARMED), assim como as características farmacocinéticas e farmacodinâmicas destes medicamentos registadas no DrugBank.

Critérios de inclusão

  • Artigos e outros documentos publicados no período de tempo compreendido entre 1 de janeiro de 2000 a 1 de março de 2020, nas línguas inglesa, portuguesa e espanhola.

  • Artigos originais, meta-análises, revisões sistemáticas e normas de orientação clínica, cujo conteúdo correspondesse aos objetivos da pesquisa.

Critérios de exclusão

  • Excluídas revisões de literatura não sistematizadas e publicações que não abordassem as características farmacocinéticas e farmacodinâmicas dos medicamentos opioides ou que abordassem o tratamento de dor oncológica.

  • Artigos e documentos noutras línguas, que não portuguesa, inglesa ou espanhola

Avaliação da qualidade

Para avaliar a qualidade e interesse dos artigos fez-se inicialmente a leitura do título e resumo do artigo, excluindo os que não se relacionavam com o tema. Posteriormente foi feita a leitura dos artigos restantes na íntegra, verificando quais cumpriam os critérios de inclusão estabelecidos e quais contribuíam com informação relevante para a realização desta revisão.

Resultados

Foram encontrados 42 artigos, 27 dos quais através da pesquisa pelos termos MeSH definidos e 15 artigos através de pesquisa direta nos endereços eletrónicos de sociedades relevantes e utilização de manuais de referência.

Relativamente aos 27 artigos encontrados através da pesquisa pelos termos MeSH, foram excluídos 20 artigos, por serem repetidos (10 artigos) e por se afastarem dos objetivos desta revisão (10 artigos), nomeadamente por se centrarem na eficácia dos opioides no tratamento da dor e nos seus mecanismos de ação (quatro artigos), em dados laboratoriais relacionados com biomarcadores (dois artigos), na dependência dos opioides encontrada nos Estados Unidos da América (dois artigos) e na dor oncológica (dois artigos). Dos 10 artigos excluídos por se afastarem dos objetivos da revisão, dois foram excluídos pela leitura do título, cinco pela leitura do resumo e três pela leitura integral, o que resultou numa seleção de sete artigos.5-11 O mais importante e completo foi o de Petrovic (2012),5 que abordou as reações adversas a fármacos, com um enfoque especial na prevenção.

Quanto aos restantes 15 artigos, destacam-se quatro manuais de referência na área,2,12-14 quatro normas de orientação clínica3-4,15-16 e quatro documentos de trabalho de sociedades científicas.1,17-19 Dos restantes três artigos, dois foram obtidos através da bibliografia dos artigos selecionados anteriormente20-21 e um através do Repositório do Estudo Geral da Universidade de Coimbra.22

Segue-se uma compilação dos elementos mais importantes coligidos durante esta pesquisa.

Particularidades da farmacologia no envelhecimento

O envelhecimento origina alterações corporais importantes para a farmacocinética e farmacodinamia.2,5,12,20,22 Na Tabela 1 estão representadas as alterações mais frequentes, relacionadas com a absorção, distribuição, metabolismo e excreção de grande parte dos fármacos.

TABELA 1 Alterações farmacocinéticas mais frequentes no envelhecimento 

Nota: Adaptado de Katzung (2014).12

A absorção não é consideravelmente afetada pelo envelhecimento per se, mas pelo acumular de fatores que interagem com o avançar da idade, nomeadamente: alteração dos hábitos nutricionais, consumo de medicamentos de venda livre (e.g., antiácidos; laxantes), redução da motilidade gástrica e intestinal, redução do esvaziamento gástrico e aumento do seu pH, redução do fluxo sanguíneo esplâncnico, menor secreção de enzimas e atrofia da mucosa.2,12

Quanto à distribuição, como os idosos apresentam maior probabilidade de diminuição da água corporal, relativamente à população adulta jovem, é necessária cautela na utilização de fármacos hidrossolúveis, visto que atingirão facilmente a concentração crítica de toxicidade.2,5,12 Por outras palavras, as doses máximas toleradas serão inferiores. Em contraste, os fármacos lipossolúveis apresentam um prolongamento do tempo de ação, relacionado com o aumento do tecido adiposo (sobretudo a nível abdominal), pelo que deve haver precaução na titulação destes fármacos e na posologia aconselhada, devendo alargar-se os períodos entre administrações.2,5,12 Há ainda que considerar a diminuição da albumina sérica, característica do envelhecimento, e o aumento da α1-glicoproteína ácida,2 que se repercutem na farmacocinética quer de fármacos catiónicos/ácidos [e.g., os anti-inflamatórios não esteroides (AINE)], com maior ligação à albumina, que terão tendência para reduzirem o seu volume de distribuição, quer de fármacos aniónicos/básicos (e.g., os opioides), que terão tendência para aumentar o seu volume de distribuição.2,5,12

Relativamente ao metabolismo, o envelhecimento causa não só a diminuição do fluxo sanguíneo hepático,5,12 como também a diminuição da atividade de enzimas envolvidas na oxidação, redução e hidrólise (fase 1 de biotransformação, que inclui o citocromo P450), mantendo-se praticamente inalterada a fase 2 de biotransformação (glucoronidação, acetilação e sulfatação).2,5 Assim, os medicamentos que apresentem metabolismo hepático de fase 1 terão um prolongamento da sua ação e maior potencial tóxico, para além de apresentarem maior potencial de interações medicamentosas e alimentares.

A eliminação renal é a característica farmacocinética mais frequentemente alterada com a idade.12 Depois dos 40 anos, a taxa de filtração glomerular diminui cerca de 0,75ml/min/ano,2 ou seja, pelos 70 anos há uma redução esperada da função renal de cerca de 50%.

Relativamente à farmacodinamia, cerca de 20 a 40% dos idosos terão anualmente reações adversas a fármacos.2,6 Os principais fatores que contribuem para esta elevada incidência de efeitos laterais são: medicação múltipla, incluindo a automedicação, maior número de comorbilidades, uma vez que o estado de doença altera a disponibilidade e/ou o efeito de um fármaco, maior afeção sistémica por estas, maior sensibilidade aos efeitos dos fármacos e farmacocinética alterada.2,6,12

Os idosos apresentam frequentemente reações exageradas a fármacos com efeito no sistema nervoso central (SNC), o que se deve em parte à perda de função e também à coexistência de múltiplos medicamentos nestas idades com ação no SNC, como as benzodiazepinas, os antidepressivos e os opioides.6

Os critérios de Beers e de START-STOPP são ferramentas disponíveis para a identificação de medicamentos potencialmente inadequados a utilizar nos idosos, particularmente na presença de determinada condição ou patologia ou ainda outra medicação.

Para aumentar a adesão à terapêutica e evitar efeitos adversos dos fármacos é fundamental respeitar algumas regras de prescrição, nomeadamente:22

  1. Começar com doses reduzidas e titular até à dose mínima eficaz;

  2. Esperar três semividas (ajustadas para a idade) antes de aumentar a dose;

  3. Se a resposta não surgir, medir os níveis plasmáticos ou substituir por outro.

A escolha por um grupo fármaco-terapêutico e, dentro deste, de um medicamento particular deverá ser efetuada respondendo a alguns pontos, de que se destaca a fundamentação da eficácia, a informação sobre a segurança, a conveniência do medicamento e o custo da terapêutica.22

Particularidades do uso de opioides no envelhecimento

Os opioides são um grupo de analgésicos com vários efeitos periféricos, espinhais e centrais, devido à ativação dos seus recetores mu (µ), kappa (k) e delta (θ), que se encontram em todo o SNC, especialmente no núcleo do trato solitário, área cinzenta periaquedutal, córtex cerebral, tálamo e substância gelatinosa da medula espinhal. Inibem a sensibilização periférica e a condução nervosa, as sinapses nociceptivas na substância cinzenta medular e ativam a modulação descendente dependente de opioides (mecanismo mediado por serotonina, β-endorfina e dinorfina/met-encefalina).13-14,22

De acordo com as características dos opioides, é possível perceber que existem determinados grupos de doentes com características perante as quais devemos optar preferencialmente por determinado medicamento.22

Na Tabela 2 são apresentadas as características farmacocinéticas dos opioides disponíveis para uso clínico em Portugal,23-24 as quais devem ser consideradas quando se pretendem usar estes analgésicos para tratar a dor moderada a severa em idosos.

TABELA 2 Características farmacocinéticas dos opioides disponíveis em Portugal 

Legenda: Rμ = recetor opioide um; SNRI = inibidor da recaptação da serotonina e noradrenalina; Rθ = recetor opioide delta; Rk = recetor opioide kappa; I. delgado = Intestino delgado; OROS = tecnologia de libertação prolongada osmotic-controlled released oral; GPA = α1-glicoproteína ácida; M3G = morfina-3-glucoronido; M6G = morfina-6-glucoronido; H3G = hidromorfona-3-glucoronido; *metabolito neuroexcitatório (epileptogénico). **metabolito responsável pelo efeito analgésico. ***metabolito neurotóxico

Assim, na dor moderada para a qual a OMS aconselha a utilização de opioides menos potentes,4 tramadol e codeína, realça-se o facto destes fármacos serem lipossolúveis, ambos em distribuição maioritariamente livre. Este facto implica o prolongamento do seu tempo de ação, o que poderá ter grande impacto nos doentes idosos obesos, sobretudo os que tenham obesidade central. O facto destes fármacos apresentarem metabolismo de fase 1 implica o agravamento do prolongamento de ação, sobretudo na população idosa, o que pode justificar e ser a razão para grande parte dos efeitos adversos reportados com estes medicamentos, neste grupo etário.22 Ou seja, nos doentes idosos e nos doentes obesos poder-se-á considerar o alargamento dos tempos de administração de 8/8h para 12/12h. Para além disso, as doses máximas diárias não devem ser as mesmas que para a população geral. Sugerimos que devam ser diminuídas para 200mg de tramadol e 210mg para a codeína, comparativamente a 400mg e 330mg, respetivamente, nas populações mais jovens. O facto de terem eliminação renal reforça a necessidade de limitação da dose máxima, especialmente em idosos e em doentes com doença renal crónica.

Relativamente aos doentes com necessidade de opioides fortes, por dor severa, e assumindo que se abordará apenas a dor não oncológica, existem quatro medicamentos disponíveis em Portugal pela via oral: morfina, hidromorfona, oxicodona e tapentadol.

A morfina, apesar do seu baixo custo e absorção quase completa por via oral, apresenta uma biodisponibilidade de cerca de 30% pela via oral e metabolitos ativos com maior toxicidade, pelo que é uma hipótese inferior em relação aos restantes, sobretudo para os doentes idosos.6,15,23-27

Em relação à absorção, o único que poderá sofrer menos com as variações individuais é a hidromorfona, pois apresenta absorção cólica.24 Como tal não é tão afetada por fatores já descritos como sendo mais comuns com o avançar da idade, como hábitos nutricionais diferentes, outros medicamentos que esteja a tomar que compitam com os mesmos locais de absorção, aumento do pH gástrico, redução do esvaziamento gástrico, redução do fluxo sanguíneo esplâncnico e menor secreção de enzimas.2,12

A morfina e a hidromorfona são os únicos opioides hidrossolúveis,23-27 o que quer dizer que apresentam um limiar de toxicidade inferior em doentes idosos, devido à menor proporção de água corporal. Em doentes obesos dever-se-á considerar que a oxicodona e o tapentadol poderão ter um prolongamento da sua ação, pelo que a posologia deve ser mais alargada, para além de que as titulações deveriam ser mais lentas.15,22

Relativamente ao metabolismo, o tapentadol apresenta um metabolismo de fase 2,7,24 evitando vias enzimáticas onde são metabolizados outros fármacos, reduzindo por isso as interações. A hidromorfona também apresenta metabolismo maioritariamente de fase 2,8,24 pelo que seria outra boa alternativa de primeira linha em doentes polimedicados.

Quanto à eliminação, o único que não apresenta eliminação renal é a hidromorfona,23-27 pelo que deveria ser considerado prioritário em idosos e em doentes com doença renal crónica.

Segundo a OMS,16 as regras básicas no tratamento da dor crónica implicam uma predileção pela via oral, a intervalos fixos e regulares, respeitando a escada analgésica, adaptada ao indivíduo e às suas características únicas, sempre que possível com utilização de terapêuticas adjuvantes e tendo atenção aos detalhes de cada doente e de todas as suas dimensões. Assim, apenas em alguns doentes com dor crónica tratada em ambulatório se deverá optar pela via transdérmica, para a qual existem em Portugal o fentanilo e a buprenorfina. Relativamente à farmacocinética destes dois medicamentos realça-se a sua eliminação. Enquanto a buprenorfina apresenta uma eliminação predominantemente biliar,23-27 o fentanilo tem maioritariamente eliminação renal. No entanto, salienta-se o facto de esta eliminação renal acontecer com metabolitos inativos,24 pelo que a função renal destes doentes está mais salvaguardada.15 Assim, tendo em atenção a segurança farmacocinética, os dois apresentam perfis idênticos, embora alguns autores mantenham como prioritária a utilização de buprenorfina em doentes idosos e com doença renal crónica.22

Relativamente à farmacodinamia dos opioides, é desaconselhada a utilização concomitante de antidepressivos tricíclicos com os opioides, a utilização de opioides em doentes com quedas frequentes e/ou com demência. Estes medicamentos também só deverão ser prescritos por mais de duas semanas se acompanhados de laxante para prevenção da obstipação17-19,22 e por medidas não farmacológicas como aumento de fibra e líquidos, que devem acompanhar a terapêutica desde o início. A prescrição crónica de opioides para a dor não oncológica é discutível, pois não apresentam eficácia demonstrada a longo prazo. Também a quantidade e a gravidade dos efeitos adversos tendem a aumentar com o tempo de utilização, motivo pelo qual deverá equacionar-se a descontinuação em cada reavaliação, que deverá ser efetuada em frequência nunca superior a três meses.22

Um dos conselhos para reduzir os efeitos adversos dos fármacos nos idosos é começar com doses reduzidas e titular a resposta desejada.5 Relativamente aos opioides na população adulta preconiza-se que a dose inicial seja equivalente a 5mg de morfina oral.13-14 No caso dos idosos é aconselhável que esta dose inicial seja equivalente a 2,5mg de morfina oral.13,22 Esta recomendação está relacionada com o potencial iatrogénico da morfina, a que se associa o risco de iniciar uma terapêutica com opioides de libertação prolongada ou retardada.13-14,22

Outra das recomendações para reduzir efeitos adversos nos idosos é esperar três semividas (ajustadas para a idade) antes de aumentar a dose.5 As características do doente são fundamentais para determinar se a semivida de um fármaco aumenta ou diminui em relação ao esperado para o adulto jovem saudável, como foi amplamente abordado neste trabalho relativamente às alterações da farmacocinética.

Por fim, outra das principais recomendações para reduzir o potencial iatrogénico dos fármacos em idosos: se a resposta não surgir, medir os níveis plasmáticos ou substituir por outro.5 Relativamente aos opioides existem algumas razões que devem levar à rotação entre fármacos desta classe: ausência de resposta terapêutica, desenvolvimento de efeitos adversos, dificuldade com a administração da medicação (alteração do estado do doente) e outras (disponibilidade de opioides, considerações de formulário, mitos/crenças do doente e da família sobre determinado opioide).13-14,22 Em primeiro lugar, deverá ser calculada a dose equianalgésica através de tabela de equianalgesia entre opioides.13-14,22 No idoso, sobretudo se apresentar síndroma de fragilidade e/ou estiver acamado/muito dependente para atividades de vida diárias, deverá proceder-se a uma redução de 50% na dose.22 Em seguida, deverá ser efetuada uma reavaliação (esperar cerca de três semividas) psicossocial da intensidade da dor e das comorbilidades que podem implicar reajustes de cerca de 15% de 72/72 horas.22

Discussão e conclusões

A farmacologia básica é o melhor suporte de decisão clínica na utilização de fármacos, conferindo segurança na opção estratégica tomada pelo médico. É necessário conhecer as características do doente, nomeadamente dados antropomórficos (biótipo, peso, massa gorda/massa magra), função hepática e função renal, para além de antecedentes pessoais, medicação habitual, avaliação física e nutricional, mental, cognitiva e funcional o mais completas possível.

Os resultados demonstram, além da escassez de estudos nesta área específica do tratamento da dor, que o tramadol, a codeína, o tapentadol, a oxicodona, o fentanilo e a buprenorfina, sendo medicamentos lipossolúveis e com forte afinidade à α1-glicoproteína ácida, aumentam o seu volume de distribuição nos doentes obesos e na generalidade da população idosa. Ou seja, a posologia preconizada para estes fármacos deveria ser alargada, tendo em conta o prolongamento da sua ação, que é uma forte possibilidade, e as titulações devem ser mais lentas, tendo igualmente em conta a regra de aguardar por três semividas plasmáticas antes de qualquer aumento de dose.

No caso dos opioides hidrossolúveis, como a morfina e a hidromorfona, dever-se-á considerar o seu maior potencial tóxico para a maioria dos doentes idosos e doentes desidratados, ou seja, as titulações devem ser feitas de forma mais cautelosa, aumentando a dose equivalente de morfina em menor quantidade em cada ajuste. Por apresentarem um volume de distribuição e uma semivida inferior, deve ser considerada uma posologia mais estreita.

Poder-se-á ainda aferir que o tramadol, o fentanilo, a buprenorfina e a oxicodona serão os medicamentos com maior potencial de toxicidade nos doentes idosos, sobretudo os muito idosos e os polimedicados, pelo seu metabolismo de fase 1. Assim, no caso de ausência de eficácia deverão ser consideradas doses máximas inferiores para eventual rotação de opioides (que se considera realizar em dose equivalente diária de 90mg de morfina).

Outra conclusão importante deste trabalho é que a hidromorfona e a buprenorfina, apresentando uma eliminação renal residual, devem ser consideradas os opioides mais seguros em doentes com doença renal crónica e doentes idosos, sobretudo aqueles que apresentam alterações relevantes da função renal (TFG inferior a 60ml/min). O fentanilo também apresenta um perfil de segurança semelhante pois, apesar de apresentar uma eliminação renal relevante, esta ocorre para os seus metabolitos inativos, que não são nefrotóxicos. Nos restantes opioides, as doses devem ser adaptadas de acordo com a função renal que os doentes apresentam em cada momento.

Como limitação deste estudo, realce-se que o trabalho não se centrou em estudos comparativos em seres humanos, o que poderia atestar as relações apontadas de maior ou menor segurança em algumas populações especiais. Tal deve-se ao facto de não haver suficientes estudos comparativos e/ou os que existem apresentarem marcada heterogeneidade metodológica. Outra limitação importante é não considerar a eficácia dos medicamentos opioides, incluindo nos diferentes tipos de dor.

É necessária mais investigação nesta área. Com o envelhecimento populacional ter-se-á certamente um aumento exponencial de patologias que cursam com dor crónica, pelo que são cruciais abordagens eficazes e seguras baseadas na evidência.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse

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Recebido: 28 de Abril de 2020; Aceito: 26 de Dezembro de 2020

Endereço para correspondência Hugo Ribeiro E-mail: hribeiroff@gmail.com

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