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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.35 no.5 Lisboa set. 2019

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v35i5.12192 

RELATOS DE CASO

Contributo para a correlação entre a hiperglicemia e o delirium

Contribution to correlation between hyperglycemia and delirium

Sofia Oliveira Vale1
https://orcid.org/0000-0001-6940-0991

Ana Catarina Machado2

Adriana Meneses3

Sílvia Castro Alves4

1. Médica Assistente de Medicina Geral e Familiar. UCSP Alcabideche - ACeS Cascais.

2. Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. USF Nova Salus, ACeS Grande Porto VII - Gaia.

3. Médica Assistente de Medicina Geral e Familiar. UCSP Anadia II - ACeS Baixo Vouga.

4. Médica Assistente de Medicina Geral e Familiar. ECSCP - ACeS Grande Porto II - Gondomar.

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

Introdução: O delirium é uma das patologias mentais presente nos cuidados de saúde primários, particularmente nos idosos. Pode apresentar várias condições médicas subjacentes, nomeadamente o descontrolo metabólico com hiperglicemia, sendo fundamental um diagnóstico etiológico rápido.

Descrição do caso: Mulher, 80 anos, caucasiana, 4º ano de escolaridade, autónoma. Antecedentes de obesidade, hipertensão arterial, dislipidemia, valvulopatia e depressão. Trazida ao médico de família (MF) pela filha por quadro intermitente com dois meses de evolução de polifagia, comprometimento da memória imediata e recente, discurso incoerente, bradifasia, défice de atenção, perturbação do sono e irritabilidade. Flutuação diária da clínica, com agravamento nos três dias anteriores à consulta. Negava perda de peso, poliúria ou polidipsia. Ao exame objetivo, tensão arterial de 136/57mmHg, movimentos estereotipados e Mini-Mental State Examination (MMSE): 22/30. Fez estudo para causa secundária de declínio cognitivo, estabelecendo-se o diagnóstico de diabetes mellitus tipo 2 (hemoglobina glicada (HbA1c): 14%), sem outras alterações. Iniciou cuidados higieno-dietéticos, metformina e insulinoterapia. Foi reavaliada dois meses e meio depois, referindo cumprir rigorosamente plano alimentar e de exercício físico diário e melhoria do quadro cognitivo. Ao exame objetivo tensão arterial de 110/86mmHg, MMSE: 25/30, teste do relógio sem alterações e HbA1c de 7,8%.

Comentário: O reconhecimento de que a hiperglicemia é uma das possíveis etiologias de delirium pode acelerar a resolução do quadro e diminuir o seu impacto na morbimortalidade dos doentes. O MF deve prestar um acompanhamento próximo e contínuo e estar alerta para o facto de que patologias comuns se podem apresentar com quadros clínicos variados.

Palavras-chave: Diabetes mellitus; Delirium; Hiperglicemia.


 

ABSTRACT

Introduction: Delirium is one of the mental disorders observed in primary health care, particularly in the elderly. It may result of several subjacent medical conditions, namely metabolic unbalance with hyperglycemia, and a rapid etiologic diagnosis is critical.

Description of the case: 80 years-old Caucasian woman, independent for daily life activities, four years of education, with a clinical history of obesity, hypertension, dyslipidemia, valvular disease and depression. She was brought to the family physician by her daughter due to intermittent polyphagia, impaired immediate and recent memory, incoherent speech, bradyphasia, attention deficit, sleep disturbance and irritability, since two months. She also had daily fluctuation of symptoms, with clinical deterioration in the three days prior to the consultation. She denied weight loss, polyuria or polydipsia. On physical examination she had a blood pressure of 136/57mmHg, stereotypical movements and a Mini-Mental State Examination (MMSE) score of 22/30. The study for secondary causes of cognitive decline established the diagnosis of type 2 diabetes mellitus (HbA1c: 14%) without other changes. She started a nutrition care plan, metformin and insulin. She was re-evaluated two and a half months later, referring to have followed the nutrition and exercise care plan rigorously, and improvement of the cognitive changes. Physical examination showed a blood pressure of 110/86mmHg, MMSE score: 25/30, normal test of the clock, and HbA1c of 7.8%.

Comment: The recognition that hyperglycemia is one of the possible etiologies of delirium can accelerate the resolution of the symptoms and decrease its impact on patients' morbidity and mortality. The family physician should provide a close and continuous follow-up and to be aware that common pathologies may present with varied clinical presentations.

Keywords: Diabetes mellitus; Delirium; Hyperglycemia.


 

Introdução

O delirium é uma perturbação do estado de consciência e da cognição, aguda, de rápida instalação, com flutuações ao longo do dia, transitória e geralmente reversível.1

A prevalência de delirium na comunidade é de 1 a 2%, aumentando com a idade e atingindo 14% dos indivíduos com mais de 85 anos.2 Pode ter na sua etiologia diversas condições médicas complexas, o que dificulta o diagnóstico.1,3 A maioria dos indivíduos com delirium apresenta uma recuperação total, mas é necessária a deteção e correção precoces, de forma a evitar a progressão para estupor, coma, convulsões ou morte, particularmente se a causa subjacente não for tratada.1-2

O diagnóstico diferencial de delirium inclui distúrbios psicóticos, transtornos bipolares e depressivos com características psicóticas, demência, estado de mal epilético não convulsivo, distúrbio de stress agudo, distúrbio faccioso, entre outros distúrbios neurocognitivos.2-3

No doente com delirium pode ser considerada a realização de vários exames laboratoriais. No entanto, é importante ter em atenção a gestão de recursos e o atraso no tratamento. A requisição de hemograma, ionograma, creatinina, glicose, cálcio, análise de urina e urocultura constitui uma primeira abordagem aceitável na maioria dos doentes, quando a etiologia não é imediatamente óbvia. A análise de drogas no sangue ou urina também deve ser solicitada quando apropriado. A realização de testes adicionais, como função hepática e tiroideia, deve basear-se na história clínica e no exame objetivo. A neuroimagem, como a tomografia computorizada crânio-encefálica (TC-CE), pode ser usada seletivamente, nomeadamente se após a primeira avaliação não é identificada nenhuma causa de delirium.3

Com a descrição do caso clínico pretende-se relembrar a existência deste quadro clínico, bem como a sua abordagem diagnóstica, uma vez que o médico de família (MF) tem um papel fundamental para o reconhecimento precoce, acompanhamento e articulação dos cuidados.

Descrição do caso

Relata-se o caso de uma utente do sexo feminino, de 80 anos, caucasiana, com o 4º ano de escolaridade e reformada da profissão de angariadora de seguros. Viúva há 37 anos, integrada em família unitária, altamente funcional segundo o APGAR e na classe média da Escala de Graffar. Totalmente autónoma para as atividades de vida diária, apresentava como antecedentes pessoais obesidade, hipertensão arterial (HTA), dislipidemia, valvulopatia e perturbação depressiva. Medicada com bisoprolol 5mg id, furosemida 40mg id, sinvastatina 10mg id, sertralina 50mg id e trazodona 150mg id. Como antecedentes familiares relevantes refere-se o pai da utente, já falecido, que apresentava problemas psiquiátricos não especificados. Um dos filhos tem o diagnóstico de diabetes mellitus tipo 2 (DM2) e o outro filho apresenta o diagnóstico de perturbação depressiva, esquizofrenia e psicose afetiva, com tentativa de suicídio em 2011.

A utente foi trazida pela filha ao médico de família (MF) no dia 19 de janeiro de 2015, por quadro de polifagia, comprometimento da memória imediata e recente, discurso incoerente, bradifasia, falta de atenção, perturbação do sono e irritação, com evolução de dois meses. Tratavam-se de sintomas não constantes, com períodos assintomáticos e flutuação ao longo do dia, com agravamento progressivo nos últimos três dias. Negava perda de peso, poliúria ou polidipsia. Ao exame objetivo apresentava tensão arterial (TA) de 136/57mmHg, índice de massa corporal (IMC) de 32,4kg/m2 (igual ao registado em consulta de vigilância de HTA do semestre anterior), auscultação cardíaca rítmica com sopro sistólico grau V/VI em todo o pré-cordio. Restante exame sem alterações. Tinha registo de uma TC-CE de 06/11/2012 sem alterações. Foi então solicitado estudo analítico para despiste de causa secundária de declínio cognitivo.

Dez dias depois, a utente recorreu novamente à consulta com os resultados da avaliação laboratorial, que revelaram glicemia em jejum de 327mg/dl, sem outras alterações de relevo. Foi requisitada repetição do doseamento da glicemia em jejum. Onze dias depois voltou a recorrer à consulta, apresentando um valor de glicemia em jejum de 326mg/dl, com manutenção da clínica já descrita. No Mini-Mental State Examination (MMSE) pontuou 22 em 30 pontos e realizou ainda a pesquisa de hemoglobina glicada (HbA1c) na Unidade de Saúde Familiar (USF) com o resultado de 14%. Perante estes valores foi diagnosticada uma DM2, tendo iniciado terapêutica não farmacológica (medidas higieno-dietéticas e aconselhamento para aumento da prática de exercício, de acordo com as suas limitações) e farmacológica (metformina e insulina glargina em esquema de aumento progressivo de dose). Na mesma consulta foi referenciada para a consulta externa de neurologia.

Teve consulta de neurologia cerca de dois meses e meio após a referenciação, na qual pontuou 29 pontos no MMSE e colocou erradamente os números e ponteiros no teste do relógio. Também nesta consulta foram requisitadas TC-CE e eletroencefalografia.

Dois dias após a consulta de neurologia, a utente, acompanhada pela filha, voltou à USF para reavaliação, apresentando uma melhoria significativa do quadro cognitivo e já realizando de forma autónoma as atividades de vida diária. Estava a cumprir rigorosamente o plano terapêutico estabelecido, com reforço na componente alimentar, com orientação de nutricionista particular. Encontrava-se com 38 unidades de insulina glargina desde há um mês. Na monitorização da glicemia no domicílio apresentava valores em jejum compreendidos entre 107 e 137mg/dl e, duas horas após jantar, valores entre 104 e 204mg/dl. Ao exame objetivo apresentava-se colaborante e orientada, com TA de 115/86mmHg, IMC de 33,8kg/m2 e HbA1c de 7,8%. Assim, mantiveram-se as atitudes.

Vinte e um dias depois recorreu sozinha à consulta da USF para reavaliação, mantendo melhoria do quadro cognitivo. No MMSE pontuou 25 pontos e não apresentou nenhuma alteração no teste do relógio. Uma vez mais optou-se por manter o plano. A TC-CE solicitada pela consulta de neurologia foi realizada no mês seguinte, não demonstrando alterações relevantes.

Comentário

As alterações flutuantes da cognição apontavam para um diagnóstico de delirium, com a hiperglicemia, na dependência de uma DM2 não diagnosticada como o fator etiológico mais provável. Esta hipótese diagnóstica baseou-se na ausência de sintomatologia sugestiva de outra etiologia, na existência de descontrolo das glicemias médias dos últimos três meses (HbA1c 14%), coincidente com o início da clínica e na melhoria franca da sintomatologia após redução dos valores da glicemia. Constatou-se uma diminuição do valor do MMSE entre a consulta de neurologia e do MF, mais provavelmente relacionada com a sua aplicação por médicos diferentes. Comparando apenas os dois valores do MMSE aplicado pelo MF também se verificou uma melhoria significativa deste teste e até do teste do relógio após redução da glicemia. Além disto, o restante estudo analítico não apresentou alterações e a TC-CE solicitada pela consulta de neurologia revelou-se normal, reforçando o diagnóstico.

Retrospetivamente, perante a sintomatologia apresentada pela utente e a existência de um valor de glicemia superior a 200mg/dl, teria sido possível efetuar desde logo o diagnóstico de DM24 e, assim, antecipar a abordagem terapêutica. No entanto, dada a inexistência de sintomatologia típica, como perda de peso, poliúria ou polidipsia, e as múltiplas condições médicas que podem estar subjacentes ao delirium, optou-se pela repetição da glicemia em jejum para se atribuir o diagnóstico de DM2.

O presente trabalho demonstra a importância de estar atento às queixas compatíveis com delirium, bem como aos seus principais fatores etiológicos, de forma a proceder a uma correta avaliação e intervenção. O reconhecimento de que a hiperglicemia é uma das possíveis etiologias de delirium pode acelerar a resolução do quadro e diminuir o seu impacto na morbimortalidade dos doentes.

Por outro lado, pretende-se também, com este caso clínico, alertar para a importância da pesquisa de rastreio de diabetes mellitus, de acordo com a periodicidade recomendada pelas normas de orientação clínica da Direção-Geral da Saúde,4 com o objetivo de realizar uma deteção precoce da doença e prevenir as consequências a curto e longo prazo de um diagnóstico tardio.

O MF, sendo o primeiro contacto do doente com o Serviço Nacional de Saúde, deve prestar um acompanhamento próximo, contínuo e ser capaz de detetar que patologias comuns podem apresentar-se com quadros clínicos variados. Deverá estar alerta para o despiste das principais etiologias de delirium, realizar uma avaliação inicial e referenciar, sempre que assim seja necessário, para seguimento posterior nos cuidados de saúde secundários.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Adamis D, Treloar A, Martin FC, Macdonald AJ. A brief review of the history of delirium as a mental disorder. Hist Psychiatry. 2007;18(72 Pt 4):459-69.         [ Links ]

2. American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 5th ed. Arlington: American Psychiatric Association; 2017.         [ Links ] ISBN 978-9386217967

3. Francis Jr J, Young GB. Diagnosis of delirium and confusional states [updated 2014 Aug 22]. In: UpToDate [Internet]. Available from: https://www.uptodate.com/contents/diagnosis-of-delirium-and-confusional-states         [ Links ]

4. Direção-Geral da Saúde. Processo assistencial integrado da diabetes mellitus tipo 2: informação nº 001/2013, de 19/02/2013. Lisboa: DGS; 2013.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Sofia Oliveira Vale

E-mail: sofia.oliveira.vale@gmail.com

 

Conflito de interesses

Os autores declaram não ter quaisquer conflitos de interesse.

 

Recebido em 22-09-2017

Aceite para publicação em 22-09-2018

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