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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.35 no.5 Lisboa set. 2019

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v35i5.11953 

RELATOS DE CASO

Neuropatia induzida pelo tratamento: uma complicação iatrogénica da diabetes

Treatment-induced neuropathy: an iatrogenic complication of diabetes

Vera Juliana Oliveira Soares da Costa1
https://orcid.org/0000-0001-5939-8605

Edgar Rainho Coelho2

Virgílio dos Santos Caria3

1. Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. USF São João, ACeS Aveiro Norte.

2. Médico Interno de Medicina Geral e Familiar. USF São João, ACeS Aveiro Norte.

3. Médico Assistente Graduado de Medicina Geral e Familiar. USF São João, ACeS Aveiro Norte.

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

Introdução: A neuropatia induzida pelo tratamento da diabetes, até agora denominada neurite insulínica, é uma neuropatia aguda, que surge em diabéticos quando submetidos a um controlo glicémico abrupto.

Descrição do caso: Mulher de 66 anos de idade com diagnóstico de diabetes mellitus tipo 2 desde 1990, com nefropatia e retinopatia como complicações e mau controlo glicémico desde há vários anos. Apresentava, ainda, como problemas de saúde ativos hipertensão arterial e dislipidemia, sem outros antecedentes relevantes. Em junho de 2016 foi introduzida insulina isofânica com vista a alcançar um melhor controlo glicémico. Duas semanas depois recorre a consulta por hipersudorese intensa, náuseas, tonturas e sensação de desmaio quer em períodos pré como pós-prandiais, considerando-se como hipótese mais provável episódios de hipoglicémia. Uma semana depois recorreu novamente a consulta com queixas de parestesias e disestesias dos membros inferiores e manutenção dos sintomas autonómicos. No exame objetivo, apresentava alterações compatíveis com neuropatia periférica e, após consulta do processo clínico, verificou-se uma descida da hemoglobina glicada de 2,1% em três meses. Perante este quadro, a doente foi medicada com pregabalina em doses crescentes para alívio sintomático e explicado o caráter reversível desta situação. Na consulta de vigilância, realizada em setembro, a doente encontrava-se assintomática, sem necessidade de medicação analgésica.

Comentário: Este caso permite relembrar esta entidade, muitas vezes, confundida com neuropatia diabética e alertar para o potencial iatrogénico de um regime terapêutico intensivo num curto espaço de tempo.

Palavras-chave: Neuropatia diabética; Insulina; Metabolismo.


 

ABSTRACT

Introduction: Treatment-induced neuropathy, so far called insulin neuritis, is an acute neuropathy that occurs in diabetic patients when they undergo strict glycemic control in a short period of time.

Case description: 66-year-old woman diagnosed with type 2 diabetes mellitus since 1990 with nephropathy and retinopathy as complications, and poor glycemic control. She also presented with hypertension and dyslipidemia as active health problems, without other relevant clinical antecedents. In June 2016, isophane insulin was introduced in order to achieve better glycemic control. Two weeks later, the patient had another appointment due to intense hyperhydrosis, nausea, dizziness, and a feeling of fainting in both pre and postprandial periods, which was interpreted as hypoglycemia. A week later she presents to the consultation with complaints of paresthesias and dysesthesias of the lower limbs, and maintenance of the autonomic dysfunction symptoms. On physical examination, the findings were compatible with peripheral neuropathy and, after reviewing the clinical process, we found that glycated hemoglobin decreased 2.1% in three months. The patient was medicated with increasing doses of pregabalin for symptomatic relief and the reversible nature of the situation was explained. At follow-up in September, the patient was asymptomatic without need of adjuvant analgesics.

Comment: This case allows us to revisit this clinical entity, which is often confused with diabetic neuropathy, and to alert to the iatrogenic potential of an intensive therapeutic regimen in a short period of time.

Keywords: Diabetic neuropathy; Insulin; Metabolism.


 

Introdução

A neuropatia induzida pelo tratamento da diabetes ou neuropatia diabética dolorosa aguda do controlo glicémico rápido, anteriormente denominada neurite insulínica, é uma neuropatia aguda de pequenas fibras, iatrogénica, causada pela descida abrupta da glicemia no contexto de hiperglicemia crónica.1-2 Foi descrita pela primeira vez em 1933, por Caravati, com o nome de neurite insulínica, aquando do aparecimento dos sintomas numa paciente diabética que foi submetida a um rápido controlo glicémico com insulina, os quais desapareceram após suspender a mesma.3 No entanto, verificou-se que esta denominação não parecia ser a mais adequada, uma vez que podia surgir após controlo glicémico com antidiabéticos orais ou alteração do estilo de vida e não apenas com insulina, não existindo evidência de um processo inflamatório como mecanismo fisiopatológico subjacente, pelo que em 1966 foi proposto o termo neuropatia diabética dolorosa aguda do controlo glicémico rápido.4 Mais recentemente, em 2010, Gibbons e Freeman2 propuseram o termo neuropatia diabética induzida pelo tratamento.

Esta neuropatia pode ocorrer em pacientes com diabetes mellitus tipo 1 ou tipo 2, tratados com insulina, antidiabéticos orais ou restrição calórica severa2,5 e é reversível, semanas ou meses após o controlo glicémico adequado.2

Encontra-se a descrição de alguns casos na literatura, mas pensa-se que seja uma entidade ainda pouco conhecida e confundida muitas vezes com neuropatia diabética, patologia mais frequente nestes pacientes. Em 2015, Gibbons e Freeman5 fizeram um estudo retrospetivo de todos os doentes referenciados a uma clínica de cuidados nível III em neuropatia diabética durante cinco anos. Definiram a proporção de doentes que tinham neuropatia diabética induzida pelo tratamento, utilizando a junção de três critérios para fazer o diagnóstico: (i) diminuição da hemoglobina glicada (HbA1c) igual ou superior a 2% em três meses; (ii) início agudo de dor neuropática (aumento superior a três pontos na escala de Likert de 11 pontos) e/ou disfunção autonómica que se desenvolve em duas semanas ou de intensidade suficiente que leve à procura de cuidados médicos; (iii) a dor neuropática e/ou disfunção autonómica têm início dentro de oito semanas após a documentação da diminuição da HbA1c. Verificaram que 10,9% preenchiam os critérios de diagnóstico e que estes doentes tinham maior incidência de nefropatia e retinopatia.5 O risco de desenvolver esta neuropatia está associado com a magnitude e taxa de diminuição da HbA1c e doentes com diabetes tipo 1 e antecedentes de distúrbios alimentares apresentam maior risco.5

Existe pouca evidência sobre qual será a melhor estratégia para o controlo glicémico nestes pacientes. Os consensos atuais apontam para alcançar um bom controlo glicémico e tratar os sintomas dolorosos e autonómicos.6-7

Descrição do caso

Doente do sexo feminino de 66 anos de idade, raça negra, com diagnóstico de diabetes mellitus tipo 2 há 26 anos, com presença de retinopatia desde há 17 anos e nefropatia desde há quatro anos. Sem outras complicações micro ou macrovasculares. Tinha ainda, como diagnósticos, hipertensão arterial desde 1990 e dislipidemia desde 2014. Encontrava-se medicada com metformina + sitagliptina 1000/50mg 2id, pioglitazona 30mg id, clorotalidona 25mg id, amlodipina + valsartan 5/160mg id e atorvastatina 20mg id. Dos antecedentes pessoais destaca-se a intolerância ao lisinopril, por surgimento de tosse seca persistente. Veio à consulta de vigilância em 27/06/2016. Ao exame objetivo destaca-se um peso de 63Kg com índice de massa corporal de 24,6kg/m2, perímetro abdominal de 93cm, tensão arterial (TA) de 152/77mmHg, frequência cardíaca (FC) de 76bpm e auscultação cardiopulmonar sem alterações. No exame do pé verificou-se secura cutânea e presença de calosidades, com pulsos tibial posterior e pediosos palpáveis, amplos e simétricos, sensibilidades superficial (tátil e dolorosa) e profunda (vibratória) mantidas e reflexos osteotendinosos rotuliano e aquiliano normais e simétricos. Das análises, a destacar uma hemoglobina glicada (HbA1c) de 11,4%. Nesta consulta foi introduzida insulina isofânica/NPH (10 unidades ao jantar) e retirada pioglitazona, pelo risco de efeitos adversos a longo prazo. Também foi alterado o anti-hipertensor por manutenção de TA elevada na consulta há mais de três meses, mudando-se a associação amlodipina + valsartan 5/160mg para amlodipina + candesartan 10/16mg, mantendo-se a restante terapêutica. A enfermeira de família fez ensinos relativos aos cuidados alimentares, prática de exercício físico, administração de insulina e de automonitorização da glicemia capilar e marcou consultas de enfermagem semanais no primeiro mês de insulinoterapia, com vista a verificar os valores de glicemia capilar e possíveis falhas ou dúvidas na administração da insulina, sendo que, sempre que necessário, entrou em contato com a médica com vista a fazer possíveis ajustes na terapêutica.

Duas semanas depois do início de insulinoterapia, a doente recorreu a consulta pelo surgimento de hipersudorese intensa, náuseas, tonturas e sensação de desmaio quer em períodos pré como pós-prandiais. Ainda não tinha mudado o anti-hipertensor, mantendo valores de TA elevados na consulta, não se detetando hipotensão ortostática. Este quadro foi interpretado como possíveis episódios de hipoglicemias, apesar de não terem sido objetivadas pela pesquisa de glicemia capilar aquando da sintomatologia. Antes de iniciar insulina, a doente apresentava valores de glicemia em jejum de cerca 200mg/dL e, após o início da insulina, os valores baixaram para cerca de 140-150mg/dL.

Após uma semana recorreu novamente a consulta pela manutenção dos sintomas autonómicos descritos e aparecimento de parestesias nos membros inferiores, que a doente descreve como sensação de ardor “tipo fogo” na planta dos pés. A dor foi graduada pela doente com seis pontos usando a escala numérica da dor. Já tinha iniciado o novo anti-hipertensor. Ao exame físico verificou-se diminuição da sensibilidade propriocetiva pesquisada com diapasão, da sensibilidade superficial tátil pesquisada com monofilamento e da dolorosa pesquisada por picada com agulha. No restante exame físico destaca-se uma TA de 144/74mmHg e FC de 76bpm, sem outras alterações. Verificou-se no processo clínico que em 29/12/2015 tinha HbA1c de 13,6% e em 31/03/2016 de 11,5%. Perante estes resultados, que foram alcançados ainda antes de iniciar insulinoterapia, questionou-se a doente acerca de alterações no estilo de vida. A doente referiu que, de facto, desde que lhe foi explicada a necessidade de introdução de insulina e a qual ela recusava há algum tempo, tinha tido mais cuidados alimentares desde a consulta de dezembro, o que se refletiu numa redução da HbA1c. Foi medicada com pregabalina em doses crescentes e manteve-se a restante terapêutica. Explicou-se à doente que esta situação habitualmente é reversível com a melhoria do controlo glicémico, pelo que havia necessidade de continuar a cumprir o esquema insulínico.

Na consulta de vigilância de diabetes em 27/09/2016 apresentava-se assintomática, tendo já suspendido a medicação coadjuvante na analgesia. Das análises requisitadas, a reter uma glicada de 11,4%, mantendo a mesma terapêutica farmacológica.

Comentário

Este caso cumpre os critérios para neuropatia induzida pelo tratamento da diabetes, uma vez que a doente se apresentou com início súbito de dor neuropática e disfunção autonómica após melhorar o seu controlo glicémico através de restrição calórica e estes sintomas foram despoletados após tentativa de maior controlo pela insulinoterapia que, inicialmente, baixou as glicemias em jejum, apesar de não se verificar uma descida da HbA1c. A sintomatologia apresentada pela doente levou à procura de cuidados médicos duas vezes no período de três semanas, o que espelha a intensidade dos sintomas. Inicialmente, a disautonomia parecia ser a principal queixa, apesar de não se verificarem alterações relevantes ao exame físico e, posteriormente, os sintomas neuropáticos tornaram-se mais intensos e incapacitantes. Neste caso, a melhoria do perfil glicémico inicial foi alcançado apenas com a restrição nutricional relatada pela doente. Contudo, parece que a introdução da insulina terá intensificado essa melhoria, como se pode objetivar pela descida da glicemia capilar em jejum, quantificada diariamente, de cerca de 200 para cerca de 140mg/dL, o que poderá justificar o despoletar dos sintomas cerca de duas semanas após a introdução da insulina.

Atualmente existe pouca evidência sobre a melhor abordagem em diabéticos com neuropatia induzida pelo tratamento. Ainda assim, a obtenção de um bom controlo glicémico parece levar à reversão dos sintomas dolorosos e autonómicos,2 pelo que os consensos atuais sugerem a manutenção do tratamento da diabetes e o controlo sintomático dos efeitos adversos como a abordagem preferencial nestas situações.6-7 Deste modo, o facto de se ter pensado nesta entidade fez com que se conseguisse transmitir à doente a reversibilidade da situação e reforçar a necessidade de manter a terapêutica.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Cuenca-Hernández R, Segura-Galindo A, Martínez-Acebes E. Neuropatía inducida por el tratamiento de la diabetes o neuritis insulínica [Insulin neuritis or treatment-induced diabetic neuropathy of diabetes]. Neurología. 2018;33(9):616-8. Spanish

2. Gibbons CH, Freeman R. Treatment-induced diabetic neuropathy: a reversible painful autonomic neuropathy. Ann Neurol. 2010;67(4):534-41.         [ Links ]

3. Caravati CM. Insulin neuritis: a case report. Va Med Monthly. 1933;59:745-6.         [ Links ]

4. Tesfaye S, Malik R, Harris N, Jakubowski JJ, Mody C, Rennie IG, et al. Arterio-venous shunting and proliferating new vessels in acute painful neuropathy of rapid glycaemic control (insulin neuritis). Diabetologia. 1996;39(3):329-35.         [ Links ]

5. Gibbons CH, Freeman R. Treatment-induced neuropathy of diabetes: an acute, iatrogenic complication of diabetes. Brain. 2015;138(Pt 1):43-52.         [ Links ]

6. Knopp M, Srikantha M, Rajabally YA. Insulin neuritis and diabetic cachectic neuropathy: a review. Curr Diabetes Rev. 2013;9(3):267-74.         [ Links ]

7. Hwang YT, Davies G. ‘Insulin neuritis’ to ‘treatment-induced neuropathy of diabetes’: new name, same mystery. Pract Neurol. 2016;16(1):53-5.

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Vera Juliana Oliveira Soares da Costa

E-mail: veracosta88@gmail.com

 

Conflito de interesses

Os autores declaram não ter quaisquer conflitos de interesse.

 

Recebido em 28-12-2016

Aceite para publicação em 18-03-2019

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