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Revista Internacional em Língua Portuguesa

versão impressa ISSN 2182-4452versão On-line ISSN 2184-2043

RILP vol.43  Lisboa jun. 2023  Epub 22-Maio-2023

https://doi.org/10.31492/2184-2043.rilp2023.43/pp.67-92 

Artigo Original

Comunicação Política, inteligência artificial e ciberesfera

Silvino Lopes Évora1 

1Mestre e Doutor em Ciências da Comunicação (Universidade do Minho), Professor Auxiliar e Presidente do Conselho Científico da Universidade de Cabo Verde.


Resumo

Nos últimos tempos, a Comunicação Política conheceu avanços significativos, consubstanciando-se em processos de mediação social mais intensos, com o amparo no desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação. Muito além dos tradicionais instrumentos de comunicação, como as campanhas porta a porta, os grandes comícios, a distribuição de panfletos e a disponibilização de autocolantes, cartazes e outdoors nas principais artérias dos centros urbanos e rurais, a comunicação política beneficiou do alargamento do espaço público, com a criação da ciberesfera, enquanto prolongamento do campo das interações humanas. É a partir da realidade virtual que emergem os robots digitais, com uma maleabilidade que lhes permitem construir respostas perante os desafios de cada momento. Os algoritmos tornaram-se em novos spin doctors que, a partir dos esconderijos ciberespaciais, procuram orientar a vontade pública na direção de um sentido predeterminado.

Palavras-chave: inteligência artificial; algoritmo; ciberespaço; comunicação política

Abstract

In recent times, Political Communication has made significant progress, resulting in more intense social mediation processes, supported by the development of information and communication technologies. Far beyond the traditional instruments of communication, such as door-to-door campaigns, large rallies, the distribution of pamphlets and the availability of stickers, posters and billboards in the main highways of urban and rural centers, political communication benefited from the expansion of public space with the creation of cybersphere, as an extension of the field of human interactions. It is from virtual reality that digital robots emerge, with a malleability that allows them to build responses to the challenges of each moment. Algorithms have become new spin doctors that, from cyberspace hiding places, seek to guide the public will in the direction of a predetermined direction.

Keywords: artificial intelligence; algorithm; cyberspace; political communication

Introdução

A comunicação política tem passado, ao longo dos tempos, por constantes transformações, procurando adaptar-se a um conjunto de mudanças conjunturais que as sociedades experimentam e que marcam, de forma indelével, os modos de relacionamento e de interação entre os vários sujeitos sociais. Há um corolário de fatores que concorrem para esta mudança que se tem registado no campo da comunicação política, dos quais se destacam dois deles que assumem um papel preponderante: a crescente evolução no domínio das tecnologias da informação e da comunicação, que tem estendido a esfera pública para o campo digital; a modernização dos sistemas políticos em diferentes partes do mundo, com o imperativo da adesão à democracia pluralista no mundo ocidental e nos territórios influenciados externamente pela mentalidade ocidental, incrementado pelo desfecho de uma das etapas da Guerra Fria e, concomitantemente, pela queda do Muro de Berlim.

Esses fatores, acompanhados de mudanças e premissas liberalistas no plano internacional imprimidas pelos blocos ocidentais, concorreram para a derrocada parcial de muitos sistemas autoritários de exercício do Poder que, nos anos 80 e 90 do século passado, perduravam nos países do leste europeu e da África lusófona. Nos países da Europa do Leste, sobretudo aqueles que resultaram do desmembramento do bloco soviético, persistiam sistemas autoritários de exercício do Poder Político. Algo semelhante ao que se vivia na África lusófona, em que os partidos políticos, herdeiros dos tributos das lutas pela descolonização, implementaram, a partir de 1975, regimes de Partidos Únicos, procurando afunilar o exercício do poder e combater as pretensas oposições. Desta feita, a terceira vaga da democratização - segundo Koudawo (2000) - se deu com a liberalização político-partidária do leste europeu e, subsequentemente, da África lusófona.

No plano dos cinco países dos PALOP, a democratização foi parcial, na medida em que, se por um lado, se deu uma abertura formal dos sistemas políticos - com mudanças constitucionais, implementação da concorrência política e de um regime de competição eleitoral, opinativa e partidária -, nalguns desses países, os partidos políticos que assumiram o poder no decurso das negociações dos termos das independências nacionais com Portugal depois da Revolução de 25 de Abril de 1974 permaneceram no poder, mesmo depois do início da década de 90, estendendo-se até ao presente momento. Isso evidencia um certo paternalismo institucional destes partidos políticos - por exemplo, o MPLA, em Angola, e o FRELIMO, em Moçambique - que, muito dificilmente, abrem espaços eficazes para uma concorrência política saudável e, com isso, para a implementação de um pluralismo político material.

Esse controlo do sistema social a partir da inscrição das ideias, ideologias, projetos e interesses desses partidos nas instituições do Estado através do controlo do Poder acaba por resultar, nesses países, numa ‘democracia palaciana’, sem um corpo efetivo e sem uma prática arraigada na vivência das populações.

Fora dos contextos de domínios autoritários do poder - quer os que decorrem da formalidade do regime político, quer os que decorrem da não materialização dos pressupostos e princípios da democracia na vivência social -, encontram-se formas mais avançadas de disputa do poder. Elas decorrem sobretudo das novas abordagens da comunicação política, resultado de um incremento das tecnologias nos processos de mediação política. Para Crawford e Calo (2016), tem-se registado, na última década, uma densificação dos investimentos no campo tecnológico adstrito à área da inteligência artificial. Isso tem contribuído para uma bifurcação do espaço público, que se estabelece entre os domínios do sensível e do inteligível, sendo este último consubstanciado na intangibilidade dos processos de mediação social, dando ao virtual uma existência própria no âmbito das relações humanas. A lógica de funcionamento dos motores de busca na internet, a gestão e a disponibilização dos conteúdos no ciberespaço e os sistemas de reconhecimento de voz e de imagens constituem algumas das áreas de aplicação da inteligência artificial nos domínios comunicacionais, sendo que Ramos-Martín e Barreneche (2020) estendem a enumeração da sua aplicação para fora do campo mediático, abarcando a avaliação de risco em créditos bancários, os veículos autónomos ou o recrutamento de quadros para determinadas entidades públicas ou privadas.

A ampliação do espaço público para a esfera digital acabou por originar novas formas de interação social, com recurso a infraestruturas de sentido social cada vez mais sofisticadas, com vista a trazerem novas abordagens no âmbito da comunicação política. Na última década, tem-se destacado, particularmente, a problemática da aplicação da inteligência artificial ao campo das mediações políticas, criando mecanismos cada vez mais sofisticados de engendramento de campos semânticos entre os políticos e os cidadãos, os concorrentes e os eleitores e, por fim, os governantes e os governados.

É importante ver que, para além dos tradicionais mecanismos de comunicação política que, no passado, suportaram os contactos entre os candidatos a cargos públicos cujo acesso resulta de disputas eleitorais, tem-se desenvolvido novas formas de mediação social e política. As redes sociais abriram novas possibilidades de desenvolvimento de interação entre os sujeitos políticos e os cidadãos, distanciando-se das práticas quase exclusivas de interação através de cartazes, panfletos, contactos porta-a-porta, grandes comícios e circulação de carros com mensagens propagandísticas pelas artérias das cidades, regiões e localidades. “A lógica da Internet como plataforma de rede social facilita às pessoas a oportunidade de se associarem a outros com quem partilhem interesses, encontrar novas fontes de informação e publicação de conteúdo e opinião. A denominada Web social disponibiliza recursos que permitem, a quem tem acesso à tecnologia, a possibilidade de ter uma voz. Plataformas como Facebook, YouTube, Flickr e Twitter são uma ‘nova ágora’, que combina o poder do capital humano e social com o potencial de comunicação global da Web social. As possibilidades existem, a rede tornou-se dinâmica e a velocidade é uma realidade” (Amaral e Évora, 2017, p. 126).

Nos dias que correm, regista-se uma integração das ferramentas de comunicação no campo da política, criando um ‘efeito mosaico’ entre os tradicionais instrumentos de propaganda e as atuais formas de mediação tecnológica e de constituição do espaço público no ambiente digital. Assim, no campo da comunicação digital, sobretudo no domínio da interação política, os conceitos de algoritmo, bots, robots, chatbots e big data, tornaram-se elementos presentes no engendramento da comunicação e na reelaboração permanente do novo espaço alicerçado no ciberesfera. Assim, neste artigo, propomos desenvolver uma abordagem sobre os novos pressupostos da mediação na ciberesfera, considerando, particularmente, a influência da inteligência artificial sobre a reelaboração da comunicação política e a possibilidade de ela contribuir para forjar novas perspetivas e lideranças, a partir dos consensos e dissensos que se estabelecem nas redes sociais digitais.

A semântica do espaço digital, engendrada a partir das interfaces e do algoritmo, contribui para a formação das prioridades coletivas, com vista a orientar a massa para uma certa direção, formando uma opinião pública a partir da definição de interesses coletivos. Essa formatação não é completamente genuína, uma vez que o algoritmo resulta de fortes processos de programação, com o objetivo de formular artificialmente uma massa orientada para um sentido coletivo. Desta forma, as tomadas de decisões políticas, muitas vezes, não resultam das necessidades engendradas a partir da vida social, mas, antes, de uma formulação artificial de uma pretensa opinião pública, controlada e gerida por uma máquina, que, em última instância, atende a interesses de elites sociais estabelecidas nos campos económico, político, tecnológico e de lobbies.

Como veremos, ao longo deste artigo, a crescente digitalização do espaço público conduziu a um incremento da mediação e da formulação das decisões de forma acelerada. As relações políticas são engendradas num processo de instantaneidade, uma vez que as ferramentas tecnológicas e a celeridade da vida no ambiente digital expandiram o espaço público para novas possibilidades existenciais, degenerando num quotidiano híbrido marcado por uma profusão de semânticas e uma proliferação dos elementos de constituição de sentidos sociais. A ampliação do ambiente político prolonga o espaço de mediação entre os atores políticos e os cidadãos. Outrossim, criam uma maior pressão sobre os decisores políticos, cujas deliberações passam por processos mais céleres e por um escrutínio público mais apertado.

1.Inteligência artificial, era digital e ciberesfera

Como salientamos na parte introdutória, a inteligência artificial contribui para um novo posicionamento dos atores políticos na esfera pública, alterando os processos de mediação política e a própria constituição do espaço público, que se alarga para o terreno da intangibilidade, constituindo novas formas de inteligibilidade e novos processos de interação.

Assim, como evidenciamos, o imediatismo altera o tempo de constituição das decisões, com vista a provocar respostas mais céleres para os desafios que as sociedades enfrentam. As decisões políticas passam a ser engendradas numa esfera pública de dupla dimensão, havendo uma existência física e um espectro sideral.

A era digital ampliou a troca de dados numa proporção sem precedentes, numa sociedade marcada pela superabundância de informação, que estabelece um quadro de saturação simbólica e cria um ruído semântico, obrigando a uma seleção das informações, com vista a criar-se frammings culturais e contribuir-se para a edificação de um ambiente introspetivo de elaboração da semiótica da realidade envolvente.

Assim, a era digital implicou uma abordagem do determinismo tecnológico em todos os campos da vida social e humana, edificando uma esfera pública digital - a ciberesfera - que, na lógica de pensamento de McLuhan (1977 e 2006) sobre a prótese tecnológica do ser humano - acaba por se tornar na extensão ou no prolongamento do campo da esfera pública empírica e física.

As ideias de espaço público e de ciberesfera remetem-nos para as próprias condições de materialização da democracia na contemporaneidade, uma vez que este sistema de organização social e política questiona os ambientes no âmbito dos quais se expressam as opiniões públicas. Assim, o debate sobre o livre exercício dos direitos individuais e as condições para a sua execução remete-nos para a formação do espaço público no ambiente digital, considerando um espectro de biotecnologização da comunicação, num ambiente biónico entre a máquina, o algoritmo, a biotecnologia e os códigos de significação, ampliando o campo de compreensão da realidade e da vida quotidiana e integrando os espaços público e privado, manipulando as ambições, as emoções, os desejos, os comportamentos e o ambiente simbólico no âmbito do qual se engendram respostas sobre as questões da vida quotidiana.

Se olharmos para a ergonomia da ciberesfera, podemos notar que há um incremento da velocidade nas trocas sociais. Deste modo, a ciberesfera é marcada por atributos como a extensão, o prolongamento, a velocidade e a intensidade, que derivam da dialética social implementada pelo avanço das tecnologias da informação e da comunicação. Esse incremento tecnológico tem provocado uma modificação dos pressupostos que engendram e suportam as relações nas sociedades modernas. Assim, a contemporaneidade é marcada por novos padrões e novas circunstâncias de interação social, contando essencialmente com o progresso das tecnologias nas mediações sociais, políticas, culturais e económicas. Nesta matéria, a inteligência artificial ocupa um lugar cimeiro.

O conceito de inteligência artificial é aplicado com muito pragmatismo, reportando às possibilidades facultadas pelos computadores, a partir dos quais se desenvolvem algoritmos treinados para funcionarem com base num pensamento de matriz humano. Trata-se de um conceito originado pelos universos de pensamentos desenvolvidos no âmbito dos estudos tecnológicos e que recorre às ciências computacionais para, a partir das linguagens de programação, consubstanciar as semânticas sobre os processos quotidianos e contribuir para a edificação de um território de expansão do espaço público empírico, através do território sideral da ciberesfera.

Desse modo, a conexão entre a inteligência artificial e a internet, quando aplicada ao segmento da comunicação política, engendra novos processos de mediação. A sua aplicação não é exclusiva ao campo político, mas incide sobre vários territórios da vida social, tendo como elemento importante a conectividade humana desencadeada através das ferramentas de interação on-line. No domínio dos mass media, a inteligência artificial invadiu todas as artérias de trocas de sentidos, desde o jornalismo, passando pela comunicação organizacional, marketing político, pesquisa on-line, entre outras dimensões. Por isso, é atualmente uma área de grande interesse dentro dos chamados mass communication research.

Olhando para a arquitetura do ciberespaço, podemos verificar que a inteligência artificial tem uma forte presença na constituição dos motores de busca on-line e das plataformas agregadoras de informação, programando os processos de pesquisa e estratificando os públicos em função das suas necessidades, gostos e hábitos de consumo no ambiente cibernético. Nota-se, por exemplo, no caso da Google, a aplicação da inteligência artificial no estabelecimento de rankings e hierarquias de conteúdos, implementando uma ordem de acesso. Esta estratégia tem contribuído para a construção da ciberesfera em função de uma ordem de programação própria, que impede o processo de significação e de construção semântica do espaço digital crescer de forma aleatória, autónoma, livre e espontânea. Portanto, há toda uma lógica de pensamento e de visão do espaço público digital, que nasce das ambições humanas e é projetada para as máquinas inteligentes, orientadas a estabelecer um sentido para a massa.

No domínio dos agregadores de notícias, o papel da Inteligência Artificial, também, é fundamental. Neste sentido, importa sublinhar os contributos de Paterson, que considera como agregadores os “portais ou ferramentas de busca que desenvolveram formas de recuperar, selecionar, classificar e vincular uma grande quantidade de notícias indexadas em outras partes do ciberespaço” (2006, p. 4). Outrossim, nos dias atuais, é notório que as redes sociais contam com uma forte componente de inteligência artificial no engendramento das suas mensagens e na constituição da substância sideral da ciberesfera. No universo da gigante Metaverso, nota-se que os dois principais produtos do campo das redes sociais - o Facebook e o Instagram - funcionam à base de uma forte componente de desenvolvimento da inteligibilidade comunicativa alicerçada nas virtudes da Inteligência Artificial. Desde logo, verifica-se, nos algoritmos que suportam essas redes de contacto e de interação na ciberesfera, uma incidência sobre a análise e o acompanhamento da atitude dos usuários no ciberespaço, estabelecendo um quadro de orientação das ofertas em função dos hábitos e das experiências de consumo. Assim, recorrendo a algoritmos altamente treinados para compreenderem as dinâmicas de consumo e das movimentações no ciberespaço, as redes sociais alicerçadas no campo empresarial Metaverso procuram mapear os conteúdos adequados aos hábitos de consumo dos seus usuários e, deste modo, proporcionar, aos seus utentes, experiências de consumo mediático alinhadas com as suas expectativas. Destarte, torna-se mais fácil localizar páginas, perfis, grupos e conteúdos que vão ao encontro das experiências de interação cibernética dos seus utentes.

Olhando para a ciberesfera, podemos notar, ainda, importantes incidências no processo de construção dos substratos de significação no espaço digital dos serviços de streaming, como a Netflix e a Spotify. Tanto estes como as provedoras de vídeos digitais (Likee, Instagram, Tiktok, etc.) contam com avançados processos de codificação informática, tornando a inteligência artificial uma parte muito importante dos produtos e serviços que disponibilizam e dos processos de interação que engendram nas suas plataformas digitais. Os algoritmos, associados a essas plataformas, são treinados para acompanharem a dinâmica dos usuários no ciberespaço, acumulando a sua história de navegação, a sua experiência de consumo e os seus ciclos de interação. Também, agregam, a isso tudo, um código de registo georreferencial, que permite a identificação do terminal de acesso, possibilitando uma oferta segmentada de conteúdos, vídeos, anúncios, publicidades e propagandas, não apenas considerando a afinidade material e axiológica da substância colocada no espaço público, como, também, as proximidades geográfica e cultural. Neste caso, a programação dos algoritmos agrega lógicas de conhecimentos desenvolvidos no quadro da própria teoria de noticiabilidade que, na definição dos valores-notícia e dos critérios associados aos processos de construção noticiosa, destacam os elementos ‘proximidade geográfica’ e ‘cultural’ como substantivos, influenciando a transformação dos acontecimentos em notícias (Crato, 1992; Santos, 1992; Sousa, 2006; Wolf, 1999).

Como podemos registar, há uma tendência de pensar a inteligência artificial como algo autónomo, dando à tecnologia um conceito de independência e de autenticidade, mas, em boa verdade, a eficácia do seu processamento deriva de um treinamento contínuo, como forma de os algoritmos apreenderem padrões e definirem o enquadramento dos conteúdos adequados. A robotização da comunicação degenera de um processo de criação de padrões de leitura de procedimentos. Como podemos notar, o universo de estudo da inteligência artificial desdobra-se em várias subáreas, como os setores de machine learning - dedicada ao estudo da aprendizagem das máquinas -, do big data, do deep learning e da linguagem natural.

2.Ciberesfera, um novo conceito de espaço público

O estudo do espaço público e da ciberesfera constitui um elemento fundamental para a compreensão das práticas políticas e da constituição do sistema democrático no mundo moderno, considerando, essencialmente, os processos de formação das decisões no contexto do incremento do campo digital. Esta constatação deriva do facto de haver uma conexão entre o espaço público e a ciberesfera, num contexto das revoluções que têm marcado as sociedades modernas, inscritas num movimento histórico de transformação constante.

Olhando para o curso histórico, deparamo-nos com um vínculo sólido entre os processos de construção da esfera pública e o incremento das tecnologias digitais, com enfoque, particularmente, nas primeiras décadas do novo milénio, em que o ativismo social e as práticas políticas expandiram-se, de forma vertiginosa, para o campo digital, proporcionando um ambiente de proliferação de contactos e de multiplicação de veículos de significação nos meios urbanos. Assim, nota-se um grande impacto do estabelecimento do campo virtual sobre as práticas políticas, alterando o conceito e a conteúdo do espaço público nos dias que correm.

Deste modo, importa sublinhar que Goffman (2010) constitui o conceito de espaço público a partir de uma antinomia em relação ao espaço privado, considerando que ele se estabelece como um domínio territorial ‘não privado’. Esta abordagem é, de certa forma, ampla, uma vez que inclui, de forma hipotética, no conceito daquilo que é público, todo o conteúdo não privado. Porém, essa integração é hipotética, no sentido de que determinados conteúdos podem estar ou não incluídos, não havendo nenhum axioma conceptual que institui um sistema de imperatividade em termos de presença de determinados elementos fundamentais para caracterizarem o que, de si, é público. Assim, na proposta do supracitado autor, os desenvolvimentos do campo político não assumem preponderância na enformação conceptual, podendo ser integrados ou não, consoante o assunto que, em cada momento, se coloca em equação.

Por isso, o conceito de espaço público, para Goffman (2010), não incorpora, em si, uma dimensão que coloca a política no centro, mas esta é encarada como um elemento igual a tantos outros. Assim, a política poderá ser considerada no corpo da conceitualização do supracitado autor, se levarmos em conta que ela precipita em vários campos da vida social, permeando os debates públicos, as manifestações e a constituição das orientações coletivas da sociedade, as concertações sociais, o estabelecimento do campo dos direitos e dos deveres dos cidadãos e do estado, os dissensos e os consensos.

Em Habermas (1981a; 1962/1994; 1968/1994), a análise do espaço público integra uma certa racionalidade crítica da modernidade, em que se deve integrar, tanto os debates sobre as representações e as práticas políticas coletivas, como as discussões em torno da edificação de consensos à volta das ações que incidem sobre o funcionamento dos grupos que operam no tecido social. Deste modo, podemos salientar que, na conceção habermasiana, o conteúdo do espaço público implica um processo de mediação entre as ambições e os projetos da sociedade (vista como um ‘mosaico’ de interesses particulares que procuram pontos conjuntivos) e a vontade geral, sedeada nos aparelhos do Estado. Neste caso, podemos verificar que persiste a ideia de que, se o Estado enquanto coletividade total tem uma vontade própria, os indivíduos representados em grupos, também, estabelecem os seus regimes axiológicos no âmbito dos quais inscrevem uma vontade autónoma da do Estado e lutam para a sua concretização. Assim, procuram satisfazer os interesses grupais, através de debates, atividades e expressões das visões e das ideias no âmbito dos grupos nos quais militam.

O debate sobre o espaço público aponta para uma certa urbanização dos campos de expressão coletiva, resultado dos movimentos de industrialização e de êxodo rural do século XVIII, a expansão das cidades e a ampliação das periferias urbanas, criando formas de inteligibilidade dos interesses coletivos e uma certa orientação na criação de amplos consensos, que ajudam a direcionar as ações da massa num ou noutro sentido. Assim, se, no plano dos debates sobre a função política da cidade, alguns autores apontam para uma certa desagregação do espaço público, movimentos mais recentes nos palcos internacionais mostram que, ainda, ele não se encontra amplamente dissuado.

As evidências mais recentes da manifestação da orientação coletiva das massas estão espelhadas nos movimentos de Brexit no Reino Unido e nas persistentes manifestações dos chamados Jillets Jaunes, em França, que só foram atenuadas com a pandemia provocada pelo novo coronavírus (SARS-COV-2), que obrigou os governos a implementarem severas políticas de restrições de movimentos de pessoas nas ruas e resgatou Emmanuel Macron, presidente francês, de uma frente de crítica tenaz, que se fazia contra um conjunto de medidas políticas com implicações sobre os benefícios sociais e a proteção dos direitos dos trabalhadores.

A falta de constância de uma política que, a grosso modo, preserva os direitos e os interesses dos cidadãos tem levado, nalguns palcos internacionais, a oscilações das massas entre polos ideológicos de Direita e Esquerda, elucidando movimentos de adesão e de repulsa, que, em função das conjunturas sociais, políticas e económicas, provocam ondulações entre polos ideológicos, políticos ou partidários. São esses movimentos sociais em ‘ondas’ (expressão da massa, de um sentido de coletividade e de consenso conjuntural) que conduziram à vitória e, posteriormente, à derrota de Donald Trump nos pleitos eleitorais para a Casa Branca, entronaram Jair Bolsonaro e estão a empurrá-lo agora para uma derrocada do seu capital político e projetaram Boris Johnson, para, depois, empurrá-lo para o precipício.

Por isso, não se pode considerar que a expressão do sentido literal do espaço público através da ocupação de ruas e de praças constitua premissas extemporâneas de definição do conteúdo do espaço público, mas, ainda hoje, os movimentos de coletividade têm expressão e afetam, de forma decisiva, os momentos que os países vivem. Dois fatores têm alterado a sua textura: as crises económicas têm transformado o espaço público em palco das reivindicações e, raras vezes, em territórios de exaltações; as tecnologias provocaram mudanças severas na ‘pele’ do espaço público, mudando a sua textura, a sua temperatura, a sua cor, o seu brilho e a sua abrangência. A primeira situação - a do espaço público como um palco de reivindicações - tem-se derivado de um conjunto de fatores que têm minado a confiança dos cidadãos nos poderes públicos e nas personalidades que exercem tais poderes. Um pouco por todo o mundo, as situações de crises sociais, económicas, políticas e securitárias têm degradado a confiança dos cidadãos nas instituições estatais, levando a movimentos sociais de reivindicação e de constituição de uma esfera pública ultramoderna, que nasce de um anseio coletivo de regenerar a polis e arguir as condições de vida atuais, propondo processos transformacionais que conduzem as sociedades para novos equilíbrios, alicerçados em novos pactos sociais. Assim, as situações de violência urbana, crise de confiança nos políticos, abstenções eleitorais abismais, de entre outras, têm minado os termos do velho contrato social, exigindo novas ruturas e o estabelecimento de vínculos mais sólidos e de maior robustez entre os governantes e os governados. Com o desenvolvimento acelerado das tecnologias de mediação social e política, a análise da constituição do espaço público pelo viés da ocupação física das artérias das cidades não constitui uma métrica realista de avaliação da vitalidade das orientações coletivas que constituem o sentido das massas e nem a textura que o espaço público adquire nos dias atuais. As acelerações dos processos tecnológicos levaram ao desenvolvimento de uma cultura denominada de indoors, marcada pela proliferação dos aparatos que suportam a comunicação on-line, levando os cidadãos - na qualidade de cibernautas - a se constituírem em multidões on-line, orientadas para propósitos comuns e pelo abandono parcial das ruas.

Deste modo, o conjunto de recursos que proporcionam a interação no ciberespaço concorrem para a formação dessas multidões on-line. Conta-se, para isso, com recursos derivados das interfaces tecnológicas, como os hashtags das redes sociais, os sistemas de identificação das pessoas nos comentários e nos posts, as republicações dos conteúdos na ciberesfera e as facilidades de edição de conteúdos escritos e iconográficos, originando, deste modo, um movimento social moderno, marcado pela crescente mediação tecnológica. Olhando, particularmente, para o caso cabo-verdiano, podemos registar que, embora os partidos políticos ainda tenham uma aposta forte nos instrumentos tradicionais da comunicação política - como, por exemplo, a montagem dos palcos para grandes comícios, os minicomícios em veículos de porte médio e grandes atrelados transformados em palcos itinerantes, as abordagens aos eleitores nas suas próprias casas, nas artérias das cidades, das aldeias e de outros espaços públicos (chamados de porta a porta), a afixação de cartazes, autocolantes e outdoors, a circulação de veículos itinerantes com mensagens gravadas ou com indivíduos ao vivo a veicularem mensagens de propaganda política, entre outras -, tem havido um incremento das tecnologias nos processos de mediação política, sobretudo no período das campanhas eleitorais. Começou-se, há mais de uma década, com o recurso aos telemóveis para o envio de mensagens mais direcionadas, numa abordagem segmentada do público eleitor, para, com o incremento das redes sociais, passar-se ao estabelecimento de bases de campanhas eleitorais no ciberespaço, orientadas para o combate político.

Olhando para o continente africano, podemos sublinhar que a aplicação das tecnologias na constituição das massas populacionais orientadas em torno de objetivos coletivos teve o seu despertar com a denominada Primavera Árabe que, em 2011, afetou sobretudo o norte da África, levando à queda de regimes que, por largas décadas, subsistiram mediante o incremento de ditaduras e de combate às diferenças, ao pluralismo e às diversidades cultural e opinativa.

Porém, um pouco por todo o mundo, também, as tecnologias evidenciaram a sua capacidade de alterar o quadro de orientação coletiva. Os chamados movimentos dos indignados espanhóis organizados, em 2011, a partir da plataforma ¡Democracia Real Ya!, as insurgências gregas contra a política económica do governo, entre outros episódios, mostraram essa coalização das massas. Esse movimento não se deu apenas pela incrementação da internet nos processos de mediação social, mas as próprias televisões globais colocaram o mundo perante uma situação de ‘contágio cultural’, o que levou Anthony Giddens, desde muito cedo, a vaticinar que “os locais são completamente penetrados e moldados em termos de influências sociais bem distantes deles. O que estrutura o local não é simplesmente o que está presente na cena; a ‘forma visível’ do local oculta as relações distantes que determinam sua natureza” (Giddens, 1991, p. 27). Deste modo, entre o local e o global, origina-se uma confluência simbólica semelhante ao que se regista entre o analógico e o digital, o tangível e o intangível, o sensível e o inteligível. A integração se revela como uma das consequências do mundo moderno (Giddens, 1998 e 2000; Habermas, 1980; 1981b/1999; 1985) ou do moderno líquido (Bauman, 2001), tornando-se a palavra de ordem para a orientação coletiva em torno da construção de um sentido que orienta o estabelecimento da ordem social (Adorno, 1998; Adorno e Horkheimer, 1991; Agamben, 1978/2000; Benjamin, 1933/1992). Por isso, é frequente a aplicação do termo integração em vários contextos da vida social: comunicação integrada (Kunsch, 1995; 1997a; 1997b), integração regional (Bhagwati, 1992; Friedmann, 1966; Hettne B. e Söderbaum, 1998 e 2000; Mashayeki e Ito 2005; Siroën, 2000; Tétart, 2010; Thompson, 1973; Uvalic, 2002; Veltz, 1997 e 2007), integração vertical das empresas (Andrade, 1998; Évora, 2011; Sánchez-Tabernero, 1993; Herman e McCheenesy, 1997), integração cultural e das minorias étnicas e religiosas, entre outras. A premissa fundamental é a construção de sentidos, de decisões, de orientação coletiva e do pensamento comum através da congregação das diferenças que se estabelecem em vários pólos da sociedade.

3.Inteligência artificial e política na ciberesfera

Ao longo deste texto, desvelamos o pressuposto de que a inovação tecnológica tem contribuído para mudanças sobre os padrões através dos quais se regem as relações sociais. Esta realidade conduz-nos a um patamar catalogado como ‘infoesfera’, que resulta da superabundância da informação nos ambientes sociais intangíveis e de novas formulações cognitivas, acompanhando a cristalização da ciberesfera enquanto espaço de mediação digital. Assim, ao contrário do que alguns vaticinam, a ciberesfera não se constitui como uma caixa de ressonância do mundo empírico, mas, antes, a sua extensão. Com as redes digitais de contacto, alargam-se as fronteiras de conexão humana e, suportados pelas infraestruturas tecnológicas, os indivíduos participam numa teia de relações sociais, que implicam trocas e envolvem ideias, emoções, pensamentos, sentimentos, gostos e estilos de vida.

A inteligência artificial tem contribuído para uma mudança de paradigma na comunicação política. Desde logo, importa salientar que, na era ciberespacial, as componentes de velocidade, intensidade, imediatismo e multimedialidade têm marcado o espetro das comunicações, mudando as interfaces das interações e os procedimentos na vinculação das relações sociais. A digitalização proporcionou o surgimento de uma esfera eletrónica fortemente alicerçada no campo da informação e da transferência de dados, que alguns autores apelidam de ‘infoesfera’. Esta esfera informativa é uma componente do ciberespaço, cuja amplitude de mediação é maior, envolvendo questões económicas, políticas, sociais, educacionais, sanitárias, recreativas, culturais, entre outras. O campo político tem ocupado uma importante componente da ciberesfera, consubstanciando-se em torno da informação, propaganda, formação social, política e ideológica ou de concorrência eleitoral.

A abertura do campo da comunicação ao ciberespaço contribui para a ampliação do espaço público, alterando o ambiente das mediações políticas. Portanto, não sendo um ambiente de ressonância simbólica do espaço público empírico, o ciberespaço é um outro departamento da esfera pública, que exige uma linguagem própria e estratégias de comunicação adequadas à sua natureza. Por isso, com a ciberesfera, dá-se um alongamento do espaço público, ampliando as possibilidades de mediação simbólica. Ela é constituída a partir de uma proliferação de canais de contactos, que contribuem para a afirmação de novas possibilidades de expressão de ideias, pensamentos, emoções e informações.

A alocação da inteligência artificial ao ciberespaço deriva das condições próprias do ambiente digital. A comunicação política tem, neste caso, por tarefa interpretar os meandros da constituição semântica no ambiente ciberespacial, com vista ao desenvolvimento de um conteúdo adequado ao campo. Deste modo, o aproveitamento dos conhecimentos da robotização tem contribuído para uma maior especialização da comunicação política, particularmente nos momentos mais críticos de tomadas de posição em relação a escolhas de partidos políticos, indivíduos e projetos políticos que são sufragados nos momentos de disrupção discursiva no espaço público, com vista a, subsequentemente, construir-se novos patamares de estabilidade, que poderão resultar da formação das maiorias derivadas dos desfechos eleitorais ou de acordos pós-eleitorais.

A necessidade de uma adaptação da comunicação política ao ambiente ciberespacial deriva do facto de o ciberespaço se constituir de uma gramática própria, que tem efeitos, tanto a nível semântico como pragmático, na constituição de sentidos no âmbito das mediações sociais. Assim, considerando a comunicação em ambiente ciberespecial, salienta-se que a classe e os profissionais que operam no setor da comunicação política devem respeitar a polifonia simbiótica da ciberesfera, partindo do pressuposto de que a sua gramática comunicativa implica um conjunto de normas de conduta, alicerçadas em regras próprias.

Neste ambiente, o fenómeno comunicativo suportado pela inteligência artificial se reveste de uma fundamentação no campo da intencionalidade, já que, como observa John Searle, “os fenómenos mentais intencionais fazem parte da nossa história de vida natural e biológica. Sentir sede e ter experiências visuais, desejos, medos e expectativas faz parte da história de vida biológica de uma pessoa tanto quanto respirar, digerir e dormir. Os fenómenos intencionais, como os outros fenómenos biológicos, são características reais intrínsecas de certos organismos biológicos, do mesmo modo que a mitose, a meiose e a secreção da bile são características reais de certos organismos biológicos” (2010, pp. 124-125). Enquanto uma esfera povoada por máquinas e pessoas, o ciberespaço tem tanto de eletrónico como de biológico, já que, por detrás do algoritmo, há uma intenção e uma ação humanas inscritas nas linguagens de programação. Se esta obedece aos códigos informáticos, a intencionalidade é mental e pressupõe o exercício da razão, ou seja, a ativação da racionalidade crítica. Procura preencher as vontades de seres humanos, grupos sociais, empresas, entidades públicas ou privadas. Portanto, haverá sempre uma dimensão intencional na inteligência artificial e a confluência do homem com a máquina torna o ciberespaço num ambiente biónico.

Desta feita, podemos notar que a gramática do ciberespaço é incorporada no processo de treinamento do algoritmo que, no âmbito do desenvolvimento do marketing político, estabelece uma segmentação da comunicação, envolvendo uma abordagem de dupla dimensão: um sistema de significação constituído para abordar a multidão e, com isso, desencadear um efeito de arrastamento, empurrando a orientação da massa num determinado sentido; e uma premissa de individualização da abordagem, estabelecendo a ideia de que o cidadão é abordado de forma substancialmente concreto.

A gramática do ciberespaço acaba por ser um universo a partir do qual a mensagem é moldada no pressuposto dela poder caber na máquina tecnológica. Abarca uma dimensão psicológica, que envolve o estabelecimento do ambiente no ciberespaço e um campo semântico, seguindo a lógica de que a mensagem se constrói a partir do conjunto de meios que concorrem para a integração da comunicação no espaço cibernético. Portanto, o ambiente tecnológico no qual se enforma a comunicação digital não se constitui, apenas, como um canal de passagem da mensagem, mas, também, se afirma como um campo semântico de elaboração de sentidos sociais, em que a própria ergonomia do ambiente constitui elemento de significação e, por isso, concorre para a constituição da mensagem. Desta feita, ela expande-se para além do conteúdo codificado pelo emissor. A este se junta a semântica do meio e a pragmática do ambiente de receção.

A comunicação no ciberespaço resulta, assim, de uma confluência desenvolvida a partir de uma capacidade inata do ser humano em produzir, compreender e reconhecer a estrutura das composições frásicas numa determinada língua (Chomsky, 1978; 1994; 2005) e uma fonte artificial de produção de sentidos, alicerçada nas tecnologias de informação, que medeiam as relações humanas e estabelecem as bases para a mediação política. Alicerçado no elemento linguístico, o ser humano usufrui da possibilidade de engendrar um número infinito de frases, produzindo discursos que podem ser afetados a várias práticas sociais. O campo político beneficia dessas virtudes que a língua incorpora, não apenas contando com o património dos discursos construídos, mas, também, com as possibilidades de surgimento de novos discursos, originados da interiorização das normas sociais de produção discursiva e das regras de uso da língua. Isso permite que, em contexto de permanente reelaboração discursiva, os políticos se tornem falantes ativos, que procuram desenvolver, no espaço público, novas formas discursivas e, com isso, colocar os eleitores perante uma situação de renovação permanente do enredo do discurso político. Esta situação adquire novos contornos quando as possibilidades de reformulação discursiva são complementadas pelos recursos comunicativos do ciberespaço, que se estabelecem desde a formatação das interfaces das plataformas digitais até à programação dos conteúdos e ao planeamento do seu sistema de distribuição com o recurso ao algoritmo.

O incremento das tecnologias nos processos de mediação social tem contribuído para a congregação da inteligência artificial nos processos de mediação digital. Através dos algoritmos, a informação é processada em grande quantidade, sendo que, para muitos, circula a uma velocidade que supera o próprio processamento do cérebro humano. Deste modo, “o cérebro tem sido comparado a um computador digital porque o neurónio, como um comutador ou válvula, ou completa ou não completa um circuito. Mas neste ponto a semelhança termina. O comutador do computador digital tem um efeito constante e o seu efeito é grande em proporção ao output total da máquina. O efeito produzido pelo neurónio varia com a sua recuperação da fase refratária e com seu estado metabólico. O número de neurónios envolvidos em qualquer ação chega a milhões, de forma que a influência de qualquer um deles é desprezível. Qualquer célula do sistema pode ser dispensada” (Lashley, apudGardner, 1995, p. 279). Como podemos ver, as frequentes comparações que têm sido feitas entre o cérebro humano e o ‘cérebro das máquinas inteligentes’ não é algo pacífico e não se edificam a partir de uma visão uniforme da questão, já que tem havido abordagens que apontam distanciamentos entre a capacidade de execução das tarefas por parte dos homens e das máquinas.

Com a inteligência artificial, o processo de comunicação implica a autoaprendizagem, sofisticando a capacidade de resposta dos algoritmos, que passam a engendrar novas informações, sedeando, no campo das máquinas, a possibilidade de uma reelaboração constante do seu capital de conhecimento. Isso tem influenciado diferentes ramos das práticas políticas. Se, por um lado, tem havido uma aplicação da inteligência artificial ao campo do marketing político, por outro lado, a própria área das Políticas Públicas tem beneficiado da sua aplicação. Para isso, dos diferentes setores sobre os quais a sociedade estrutura as suas ações, o das políticas públicas é aquele que aglomera o maior volume de informação. Desta feita, é necessário interpretar as políticas públicas, não só como um campo de decisões, mas, também, como o domínio das instituições sociais que produzem dados fundamentais para a organização do sistema social e que precisam desenvolver, entre si, relações comunicativas.

Por outro lado, o domínio da propaganda política tem reivindicado muitos terrenos, particularmente aos setores da comunicação política que, antes, estavam situados no campo dos sistemas tradicionais de mediação política. Com a introdução da comunicação pública no ambiente multiplataforma, as interações artificiais permitiram uma certa automação dos processos de interação e de significação dos constructos semânticos políticos, permitindo o envolvimento de agentes não humanos no ecossistema mediático (Latour, 2012; Lemos, 2011; Silveira, 2017). Assim sendo, é preciso perceber o lugar que as redes sociais, os websites, os canais de vídeo e as outras plataformas de conteúdos ocupam na edificação da mensagem política, integrando os políticos, a internet e as infraestruturas tecnológicas dentro de um amplo processo de significação. Outrossim, é necessário perceber que as estratégias de marketing digital implicaram um recurso à robotização da comunicação no ambiente digital, que incrementaram processos mais agressivos e concorrenciais de comunicação política, com particular destaque para os períodos eleitorais. Esse processo implica, por um lado, uma densificação das mensagens persuasivas e, por outro lado, um desvio da orientação de consumo de conteúdos mediáticos, particularmente com a introdução massiva de conteúdos falsos, vocacionados para uma alteração mecânica dos processos da orientação e de construção de sentidos sociais. Deste modo, a inteligência artificial surge como um ativo de alto valor no core business do mercado eleitoral.

A análise da Inteligência Artificial como parte do processo de construção das mensagens implica uma atenção especial a elementos como o big data e o deep learning. Eles contribuem para a compreensão de como a internet subsidia o desenvolvimento das campanhas eleitorais, contando com a mediação dos computadores e dos dispositivos móveis, implicando os emissores e os recetores numa relação dialógica, de constante troca de papéis e de conteúdos. Essa dinâmica interativa tem envolvido um conjunto de plataformas de comunicação, entre as quais os websites, as redes sociais, as plataformas de agregação de vídeos e os blogues, tornando a comunicação, nos períodos eleitorais, mais dinâmica, imediata, interativa e multidirecional.

Olhando para as virtudes da chamada Quarta Revolução Industrial - a robotização dos processos humanos e a aprendizagem com o recurso às máquinas -, podemos notar que a sua influência ao campo da comunicação política é considerável. Com o recurso ao algoritmo, as equipas de marketing político procuram solucionar os diferentes problemas no campo da comunicação, tentando edificar uma multidão dispersa, incorporando uma fonte semântica na mensagem, que não chega a constituir-se um patamar equiparável à da ‘bala mágica’ incorporada na Teoria da Agulha Hipodérmica (Crato, 1992; Sousa, 2006; Wolf, 1999), podendo assegurar a componente dos efeitos poderosos das mensagens políticas no domínio da mediação eleitoral.

Na incorporação das componentes da Inteligência Artificial às estratégias da comunicação política, ela acaba por beneficiar-se de um conjunto de elementos sofisticados de processamento da mensagem, como a procura da otimização e de eficiência comunicativa, a lógica, os métodos probabilísticos, a aplicação de racionalidade semiótica, as redes neurais, a teoria do controlo, as interfaces de dados e de linguagens que se cruzam no campo da mineração dos dados, do machine learning, do deep learning e do big data. Assim, a Inteligência Artificial confere uma maior volumetria à mensagem política, ampliando o seu potencial semântico e o campo de aprendizagem, que é orientada em função do elemento sedução. O algoritmo é introduzido como um sistema de processamento da aprendizagem no segmento da machine learning, sendo que a amplitude da sua eficácia deriva, em grande medida, do volume de dados disponíveis.

Outrossim, é preciso levar em conta que o uso do deep learning, enquanto elemento funcional ao qual se confere a atribuição de solucionamento dos problemas, engloba, nesse processo, as redes neurais, que contribuem para a interiorização, no ‘cérebro da máquina’, do sentido das preferências, das opções de consumo mais frequentes, dos hábitos e gostos e do historial das navegações no ciberespaço. Dá-se, aqui, uma fusão das dimensões afetivas e cerebrais humanas com a inteligência das máquinas, juntando a criatividade do homem e a sistematicidade dos softwares na construção de uma orientação coletiva para uma massa fragmentada, isolada e dispersa. Assim sendo, a Inteligência Artificial permite, por um lado, dar orientações aos programadores do espaço público digital sobre os temas mais debatidos nessas esferas (Johnson e Verdicchio, 2017; Neri e Cozman, 2019) e, por outro lado, informar sobre a ordem de orientação dos debates, implicando o deep learning em segmentos da comunicação que, nos processos tradicionais de mediação política, ficavam confinados ao campo da ação humana. O reservatório sideral que permite todo esse trabalho de sistematização de dados é o Big Data, que serve aos programadores da comunicação política como o repositório para o armazenamento dos conteúdos e para o mapeamento fácil dos assuntos sobre os quais se procura a informação, num processo de clipping veloz, que conta com os motores de busca equipados com algoritmos muito sofisticados, cuja procura e disposição obedece a uma ordem pré-estabelecida, que integra um sistema global de signos, compondo a semântica do ciberespaço. A componente da intencionalidade está intrinsecamente ligada à existência virtual do algoritmo, na medida em que a sua programação deriva dos estados intencionais do ser humano. Para John Searle (1998; 2002; 2006; 2010; 2017), os estados intencionais da mente humana são abstratos. O autor compara os estados intencionais a “um programa de computador ou um fluxograma; ou que os estados mentais não têm natureza mental intrínseca, porque podem ser inteiramente definidos em relação as suas causas e efeitos; ou que não há nenhum estado mental intrínseco, mas que falar em estados mentais é somente um jeito de lidar com o meio que nos cerca; e chega-se mesmo a dizer que definitivamente não se deveria pensar que os termos mentais representam coisas reais do mundo” (Searle, 2010, p. 127). Assim sendo, podemos notar que o cérebro humano encontra, na Inteligência Artificial, um prolongamento das suas competências, tornando o ser humano mais polivalente, respondendo aos desafios do mundo real em estado físico, no universo virtual e até remotamente, colocando a máquina ao seu serviço de uma forma permanente. Isso tem influenciado, de forma abismal, o desenho da comunicação políticas nas sociedades atuais.

Conclusão

A atividade política sempre esteve aliada aos processos comunicacionais. A retórica serviu, ao longo dos tempos, como recurso para elucidar a racionalidade das decisões, das visões e dos programas de governação que estabelecem um quadro político-administrativo ao qual uma sociedade se submete por um período fixo ou variável. Outrossim, o desenvolvimento dos aparatos mediáticos, ao longo do século XX, permitiram a criação de vários palcos públicos de exposição, concorrência e competição no campo das práticas políticas.

O famoso e primeiro debate televisivo para as eleições presidenciais americanas de 1960, entre John F. Kennedy e Richard Nixon, inscreveu a televisão no ambiente dos mass media de grande vocação para a mediatização política, sendo que, deste então, até recentemente, os debates políticos em ambiente televisivo foram considerados como uma das peças fulcrais nos processos de formação da vontade coletiva. Na verdade, o papel da televisão na mediação política, ainda hoje, é muito relevante, já que, “apesar de todas as mudanças em curso, nomeadamente as decorrentes da digitalização e da crescente utilização da internet e dos dispositivos móveis - e, em grande parte, devido a isso mesmo -, a televisão continua a ter uma presença central na sociedade e na cultura contemporâneas” (Serra e Francisco, in Fidalgo e Canavilhas, 2013, p. 86).

Deste modo, ao longo da segunda metade do século XX e a primeira década do atual século, o desvio aos debates políticos nos meios televisivos nacionais e internacionais foi visto, sempre, como um sinal de fraqueza, incapacidade de contraposição às adversidades e pobreza de argumentos e de visões para servir os países nos momentos de recomposição do espectro governativo. Isso fez com que, ao longo de várias décadas, a discussão sobre a comunicação política tenha privilegiado os debates televisivos como peça central da mediação política, a expressão mais saliente da vivacidade do espaço público e o campo, por excelência, para a clarificação da lucidez dos candidatos aos cargos políticos, bem como da pertinência dos projetos, ideias e visões.

Deste modo, encontramos no livro Olá Mariana: O Poder da Pergunta, da jornalista portuguesa Judite de Sousa, o entendimento fático de que a televisão assinala o início e o fim das carreiras de muitos atores que mergulham no campo das práticas políticas. Porém, o desenvolvimento do ciberespaço acabou por atenuar o protagonismo do sistema de broadcasting nos processos de mediação televisiva. As novas tecnologias conduziram o setor da comunicação de massa para um processo de convergência, integrando a televisão dentro do ambiente ciberespacial e permitindo tanto o armazenamento dos vídeos para o consumo posterior (premissas que, no sistema de broadcasting, foram desenvolvidos no âmbito dos produtos televisivos on demand e da sofisticação das ofertas no âmbito do sistema de televisão por assinatura), como o streaming das emissões. Este resulta da agregação, na ciberesfera, de uma das características que mais notabilizaram a televisão enquanto meio de mediação política. A questão da comunicação multiplataforma não é recente e, de acordo com Vivian Belochio, Eugenia Barichello e Tanise Arruda, ela se regista “desde que as organizações noticiosas começaram a trabalhar com mais de uma mídia em suas produções. Isso vem resultando na necessidade de adaptação dos jornalistas e dos produtos jornalísticos disponibilizados aos públicos” (in Canavilhas e Rodrigues, 2017, p. 21).

Olhando para o medium televisivo, destaca-se, por um lado, a possibilidade de transmissão em direto dos grandes eventos políticos e, por outro lado, a transmissão ao vivo de grandes espetáculos e eventos fundamentais para a ativação dos mecanismos de persuasão. Essa realidade não se confinou ao campo da televisão, mas, também, o meio radiofónico escolheu o mesmo caminho. Assim, “com o surgimento dos computadores e, seguidamente, da internet um pouco mais tarde, a rádio também se tornou numa tecnologia convertível à linguagem binária dos bits, passando a integrar o ciberespaço, reinventando-se através da sua integração em ambientes específicos, como transportes individuais e coletivos, centros comerciais, espaços profissionais e, depois do surgimento dos telefones celulares, também passou a integrar esses dispositivos. Portanto, a rádio está em toda a parte e em todo o momento, acompanhando as pessoas a par e passo e em cada ambiente em que se encontram” (Évora, 2022, p. 107).

O desenvolvimento tecnológico veio imprimir mais impulso ao campo da comunicação política, ampliando as redes de ligação dos cidadãos e possibilitando uma maior conectividade entre os governantes e os governados, os eleitores e os candidatos, as cúpulas dos partidos políticos e as suas bases, construídas parcialmente por militantes de diferentes campos ideológicos e que atuam no ciberespaço como ‘milícias digitais’, capitaneando os processos de formação de vontades no espaço sideral, veiculando mensagens com propósitos bem definidos e desconstruindo o constructo semântico que se forma no espaço público digital a partir da ação dos atores ciberespaciais que residem nos polos ideológico, político e partidário opostos. Isso tem contribuído para um engendramento das mensagens, envolvendo processos de dicotomias e distopias e imbuindo as comunicações políticas em narrativas ficcionadas e estratégicas, pensadas no âmbito da ação das sociedades organizadas (Ericson, Beranek e Chan, 1989; Évora, 2010 e 2012; Rhee, 2018; Richardson, 2015).

Assim, a inteligência artificial veio empurrar este processo, uma vez que, com a programação dos robots, tornou-se mais fácil a segmentação da mensagem no ciberespaço, individualizando os processos de fornecimento dos conteúdos e reduzindo o espetro de repulsa. O algoritmo atua sobre uma parte muito sensível do campo mental dos indivíduos que povoam o espaço público digital. Desde logo, tratando-se da comunicação política em ambiente sideral, o seu objetivo passa, antes de tudo, por amortecer o espírito crítico e reivindicativo dos cidadãos que atuam no ciberespaço, com o fornecimento de uma comunicação direcionada, que tenta atingir a sua eficácia quando, subliminarmente, convida à adesão num clima de baixa densidade de reflexão, crítica e problematização. Deste modo, a aplicação da inteligência artificial ao domínio da comunicação política procura, em certa medida, contrariar a lógica da racionalidade e imprimir uma nova ordem comunicativa, alicerçada num processo de adesão quase passiva. Porém, essa outra ordem de construção das decisões que se procura instalar com o recurso à inteligência artificial não sucede de forma pacífica e passiva, uma vez que o espaço público digital se edifica a partir de uma concorrência de visões, que são programadas e colocadas em concurso. Desta feita, os cidadãos que frequentam esses espaços são confrontados com diferentes direções de projeções discursivas. Os políticos, quando atuam no ciberespaço, procuram alongar os efeitos das suas ações comunicativas, tanto para os espaços geográficos internos aos seus territórios de ação, como para os externos, alcançando, não apenas os cidadãos dos seus países e seus familiares que residem na diáspora, como também a própria comunidade internacional, procurando uniformizar uma visão positiva em torno do constructo de mensagens que disponibilizam e o sentido de coletividade que propõem para um país. Isso se deve ao facto de o ciberespaço ser um ambiente de pensamento, mas também de afetos, onde se procura recriar as emoções do universo empírico, criando, nas redes que entrelaçam os indivíduos, um sistema simbólico, que envolve a formatação de valores, a vinculação de símbolos e a criação de referências, que orientam e alimentam o psíquico dos cibernautas.

É no âmbito dessa axiologia coletiva que se procura edificar os consensos e erguer as multidões digitais, podendo empurrar a balança eleitoral para um lado ou para o outro. Assim, na construção da axiologia do ciberespaço, os políticos ativam a emoção discursiva, como forma de atingir a dimensão sensitiva dos cibernautas. Os constructos semânticos são edificados com base em premissas simples, atrativas e sedutoras, de fácil descodificação, que entram na cadeia de consumo dos cibernautas sem resistências, permeando o seu quadro de referências, reelaborando novos olhares sobre os processos políticos e a formação de vontades. Deste modo, procura-se, com as mensagens veiculadas no ambiente ciberespacial, desativar os filtros históricos, culturais, de mundividências e de experiências, envolvendo-se na axiologia de uma sociedade erguida a partir da rede digital de contactos, considerando a própria ergonomia do ciberespaço e a maneira como nele as vontades se formam. Portanto, o trabalho desenvolvido a partir das bases de codificação informática se aproxima às tarefas que, ao longo de décadas, foram desenvolvidas por profissionais altamente especializados no campo da mediação política, designados de spin doctors, que, para Schmitz e Karam, são “capazes de forjar a opinião pública, utilizando-se dos processos, dos procedimentos, da cooptação de jornalistas e do saber do jornalismo e das relações públicas, para ter sucesso nos media ou diretamente com seu público alvo” (2013: 98). Como tem sido notório, esse trabalho tem sido desenvolvido, de forma subliminar, por robots digitais que são erigidos a partir do campo virtual, capazes de se adaptarem a diferentes contextos comunicacionais no ambiente digital, desempenhando um papel extremamente relevante na comunicação política. Igualmente aos spin doctors, os robots digitais são capazes de construir e desconstruir as narrativas que prevalecem no ciberespaço, ocupando os espaços mais sombrios do universo sideral, como forma de passarem despercebidos dos cibernautas. A sua intervenção não pode ser agressiva, mas, antes, uma ação ténue que tende a introduzir os cibernautas nos diferentes contextos axiológicos de produção discursiva, sem gerar aparentes conflitos de interesses e de vontades.

Se analisarmos o enquadramento da inteligência artificial no âmbito da crítica académica, social e da elite pensante de vários países, podemos verificar que, por um lado, existe uma corrente que procura desvelar a sua importância, no sentido de introduzir mais amplitude, alcance e imediatismo aos processos comunicativos e, por outro lado, registam-se críticas que se fundamentam nos domínios da ética da comunicação, da responsabilidade social do jornalismo e da estética literária, apontando a inteligência artificial como um fator indutor da pobreza narratológica no campo da produção discursiva no ciberespaço. Essa visão negativa que olha para o algoritmo como um sujeito sem corpo que atua no ciberespaço e molda a perceção da realidade em função de interesses pré-determinados equipara-se à própria visão que os britânicos desenvolveram sobre os spin doctors, situando-os num patamar equivalente ao de “um assaltante, um passador de droga e um agente de imobiliária” (Richards, 2005: xi). De forma mais impetuosa, Andrews considera que a expressão que, de forma eufemista, simboliza a ação de um spin doctors é a ‘manipulação’ (2006: 32).

Como dissemos em linhas anteriores, essa imagem de que se reveste a notoriedade dos spin doctors aproxima-se ao desenho que os críticos fazem da aplicação da inteligência artificial ao domínio da comunicação política, apontando para uma estratégia sistematizada de manipulação da opinião pública. O carácter dissimulado das suas presenças nos meios sociais e sistemas mediáticos, também, aproxima as formas de atuação do algoritmo e dos spin doctors. Vasco Ribeiro (2009 e 2013) acentua o carácter dissimulado destes profissionais da comunicação, evidenciando a presença dos spin doctors em apenas 1,3 por cento das notícias, por ele, analisadas sobre as matérias da política portuguesa entre 1990 e 2005, “facto que faz jus ao rótulo de ‘homens-sombra’ muitas vezes colado a estes profissionais” (Ribeiro, 2015: 12). A perspetiva do autor é reforçada por Aira Foix e Pastor Pérez, para quem “é na invisibilidade dos seus esforços que radica grande parte do triunfo destes profissionais” (2012: 5).

De qualquer forma, apesar das linhas críticas que encontramos, tanto no sentido negativo como positivo, podemos salientar que os algoritmos e toda a ergonomia do ciberespaço alteraram, de forma dramática, a comunicação política, já que, nos sistemas tradicionais de mediação política, havia uma apologia aos elementos históricos, culturais, sociais e económicos que eram empregues, de forma direta, nos segmentos de mensagens que se edificavam. Porém, nos dias que correm, grande parte desses atributos que enformam a pragmática da comunicação - já que situam as mensagens dentro dos seus referentes e contextos de produção e de consumo -, são substituídos por estratégias de marketing eleitoral, que são engendradas a partir de slogans, soundbytes, hashtags e informações robotizadas e hipermediatizadas.

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Recebido: 30 de Setembro de 2022; Aceito: 08 de Dezembro de 2022

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