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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.36 no.1 Lisboa fev. 2020

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v36i1.12341 

RELATOS DE CASO

Hipertensão secundária a neoplasia renal: relato de um caso

Secondary hypertension to an underlying renal neoplasm: a case report

Vanda Reis Figueiredo,1
https://orcid.org/0000-0002-7634-5967

Ana Catarina Gonçalves,1

Lúcia Valente1

1 USF Condestável

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

Introdução: A hipertensão arterial (HTA) é uma causa importante de morbi-mortalidade cardiovascular, potencialmente tratável. A marcha diagnóstica perante uma situação de HTA de novo implica a identificação de fatores de risco cardiovasculares, deteção de lesão de órgão-alvo e investigação, se aplicável, de causas de hipertensão secundária. A presença de elevação súbita e/ou severa da pressão arterial, particularmente no adulto jovem, deve sugerir ao médico a possibilidade de hipertensão secundária a outro fenómeno nosológico.

Descrição de caso: Homem de 40 anos, com tensão arterial elevada, dislipidemia e excesso de peso, sem outros antecedentes de relevo que recorre ao seu médico de família por aumento dos valores tensionais, de instalação recente e súbita, sem outra sintomatologia associada. Negava qualquer sintomatologia e o exame objetivo revelou-se inocente. Ajustou-se a terapêutica e, atendendo à idade do doente, deu-se início a estudo etiológico para exclusão de HTA secundária, tendo sido solicitadas análises clínicas, ECG, ecocardiograma e ecografia renal. A ecografia renal revelou uma formação expansiva ao nível do seio renal direito, predominantemente ecogénica e com crescimento para o parênquima renal direito, tendo sido solicitada TAC renal para melhor esclarecimento da imagem, que confirmou a presença de uma volumosa massa renal compatível com carcinoma de células renais. Foi imediatamente encaminhado, via Alert, à consulta de urologia do hospital com o menor tempo de espera previsto; contudo, por alegada “incapacidade de resposta em tempo útil”, foi posteriormente encaminhado para o hospital da área de residência, onde viria a ser submetido a nefrectomia laparoscópica sem intercorrências.

Comentário: O presente caso sustenta a necessidade de sensibilizar os médicos que habitualmente lidam com o diagnóstico de hipertensão para a realidade da hipertensão secundária a outros fatores mórbidos, principalmente no adulto jovem.

Palavras-chave: Hipertensão secundária; Neoplasia renal.


 

ABSTRACT

Introduction: Arterial hypertension is a relevant cause of potentially treatable cardiovascular morbi-mortality. The diagnostic workup when facing a de novo case of hypertension implies the identification of cardiovascular risk factors, evaluation of end-organ damage and investigation of hypothetical causes of secondary hypertension. Any sudden and/or severe elevation in blood pressure particularly in a young adult should suggest the possibility of a secondary aetiology for the phenomenon.

Case description: 40 years old man, with high blood pressure, overweight and dyslipidaemic, with no other past medical history, reports recent and sudden worsening of his blood pressure values. There were no other complaints and the physical examination was unremarkable. His therapeutics were adjusted accordingly and the diagnostic workup was started - namely routine laboratory study, echocardiography, 12-lead electrocardiogram, and renal ultrasound - to exclude an eventual secondary aetiology. The reports were generally innocent except for the renal ultrasound which revealed a massive formation at the right kidney sinus growing into the renal parenchyma. A CT scan was requested and confirmed the presence of a neoformation, highly likely to be a renal cell carcinoma. The patient was immediately referred to a Urology appointment, via Alert, to the hospital with the shortest predicted waiting time. Nevertheless, the referral was refused on the grounds of “no capacity for timely consultation”, hence the need to reroute the quest to the nearest hospital, which despite the announced longer waiting time, managed to perform a timely accurate laparoscopic nephrectomy.

Comment: The present case sustains the absolute need to be familiar with the possibility of a secondary cause for a sudden settlement or worsening of hypertension, particularly in a young patient.

Keywords: Arterial hypertension; Renal carcinoma.


 

Introdução

A hipertensão arterial é uma causa importante de morbilidade e mortalidade cardiovascular, potencialmente tratável, constituindo um fator de risco independente para doenças cardio-cérebrovasculares graves,1-4 nomeadamente o enfarte agudo do miocárdio e o acidente vascular cerebral isquémico e/ ou hemorrágico e a doença renal crónica.

Habitualmente classifica-se a hipertensão arterial em primária ou essencial, quando não é possível apurar um agente etiológico - constituindo estes casos cerca de 90 a 95% do total de indivíduos hipertensos -, ou secundária quando existe uma causa subjacente.5-6

No que concerne à etiologia da hipertensão secundária, cerca de 6% dos casos decorrem de patologia renal, nomeadamente doenças do parênquima renal - neoplásicas, inflamatórias, infiltrativas - ou da vasculatura do rim. De referir também as causas endócrinas, incluindo a doença de Cushing, o hiperaldosteronismo e o feocromocitoma, entre outros;7 as vasculares, como as vasculites e a coartação da aorta; as causas neurogénicas, nomeadamente a disfunção autonómica, os tumores cerebrais e a apneia obstrutiva do sono; a gravidez; as doenças neoplásicas e as substâncias de uso recreativo como, por exemplo, o álcool, a nicotina e a cocaína.7-9

A iatrogenia, enquanto causa de hipertensão secundária, é um fator cada vez mais a considerar. Os fármacos mais frequentemente associados a fenómenos de hipertensão secundária são os anti-inflamatórios não esteroides, a corticoterapia, principalmente se prolongada, e o uso de contracetivos orais combinados.9

A marcha diagnóstica perante uma situação de hipertensão arterial de novo implica, em primeiro lugar, a identificação de fatores de risco cardiovasculares modificáveis, nomeadamente perfil lipídico, excesso de peso ou obesidade, hábitos tabágicos, etílicos ou toxifílicos, sedentarismo, erros alimentares, entre outros, e fatores não modificáveis, como a história familiar de doença cardiovascular em idade precoce, idade, sexo, etnia e circunstâncias socioeconómicas.10-13

No decorrer da investigação importa também aferir a existência de lesões de órgão-alvo - renais, cardíacas, cerebrais e oftalmológicas - e, sempre que aplicável, pesquisar ativamente indícios de eventuais causas secundárias, através de estudo dirigido à hipótese diagnóstica mais provável.

A presença de elevação súbita e/ou severa da pressão arterial, particularmente no adulto jovem, o agravamento súbito em doentes com hipertensão previamente conhecida e controlada ou a resposta terapêutica insatisfatória7 deve sugerir ao médico a possibilidade de hipertensão secundária.

Descrição do caso

Reporta-se o caso de um utente do sexo masculino, caucasiano, 40 anos, casado e residente em casa própria, estadio I do ciclo de vida familiar de Duvall, com Apgar familiar de Smilkstein de dez e classe III segundo a classificação de Graffar.

Trata-se de um homem com antecedentes pessoais de tensão arterial elevada, alteração do perfil lipídico com elevação de triglicéridos e excesso de peso. Sem outros antecedentes, nomeadamente médicos e/ou cirúrgicos de relevo, e sem antecedentes familiares. Medicado com irbesartan 150mg na dose de meio comprimido por dia (sem adesão terapêutica) e fenofibrato 267mg um comprimido por dia - ambos instituídos por médico de clínica geral, a quem recorria ocasionalmente. Sem registo de alergias medicamentosas e com vacinação actualizada, de acordo com o Programa Nacional de Vacinação em vigor à data da consulta.

Recorre ao seu médico de família a 29/02/2016 por aumento dos valores tensionais em ambulatório de instalação recente e súbita, objetivada em múltiplas medições no domicílio. Negava qualquer outra sintomatologia associada, nomeadamente cefaleia, epistaxis ou parestesias. Trazia análises solicitadas em consulta programada prévia de saúde de adultos, que revelavam hemograma, função renal, hepática e tiroideia sem alterações, salientando-se apenas hipertrigliceridemia com valor total de 174mg/ dl. Trazia também um ECG que revelava “ritmo sinusal com frequência cardíaca de cerca de 62/min e alterações moderadas, inespecíficas e difusas da repolarização ventricular”.

No decorrer da consulta objetivou-se tensão arterial elevada, verificando-se TA sistólica 175mmhg e TA diastólica 99mmHg - no melhor registo de três medições feitas em ambiente calmo e sem outras atividades concomitantes. O exame objetivo não revelou quaisquer alterações dignas de registo.

Atendendo aos valores de tensão arterial verificados optou-se por ajustar a terapêutica anti-hipertensora previamente instituída com indicação de toma diária escrupulosa de um comprimido de irbesartan 150mg, mantendo o fibrato já em curso na dose de 267mg id.

Solicitou-se um registo em ambulatório dos valores da tensão arterial, explicaram-se os sinais de alarme e a conduta a adotar na sua iminência.

Perante o agravamento súbito dos valores tensionais num doente jovem decidiu-se encetar estudo etiológico para exclusão de hipertensão arterial secundária, solicitando-se reavaliação analítica e eletrocardiograma que, mais uma vez, não revelaram quaisquer alterações de relevo.

Na consulta seguinte optou-se por prosseguir o estudo, tendo sido solicitada ecografia renal e ecocardiograma. O ecocardiograma não revelou alterações. Porém, a ecografia renal revelou uma “formação expansiva localizada no seio renal direito, com crescimento para o parênquima renal, predominantemente ecogénica, medindo cerca de 12*10*7cm, estando indicada realização de tomografia axial computorizada (TAC) renal com caráter de urgência para melhor caracterização. O rim esquerdo com dimensões dentro da normalidade, com normal diferenciação estrutural e espessura do parênquima esboçando uma formação nodular lobulada no polo superior deste rim, com cerca de 2cm, parecendo corresponder a quisto septado, também a merecer caracterização por TAC. Sem evidência de dilatação de cavidades excretoras renais”.

Foi recebido em consulta de doença aguda a 30/11/2016 para mostrar os exames previamente solicitados, altura em que se explicaram os achados obtidos na ecografia renal, esclareceram-se hipóteses diagnósticas e pediu-se TAC renal para clarificação das alterações. Agendou-se consulta programada para o dia 07/12/2016, altura em que o utente traz a TAC solicitada, datada do dia anterior, revelando “na dependência do seio renal direito, confirma-se a existência de uma volumosa formação expansiva, medindo cerca de 10,5*8,6*7cm, com textura interna heterogénea, imagens no seu interior sugestivas de calcificações e efeito de realce sugestivo de natureza hipervascular; observam-se ainda áreas sem evidente efeito de realce correspondendo a zonas de provável necrose central. Condiciona dilatação do grupo calicial superior do rim. Características suspeitas de corresponder a carcinoma de células renais. No pólo superior do rim direito são visíveis duas outras formações nodulares, sem evidente efeito de realce após contraste, medindo respetivamente cerca de 17 e 13mm, em localização adjacente, com aparentes septações internas relativamente espessas. No rim esquerdo há uma maior formação nodular no seu polo superior, com contorno lobulado, medindo cerca de 2,3cm de natureza predominantemente quística, observando-se septação interna com realce após contraste, traduzindo quisto Bosniak tipo IIF (…). Provável quisto biliar a nível da alta convexidade do segmento IV, com 4mm; calcificação relativamente grosseira em localização periférica (subcapsular) no segmento V, de provável natureza sequelar”.

No mesmo dia foi encaminhado, via Alert urgente, à consulta de urologia do hospital com o menor tempo de espera previsto, como anunciado pelo programa informático de referenciação. Não obstante o cariz urgente da situação clínica e o anunciado menor tempo útil de espera, o pedido foi recusado 10 dias após a sua submissão por alegada “incapacidade de resposta em tempo útil”. Perante a recusa submeteu-se novo Alert, desta feita dirigido ao hospital da área de residência, que também foi contactado telefonicamente. Foi assim possível orientar o utente para consulta externa de urologia, tendo sido recebido no dia 02/01/2017, altura em que lhe foi proposta cirurgia para exérese tumoral.

A 06/02/2017 foi submetido a nefrectomia radical à direita por via laparoscópica transperitoneal, que decorreu sem intercorrências, tanto durante o procedimento como no pós-operatório imediato. A anatomia patológica confirmou tratar-se de um carcinoma renal de células claras, grau 2 e revelou a presença de áreas cavitadas e extensas áreas de hemorragia e enfarte. As margens da peça anatómica revelaram-se livres de envolvimento tumoral, verificou-se não haver extensão neoplásica ao tecido adiposo peri-renal, nem atingimento da glândula suprarrenal ipsilateral.

Atualmente o utente mantém seguimento semestral em consulta hospitalar de urologia e acompanhamento em consulta de hipertensão na sua USF. Apesar de se ter observado uma melhoria franca dos valores tensionais pós nefrectomia, manteve-se a necessidade de terapêutica anti-hipertensora. Por conseguinte, encontra-se presentemente medicado com perindopril 5mg, uma toma diária.

 

 

Comentário

O presente caso sustenta a necessidade de sensibilizar os médicos que habitualmente lidam com o diagnóstico de hipertensão, ao nível dos cuidados de saúde primários ou secundários, para a realidade da hipertensão secundária, principalmente no adulto jovem.

Pretende-se também alertar para a componente burocrática da comunicação entre cuidados de saúde primários e secundários, que continua a impor-se ao utente como a primeira barreira a transpor no decurso do seu tratamento, consubstanciando-se com demasiada frequência numa ameaça à própria vida já que a morosidade que lhe é inerente poderá pôr em causa os tempos adequados de tratamento.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Vanda Reis Figueiredo

E-mail: vanda.couto.reis@gmail.com

 

Conflito de interesses

Os autores declaram não ter quaisquer conflitos de interesse.

 

Recebido em 23-02-2018

Aceite para publicação em 15-07-2019

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