SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.38Apresentação: Para uma ética, estética e poética das Artes na Comunidade da Língua Portuguesa, mas não sóSite-specific: trabalhos direcionados para um lugar predeterminado índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Internacional em Língua Portuguesa

versão impressa ISSN 2182-4452versão On-line ISSN 2184-2043

RILP vol.38  Lisboa dez. 2020  Epub 21-Mar-2021

https://doi.org/10.31492/2184-2043.rilp2020.38/pp.19-47 

Artigo Original

A formação artística em Cabo Verde desenvolvida pela Mindelo - Escola Internacional de Arte: pesquisa aplicada como estratégia de política radical e resistência estética1

Denise Perdigão Pereira1 

Maria Teresa Guimarães de Medina2 

Aracy Alves Martins3 

1 Instituto Federal de Educação de Minas Gerais, Brasil;

2 Universidade do Porto, Portugal;

3 Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil.


Resumo

Introdução: O artigo discute a formação artística em Cabo Verde desenvolvida pela Mindelo_Escola Internacional de Arte, M_EIA, criada em 2005, tendo a pesquisa aplicada realizada pela escola como núcleo de discussão. A principal estratégia metodológica consistiu na análise do discurso dos atores inseridos no contexto da instituição e em seu entorno. Além disso, o uso de fontes diversas, tais como o projeto pedagógico da escola, programas de ensino, notas de campo etc., implicou em uma análise em profundidade do contexto em questão, característica dos estudos de caso. Como referencial teórico central foram utilizados Atkinson (2008) e Mouffe (2014). O estudo concluiu que a M_EIA desempenha papel de relevo em seu país, na medida em que a instituição está implicada com o seu desenvolvimento não apenas no âmbito da arte e da cultura, mas também nos campos do social e do econômico. Por outro lado, foram constatadas algumas fragilidades no plano operativo, tais como a tendência de concentração do poder na tomada de decisões quanto à escola e os rumos de seus projetos, nas mãos de seus principais dirigentes, aspecto que revela a necessidade de aprimoramento das práticas democráticas na escola.

Palavras-chave: Cabo Verde; M_EIA; educação artística; pesquisa aplicada

Abstract

Introduction: The article discusses Art Education at Mindelo Internacional School of Arts (M_EIA), created in 2005, based on the applied research conducted by the school as a nucleus of research. A methodological tool adopted consisted of a analysis of the actors´ discourse inserted in the context of the institution and its surroundings. In addition, the use of several documentary sources, such as the school's pedagogical project, teaching programs, field notes, etc., implies an in-depth analysis of the context in question, as supposed in Case Studies. The main theoretical frameworks of the research are Atkinson (2008) and Mouffe (2014). The study concluded that M_EIA plays a prominent role in the country as the institution approaches Art Education from its social and economic issues. On the other hand, the operational plan tends to concentrate decision-making in the hands of its main leaders, an aspect that reveals a need for improvement of the democratic practices in the school.

Keywords: Cape Verde; M_EIA; artistic education; applied research

1. Introdução

O interesse pelo estudo da formação artística desenvolvida pela Mindelo Escola Internacional de Arte (M_EIA) deve-se a dois motivos. O primeiro deles refere-se ao fato de a escola constituir-se em única instituição de formação artística superior em Cabo Verde. O segundo motivo relaciona-se ao caráter singular dessa escola de arte, expresso desde a sua gênese. Surgida como desdobramento dos projetos desenhados pela organização não governamental cabo-verdiana Atelier Mar, a escola possui estreita ligação com os trabalhos de desenvolvimento sócio-comunitários realizados pela ONG, numa relação de fecunda parceria entre as duas instituições.

O caráter singular dessa experiência educativa conduziu à adoção do Estudo de Caso Intrínseco como metodologia de pesquisa. Para tanto, realizou-se uma imersão de quatro meses nas ilhas de São Vicente e Santo Antão, em Cabo Verde.

Stake (1995), citado por André (2008, p. 98), esclarece que o Estudo de Caso “intrínseco é aquele em que há interesse em estudar aquele caso específico”: “ [...] uma experiência inovadora, que vale a pena ser investigada para identificar quais os elementos que a constituem, o que a faz tão distintiva, que recursos foram necessários para atingir este nível, que valores a orientam, que resultados obteve”.

Pesquisas dessa natureza requerem o uso de ampla gama de fontes de dados, métodos e procedimentos de coleta e análise de dados.

Entrevistas realizadas com os diversos atores que compõem a M_EIA (Reitor, diretor, professores e alunos) e com os membros das comunidades, com as quais a escola se relaciona, foram utilizadas como uma das principais ferramentas metodológicas.

Destacam-se, nesse sentido, entrevistas e conversas informais realizadas com Leão Lopes2, um dos idealizadores e Reitor da M_EIA, figura de fundamental importância para a sua criação, organização e gestão, bem como marca decisiva nas concepções de Educação Artística e nas metodologias de trabalho presentes na instituição.

Para a realização da pesquisa, foi observado o Código Ético de Conduta Acadêmica da Universidade do Porto. Neste sentido, cuidou-se de obter a autorização formal dos depoentes para a realização de entrevistas e para a utilização de suas falas na tese de doutoramento, bem como em posteriores publicações de divulgação científica. Cuidou-se, ainda, de salvaguardar o anonimato dos entrevistados, com a exceção de Leão Lopes, uma vez que o Reitor consentiu com a identificação de suas falas nos textos escritos referentes à investigação. Ressalta-se que os princípios éticos de pesquisa envolvendo humanos foram exaustivamente discutidos durante toda a condução da investigação, com o objetivo de garantir o respeito aos direitos dos sujeitos que fizeram parte do universo da pesquisa. Os documentos da M_EIA citados ao longo do texto, bem como parte das imagens nele presentes, foram cedidos pela própria instituição em questão, à época da imersão em campo.

As concepções de arte e de ensino de arte presentes na escola, sua vinculação ou não, no plano operativo, com os desafios sociais, culturais e educacionais presentes no contexto cabo-verdiano, bem como a participação dos alunos e das comunidades, como importantes protagonistas, ou não, nesse processo, constituíram-se nas categorias de análise centrais da investigação .

2. M_EIA: estrutura organizacional

A Mindelo_Escola Internacional de Arte, M_EIA, foi criada no ano de 2005, a partir do Atelier Mar, organização não governamental cabo-verdiana, situada na cidade do Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde.

(Fonte: Acervo da pesquisadora)

Figura 1 Baía do Porto Grande, Mindelo, Ilha de São Vicente  

A M_EIA, reconhecida juridicamente como Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura, é assim definida pelo artigo primeiro de seu Estatuto (Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura, s. d.):

Mindelo - Escola Internacional de Arte, adiante designada por M_EIA, é um estabelecimento de ensino universitário de criação, investigação e transmissão da cultura e da ciência dos domínios que lhes são inerentes. A sua criação corresponde a uma contribuição genuína da entidade instituidora, em colaboração com um significativo número de instituições educativas e culturais internacionais, para o desenvolvimento artístico, cultural e social de Cabo Verde.

A Escola é titulada pelo Atelier Mar e reconhecida pelo Ministério da Educação e Valorização dos Recursos Humanos de Cabo Verde. É um estabelecimento de ensino superior privado e reconhecido como de interesse público.

Segundo Tolentino (2006, p. 324 ), a M_EIA tem como objetivo central: “valorizar as singularidades de Cabo Verde e da ilha de São Vicente, em especial, enquanto espaço de encontro cultural entre o Cabo Verde migrante e o Cabo Verde residente, entre as ilhas e o mundo, entre a cultura e o desenvolvimento”.

A estrutura orgânica da escola é composta pelos órgãos de gestão democrática exigidos por lei (Órgãos de Gestão, Departamentos e Serviços) e também por um “Conselho Consultivo Internacional formado por instituições e personalidades que já aderiram ou virão a aderir ao projeto” (Tolentino , 2006, p. 325).

A M_EIA começou por oferecer os cursos de graduação em “Artes Visuais” e “Artes Visuais - via ensino”. Paulatinamente foram também implementados os cursos de Design e Arquitetura.

O conselho diretivo, até o ano de 2015, era constituído pelo seu presidente3, Leão Lopes, designado pela entidade instituidora da M_EIA; dois representantes dos docentes; um representante dos alunos e um representante do pessoal técnico e administrativo.

Os cursos possuem a duração de quatro anos e são regidos por unidades de crédito. Sua organização pauta-se no Processo de Bolonha4 quanto à duração, comparabilidade, sistema de avaliação e reconhecimento internacional.

A M_EIA adota o regime de aulas presenciais e a modalidade de avaliação contínua.

A principal fonte de financiamento da escola se dá através das propinas. Segundo depoimentos de alunos e da Coordenadora do Atelier Mar, à época da pesquisa, a maior parte dos alunos recebia bolsas de estudos, sobretudo do governo.

No que se refere à estrutura física, a escola oferece as seguintes instalações: 6 salas de aula, 2 salas de informática, 1 biblioteca, 1 secretaria, 1 sala para professores, 1 anfiteatro, 1 lar para 40 estudantes, 1 refeitório, 1 pequeno complexo de ateliês/residências para professores, 1 casa de hóspedes e residência de artistas investigadores em Santo Antão (Tolentino, 2006, p. 326).

A escola possui ainda laboratórios ou oficinas de: Artes Digitais, Imagem e Audiovisuais, Cerâmica, Metais, Madeira, Pedra, Técnicas de Impressão e Têxteis (Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura, s. d.).

2.1 M_EIA e Atelier Mar: entrelaçamento institucional e vocação social

Na data de surgimento da M_EIA, o Atelier Mar contava com uma longa e vasta experiência na área artística, alcançada através dos seus vinte e cinco anos de intervenção em algumas das ilhas do arquipélago. Porém, o âmbito de atuação do Atelier Mar extrapolaria o campo artístico, possuindo uma forte vinculação com alguns dos principais desafios enfrentados pela sociedade cabo-verdiana.

Desta maneira, o fato de o nascimento da M_EIA constituir-se em uma iniciativa do Atelier Mar confere-lhe características muito particulares. Na gênese do próprio projeto político pedagógico da escola, percebe-se estreito nível de vinculação com os projetos de desenvolvimento sociocomunitários realizados pela ONG, numa relação de fecunda parceria entre as instituições.

Do ponto de vista físico, a indissociabilidade entre ambas pode ser verificada na distribuição do funcionamento da M_EIA em dois edifícios: no Atelier Mar, na Matiota, e na antiga Escola Jorge Barbosa5, mais conhecida pela população local como Liceu Velho. Os dois edifícios estão situados na cidade do Mindelo, ilha de São Vicente, considerada em Cabo Verde, como a capital cultural do país.

Assim, para um maior entendimento tanto da história da M_EIA, quanto de seu perfil educacional e artístico, torna-se relevante realizar uma pequena introdução à trajetória do Atelier Mar, bem como seu âmbito de atuação no contexto cabo-verdiano.

(Fonte: Acervo da M_EIA)

Figura 2 Sede do Atelier Mar  

(Fonte: Acervo da M_EIA)

Figura 3 Liceu Velho, sede da M_EIA  

2.1.1 Atelier Mar: atuação

O Atelier Mar foi criado em 1979, com o objetivo de promover programas e pesquisas para o desenvolvimento das artes e ofícios em Cabo Verde. A instituição possui dois núcleos de atividade: um em Mindelo, na ilha de São Vicente, e outro em Lajedos, na ilha de Santo Antão. Seu campo de atuação inicial ligava-se à formação de base de seu fundador, Leão Lopes, e envolvia a cerâmica, as artes gráficas, audiovisuais, madeira e pedra. Contudo, as atividades desenvolvidas pelo Atelier Mar foram rapidamente ampliadas (Monteiro, 2008, p. 93).

A partir de seu reconhecimento como Organização não Governamental (ONG) no ano de 1987, o Atelier Mar passou a ter como foco de atuação programas de desenvolvimento local.

Para melhor compreensão destes programas, será realizada a apresentação de alguns deles, tomando-se como ponto de partida o trabalho desenvolvido na comunidade de Lajedos.

Santo Antão é uma ilha de diferentes contrastes paisagísticos com regiões úmidas e de caráter agrícola, bem como regiões marcadas pela pobreza dos solos, secura do clima e irregularidade de chuvas.

Em Lajedos, região marcada predominantemente pela secura do clima, somam-se dificuldades específicas - as chuvas torrenciais e as lestadas, vento quente e seco que queima tudo à sua passagem. De acordo com Inácio (2011, p. 43): “Causas naturais como os longos períodos de estiagem, as chuvas torrenciais e as lestadas combinam-se para provocar a erosão do solo e consequente inviabilização do cultivo que está na origem do flagelo da fome que mata entre dez e trinta por cento da população, em anos de crise”.

(Fonte: Acervo da pesquisadora)

Figura 4 Plantação de inhame e banana na ilha de Santo Antão  

(Fonte: Acervo da pesquisadora)

Figura 5 Paisagem rochosa da ilha de Santo Antão  

Os projetos de desenvolvimento sociocomunitários realizados pelo Atelier Mar, em Lajedos, tiveram início em 1994. As atividades abrangem o setor da educação básica; o desenvolvimento de formas alternativas de emprego; a investigação e o desenvolvimento de materiais e tecnologias de construção utilizando recursos naturais; a agricultura e o turismo solidário; a formação nas áreas de tecelagem, cestaria, costura, cerâmica, construção civil, entre outras, sendo as duas últimas desenvolvidas com base nos recursos geológicos locais.

Ainda em Lajedos, os programas de desenvolvimento local têm concedido especial atenção aos problemas ambientais relacionados aos fracos recursos hídricos do arquipélago. Um exemplo disto pode ser verificado na introdução de novas tecnologias de irrigação para a agricultura, no resgate e na reabilitação de terrenos áridos ou abandonados, para reintegrá-los no sistema produtivo da região de Lajedos (Acervo do Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura, s. d., p. 3).

(Fonte: Acervo da M_EIA)

Figura 6 Serigrafia realizada a partir da fotografia de David Monteiro, Ilha de Santo Antão  

A escassez das chuvas tem sido um grave problema a ser enfrentado em Cabo Verde, sobretudo, no passado, quando as técnicas agrícolas eram, em certa medida, rudimentares. Torna-se relevante destacar o fato de o Atelier Mar ter tomado o campo artístico como ponto de partida para uma atuação mais abrangente sobre alguns dos grandes desafios enfrentados no arquipélago como um todo, tais como a agricultura e a formação profissional em alguns ramos. Este perfil mais abrangente assumido pela ONG pode ser percebido no delineamento das diretrizes do Projeto Sociocomunitário de Lajedos, sendo uma delas “a identificação e utilização dos pontos fortes dos recursos locais, casando-os com novas tecnologias6”.

O Sítio Museológico de Lajedos e o Complexo da Babilônia fazem parte dos projetos de desenvolvimento local.

Dentre as diretrizes7 do Sítio Museológico de Lajedos, destaca-se: “Representar e interpretar o passado e o presente da comunidade de Lajedos, através de uma série de componentes expositivas inovadoras e dinâmicas e também doutras intervenções museológicas”.

O material expositivo presente no museu engloba banners contendo a história de Lajedos, com ênfase dada às obras literárias do Movimento Claridoso, inspiradas no drama vivido pela população local nos períodos de crise de fome. Emblemática neste sentido é a obra de Manuel Lopes intitulada “Os Flagelados do Vento Leste”. O romance Neorealista se passa na Ilha de Santo Antão, especificamente nas seguintes povoações: Bordeira do Campo Grande, Ribeira das Patas e Covoada. Por iniciativa do Atelier Mar e inspirados na obra de Manuel Lopes, foram criados três trilhos, “Os Flagelados”, para os visitantes da região: “Partindo de Lajedos, o trajecto do visitante desenha o percurso inverso que os personagens do romance fizeram para escaparem do flagelo da fome e da seca, nos idos anos quarenta”. Jovens locais receberam do Atelier Mar formação para servirem como guias aos visitantes.

Assim, o sítio museológico de Lajedos não se restringe a um espaço físico, estando “integrado numa crescente rede de intervenções comunitárias que pretendem intensificar o seu potencial global” (Guedes, 2011, p. 107).

O complexo da Babilônia também se inscreve como projeto voltado para o “desenvolvimento sustentável de um turismo qualificado e solidário que se quer promover na região8” de Lajedos. O conjunto é composto por um pomar, uma oficina de processamento alimentar, duas residências, um restaurante e um bar.

(Fonte: Acervo do Atelier Mar)

Figura 7 Complexo da Babilônia na Ilha de Santo Antão  

Visitar o complexo da Babilônia foi uma experiência única e instigante, experiência esta reveladora do potencial criativo e transformador do ser humano. Conforme mencionado, a parte sudeste de Santo Antão é bastante árida. Contudo, o conjunto Babilônia, localizado na parte sudeste da ilha, é rodeado por uma extensa área cultivada, representando grande contraste com a paisagem circundante.

Os excedentes de produção da horta e pomar são vendidos nas povoações próximas à Babilônia.

As receitas criadas no restaurante são reelaborações da cozinha tradicional cabo-verdiana, utilizando-se produtos biológicos. Três mulheres da região receberam formação para trabalharem no processamento de frutas e outros vegetais. Elas produzem frutas e legumes desidratados, sucos engarrafados, geleias, temperos, dentre outros. Este aspecto é importante de se ressaltar, pois, na Babilônia, são recebidos alunos da M_EIA, interessados em food design, para a realização de experiências práticas nesse âmbito.

Além do trabalho na ilha de Santo Antão, em Lajedos, o Atelier Mar realiza projetos de desenvolvimento comunitário nas periferias urbanas da cidade do Mindelo, na ilha de São Vicente. Dentre eles, destacam-se os projetos realizados em duas comunidades piscatórias, São Pedro e Salamansa.

As ações de desenvolvimento local nessas comunidades abrangem aspectos sociais, culturais, econômicos, educacionais e ambientais, por meio da promoção do associativismo, da participação comunitária, da capacitação, da valorização e da produção dos recursos marinhos e da gestão sustentável dos recursos naturais.

(Fonte: Acervo da M_EIA)

Figura 8 Serigrafia realizada a partir da fotografia de autoria de Ângelo Lopes  

2.2 Concepções de Educação Artística que permeiam a M_EIA

E eu sou mais o provocador do que o condutor d’algum método de experiência. Leão Lopes

Das falas dos entrevistados relacionadas às concepções de Educação Artística presentes na M_EIA, dois aspectos destacam-se: uma visão mais ampla, abrangente, do que é concebido como arte e seu papel na educação, bem como uma busca por um projeto de escola aberto, flexível, onde caiba uma pluralidade de concepções a respeito do campo da Educação Artística e de suas possibilidades.

O fundador e Reitor da M_EIA, com a sua vasta formação, não somente no campo artístico, mas sobretudo nele e, ainda, com a sua gama de interesses e atuação extremamente diversificados, revela-se como figura central para se compreender algumas das principais características da escola. Segundo depoimento de Leão Lopes:

Lá fora, precisam de confirmação se sou artista, se eu sou escultor, se sou pintor, se sou isto ou aquilo. E, às vezes, dão-me esses títulos todos [. . .] Aqui em Cabo Verde, creio que não sou tratado assim. Isso não teria sentido para mim, porque não me vejo enquadrado em disciplinas estanques e para os outros parece também não ter sentido. Sou tratado antes de mais nada como pessoa, eventualmente autor de alguma coisa ou obra e eu fico contente por isso. [. . .] Não me sinto bem com rótulos. Viver a minha vida em todas essas dimensões criativas é o que me dá sentido. Dá-me um conforto extraordinário esta forma de me ver e de estar no meio político e social onde me insiro. Nunca me senti bem, catalogando-me numa ou noutra disciplina; viajo por elas livremente, voluntariosamente [. . .]

Não se pode esquecer, contudo, que, embora o Reitor e sua bagagem constituam-se em referência fundamental para a compreensão da filosofia da M_EIA, de suas concepções de arte e de ensino, bem como de suas práticas, outras pessoas contribuíram para a discussão do projeto da escola.

Além disso, diversas contribuições continuam existindo, por parte dos diversos atores da M_EIA, conferindo o caráter dinâmico e múltiplo das concepções de arte ou de Educação Artística existentes na escola. Segundo um aluno: "Eu acho que a arte está em tudo que nos rodeia. Por exemplo, mesmo fazendo guia turístico aqui, eu vou falando de coisas que envolvem a arte em si. São coisas, são paisagens[...] são coisas assim que eu vou falar para a pessoa".

Comparada a muitas escolas de ensino de arte superior ocidentais, as concepções de Educação Artística existentes na M_EIA revelam-se como mais abrangentes. Nesse sentido, recorre-se novamente às provocações de Leão Lopes: “A gente tinha que romper com esta visão restrita da arte”.

Na fala de Leão Lopes, está contextualizada a crítica a respeito de a arte, normalmente, restringir-se, no âmbito educativo, às artes visuais. Para ele, infelizmente, exploram-se muito pouco outros sentidos ou áreas de conhecimento, tais como: o gosto, o olfato e a música.

A importância concedida ao campo do food design, na M_EIA, ilustra bem a fala do Reitor sobre o desejo de ruptura com uma visão redutora da arte. Para ele, esta e outras iniciativas têm propiciado a ampliação da visão dos próprios estudantes da escola a respeito da concepção de Design e de seu campo de possibilidades: “Percebo que nós estamos a despertar nos nossos estudantes a descoberta de um mundo diferente daquele que procuraram ao decidirem por esta escola [...] um mundo muito mais aberto, muito mais rico de oportunidades criativas”.

O Reitor acrescenta:

Quando começamos a nos interessar pelo alimento, pela cultura do gosto, pela qualidade da comida que produzimos e comemos, surgiu o food design. Não demos ênfase à tradição do design nessa área que privilegiava a materialização de suportes técnicos e de equipamento para a área do alimento, deixando para outro plano a cultura, a investigação e a educação do gosto. Nós escolhemos esta última direção. Enquanto aquele design se preocupava sobretudo com os equipamentos e com a indústria do alimento, nós optamos por trabalhar o alimento, na perspectiva do design do gosto e do produto final culturalmente e biologicamente qualificado, com identidade local; a partir de quem o produz, passando por quem o processa até ao seu consumidor.

Assim como o projeto da escola é o de um designer generalista, o mesmo pode-se dizer quanto à formação em Artes Visuais ou Arquitetura. O fato de os alunos de um curso específico frequentarem, ao longo da formação, sobretudo nos primeiros anos de curso, disciplinas comuns, possui, nas palavras do Reitor, “essa essência”.

Na medida em que o Reitor explica sobre o campo de atuação do designer para exemplificar “essa essência” da M_EIA, ele tece a seguinte reflexão: “Eu diria a mesma coisa, se voltarmos para a arte. A arte não restringe a possibilidade de resposta à Sociedade, não estabelece limites. Pelo contrário, ela oferece-nos sempre a oportunidade de construir respostas, com várias finalidades e possibilidades de interpretação.”

Para que exista(m) esta concepção ou concepções, ampla(s) sobre a relação entre arte, educação e sociedade, é preciso que subsista simultaneamente um projeto de escola aberto, capaz de acompanhar a própria dinâmica da vida cultural e social. Tal abertura tem sido um objetivo perseguido pela M_EIA. Segundo José Carlos Paiva:

Mas é nessa negociação, de interferência democrática no real, de adesão ao destino das comunidades em luta pelo seu futuro, perante a qual em muitas situações teremos de suspender o que nos instiga, que assumem o sentido pleno a intervenção e a aprendizagem, onde o artístico se projecta no ‘processo’ e no 'acontecer’, mais do que propriamente no ‘objecto’ ou na ‘obra’9.

A fala do Reitor também revela um grau de consciência e de reflexividade fundamentais para a construção desse processo: “Portanto, M_EIA, parece que é natural, não foi pensada, concebida, escrita que vai ser assim. A M_EIA está sendo assim. Eu espero que continue sendo outras coisas (risos). Aquilo que a gente pensa hoje não vai amarrar a instituição”.

A reflexividade, expressa no pensamento do Reitor, a respeito de um projeto de escola que está em constante construção, encontra ressonâncias no pensamento de Atkinson (2008), na medida em que a M_EIA propõe-se a desenvolver uma pedagogia de interrupção com o estabelecido. Nessa mesma linha de abordagem, as concepções de Educação Artística presentes na M_EIA não estão focadas no que alunos, professores, diretor e reitor são ou deveriam ser, mas voltam-se para a potencialidade e “incerteza” do vir a ser (Atkinson, 2008).

É possível afirmar, ainda, que a proposta pedagógica da M_EIA, bem como a amplitude de suas concepções a respeito da arte e da educação envolvem a noção de tomada de risco, discutida por Atkinson (2008), na medida em que adota-se uma pedagogia que não se pretende totalmente controlada. Mas, mais do que isto, a noção de tomada de risco está expressa na própria ideia de escola, de seu projeto, projeto este em aberto, apesar das exigências impostas pela legislação educacional a uma instituição de ensino formal. A ideia de risco implica, portanto, uma flexibilidade para “deixar as coisas acontecerem”, sem definir uma direção clara dos resultados esperados.

Essa última questão conduz a um aspecto de grande relevância a respeito da M_EIA: a tensão entre, por um lado, a existência de uma escola de ensino superior reconhecida pelo Ministério da Educação cabo-verdiano e, portanto, por ele regulamentada, e, por outro lado, a necessidade de um projeto educativo aberto, em constante construção e reconstrução, disponível para enfrentar a tradição acadêmica e procurar novos caminhos.

Considerando a ênfase dada pela M_EIA ao estudo dos contextos locais, de sua relação orgânica com as populações das ilhas e com seus problemas concretos, expressos tanto em seu papel social, quanto nas concepções de Educação Artística que emergem das falas dos entrevistados, discute-se no próximo tópico a pesquisa aplicada como um dos elementos centrais de diálogo e intervenção nas comunidades.

3. Pesquisa aplicada como processo formativo e como instrumento de diálogo/intervenção nas comunidades: concepções

A promoção e desenvolvimento da pesquisa aplicada, ao lado da pesquisa fundamental, é destacada no estatuto da M_EIA como o segundo objetivo da instituição.

Devido à relevância do assunto, considera-se necessário, em primeiro lugar, estabelecer uma distinção, entre os conceitos de pesquisa teórica ou fundamental e pesquisa aplicada. Alerta-se, contudo, para o fato de que tais distinções possuem fins didáticos, podendo conduzir a uma visão estreita e limitada a respeito da investigação, caso não se tenha em mente que tal distinção não é excludente.

De acordo com Barros e Lehfeld (2000, p. 78), citados por Vilaça (2010, p. 63): “Em termos gerais, são consideradas pesquisas teóricas aquelas que têm por finalidade conhecer ou aprofundar conhecimentos e discussões”. Seu objetivo consiste em “compreender ou proporcionar um espaço para discussão de um tema ou uma questão intrigante da realidade”.

No sistema educacional brasileiro, o estudante tem contato com este tipo de pesquisa logo nos primeiros anos escolares, por meio da consulta de livros, artigos, trabalhos monográficos, jornais e enciclopédias.

A pesquisa aplicada, por sua vez, refere-se à investigação concebida para desenvolver conhecimentos novos, com finalidades práticas.

A prioridade dada à pesquisa aplicada na M_EIA é um dos elementos que a torna como fenômeno tão distintivo, perpassando os currículos da escola como um todo. Segundo um dos professores do curso de Design:

Desde o primeiro ano aqui no curso de Design, área na qual me licenciei, sempre foram vários os projetos que o Atelier Mar tem desenvolvido e que também acaba por ser da M_EIA. Aí vem a questão da pesquisa aplicada, da investigação aplicada. O objetivo que se tem cá na M_EIA é que sempre os alunos, desde o primeiro até o quarto ano, estejam cientes dos projetos, do que está a acontecer aqui no Atelier Mar. São projetos, são coisas reais, são coisas aplicáveis a nossa cidade dentre as várias ilhas que temos aqui em Cabo Verde. Portanto, esses projetos muitas das vezes são integrados no plano curricular cá na M_EIA.

Outro professor da M_EIA, também recupera a ideia da investigação aplicada como um princípio praticado pelo Atelier Mar “há muito tempo nos Projetos Comunitários”. Seu envolvimento com este tipo de pesquisa se dá tanto através da ONG, quanto através da escola. No que se refere especialmente a sua experiência na ONG, o professor esclarece que, na área da arquitetura, o Atelier Mar tem se dedicado bastante à investigação aplicada. Segundo o professor:

Isso, por um lado, para recuperar alguns processos e tecnologias da arquitetura vernacular. Para tentar perceber o sentido da aplicação dessas tecnologias nesse contexto. E, por outro lado, trabalhar sobre isso para propor novas soluções construtivas e novas tecnologias adaptadas sempre ao contexto. Trabalho que o Atelier Mar já vem desenvolvendo e que justifica um bocado a criação do curso de Arquitetura - formar um profissional com essas preocupações ou mais próximo dessas preocupações. Claro tem que ter outras preocupações, mas é importante pensar numa nova arquitetura para este contexto.

Indo mais além, o Reitor não apenas explicita a importância da bagagem adquirida pelo Atelier Mar para o desenvolvimento da pesquisa aplicada na M_EIA, mas também reflete sobre os ganhos advindos da criação da escola para que tal abordagem investigativa se amplie e ganhe maior solidez:

Por outro lado, tiramos vantagens porque foram os projetos do Atelier Mar que sugeriram o modelo de investigação e também o âmbito disciplinar da pesquisa. Criando a M_EIA começamos a sistematizar essa abordagem com resultados assinaláveis do ponto de vista educativo, sobretudo, porque uma das finalidades é também a qualificação científica, humana e técnica dos nossos estudantes. Foi a nossa prática de intervenção social, de desenvolvimento comunitário adquirida no Atelier Mar que, de alguma forma, nos levou a privilegiar a investigação aplicada, participada, uma vez que a pesquisa deveria incidir sobre projetos consistentes que repercutissem na vida das pessoas. Os estudantes são todos envolvidos na vida das comunidades de diferentes ilhas, seja no meio urbano, seja no rural.

(Fonte: Acervo da pesquisadora)

Figura 9 Exemplo de arquitetura vernacular na ilha de Santo Antão  

À noção de pesquisa aplicada, o Reitor da escola acrescenta o conceito de pesquisa participada ou participativa como ponto de diálogo entre a M_EIA e as comunidades:

Adotamos a investigação aplicada, participada ou participativa, como instrumento de trabalho fundamental para estar e conhecer os problemas das populações nas suas comunidades. Para tomar parte na resolução de seus problemas. Reparem, estamos supostamente numa escola de arte. Esta colaboração e partilha pressupõe conhecimentos em várias áreas disciplinares, aparentemente exteriores aos interesses de investigação em arte. Pressupõe também metodologias específicas de trabalho no terreno. E nesses cruzamentos estão os destinatários da investigação, que esperam e, legitimamente, que os resultados em proposição possam servir para melhorar a sua vida. Têm também que poder avaliar esses mesmos resultados. É aí que se torna interessante o nosso trabalho: envolvendo os mais diretamente interessados nele, envolve toda a academia independentemente de sua área de interesse ou de especialidade.

Um ponto importante a ser ressaltado na fala do Reitor é a adoção dos termos investigação participada ou participativa como sinônimos do termo investigação aplicada. Isto significa que para o Reitor o sentido, em alguns casos, restrito, atribuído ao termo pesquisa aplicada é em sua concepção ampliado, na medida em que envolve não apenas a necessidade de produzir conhecimento para a resolução de determinados problemas, mas também envolve a participação das comunidades locais na construção de conhecimentos a respeito de uma dada situação.

No que se refere ao conceito de pesquisa participativa, Santos (s.d., p.1), esclarece que10: “[...] a pesquisa participativa11 é um conceito elástico, abrigando concepções e práticas de investigação sob diferentes nomes, mas que partem de premissas similares e revelam diferentes aspectos do processo participativo com a finalidade de orientar a prática.”

O autor ainda demarca a participação efetiva, concreta dos envolvidos para que uma investigação possa ser considerada como pesquisa participante, outra nomenclatura incluída no conceito elástico de pesquisa participativa:

[. . .] uma pesquisa participante é um processo para alcançar outra situação e, ainda que pressuponha momentos distintos entre si, a singularidade de cada momento é parte de um universo, do qual todos são coautores participantes do processo de produção do conhecimento a ser incorporado na ação. Frisa-se que [. . .] a participação efetiva, concreta dos envolvidos na pesquisa não se limita à delegação de tarefas parcelares de um mero conhecimento operante e instrumental, dada por uma elite profissional, aos membros de uma população. Ainda que tenham níveis de formação diferenciados, todos são detentores do conhecimento produzido e controladores do processo de pesquisa (Santos , s. d., p. 2).

A partir das falas dos entrevistados, nota-se o predomínio da noção de pesquisa aplicada como contributo para a intervenção na realidade circundante ou para a resolução de problemas concretos, isto é, relacionados aos contextos social, cultural e econômico das ilhas cabo-verdianas. Durante a presença no campo de investigação, pôde-se confirmar que, de fato, a pesquisa aplicada possui centralidade tanto nas práticas desenvolvidas no interior da escola quanto fora dela.

3.1 Projetos de desenvolvimento local realizados pela M_EIA entre 2012 e 2016: Ilha de Madeira e Alto de Bomba

Dentre os vários projetos de desenvolvimento local realizados pela M_EIA, destacam-se os estudos dos assentamentos informais do Mindelo, com início em 2011.

Por meio da Semana do Urbanismo12, promovida pela M_EIA em 2015, definiu-se o desafio de se “lançar um olhar sobre o recente crescimento dos assentamentos informais das cidades cabo-verdianas, especificamente da cidade do Mindelo, contribuindo assim para pensar o seu papel e o seu futuro” (Flores; Ribeiro, 2016).

Em um primeiro momento, o plano de trabalho estruturou-se em torno das disciplinas de Antropologia e de Teoria Geral de Organização do Espaço e contaria com a participação dos alunos do primeiro ano da M_EIA. A partir do ano letivo de 2014/2015, o tema passou a envolver diversas disciplinas dos cursos de Artes Visuais, Design e Arquitetura.

Foram definidos dois grandes eixos de trabalho: a “construção de mapas críticos sobre a área da Ilha da Madeira, no bairro de Ribeira Bote”, bem como a “construção de uma metodologia de intervenção urbana para Alto de Bomba e suas áreas anexas” (Flores; Ribeiro, 2016).

Flores e Ribeiro (2016)13 contextualizam, em linhas gerais, a área da Ilha de Madeira, contribuindo para uma maior compreensão da atuação da M_EIA na localidade:

O bairro de Ribeira Bote, onde se localiza toda a área da Ilha de Madeira, constitui uma das primeiras extensões urbanas dos primórdios da cidade do Mindelo. Actualmente, encontra-se muito conectado com o centro histórico e cercado pelas vias de maior tráfico. Ao longo do tempo, abrigou uma população cuja actividade económica principal se associou à pesca e aos trabalhos portuários. É um bairro consolidado, com relativas carências no padrão construtivo das moradias, mas com um enorme potencial de capacitação. Assim, a área da Ilha de Madeira, nomeadamente a Rua de Salga Morte, foi seleccionada para o trabalho de cartografia crítica devido à já longa fama de zona estigmatizada, à sua condição de reduto de migrantes vindos de outras ilhas e, outrora, de São Tomé e Príncipe [...].

Quanto à caracterização da área de Alto de Bomba, Flores e Ribeiro (2016) explicam:

O Bairro de Montesossego, onde se ubica a área de Alto de Bomba, representa uma extensão mais tardia da cidade que data dos anos 1960 e que, neste momento, constitui um dos bairros mais populosos da cidade com 5102 habitantes. A sua topografia possibilitou a génese de assentamentos informais onde é inexistente qualquer infraestrutura urbanística e levou ao aparecimento de uma tipologia urbana e habitacional igualmente precária14.

Sobre as etapas de realização do trabalho, Flores e Ribeiro explicam a adoção da construção de mapas críticos como importante ferramenta para imersão nos contextos em questão:

Os trabalhos de cartografia crítica desenvolvidos na Ilha de Madeira, além de objectivarem romper com os preconceitos vigentes, pretendiam extrair de cada um dos cinco grupos de alunos constituídos, através de uma comunicação gráfica livre, a construção de mapas mentais e críticos capazes de gerar a elaboração coletiva de narrativas e interpretações que refletissem as lógicas e processos instalados (Iconoclasistas, 201315, apud Flores; Ribeiro, 2016).

(Fonte: Acervo da M_EIA)

Figura 10 Assentamentos informais, Alto de Bomba, Ilha de São Vicente  

A representação por meio de mapas mentais tem sido um recurso utilizado em trabalhos com dinâmica participativa para se alcançar objetivos e resultados variados.

Terminada a primeira fase do projeto, “considerou-se adquirida uma nova interpretação sobre a representação social, física e identitária do lugar, tanto por parte dos moradores, como por parte dos alunos” (Flores; Ribeiro, 2016).

A partir do enquadramento teórico-metodológico do campo a ser trabalhado, definiu-se como diretrizes para os projetos de intervenção:

a) identificar as tipologias de problemas e de deficiências recorrentes: infraestruturais, habitacionais, geológicas e topográficas; b) verificar a adequabilidade das soluções adotadas nas áreas mais consolidadas e suas possibilidades de melhoria e de replicação em áreas em fase de consolidação ou a consolidar; c) verificar a possibilidade de prestar assistência técnica aos moradores, para implantação das melhorias urbanísticas e habitacionais pretendidas, bem como recuperar as suas práticas culturais e aperfeiçoar as suas aptidões profissionais (Flores; Ribeiro, 2016).

Segundo os autores do projeto, tanto professores quanto alunos estiveram atentos, durante as diversas fases de trabalho, às culturas locais, bem como à preservação delas por meio da memória dos moradores da região.

Mais uma vez, foi recuperada a atuação da M_EIA, na ilha de Santo Antão, vale ressaltar, em parceria com o Atelier Mar, como importante referência para a construção dos projetos de intervenção na cidade do Mindelo:

De acordo às actuações da M_EIA na ilha de Santo Antão, estudou-se o território partindo da identificação dos problemas recorrentes: criando soluções urbanísticas de baixo custo, empregando tecnologias de domínio público capazes de utilizar a mão de obra local. No plano imaterial, fomentou-se apoiar a recuperação e/ou o desenvolvimento dos acervos culturais tradicionais encontrados, como o grupo de tamboreiros que aceitou promover a criação de uma escola de música para crianças do Alto de Bomba, dando continuidade à tradição do São João. Fomentou-se igualmente a preservação dos acervos culturais contemporâneos emergentes como o hiphop, que se constitui como “mídia” jovem e um instrumento de recolha de preocupações, queixas e anseios, mas também numa alternativa profissional (Flores; Ribeiro, 2016 ).

Os autores Flores e Ribeiro destacam ainda o desenvolvimento de uma visão mais crítica e fundamentada, por parte dos alunos, a respeito da influência de questões políticas sobre os problemas urbanísticos, destacando o papel de protagonismo que a M_EIA e seus atores desempenharam, com o intuito de minimizar os problemas urbanísticos detectados nas periferias do Mindelo:

As percepções dos alunos revelavam estar entendida a dificuldade de relacionamento entre moradores e poder público, no encaminhamento de demandas e sugestões para fortalecer a cidadania e a participação democrática. Revelavam uma rápida sensibilidade para entender os estágios de urbanização, num gradiente decrescente de qualidade, desde o sopé ao ponto mais alto da área em estudo. Percebiam o processo espaço/tempo da sua progressiva ocupação e que o entendimento desse processo, espontâneo e informal, fornece a chave de uma ação de melhoria progressiva das condições urbanísticas e habitacionais de uma comunidade assente numa encosta. Como corolário dessa ideia, despontou o reconhecimento de que a principal carência local era infraestrutural e que os problemas habitacionais poderiam ser corrigidos através de uma assistência técnica que a própria M_EIA pode prestar (Flores; Ribeiro, 2016).

Flores e Ribeiro (2016) tomaram como ponto de partida tanto os problemas detectados nas áreas em questão, quanto suas potencialidades: diversidade cultural, tecnologia construtiva de domínio público, utilização de materiais baratos e, em parte, disponíveis no local, núcleos detentores de antigas e novas “tradições”.

Na medida em que se propõe a articular um trabalho que englobe o diagnóstico da realidade das comunidades com a elaboração e execução de projetos que tenham como objetivo recriá-las, e ainda, explicitar as contradições que marcam a sociedade cabo-verdiana, tal iniciativa contribui para a formação de subjetividades outras e, portanto, para a desarticulação da hegemonia dominante .

O trabalho da M_EIA, no âmbito da sociedade civil, local onde se constrói uma concepção particular de mundo, pode ser considerado, portanto, como um esforço para se criar formas de vida substitutivas aos valores do capitalismo tardio. Tal abordagem e prática em Educação Artística representaria aquilo que Mouffe (2007 ) designa de “arte como experimentação utópica”, uma das possibilidades de arte crítica enumeradas pela autora.

Esse processo tem se revelado enriquecedor para a consolidação da proposta da M_EIA como uma escola que não possui uma estrutura física que a aprisione. Pelo contrário, toda a cidade revela-se como parte dessa experiência mais ampla, em um esforço de diálogo entre as comunidades locais e os diversos atores formalmente envolvidos com a M_EIA. Tal aspecto confirma o caráter subversivo da escola e sua tentativa de criação de uma multiplicidade de espaços agonísticos no contexto das ilhas. Ao mesmo tempo, não se pode ignorar algumas relações de tensão envolvendo os diversos atores formalmente vinculados à escola, de acordo com o que se pôde observar, durante a pesquisa de campo. Esta questão será discutida nos tópicos seguintes .

3.2 Percepções dos alunos sobre a escola e seus projetos

As observações e as entrevistas revelaram o reconhecimento, por parte dos estudantes, acerca de alguns importantes aspectos trabalhados em sua formação na M_EIA, elementos esses que vêm sendo consolidados pela escola, ao longo do tempo: o aprofundamento do conhecimento da realidade local, a importância da utilização e valorização das matérias-primas e produtos próprios do país e, ainda, a interação com as comunidades como fator imprescindível para a realização de trabalhos mais afinados às necessidades das populações locais. Esta percepção por parte dos alunos, por outro lado, nem sempre se dá de modo imediato, mas requer um trabalho de amadurecimento, mediado tanto por professores, quanto proporcionado pela própria imersão nas comunidades.

Por outro lado, a partir das entrevistas, aparecem algumas críticas por parte dos alunos quanto à escola. São elas: o fato de a M_EIA ter uma carga horária diária muito extensa, falta de aprofundamento dos conhecimentos trabalhados em algumas disciplinas, número reduzido do corpo docente, maior valorização do curso de Arquitetura em comparação com o curso de Design.

Talvez a necessidade de um maior aprofundamento dos conhecimentos por meio das disciplinas, sentida pelos estudantes, esteja associada ao número reduzido de docentes na escola. Provavelmente, o fato de um só professor ministrar várias disciplinas, ao mesmo tempo, dificulte uma melhor preparação das aulas e estudos mais aprofundados sobre assuntos bastante diversificados. Em 2014, o corpo docente de professores residentes na ilha de São Vicente era composto por apenas seis pessoas. Em 2016, esse número aumentou para dez professores, incluindo-se o diretor e o reitor da M_EIA.

Já a percepção dos estudantes sobre uma maior valorização do curso de Arquitetura relaciona-se à preponderância de projetos de desenvolvimento urbanístico nas periferias do Mindelo, projetos estes que envolvem todos os cursos da escola.

Contudo, há que se refletir se tal impressão não decorre de uma visão segmentada sobre o conhecimento e, consequentemente, da divisão dos saberes em campos disciplinares específicos, concepção esta fortemente arraigada na sociedade ocidental. A M_EIA, por sua vez, parece insistir na ruptura com tal noção, situação que pode gerar muitas vezes incômodos, conflitos e até mesmo embates. Para Mouffe (2014), a inserção de práticas artísticas no terreno institucional deve ter por objetivo fomentar o dissenso e criar uma multiplicidade de espaços agonísticos. Ao desafiar o consenso dominante, tal intento possibilita o surgimento de novos modos de identificação. O questionamento das fronteiras disciplinares na M_EIA é um dos fatores indicativos de que a escola vem procurando se consolidar como um importante espaço de fomento ao dissenso e criação de espaços agonísticos múltiplos, por meio de práticas artísticas, no contexto cabo-verdiano. Tal intento, claramente presente no projeto da M_EIA, lança grandes desafios para o cotidiano de todos os sujeitos integrantes da instituição (reitor, diretor, professores e alunos), uma vez que, do ponto de vista prático, a escola possui algumas fragilidades na efetivação de espaços agonísticos múltiplos, em contraste com as relações de poder marcadas por uma hierarquia, em muitos casos, rígida.

As falas de alguns alunos lançam pistas sobre algumas das fragilidades a esse nível e, consequentemente, sobre os desafios para o aperfeiçoamento dos mecanismos democráticos de participação, sobretudo dos alunos, na M_EIA e em seus projetos.

O tópico seguinte propõe-se a outro delicado desafio: problematizar as possibilidades de articulação entre o campo da Educação Artística, as populações das ilhas de Cabo Verde e, ainda, o desenvolvimento local, sob uma ótica diferente do capitalismo tardio.

4. Articulações entre educação artística, comunidades e desenvolvimento local

4.1 Fortalecimento das potencialidades locais: elemento norteador dos projetos realizados pela M_EIA

A partir das falas dos entrevistados, tanto de alunos como de professores, percebe-se nitidamente a preocupação com a valorização das matérias-primas e/ou produtos locais. Porém, sendo Cabo Verde um país pobre em termos de riquezas naturais, a valorização que a escola procura ultrapassa a questão material, alcançando também elementos de ordem imaterial, tais como, saberes, tradições e hábitos locais. Segundo depoimento de um professor:

Eu acho que os projetos, da forma como o Atelier Mar e, até mesmo, a M_EIA fazem, a gerência dos projetos e como desenvolve o conceito desses projetos, eu acho que é precisamente isto, de forma que as pessoas possam perceber o que temos cá. Não somos como a maioria dos países do continente africano que têm, em termos de recursos naturais, uma riqueza enorme. Nós temos recursos naturais, mas quando se fala de recursos naturais, as pessoas pensam que é ter ouro, ter diamante. Não temos nada disso até agora. Quem sabe, algum dia desses, acabam por perceber que tem petróleo aqui (risos). Mas temos outros recursos, temos recursos humanos. E que é muito importante, eu acho, um bom trabalhador é quando quer fazer uma coisa e consegue fazer o que quer. Para além disso, temos outros tipos de recursos e o que acabou por ser feito, conscientizar as pessoas que podemos aproveitar o que temos. Não vamos pensar que não temos isso, que temos que buscar lá fora. Mas o que temos, a partir disso transformar e criar e pensar outras formas de viabilizar as coisas. Isso que tem sido feito, ao longo dos anos, pelo Atelier Mar e pela M_EIA. As formações que o Atelier Mar tem fornecido às pessoas tem trabalhado a possibilidade de perceber, informar a pessoa de que modo pode aproveitar o que tem à sua frente, o que tem ao redor.

Um aspecto que não é percebido de modo imediato, contudo, mas que também passa pela valorização das potencialidades imateriais locais, especificamente situado no âmbito da estética, refere-se à produção visual dos alunos da M_EIA. Nesse sentido, o depoimento de um aluno propõe uma questão que interroga as próprias bases do pensamento artístico trabalhado na escola por alguns professores: “O desenho feito aqui não tem que ser um desenho da Europa; tem que ser um desenho das nossas necessidades”.

Considerando-se o grande número de professores europeus que compõe o corpo docente da escola, a afirmação do aluno aponta para a necessidade de uma autorreflexão por parte dos professores, a respeito dos próprios parâmetros de arte que os últimos carregam e a existência, ou não, de abertura para o desenvolvimento de uma relação dialógica entre tais parâmetros e os saberes, percepções e sensibilidades locais, seja no domínio da arte, seja em um âmbito mais amplo, no domínio da estética.

Atkinson (2008) apresenta importantes reflexões a respeito dos desenhos de alunos de culturas muito diferentes da cultura de origem do professor. O contato com outras culturas, sobretudo, por meio do trabalho no campo da Educação Artística, pode converter-se em um meio de imposição de uma determinada visão sobre o mundo, sobre a arte, ou pode constituir-se em campo de possibilidades de ricas trocas e, portanto, do fortalecimento de si e do outro e, ainda, no surgimento de novos conhecimentos.

Com o intuito de ampliar a discussão sobre a transformação da realidade por meio da Educação Artística, torna-se importante considerar em que medida se dá, ou não, a participação das comunidades nos projetos desenvolvidos pela M_EIA. Para tanto, procurou-se considerar a avaliação de pessoas das próprias comunidades sobre os projetos de intervenção local.

4.2 Como se dá a participação das comunidades nos projetos: relação entre as comunidades locais e a M_EIA

Para compreensão da relação entre as comunidades locais e a M_EIA, foram realizadas algumas entrevistas com professores, alunos da escola e alguns membros de duas diferentes comunidades.

Segundo depoimento de alguns professores, existe participação ativa das comunidades nos projetos de desenvolvimento local. Um deles afirma: “Depende de projeto para projeto. Mas, à partida, sim. Os projetos partem deles. As potencialidades estão lá. Então, normalmente as coisas são trabalhadas a partir das comunidades. Elas têm que participar”.

Com intuito de compreender a questão de modo mais concreto, foi pedido ao professor que citasse exemplos de projetos em que isso teria acontecido. O professor explicou, então, como foi desenvolvida junto à população do Planalto Norte, na ilha de Santo Antão, uma tecnologia de cura do queijo, ampliando, assim, a sua durabilidade, fator altamente positivo, do ponto de vista financeiro para a comunidade local:

Olha, na arquitetura, temos os projetos desenvolvidos no Planalto Norte que criamos juntamente com a cooperativa local, a Cooperativa dos Resistentes do Planalto Norte, em que foi criada uma estrutura para a cura do queijo. Naquele contexto, percebeu-se, por exemplo, que uma das fontes de rendimento daquela comunidade são as suas cabrinhas, é o queijo que fazem que vendem, o queijo fresco. Tinham que partir do Planalto Norte, vender o queijo não sei onde, andar um bocado e muitas vezes perdiam a produção, porque não conseguiam vender, depois os queijos estragavam. E foi trabalhada, com a comunidade, a possibilidade de criar uma estrutura que possibilitasse a cura do queijo. Isso foi discutido com as pessoas da cooperativa que representam a comunidade e foi criada essa estrutura, que é uma estrutura que se tinha que conseguir baixar a temperatura, porque é um sítio quente, não é? Uma estrutura com um processo de isolamento que utiliza a pozolana16, por exemplo, para baixar a temperatura e se conseguir fazer o processo de cura do queijo. Isso permite que não percam a produção. Há uma produção que é para venda fresca, outra que é para a cura. E também conseguem valorizar mais o seu produto, porque agora têm um queijo que é curado. E eles também participaram desse processo de construção dessa estrutura.

Evidencia-se, a partir do depoimento de alguns professores, a valorização da participação das comunidades, nos projetos desenvolvidos, tanto pela M_EIA, quanto pelo Atelier Mar.

Porém, esta percepção não é homogênea entre o grupo de professores. Segundo alguns deles, não existe uma participação ativa das comunidades na tomada de decisões nos projetos de intervenção local.

Assim, se, por um lado, as observações em campo tenham mostrado que a M_EIA, de fato, contribui com as comunidades por meio de seus projetos, por outro lado, muitos destes trabalhos estão focados nas expectativas da própria escola sobre o desenvolvimento local.

Durante a pesquisa, foram acompanhados alguns encontros entre professores e alunos na M_EIA, que envolveram o planejamento e relato do andamento de alguns projetos de cunho social. As apresentações dos alunos estiveram focadas nos aspectos que pretendiam desenvolver, e não nas comunidades, em suas necessidades e expectativas. Não foi falado sobre a escuta do que a comunidade desejava.

Conclui-se, portanto, que os projetos de desenvolvimento local trabalhados pela M_EIA têm um forte comprometimento com o social, revelando um grau de consciência e de sensibilidade, por parte de professores e alunos, para essa questão. Entretanto, nem sempre terá sido concretizada a escuta sobre as expectativas das comunidades, bem como tentativas de se construir alternativas para os problemas detectados envolvendo ativamente as populações locais.

4.2.1 Avaliação das comunidades

Em uma das fases da coleta de dados, foi feito o acompanhamento de uma formação profissional desenvolvida pela M_EIA e pelo Atelier Mar, no âmbito do Food Design, em uma comunidade local da ilha de São Vicente. Após o acompanhamento do projeto, foram coletados depoimentos envolvendo cinco participantes, por meio da técnica de pesquisa denominada grupo focal.

Ao se perguntar sobre a pertinência ou relevância dos assuntos, conteúdos e saberes trabalhados pelo projeto, os participantes da entrevista afirmaram já saber a maioria deles, pelo que tinham outra expectativa a respeito da formação ofertada.

Como aspecto positivo, destacaram a oportunidade do encontro entre todos que participaram da formação, dos momentos prazerosos, de descontração.

Também foi feita a avaliação da relação entre a M_EIA e a comunidade da Ilha de Madeira, um dos locais em que a escola realizou projetos de intervenção no âmbito da arquitetura e do design. Conversas informais com vários de seus moradores revelou que eles não conheciam a M_EIA. Em conversa, mais tarde, com os estudantes da escola, nota-se que aconteceram contatos mais próximos com determinados moradores da Ilha de Madeira. Porém, tais contatos, em sua maioria, foram feitos de forma isolada. Esse pode ter sido um fator que contribuiu para que parcela significativa da comunidade não tivesse consciência dos projetos de intervenção dos alunos da M_EIA, planejados para a localidade.

Assim, considera-se que uma maior participação, envolvimento, integração, tomada de consciência e de decisões, por parte dos membros das comunidades locais nos projetos ainda é um processo a ser aperfeiçoado. É importante ressaltar, nesse sentido, que a participação efetiva de todos os envolvidos em projetos que abarcam um grande número de pessoas, com interesses e experiências muito diferentes entre si, não é algo simples de se efetivar.

De acordo com um dos colaboradores do Atelier Mar, quando se fala em trabalhos de cunho social, predomina em Cabo Verde, uma perspectiva assistencialista. O Atelier Mar, contudo, "tenta remar contra a maré". Deste modo, as formações comunitárias promovidas pela ONG tratam temas como a cidadania "porque percebemos que as pessoas estão desconectadas, muito individualistas. Então falamos da cidadania, tentamos aproximar as pessoas, mostrar a importância de estarem engajadas e unidas em um objetivo".

4.2.2 Relação dos alunos com as comunidades

Embora tenha sido notado certo entusiasmo por parte de vários alunos na realização dos projetos junto às comunidades, são colocados, em alguns casos, desafios aos estudantes difíceis de serem superados, dada a complexidade que podem envolver.

Um exemplo de dificuldade que tiveram, em determinado projeto, foi a ida a uma comunidade marcada por violência e roubo. Situações como esta acabam por levar a desistência de muitos alunos na participação das propostas realizadas pelos professores.

Em se tratando da autonomia dos estudantes, a fala da grande maioria dos professores da instituição, indica que os alunos “não possuem desenvoltura para tanto”.

Por outro lado, depoimentos de alguns dos estudantes revelam o desenvolvimento de estratégias para superarem essas dificuldades. Além disso, destaque merece ser concedido a alguns professores da escola, na mediação entre alunos e comunidades e até mesmo no encorajamento dos alunos, a fim de promover tal aproximação.

Considerando-se o caráter dos projetos delineados pela instituição, aspectos como a quebra de estereótipos acerca das comunidades, o conhecimento mais aprofundado delas, a escuta atenta das necessidades das populações locais, dentre outros, devem ser elementos discutidos e trabalhados, permanentemente, de maneira coletiva pelos membros da escola.

Por fim, ressalta-se a fala de um dos professores da M_EIA. Para ele, a participação dos alunos nos projetos de intervenção comunitária não é satisfatória, em alguns casos, uma vez que eles nem sempre se sentem motivados para desenvolver trabalhos no âmbito do Design Social. O professor acredita que os alunos deveriam poder decidir se querem, ou não, participar de projetos desse cunho .

5. Conclusão

A partir da discussão apresentada neste artigo, pode-se afirmar que a M_EIA desempenha papel de relevo em Cabo Verde, na medida em que a instituição está implicada com o desenvolvimento do país, não apenas no âmbito da arte e da cultura, mas também nos campos do social e do econômico.

No plano operativo, conforme pôde-se observar, a partir da apresentação dos projetos da M_EIA, verifica-se a existência de sintonia entre as temáticas que os norteiam, bem como os principais desafios da sociedade cabo-verdiana: a escassez de água e alimento, problemas urbanísticos, dentre outros. Pode-se também afirmar que a M_EIA, principalmente pela ampla experiência acumulada pelo Atelier Mar, possui conhecimentos, saberes e ferramentas teórico-metodológicas bem fundamentadas e pertinentes, para lidar com os problemas que marcam o país e que, consequentemente, afetam as suas populações. Segundo o Projeto Político Pedagógico da M_EIA e, ainda, a partir da fala de diversos entrevistados, constata-se uma tentativa, por parte da instituição, de fazer emergir um ensino de arte pautado no “saber pensar/fazer”.

Todavia, é possível afirmar que existem níveis diferentes de capacidade e de identificação plena com o projeto, por parte dos professores e dirigentes, não apenas para desenvolverem os programas junto aos alunos, fornecendo-lhes o suporte necessário para tanto, sem, contudo tolher-lhes a autonomia, mas também existem diferentes níveis de capacidades argumentativas para se discutir com os alunos as razões dos saberes trabalhados pela escola, de modo que os atores envolvidos nesse processo possam conferir significado a ele.

Outra fragilidade percebida refere-se à tendência de concentração do poder na tomada de decisões quanto à escola e os rumos de seus projetos, nas mãos de seus principais dirigentes e professores, em detrimento da liberdade de escolha e de um maior diálogo junto aos estudantes e às comunidades. Sobretudo no campo operativo, é preciso refletir sobre o modo como as comunidades são envolvidas nos projetos. Os depoimentos dos alunos, dos membros das comunidades e de alguns professores, revelam que o papel de protagonismo das populações locais é ainda limitado. Essas últimas não podem ser consideradas como meras beneficiárias, mas necessitam de ser chamadas a colaborarem nas temáticas selecionadas dos projetos e em sua condução. Por outro lado, segundo um dos colaboradores do Atelier Mar, a própria iniciativa das comunidades “é muito fraca”. E acrescenta:

O espírito de autonomia, de iniciativa das pessoas ainda está a ser construído. É a questão da cidadania sempre. A pessoas têm que ver que elas são o motor do desenvolvimento, não as instituições. As instituições simplesmente fazem a orientação, procuram recursos, mas são as pessoas, a forma como pensam, a forma, sobretudo, como agem, o mais importante. Isto ainda está muito numa fase embrionária.

Na afirmação do entrevistado nota-se a consciência da necessidade de valorização do desenvolvimento de uma relação de horizontalidade entre academia e comunidades, isto é, de uma relação em que se reconheça os potenciais e fragilidades existentes nestes dois meios, bem como a possibilidade de crescimento decorrente do encontro entre ambas as partes. Segundo Freire (1969, p p. 30-31), “não há absolutização da ignorância nem absolutização do saber. Ninguém sabe tudo, assim como ninguém ignora tudo”.

Acredita -se que o estudo realizado na M_EIA contribuiu para a problematização do mito, comumente impregnado nas escolas de arte, de que a sua função seria a de formar artistas, questão estreitamente relacionada à ideia de formação do cidadão de corpo inteiro. Isto signica dizer que uma escola de arte não pode ser excludente dos estudantes que procuram outros desígnios profissionais, de não-artistas, por vezes, ou dar ao sentido de 'artistas' um valor pré-configurado, independentemente do que cada um venha a estabelecer para si próprio.

Uma escola de arte que se propõe a formação do cidadão de corpo inteiro, filosofia expressa nas concepções de arte e de Educação Artística na M_EIA, conforme pôde-se notar, proporciona não apenas a aprendizagem do artístico, mas também da cidadania e, não menos relevante, o fortalecimento das subjetividades.

Referências

1. André M E D A. (2008). Estudo de caso em pesquisa e avaliação educacional. Brasília: Liber Livros. [ Links ]

2. Atkinson D. (2008). Pedagogy against the State. JADE. 27(3): 226- 240. [ Links ]

3. Barros A J S, Lehfeld N A S. (2000). Fundamentos de metodologia: um guia para a Iniciação Científica. (2a ed.) São Paulo: Makron Books. [ Links ]

4. Flores N, Ribeiro M. (2016). No te ne Kemin. Buala. Recuperado a partir de: http://www.buala.org/pt/cidade/no-te-ne-kemin. [ Links ]

5. Freire P. (1969). Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e terra. [ Links ]

6. Guedes M C. (Coord.). (2011). Arquitetura Sustentável em Cabo Verde: manual de boas práticas. (Vol. 2). Lisboa: Instituto Superior Técnico. [ Links ]

7. Iconoclasistas: dispositivos de investigación colaborativa, mapeo colectivo itinerante, cartografias críticas y recursos gráficos de código abierto. (2013). S.l.: Iconoclasistas Recuperado a partir de: https://www.iconoclasistas.net/Links ]

8. Inácio M M F. (2011). Vidas secas e os flagelados do vento leste: veredas da seca e da fome. (Dissertação de mestrado). Universidade Nova de Lisboa, Lisboa. [ Links ]

9. Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura. Dossier da M_EIA (s. d.). Mindelo: Atelier Mar e Mindelo_ Escola Internacional de Arte. [ Links ]

10. Lopes L. (2012). Criatividade, interiorização pessoal e firmes ideias. Nós Genti: negócios, pessoas e empreendedorismo. Cabo Verde: Nós Genti. Recuperado a partir de: http://www.nosgenti.com/?p=926. [ Links ]

11. Lopes L. (2008). Sítio Museológico de Lajedos: um projeto de desenvolvimento cultural. Revista de Estudos Cabo-verdianos. Número Especial: Patrimônio e Museologia. Praia: Edições Uni-CV jun. de 2013. Recuperado a partir de: http://www.revistapatmus.org/ojs/index.php/RPM/article/view/30. [ Links ]

12. Lopes M. (1959). Os flagelados do vento leste. (3a.ed.) Lisboa: Vega. [ Links ]

13. Monteiro G G. (2008). "Empowerment: uma estratégia de luta contra a pobreza e a exclusão em Cabo Verde - o caso de Lajedos". (Dissertação de mestrado). Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. Lisboa. [ Links ]

14. Mouffe C. (2014). Estratégias de política radical e resistência estética. Esquerda. R. Matoso (Trad.). Recuperado a partir de: http://www.esquerda.net/artigo/estrategias-de-politica-radical-e-resistencia-estetica/33990. [ Links ]

15. Mouffe C. (2007). Prácticas artísticas y democracia agonística. Barcelona: MACBA, 2007. [ Links ]

16. Santos L C. (s. d.). Pesquisa participante ou pesquisa participativa: mais um tipo de abordagem qualitativa em pesquisa. Bahia: LCSantos. Recuperado a partir de: http://www.lcsantos.pro.br/arquivos/49_PESQUISA_PARTICIPANTE_PESQUISA_PARTICIPATIVA01042010-185828.pdf. [ Links ]

17. Tolentino A C. (2006). Universidade e transformação social nos pequenos estados em desenvolvimento: o caso de Cabo Verde. (Tese de doutorado). Universidade de Lisboa. Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Lisboa. [ Links ]

18. Vilaça M L C. (2010). Pesquisa e ensino: considerações e reflexões. e-scrita: Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, 1(2). Recuperado a partir de: http://www.uniabeu.edu.br/publica/index.php/RE/article/viewFile/26/pdf_23. [ Links ]

1. O artigo foi desenvolvido a partir da tese de doutoramento, realizada em Cotutela, entre a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e a Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, sob orientação das professoras Doutoras Teresa Medina e Aracy Martins, entre 2013 e 2016.

2. Segundo a Revista cabo-verdiana “Nós Genti”, Leão Lopes, considerado como “um dos maiores expoentes da expressão cultural contemporânea de Cabo Verde”: “Nasceu em Santo Antão em 1948. Doutorado pela Universidade de Rennes II, França, e diplomado em pintura pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, é membro fundador do Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura (M_EIA), onde desempenha as funções de reitor. Tem desenvolvido, ao longo dos anos, uma intensa atividade nos domínios da criação artística que passam pela literatura, as artes plásticas, o design e o cinema. [. . .] desempenhou ainda os cargos de Deputado Nacional e de Ministro da Cultura”.

3. Durante a primeira imersão em campo, no ano de 2014, e até o ano de 2015, a M_EIA não possuía diretor, mas apenas reitor. Este exercia, segundo o antigo estatuto da instituição, a função de Presidente do Conselho Diretivo, entretanto também fazia parte do Conselho Científico-pedagógico e do Conselho Consultivo da escola. A partir de 2015, e com a reformulação do Estatuto da M_EIA, em 2016, a escola passa a ter um Presidente, o professor Leão Lopes, e um diretor, o professor Valdemar Lopes.

4. O Processo de Bolonha nasceu a partir da ideia de se criar o Espaço Europeu do Ensino Superior (EEES). Em 1999, em Bolonha, tal Espaço foi formalizado, envolvendo 30 países, conhecido como “A Declaração de Bolonha”. Atualmente está envolvido o total de 47 países no Processo de Bolonha. Pode-se afirmar que a iniciativa teve como objetivo fortalecer a competitividade internacional do sistema europeu de ensino superior. Para tanto, ações conjuntas são tomadas, pelos países pertencentes à União Europeia, no âmbito desse nível de ensino.

5. Segundo o Dossiê da M_EIA, as atividades desenvolvidas na sede do Atelier Mar, “compreendem as oficinas de Pedra, Cerâmica, Madeira e Metais, bem como os serviços administrativos e outros de apoio ao bom funcionamento destes equipamentos na escola [. . . ]. No que se refere ao edifício da antiga Escola Jorge Barbosa, trata-se de uma projeção de direito e uso que se encontra ainda em fase de negociação com o Ministério da Educação e Valorização dos Recursos Humanos. Neste edifício [. . .], deverão funcionar os serviços administrativos da M_EIA, os serviços sociais, aulas teóricas, biblioteca, anfiteatro, galeria de arte, oficina de imagem e audiovisuais, desenho, têxteis, oficina de técnicas de impressão”.

6. Informações disponíveis nos banners presentes no edifício que compõe o Sítio Museológico de Lajedos.

7. id. ibid

8. id. ibid

9. Paiva, José Carlos de (2016): Entender a resistência na educação artística como acção inscrita na irradiação de possibilidades: a partir do vivido no 4ei_ea” (aguarda publicação).

10. Santos (s. d.)

11. Ibidem.

12. Segundo notícia divulgada no site da escola: “De 10 a 12 de Junho decorre na M_EIA, dois dias dedicados a conferências sobre construções informais em Cabo Verde e no Mundo. Haverá apresentação de projectos, mesa redonda com um leque de convidados nacionais e estrangeiros, moderada pelo Reitor da M_EIA, culminando com a apresentação de trabalhos efectuados pelos alunos do curso de Arquitectura da mesma”. Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura (s. d.).

13. Idealizadores dos projetos de intervenção urbana realizados pela M_EIA, nas periferias do Mindelo, entre os anos de 2012 e 2016.

14. Flores e Ribeiro (2016).

15. "Iconoclasistas” (2016)

16. Rocha de origem vulcânica muito leve e abundante em Santo Antão. Suas propriedades foram descobertas pelos romanos há mais de dois mil anos.

Recebido: 16 de Setembro de 2019; Aceito: 23 de Março de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons