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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.47 Lisboa dez. 2023  Epub 29-Dez-2023

https://doi.org/10.15847/cct.27923 

ARTIGO ORIGINAL

Reforma Administrativa das Freguesias Portuguesas 2013. Reflexões a partir do caso do Algarve

Administrative Reform of Portuguese Civil Parishes 2013. Reflections from the case of the Algarve

Margarida Pereira1 
http://orcid.org/0000-0001-5314-5199

Alexandre Domingues2 
http://orcid.org/0000-0002-4802-4840

José Afonso Teixeira1 
http://orcid.org/0000-0001-7041-3992

Cristina Delgado Henriques3 
http://orcid.org/0000-0003-0100-5586

1Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (NOVA FCSH), Universidade NOVA de Lisboa, Portugal, ma.pereira@fcsh.unl.pt

2CCDR Algarve, Portugal, adomingues@ccdr-alg.pt

3CIAUD, Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design, Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa, Portugal, cdh@fa.ulisboa.pt


Resumo

O artigo discute a reforma territorial das freguesias portuguesas em 2013 inserida no acordo de resgate do Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia (Troika) ao Estado português, na sequência da crise da dívida soberana. Tem como objetivos: (i) enquadrar a reforma das freguesias em Portugal nas tendências de reorganização ao nível local em países europeus nas últimas décadas; (ii) situar a agregação à escala nacional, integrando-a na Reforma da Administração Local do XIX Governo (2011-2015); (iii) analisar, a partir do Algarve, as mudanças no exercício das suas competências, na prestação de serviços à população e na relação com o município; (iv) discutir os resultados alcançados. A metodologia apoia-se na revisão da literatura sobre reformas territoriais locais em países europeus, na leitura crítica do processo nacional, estando a abordagem empírica alicerçada na perspetiva dos eleitos, a partir de entrevistas semiestruturadas a todos os presidentes das juntas das freguesias agregadas no Algarve. O processo de agregação top down aplicado no país desencadeou na região uma reação de partilha e colaboração entre freguesias, atenuando tensões e fraturas entre comunidades (mas, noutras situações, expondo cisões ou fraturas antigas). O novo mapa está assimilado, mas subsistem críticas e já ocorreram duas reversões.

Palavras-chave: organização territorial do Estado; política pública; poder local; freguesia; Algarve

Abstract

This paper discusses the territorial reform in Portuguese parishes in 2013 following the bailout from the International Monetary Fund, the European Central Bank and the European Commission (Troika). The purpose of this paper is (i) to frame the reform of the parishes in Portugal in the trends of reorganization at the local level in European countries in recent decades; (ii) to situate the aggregation at the national scale, integrating it in the Reform of Local Administration of the XIX Government (2011-2015); (iii) to analyze, from the Algarve, the changes in the exercise of its powers, in the provision of services to the population and in the relationship with the municipality; (iv) to discuss the results achieved. The methodology is based on the literature review on local territorial reforms in European countries, on the critical reading of the national process, and the empirical approach is based on the perspective of the elected representatives, based on semi-structured interviews with all the mayors of the aggregated parish councils in the Algarve. The top-down aggregation process applied in the country triggered in the region a reaction of sharing and collaboration between parishes, reducing tensions and fractures between communities (but, in other situations, exposing old divisions or fractures). The new map is assimilated, but criticism remains and two reversals have already occurred.

Keywords: territorial reform; public policy; local authorities; civil parish; Algarve

1. Introdução

A reorganização territorial do poder local ocorreu em vários países europeus desde a década de 1960, independentemente da natureza dos seus sistemas políticos (Teles, 2016). Em Portugal, essa necessidade há muito que se faz sentir (e justificou intenções de alguns governos), mas foi no contexto restritivo do pedido de assistência financeira (Troika), na sequência da crise da dívida soberana, que essa reorganização foi imposta, integrada na Reforma da Administração Local (RAL) pelo XIX Governo (2011-2015).

O artigo discute a reforma territorial das freguesias (2013), no quadro mais amplo de reorganização do nível local em países europeus e na RAL em Portugal. A atualidade do tema tem tripla justificação: a reversão foi permitida em 2021 e tem de acontecer até 2024; a descentralização de competências para o nível local (municípios e freguesias) está em curso desde 2018; o movimento bottom up das populações (com ou sem apoio de eleitos) pressiona o poder local para admitir a reversão.

A abordagem parte da seguinte questão: a reforma de 2013 concorreu para conferir às freguesias mais competências, melhorar a prestação de serviços públicos de proximidade e reforçar a coesão territorial? Tem como objetivos: (i) enquadrar a reforma das freguesias em Portugal nas tendências de reorganização ao nível local na Europa nas últimas décadas; (ii) contextualizar o processo de agregação à escala nacional no âmbito da RAL; (iii) analisar, a partir de um território concreto, as mudanças no exercício das suas competências, na prestação de serviços à população e na sua relação com o município; (iv) discutir os resultados alcançados.

A escolha do Algarve como estudo de caso decorre de situações diferenciadas no processo de agregação (equilíbrio entre freguesias urbanas e rurais, do litoral e do interior) e da heterogeneidade socio-espacial da região, associadas às diferentes unidades de paisagem - serra, barrocal e litoral.

A metodologia está suportada em: (i) revisão da literatura sobre reformas territoriais locais em países europeus; (ii) análise do processo que suportou a reforma (contexto, método adotado e resultados); (iii) entrevistas semiestruturadas, presenciais, aos 16 presidentes de todas as juntas de freguesia do Algarve resultantes da agregação, em junho e julho de 2017, isto é, após 4 anos de experiência de atuação nas circunscrições novas. As freguesias não agregadas foram excluídas do estudo, pois o propósito foi identificar os efeitos da agregação, comparando com a situação anterior. O guião foca as seguintes dimensões: apreciação da reorganização (critérios adotados, envolvimento dos eleitos, benefícios e críticas inerentes ao mapa refeito, nova designação escolhida), reforço de competências (por atribuição direta ou por delegação), funções com mais impacto junto das populações, recursos disponíveis (humanos e financeiros) e relacionamento com outras freguesias, município e cidadãos. O desfasamento de 4 anos entre a reforma e o lançamento do inquérito decorre da necessidade de ter um período temporal mínimo (integrando eleições autárquicas) para validar a consolidação de práticas. Apesar do distanciamento entre a realização do inquérito e o presente, os resultados permanecem úteis para refletir sobre possíveis reversões de agregações à luz do quadro legal aprovado em 2021 (Lei 39/2021, de 24 de junho).

O artigo estrutura-se em quatro pontos: (Re)organização administrativa do Estado ao nível local no quadro europeu e nacional; Reforma das Freguesias (2013); Reorganização das freguesias no Algarve; Discussão e conclusões.

2. (Re)organização administrativa territorial do Estado ao nível local

A organização administrativa não é neutra nem estática, devendo combinar adaptabilidade (às transformações socio-territoriais estruturantes) e estabilidade (para conceber, operacionalizar e avaliar as políticas). Enquadra o exercício do poder político, sendo requisito necessário, mas também condicionante do desenho e implementação de políticas públicas (Ferrão, 2016). Essa influência decorre da estrutura, em função dos níveis de poder instituídos, suas atribuições, autonomia e relacionamento e da configuração/dimensão (territorial e/ou populacional) das circunscrições territoriais que suportam as decisões políticas.

As reformas administrativas acontecem por duas vias: de forma gradual e incrementalista, pela conjugação de pequenas mudanças num período temporal alargado, permitindo uma adaptação progressiva do sistema; de forma abrupta, por vezes por imposição externa, quando a resistência à mudança é persistente e conduz a contextos fortemente penalizadores para os territórios (Kickert e Van der Meer, 2011). Qualquer mudança enfrenta resistência (passiva ou ativa) por parte dos múltiplos atores afetados (públicos e privados), porque compromete interesses instalados e gera incertezas e receios quanto aos resultados futuros. Mas as reformas territoriais do poder local tendem a ser as mais contestadas pelas comunidades (Ebinger et al., 2019), pela proximidade das populações aos territórios e aos eleitos.

O cumprimento do princípio da subsidiariedade é determinante para o desenvolvimento local e a coesão territorial, a equidade e coesão social, a qualidade de vida e bem-estar das populações, o que requer adequação das políticas às especificidades territoriais e partilha e comprometimento dos cidadãos nas tomadas de decisão.

2.1 Quadro europeu

Embora com estruturas político-administrativas heterogéneas (estados centralizados, federados, descentralizados), desde os anos 1960 muitos países europeus aplicaram reformas territoriais a diferentes escalas, induzidas por dois tipos de circunstâncias: alterações estruturais da ocupação sociodemográfica e económica dos territórios, comprometendo as respostas públicas convencionais às necessidades emergentes; reestruturação do Estado para modelos mais descentralizados, para adaptação aos desafios da globalização e inerentes mudanças sociais e tecnológicas do sistema capitalista (Jessop, 1997; 2002). Os resultados repercutem-se na: alteração dos níveis subnacionais de governo e respetiva redistribuição de poderes de decisão; criação de novas circunscrições por fragmentação territorial ou reconfiguração; redução do número de unidades territoriais por fusão ou redesenho das estruturas locais.

A generalizada pequena dimensão territorial dos municípios na Europa fundamentou o seu redimensionamento para atribuição de mais competências e maior autonomia política e fiscal (Teles, 2016). Muitas discussões foram mobilizadas pelo “tamanho ideal” (De Ceuninck et al., 2010) para a prestação de serviços, exercício da democracia e identidade local. Nos anos 1980, os défices orçamentais dos Estados gerados pela recessão económica subsequente à crise do petróleo da década anterior provocaram na Europa ocidental (p.e. países nórdicos, Alemanha, Reino Unido, Bélgica) e oriental (p.e. Polónia, Checoslováquia, Roménia), a diminuição do número de unidades (agregação), visando a modernização, racionalização e obtenção de economias de escala na prestação de serviços públicos, na ótica da “nova gestão pública” (Kickert e Van der Meer, 2011). Esta pressupunha substituir o modelo de gestão do Welfare State, introduzir mecanismos de mercado e adotar ferramentas de gestão privada (Warrington, 1997). Mas, na sequência da queda do muro de Berlim (1989) e da aproximação às democracias ocidentais, países da Europa central e oriental (p.e. Hungria, República Checa, Ucrânia) reforçaram as autonomias municipais, até então prejudicadas pelos Estados centrais hegemónicos (Swianiewicz et al., 2017).

A crise de 2008 desencadeou mais mudanças (Chatry e Hulbert, 2017), para reduzir a despesa pública, melhorar a prestação de serviços e racionalizar as decisões (p.e. Grécia, Luxemburgo, Irlanda, Albânia, Noruega, Ucrânia). As entidades locais foram as mais visadas, embora outros níveis e estruturas periféricas do Estado central fossem atingidos. Duas tendências marcaram os processos de reforma: decisão top down, numa lógica de política nacional, apoiada em critérios de homogeneidade, funcionalidade e eficiência económica, envolvendo fusão de unidades; iniciativas bottom up, sustentadas em critérios de proximidade, identidade e afinidade territorial, associadas a novas circunscrições por desagregação ou por redefinição de limites territoriais de unidades existentes (Steiner et al., 2016; Swianiewicz et al., 2017; Ebinger et al., 2019). As reformas dominantes, top down, conduziram à fusão de municípios, justificada por economias de escala inerentes à maior dimensão (contração dos custos unitários na prestação de serviços, integração de serviços mais especializados pelo acréscimo de população alvo), ganho de habitantes nas áreas de baixa densidade, adaptação à transformação da ocupação dos territórios e ao acolhimento de novas funções, capacitação para aceder a financiamentos externos (Steiner et al., 2016). Os opositores/críticos à fusão contra-argumentam com deseconomias de escala (acréscimo de população/território pode exigir mais investimentos e aumentar o custo médio da prestação dos serviços) e com a erosão da democracia local (maior afastamento das populações das estruturas de poder, esbatendo a ligação entre eleitores e seus representantes, sobretudo penalizador em territórios e populações mais vulneráveis) (Denters et al., 2014; Ebinger, 2019). A fusão também é apontada como ameaça às identidades locais, em particular quando são agregadas comunidades com especificidades vincadas (Swianiewicz, et. al. 2017). Daqui podem emergir tensões/ conflitos, associados ao sentimento de “abandono” das populações e ausência de defesa das suas necessidades pelas entidades públicas, em especial quando há fortes desequilíbrios /diferenciações entre “agregadores” e “agregados”.

Os estudos de avaliação destas reformas municipais tendem a menorizar o impacto (negativo) na democracia local (Ebinger et al., 2019) e a enfatizar a eficiência na prestação dos serviços como o resultado mais relevante (Steiner et al., 2016). É a prevalência do princípio da eficiência sobre o princípio da subsidiariedade.

2.2 Quadro nacional

A grande reforma municipal, pioneira no contexto europeu, apoiou-se nas políticas liberais do século XIX, extinguindo 581 municípios (redução de quase 70%) (Teles, 2021, p.68) e conferindo aos restantes uma superfície média muito superior à dos congéneres na Europa. O mapa resultante permaneceu praticamente inalterado até à atualidade. As freguesias (paróquias civis desde 1830) integram a administração a partir de 1878. Na Constituição de 1933 eram meras entidades administrativas. A Constituição de 1976 fortalece o poder local no quadro da organização do Estado (atribuições, competências, financiamento), consagrando como autarquias a região administrativa, o município, a freguesia e outras formas de organização territorial autárquica (comunidades intermunicipais e áreas metropolitanas).

A freguesia é uma autarquia inframunicipal, extensível a todo o território nacional, é quase inexistente nos países europeus, sendo as civil parishes no Reino Unido as mais semelhantes em termos funcionais (Gato, 2015). A Constituição confere à freguesia relevância pela sua tradição secular e pela dimensão (populacional e/ou territorial) dos municípios (Oliveira e Neiva, 2013). Tem órgãos próprios (deliberativo e executivo), atribuições e competências, património e finanças próprios; não dependendo hierarquicamente do município, complementa-o na governança de proximidade, pela sua forte ligação ao território e às comunidades residentes, robustecendo os laços de vizinhança. Vários autores enfatizam esta especificidade: “entidade político-administrativa local mais próxima do cidadão” (Oliveira, 2013, p.121); “autarquia de proximidade, de resposta imediata aos interesses das respetivas populações, caracterizada pela leveza da sua estrutura (paroquial)” (Batalhão e Pedroso, 2019, p.7). Todavia, Tavares e Teles (2018) alertam que a “proximidade” é insuficiente para responder às necessidades das populações, por vezes inviabilizada pela falta de escala e de recursos.

No Portugal democrático, a regulamentação dos critérios para criação e extinção das autarquias locais (municípios e freguesias) (Lei 11/82, de 2 de junho) e criação de freguesias (Lei 8/93, de 5 de março) multiplicou iniciativas bottom up. Quando focadas nos municípios, foram contrariadas ao nível central, pois as pretensões ameaçavam as vantagens da dimensão do mapa existente, ou afetavam interesses político-partidários locais (alteração da representatividade dos partidos pelas reconfigurações territoriais). Já o número de freguesias continuou a aumentar, particularmente em áreas urbanas, sendo as iniciativas bem acolhidas pelo seu apoio de proximidade às populações e pelos custos reduzidos do seu funcionamento.

Desde a instauração da democracia até ao início da segunda década do século XXI, a reorganização político-administrativa foi influenciada/imposta por quatro mudanças estruturais: instituição da democracia (Constituição de 1976); integração europeia (1986); reajustamento às realidades sociodemográficas, económicas e territoriais contemporâneas; resposta a novas exigências do exercício do poder do Estado (respeito pelos princípios da subsidiariedade, da equidade e da justiça espacial). Neste processo, as discussões (de apoio e/ou rejeição) mais intensas à escala nacional (estruturas político-partidárias e sociedade civil) estiveram associadas à regionalização; na criação de municípios, ocorreram em âmbitos territoriais restritos; na criação de freguesias, tiveram expressão territorial ainda mais circunscrita, pelas escassas atribuições (pouco valorizadas fora da escala inframunicipal), débil capacidade de investimento e baixos custos da sua estrutura (parte dos eleitos não remunerados e quadros de pessoal reduzidos), mobilizando apenas os afetados localmente. A imposição da redução acentuada do número das freguesias no território nacional na reforma de 2013 alterou a situação: a contestação foi generalizada no país.

3. Reforma das freguesias portuguesas em 2013

3.1 Antecedentes no período democrático

Das 4.050 freguesias existentes no território português continental em 2012, 376 surgiram após 1880, destacando-se as décadas de 1920 e de 1980 (reformas políticas associadas à implantação da República e ao 25 de abril de 1974). A população média por freguesia também aumentou entre 1890 e 2011 (5,6%) (exceto nos anos 1960, devido à emigração). Mas, com a reforma, o aumento foi de 39,1% num só ano: o rácio população/freguesia passou de 2.590 hab./freguesia (2012) para 3.618 hab./freguesia (2013).

As transformações sociais após 1974 reforçaram o poder local e estimularam o envolvimento cívico das populações. Em pouco mais de três décadas, sobretudo nos anos 1980, foram criadas 201 daquelas 376 freguesias (53,5%). Estas responderam às expetativas das populações, algumas com muitos anos, num quadro institucional que lhes outorgava mais direitos participativos e reivindicativos. Mais do que a afirmação do lugar ou da comunidade, reclamavam serviços da administração do Estado garantidos pelo estatuto de freguesia.

A reforma de 2013 alterou o universo daquelas 201 freguesias1, algumas não atingindo dez anos de existência. A maioria (128; 63,7%) concentrou-se nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, nos municípios das capitais de distrito ali não incluídos e em municípios da faixa costeira (32,2% da superfície continental), com fortes dinâmicas urbanísticas. Nos restantes dois terços do território surgiram 73 freguesias (Tabela 1). A reforma de 2013 ditou a (re)agregação de quase metade (96) destas 201 freguesias, 63,5% das quais nos territórios com maior crescimento urbano.

Tabela 1 Freguesias criadas após 1980 e sujeitas à reforma administrativa, por tipos de territórios 

Freguesias % do território continental
Inalteradas Agregadas Agregadoras Total
Área Metropolitana de Lisboa 8 27 16 51 2,3
Área Metropolitana do Porto 2 0 0 2 3,4
Outros municípios capitais de Distrito 6 9 5 20 10,6
Outros municípios da faixa litoral 27 25 3 55 15,9
Outros 29 35 9 73 67,8
Total 72 96 33 201 100,0

Fonte: Elaboração própria (com base na Lei 11-A/2013, de 28 de janeiro)

Até 2013, para justificar a criação de freguesias, a lei ponderava “os pertinentes índices geográficos, demográficos, sociais, culturais e económicos”, “razões de ordem histórica”, “os interesses de ordem geral e local em causa, bem como as repercussões administrativas e financeiras da alteração pretendida” mediante a fundamentação da iniciativa “em razões de ordem geográfica, demográfica, económica, cultural e administrativa”2. Eram ainda considerados indicadores3 para salvaguardar razões históricas, identidades culturais e aspetos funcionais como a acessibilidade aos serviços, ausentes no processo de 2013. Solicitava-se também a demonstração da efetiva participação dos órgãos deliberativos e executivos4, a constituição de uma comissão instaladora5 e o Governo assegurava apoio financeiro e técnico à instalação das novas freguesias6.

Comparando os processos para a criação de freguesias, destacam-se como diferenças:

Os indicadores e critérios mencionados nos diplomas até 2012 consumavam abordagens de caráter geográfico, territorial, social e funcional dos espaços abrangidos. A reforma de 2013 aplicou, no quadro de um sistema de quotas não justificado, um conjunto restrito de indicadores e de critérios baseados numa classificação de lugar urbano e de um contingente para a dimensão populacional;

Algumas freguesias criadas depois de 1980, e eliminadas pela reforma de 2013, apresentavam efetivos populacionais idênticos/superiores aos de alguns municípios, omitindo o princípio da proximidade/comunidade local.

O processo de criação das 96 freguesias depois de 1980 foi anulado nos oito meses entre a publicação da Lei 22/2012, de 30 de maio e da Lei 11-A/2013, de 28 de janeiro.

3.2 Processo

Contexto

O pedido de assistência financeira a Portugal concretizou-se entre 2011 e 2014. No “Memorando de Entendimento sobre as Condicionantes de Política Económica”, um dos propósitos da intervenção era a contração do Estado Social e a redução dos gastos públicos. Alicerçava-se no argumento que a fragmentação territorial excessiva prejudica a eficiência e impede economias de escala. Modelo similar tinha sido imposto pela troika à Grécia e à Irlanda, também num contexto de assistência financeira (Swianiewicz et al., 2017), com incidência no município, seguindo a tendência reformista contemporânea em vários países europeus. A troika fixa as condições do resgate que obriga o Estado português, nomeadamente, à reformulação do sistema do governo local na perspetiva da contração da despesa pública (Tavares et al., 2012). Daquelas condições releva-se: “Reorganizar a estrutura da administração local. Existem atualmente 308 municípios e 4259 freguesias. Até julho de 2012, o Governo desenvolverá um plano de consolidação para reorganizar e reduzir significativamente o número dessas entidades (…) estas alterações que deverão entrar em vigor no próximo ciclo eleitoral local, reforçarão a prestação do serviço público, aumentarão a eficiência e reduzirão custos.” (Oliveira e Neiva, 2013, p.13). Assim, o propósito era a redução simultânea de municípios e de freguesias.

Mas a necessidade de reforma do poder local era já reconhecida pelos partidos “do arco da governação”: o XV Governo (2002-2004) (PSD/PP) lançou a Reforma da Administração Local (RAL), apontando-a como prioritária para o desenvolvimento regional do país (Relvas e Júlio, 2015). O programa do XVII Governo Constitucional (2005-2009) (PS) integrava um novo regime legal de criação, fusão e extinção das autarquias locais (municípios e freguesias). A extinção deveria privilegiar freguesias com menos habitantes em áreas urbanas, adotando critérios para além dos demográficos. O programa do XVIII Governo Constitucional (2009-2011) (PS) previa a reorganização territorial das freguesias, reforçando o seu estatuto de autarquia de proximidade. À data da intervenção da troika, o XIX Governo (2011-2015) (PSD/PP), recém-eleito, preparava o (re)lançamento da RAL, mas a iniciativa estava a ser contestada, inclusivamente pelos partidos que o suportavam. Assim, o Executivo aproveitou a imposição externa para impulsionar a sua Reforma - “reinterpretou” as orientações e contrapôs uma proposta que envolveu todas as dimensões do poder local: reforço da cooperação intermunicipal (áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais), redução facultativa dos municípios, redução obrigatória das freguesias (Relvas e Júlio, 2015; Teles, 2016; 2021; 2022). O abandono da obrigatoriedade da diminuição do número de municípios pode ter uma dupla interpretação: à troika, o Governo enfatiza a (grande) dimensão territorial dos municípios portugueses no contexto europeu; internamente, evita confrontos com as estruturas locais de poder, alicerces dos partidos do arco da governação nacional (proximidade de eleições autárquicas - 2013).

A aceitação desta “contraproposta”, para além de evitar o confronto político com os interesses municipais, parece estar associada a duas particularidades da freguesia: ser autarquia local reconhecida na Constituição (ao contrário das unidades submunicipais de outros países), não podendo ser eliminada por lei comum (Swianiewicz et al., 2017, p.18); ter financiamento do Estado. A exigência externa permitia vencer as resistências internas. Todavia, o seu contributo na dívida do Estado era escasso. “O principal erro da reforma de 2013 foi, porém, não ter uma ideia de freguesia devidamente explicitada” (Oliveira, 2018, p.18). A redução, apoiada em critérios quantitativos não fundamentados, gerou à partida receios quanto aos resultados, mais tarde confirmados. A aplicação do Memorando comprometeu os princípios da autonomia local (Silva, 2017), pelo que o programa do XXI Governo (2015-2019) admitiu reverter a situação. Mas até ao presente assistiu-se apenas a ajustamentos e não a ruturas no mapa imposto.

Metodologia

A reorganização das freguesias apoiou-se: no Documento Verde da Reforma da Administração Local, que aprova as orientações e medidas prioritárias a adotar na reforma da administração local autárquica (RCM 40/2011, de 22 de setembro); no Regime Jurídico da Reorganização Administrativa Territorial Autárquica, que estabelece os critérios de reorganização do território das freguesias (obrigatória) e dos municípios (facultativa) (Lei 22/2012, de 30 de maio). Implicava reduzir o seu número, obedecendo a critérios pré-fixados (Tabela 2). Podia ocorrer por: (i) agregação (“fusão” dos territórios das freguesias envolvidas) e (ii) redefinição dos limites territoriais (ponderando a ocupação, o funcionamento, a apropriação e a identidade dos territórios).

Tabela 2 Critérios de suporte à reorganização das freguesias 

Tipologia de município Freguesias em sede de município Outras freguesias
NÍVEL 1
1º Critério > 500 hab. / km2 Raio até 3 km 2º Critério AMU e APU
Mínimo de 5000 hab. / freguesia < 10 km sede município
Mínimo 20000 hab. / freguesia Mínimo de 3000hab. / freguesia > 10 km sede município
NÍVEL 2
1º Critério 100 hab. / km2 < 500 hab. / km2 Raio até 3 km 2º Critério APR AMU e APU
Mínimo de 1000 hab. / freguesia Mínimo de 5000 hab. / freguesia < 10 km sede Município
Mínimo 15000 hab. / freguesia
Mínimo de 3000 hab. / freguesia > 10 km sede município
NÍVEL 3
1º Critério < 100 hab. / km2 1 freguesia 2º Critério APR AMU e APU
Mínimo 500 hab. / freguesia Mínimo 1000 hab. / freguesia

AMU - Áreas Mediamente Urbanas; APU - Áreas Predominantemente Urbanas; APR - Áreas Predominantemente Rurais

Fonte: Governo de Portugal, 2011

A agregação (com percentagens de redução impostas) ocorreu nos limites dos respetivos municípios (agrupados em três níveis, substituindo a classificação estabelecida pela Lei 11/82, de 2 de junho), apoiada no número de habitantes e na densidade populacional, explicitando os parâmetros a alcançar (permitindo às assembleias municipais apresentar alternativas fundamentadas). Nos municípios com quatro ou menos freguesias, a reorganização era facultativa, desde que não subsistissem freguesias com menos de 150 habitantes.

As assembleias municipais tinham de deliberar sob a forma de “pronúncia” sobre a reorganização administrativa do território das freguesias. Como estímulo, previa-se que as freguesias criadas neste quadro beneficiariam de mais 15% da participação no Fundo de Financiamento das Freguesias (FFF) até ao final do mandato seguinte (2017).

A reorganização imposta enfrentou oposição generalizada do poder local: a maior parte das assembleias municipais não deliberou sobre a reorganização administrativa do território das freguesias ou fê-lo no sentido da rejeição, pelo método e pela ideia subjacente. De 229 municípios, 58 emitiram pronúncia de redução, 151 não se pronunciaram e 20 emitiram pronúncia desconforme (Oliveira e Neiva, 2013, p.17). Perante esta “desobediência” interna e a exigência do cumprimento de ordens de entidades credoras externas, o Governo criou a Unidade Técnica para a Reorganização Administrativa do Território (UTRAT), sediada na Assembleia da República, a quem delegou a tarefa. A lei previa que esta estrutura integrasse representantes da Associação Nacional dos Municípios Portuguesas (ANMP) e da Associação Nacional das Freguesias (ANAFRE), o que nunca aconteceu (Oliveira, 2018, p.16). Estava assumida a rutura com os principais interessados.

O calendário imposto foi curto (cerca de seis meses, o prazo de pronúncia das Assembleias Municipais era de 90 dias) e a agregação resultou, no geral, da aplicação de critérios baseados em limiares populacionais, sem ponderação das identidades e interdependências territoriais.

Resultados

A Reorganização Administrativa do Território das Freguesias foi aprovada em 2013 (Lei 11-A/2013, de 28 de janeiro). As Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira não integraram o processo de agregação e Lisboa respeitou um regime específico7. Foram reduzidas 1.168 freguesias, passando de 4.259 para 3.091: em 49 municípios não houve alterações (em conformidade com a lei), em 168 foi imposta a solução da UTRAT e em 61 ocorreram fusões voluntárias (República Portuguesa, 2016; Tavares e Teles, 2018). A redefinição dos limites foi pontual (anexos I e II da Lei 11-A/2013). A adoção de metodologias participativas e adequadas às especificidades dos territórios (só possível porque já em curso, mobilizadas por iniciativas bottom up integradas em estratégias de melhor gestão e governo local) culminou em resultados muito positivos (limites reajustados à ocupação e funcionamento dessas entidades territoriais, designações enfatizando as novas identidades - casos dos municípios da Amadora (CMA, 2012) e de Lisboa (Seixas, 2018). Na nova designação generalizou-se o prefixo “União das Freguesias de…” em 747 casos (25,9%), listando de seguida as freguesias envolvidas. Esta opção visou uniformização de procedimentos e integração da designação anterior para melhor aceitação pela população. As reações foram desfavoráveis: sentimento de perda de identidade, dificuldade na utilização da designação (em documentos) quando o número de freguesias abrangidas é elevado.

A nova Lei das Finanças Locais (Lei 73/2013, de 3 de setembro) e o novo regime de atribuições e competências das autarquias locais (Lei 75/2013, de 12 de setembro) completou a reforma. A lei referencia um conjunto alargado de áreas funcionais onde as freguesias podem intervir. Porém, a escassez de recursos humanos, técnicos e financeiros provoca elevada discrepância entre o quadro legal e a sua aplicação. Este reconhecimento justifica que a mesma lei aponte tarefas mais específicas a executar pelas freguesias (Artigo 16º). Às novas competências próprias acrescem aquelas que podem ser exercidas por delegação de competências pelos municípios (Artigo 131.º). A delegação de competências processa-se mediante Contratos Interadministrativos de delegação de competências (CIA) e Acordos de Execução (AE), sob pena de nulidade (Artigo 120.º). A delegação legal consiste no exercício de AE com as respetivas câmaras municipais. Os AE configuram um instrumento de reforço dos princípios constitucionais da descentralização, subsidiariedade e autonomia local, e incidem sobre várias matérias: gerir e assegurar a manutenção de espaços verdes; assegurar a limpeza das vias e espaços públicos, sarjetas e sumidouros; manter, reparar e substituir o mobiliário urbano instalado no espaço público, com exceção daquele que seja objeto de concessão; gerir e assegurar a manutenção corrente de feiras e mercados; assegurar pequenas reparações nos estabelecimentos de educação pré-escolar e do primeiro ciclo do ensino básico; promover a manutenção dos espaços envolventes dos estabelecimentos escolares referidos. Quando previstas em lei, consideram-se ainda delegadas nas juntas de freguesia, as competências de controlo prévio, realização de vistorias e fiscalização das câmaras municipais, em vários domínios.

O estudo da ANAFRE, um ano após a reforma administrativa, conclui: (i) num universo de 1.635 freguesias, 1.243 (76%) celebraram acordos de execução; (ii) 42% das freguesias que celebraram acordos de execução consideraram adequados os recursos financeiros disponibilizados, mas para uma percentagem expressiva os recursos patrimoniais (33,4%) e os recursos humanos (32,5%) não foram disponibilizados (Batalhão, 2016). Basílio et al. (2020) também referem que a redução do número de freguesias não se repercutiu na eficiência dos municípios.

Em suma, a reforma administrativa das freguesias, exigida para redução da despesa pública, eliminou 1.168 freguesias; apesar das suas competências terem sido alargadas pela Lei 75/2013, o Fundo de Financiamento das Freguesias (FFF) e o emprego nas freguesias conheceram uma quebra inicial, mas atualmente a tendência é crescente (embora o FFF em % do Orçamento Geral do Estado tenha decaído em 2020 e 2021).

Na sequência da agregação, o acréscimo de eleitores das freguesias teve implicações no regime de funções dos eleitos das freguesias: até então, 90% destes exerciam funções em regime de não permanência, sendo apenas 10% a exercer funções em regime de meio tempo ou tempo inteiro. Atualmente, em cerca de 93% das freguesias, o presidente pode exercer o mandato a meio tempo.

4. Reorganização das freguesias no Algarve

4.1 Mapa e números das novas freguesias

A agregação de freguesias no Algarve foi muito inferior à verificada na maioria das restantes NUTS III do Continente. Das 1.168 freguesias agregadas, apenas 17 (1,5%) pertenciam a municípios algarvios (Tabela 3). Para estes baixos valores concorreram vários fatores: (i) reduzido número de freguesias à partida (84), quando comparado com o das restantes NUTS III; (ii) elevado número de municípios com 4 ou menos freguesias, não sujeitos à obrigatoriedade de agregação de freguesias, desde que cumprido o requisito de não poder “resultar a existência de freguesias com um número inferior a 150 habitantes8; (iii) elevado número de municípios com 5 e 6 freguesias, forçados a perder apenas 1 ou 2 freguesias.

Tabela 3 Números da reorganização administrativa portuguesa por NUTS III 

NUTS III Freguesias
em 2012 (Nº) Agregadas (Nº) Agregadas (%) "Perda" (%)
Alto Minho 290 82 7,0 28,3
Cávado 265 95 8,1 35,8
Ave 236 68 5,8 28,8
Área Metropolitana do Porto 266 93 8,0 35,0
Tâmega e Sousa 265 88 7,5 33,2
Alto Tâmega 158 40 3,4 25,3
Douro 291 74 6,3 25,4
Terras de Trás-os-Montes 257 62 5,3 24,1
Região de Aveiro 106 32 2,7 30,2
Região de Coimbra 227 59 5,1 26,0
Região de Leiria 91 24 2,1 26,4
Viseu Dão Lafões 213 57 4,9 26,8
Beiras e Serra da Estrela 373 107 9,2 28,7
Beira Baixa 76 17 1,5 22,4
Oeste 121 32 2,7 26,4
Médio Tejo 128 35 3,0 27,3
Área Metropolitana de Lisboa 211 93 8,0 44,1
Lezíria do Tejo 91 23 2,0 25,3
Alentejo Litoral 41 10 0,9 24,4
Alto Alentejo 86 17 1,5 19,8
Alentejo Central 91 22 1,9 24,2
Baixo Alentejo 83 21 1,8 25,3
Algarve 84 17 1,5 20,2
TOTAL 4 050 1 168 100,00 28,8

Fonte: Elaboração própria (com base em DGT, 2012 e 2013)

Na análise relativa às dimensões (populacionais e territoriais) das freguesias agregadoras e agregadas, no Algarve prevalece a agregação da mais pequena pela maior: apenas em 1 das 16 agregações, a freguesia agregadora foi a menos populosa; e em 2 das 16, a freguesia agregadora foi a menos extensa.

Em 7 dos 10 municípios onde ocorreu a agregação de freguesias, a pronúncia da assembleia municipal9 (Artigo 11.º da Lei 22/2012, de 30 de maio), consubstanciada nos pareceres das assembleias de freguesia, foi no sentido da manutenção do então número de freguesias. Em 2 das 3 assembleias municipais que se pronunciaram pela concordância com a redução do número de freguesias, os representantes dos partidos que integravam a coligação vencedora saída das anteriores eleições legislativas, e que implementou a reforma administrativa, estavam em maioria, importando destacar que a maioria dos representantes na terceira assembleia municipal que anuiu à agregação era dos partidos da oposição. Este aspeto é relevante pois, no território nacional, não existiu correlação direta entre a anuência ou discordância com a agregação das freguesias e a representatividade das forças partidárias nas assembleias municipais10.

Até à reforma de 2013, os 16 municípios algarvios tinham 84 freguesias, com uma dimensão média de 59,5 km2. A reforma agregou 33 em 16 novas freguesias, resultando um mapa com 67 freguesias (Figura 1), com uma dimensão média de 74,6 km2.

A maioria das agregações ocorreu no litoral: cinco agregaram freguesias APU (S. Sebastião e Santa Maria, em Lagos; Sé e S. Pedro, em Faro; Albufeira e Olhos de Água, em Albufeira; Lagoa e Carvoeiro, em Lagoa; Santa Maria e Santiago, em Tavira); as restantes 6 agregações no litoral envolveram na sua grande maioria (9 em 12) freguesias APR. As 5 agregações de freguesias interiores envolveram 8 APR e 3 AMU. Assim, ao maior número de agregações no litoral, explicável pelo maior número de freguesias e de menores dimensões, contrapõe-se um reduzido número de agregações no interior.

Elaboração própria (com base em DGT, 2012 e 2013; INE, 2014)

Fonte Figura 1 Algarve - Freguesias antes e depois da reforma 

4.2 Perspetiva dos eleitos das freguesias algarvias resultantes da agregação

O posicionamento dos eleitos foi influenciado por fatores diversos, nomeadamente: contexto temporal da entrevista (pouco distanciamento da reforma, mas suficiente para uma apreciação fundamentada), experiência autárquica (circunscrita ao mandato em curso ou anterior, permitindo neste caso comparações com práticas antecedentes), entendimento do exercício do cargo, mais “institucional” versus ao serviço da comunidade (significando maior envolvimento ao exigido pelas competências consagradas); acompanhamento do processo de agregação desde a fase inicial (integrado nos órgãos locais), relacionamento com o município (nível e domínios de cooperação).

Processo de reorganização das freguesias

A apreciação do processo focou três aspetos: metodologia, mapa resultante (benefícios, críticas e correspondente fundamentação) e designação adotada na respetiva freguesia.

A crítica à metodologia é generalizada, quer pela não auscultação de eleitos e das populações, quer pelos critérios utilizados (quantitativos). Destaca-se a referência à fraca colagem à realidade de muitas circunscrições criadas, por não ponderação das relações de vizinhança, das identidades locais ou até do peso da população flutuante (turistas e ocupantes de residências secundárias), expressiva em algumas freguesias do litoral, com sobrecarga nos serviços prestados pelas freguesias.

A maioria dos entrevistados critica o resultado da fusão de freguesias e defende a revisão dos limites em função das dinâmicas territoriais e das identidades locais. Vários exemplos foram apresentados: (i) a freguesia de Parchal, desanexada em 2001, voltou a ser agregada a Estômbar, havendo defensores da agregação com Ferragudo que teria mais sentido; (ii) em Vila do Bispo/Raposeira, a assembleia municipal “auto-propôs” a junção das duas freguesias, para beneficiar dos 15% do FFF. A JF da Raposeira, discordando, foi incapaz de contrariar o processo. A freguesia atual abrange um território extenso, sendo os recursos (humanos, financeiros) escassos para responder às necessidades da população; (iii) a União das Freguesias de Faro (Sé e S. Pedro) não teve ganhos financeiros e perdeu proximidade à população: a freguesia teria então cerca de 45.000 habitantes (muito mais do que uma parte considerável dos municípios portugueses e, no Algarve, seria o 5º município mais populoso), com características socio territoriais muito diferenciadas (área urbana, área rural e três ilhas), carecendo de respostas específicas; (iv) a União de Freguesias de Conceição de Faro e Estói agregou territórios muito diferentes, com repercussões no exercício das funções da freguesia; (v) a União das Freguesias de Querença, Tor e Benafim beneficiaria do regresso de Tor e Benafim às freguesias iniciais - Tor para Querença (juntas durante 17 anos) e Benafim para Alte (juntas durante 28 anos). Esta União agregou comunidades com poucas afinidades (Benafim não tem relação com Querença e com Tor mas com Alte), num território extenso que compromete uma gestão de proximidade.

Assim, a apreciação do novo mapa oscila entre a aceitação e a rejeição. As posições favoráveis, nomeadamente das Freguesias de Albufeira e Olhos de Água (Albufeira), de Algoz e Tunes (Silves), Santa Maria/Santiago (Tavira) e Luz de Tavira e S. Estevão (Tavira) decorrem de: (I) ganhos de escala, que potenciam melhor prestação de serviços e/ou maior eficiência na gestão de recursos (p.e. maquinaria, veículos, …); (ii) adição de recursos, traduzida em maior capacidade financeira, mais equipamentos, mais pessoal (operacional, não administrativo); (iii) reforço dos órgãos (Moncarapacho e Fuseta - a Fuseta tinha um presidente com 40h, passando a dispor de um presidente a tempo inteiro). As posições desfavoráveis estão sobretudo ligadas a: (i) dimensão excessiva do território resultante (Vila do Bispo e Raposeira¸ Alcoutim e Pereiro), comprometendo a proximidade dos eleitos aos cidadãos; (ii) isolamento de freguesias não abrangidas pelo processo (Conceição de Faro e Estói critica a não anexação de Santa Bárbara de Nexe a nenhuma outra); (iii) agravamento do exercício das funções dos eleitos (território mais amplo, dispersão do atendimento na sede e na delegação); (iv) agregação de realidades geográficas e socioeconómicas diferenciadas (p.e. para Alcantarilha e Pera faria mais sentido agregar Pera a Armação de Pera; a UF de Faro inclui agora a praia de Faro e as ilhas; em Conceição e Cabanas (Tavira) a agregação não trouxe vantagens, persistindo a não adesão da população de Cabanas a iniciativas na Conceição) afetando a coesão socio-territorial; (v) agregação de territórios com relações de vizinhança débeis (p.e. Benafim relativamente a Querença e Tor), subestimando o sentido de comunidade; (vi) rejeição de alguma população por rivalidades locais (p.e. Barão de S. João e Bensafrim).

A maioria das freguesias agregadas adotou a designação oficial “União de Freguesias de…”. Apesar da contestação inicial, suportada na ausência de um processo de união genuíno e participado, e na extensão das designações (pouco operacional), eleitos e eleitores acabaram por resignar-se, alguns alimentando a esperança de reversão do processo (ideia esbatida com o tempo pela consciencialização dos custos associados - por exemplo registo notarial do património próprio); há freguesias em que a designação atual foi pacificamente aceite (p. e. Algoz/Tunes; Luz de Tavira /Santo Estevão); noutros casos surgiram designações alternativas, sem o termo “União de Freguesias de …” (JF de Raposeira e Vila do Bispo; J F Albufeira e Olhos de Água; Conceição de Faro e Estói; Alcoutim e Pereiro). Na UF de Lagos (São Sebastião e Santa Maria) houve rejeição; em 2015 foi adotado o nome de São Gonçalo de Lagos, padroeiro da cidade, através de um processo participado (6 sessões de consulta/auscultação, envolvendo 1.600 das 8.000 famílias).

Competências das freguesias

A Lei 75/2013, de 12 de setembro, que redefine as competências das freguesias, prevê, para além das competências próprias, a delegação legal de competências pelos municípios. Nas entrevistas aos presidentes das juntas de freguesia são consensuais três perspetivas sobre esta matéria: atribuições próprias permanecem limitadas; fraca aderência entre o quadro legal e a sua aplicação (acordos de execução celebrados); poucas alterações na delegação de competências, permanecendo, no essencial, o quadro anterior à reforma.

Esta leitura coincide com as conclusões do estudo da ANAFRE, justificando a não celebração desses acordos em muitas freguesias com “(…) falta de meios, sobretudo financeiros e humanos, e a pouca disponibilidade e/ou intenção das câmaras municipais em delegar competências” (Batalhão, 2016, p.147).

O aumento da dimensão das freguesias poderia estimular a delegação de mais competências e o reforço de recursos correspondentes, mas esta decisão, condicionada por influências (e entendimentos) político-partidários, teve pouca repercussão. Porém, as opiniões dos inquiridos dividem-se entre as perspetivas do reforço e da penalização do princípio da subsidiariedade. A favor do seu reforço destacam-se dois argumentos: (i) os serviços às populações tenderam a ser “nivelados” pela freguesia mais bem equipada (p.e. em São Gonçalo de Lagos esbateram-se as diferenças entre a cidade “rica” e a cidade “pobre”; em Vila do Bispo e Raposeira esta foi beneficiada), opção tida como estratégica para cativar as populações mais mal servidas; (ii) o aumento de escala favoreceu a eficiência na prestação de mais (ou melhores) serviços. A penalização da subsidiariedade fundamenta-se na: (i) perda de proximidade, erodindo relações de vizinhança; (ii) aumento da dimensão territorial, que reduz o contacto in loco com os problemas locais (dos lugares e dos seus residentes), pois dificulta a presença assídua dos eleitos nos territórios mais afastados (caso de Alcoutim e Pereiro), ganhando este argumento maior pertinência quando os eleitos não exercem o cargo a tempo inteiro; (iii) perda de serviços (referida em Alcantarilha/Pera).

Apesar do quadro legal comum, há diferenças nas funções desempenhadas pelas freguesias, ligadas a vários fatores: (i) delegação de competências pelo respetivo município face ao consagrado na Lei 75/2013, de 12 de setembro; (ii) criatividade e pro-atividade dos eleitos, em função das necessidades locais e do modo como são percecionadas (p.e. disponibilização de nutricionista e de consultas de estomatologia de apoio às escolas em Faro); (iii) capacidade reivindicativa das populações nas áreas rurais onde o despovoamento, envelhecimento e isolamento inviabilizam a recuperação demográfica e o desenvolvimento territorial (p.e. em Alcoutim e Pereiro, os “sobreviventes” já não têm poder reivindicativo, chegando a comprometer o exercício do poder local).

A diferenciação entre freguesias urbanas e rurais também é notória. Segundo os eleitos, nas primeiras as funções mais apreciadas pelos fregueses estão associadas a: tratamento dos espaços públicos; pequenas manutenções; apoio social; atendimento permanente na sede (prova de vida e outras funções administrativas). Nas rurais, as mais referidas são: limpeza e manutenção dos caminhos; arranjo dos cemitérios; retoma das festividades e tradições locais; facilitação da mobilidade das pessoas (doentes, idosos, população serrana); integração do Posto dos CTT, após vários encerramentos em áreas rurais desde 2010. As freguesias internalizaram algumas das suas funções, mediante protocolos, e disponibilizaram instalações e funcionários (com contrapartida financeira irrisória), travando a sua extinção, essencial à população (p.e. recebimento das reformas e pensões).

Alterações de recursos

Os autarcas foram inquiridos sobre potenciais alterações (aumento, diminuição e estabilização) nos recursos financeiros, humanos e patrimoniais.

A maioria sustenta que a reorganização das freguesias não teve reflexos nos recursos financeiros. Porém há opiniões opostas, quer de perda - p.e. São Gonçalo de Lagos (a mais “urbana” e densa) e Alcoutim e Pereiro (rural e de muito baixa densidade) - quer de ganho (Albufeira e Olhos de Água). No país, poucas freguesias beneficiaram dos 15% do FFF; no Algarve, apenas Vila do Bispo e Raposeira.

Mas a agregação gerou outra perversidade: a partir de determinado limiar financeiro, as freguesias ficaram sujeitas a procedimentos contabilísticos e fiscais mais complexos, com maiores custos de gestão, implicando contratação de técnicos especializados ou subcontratação de serviços.

Também nos recursos humanos domina a estabilização, embora haja reconhecimento generalizado de que a junção dos recursos das freguesias agregadas potenciou maior eficiência dos recursos administrativos e operacionais. Porém, vários autarcas insistem na premência do reforço dos quadros técnicos para conseguir um salto qualitativo nas respostas à população.

Os benefícios mais notórios parecem estar na partilha de maquinaria e equipamentos, permitindo melhor gestão entre freguesias e entre câmaras municipais e respetivas freguesias.

Funcionamento após a reorganização administrativa

Na questão “avaliação da gestão local no território, tendo em conta a nova entidade administrativa”, do inquérito da ANAFRE, sobressai a resposta “Manteve-se”, seguida de “Piorou”. A “Melhoria” ocupa a 3ª posição, inferindo-se que a “reforma territorial e as uniões de freguesia nada acrescentaram à qualidade da gestão local” (Batalhão, 2016, p.149).

Já segundo os presidentes de junta das freguesias algarvias envolvidas na agregação, o funcionamento após a reorganização administrativa merece uma apreciação positiva (porventura porque o inquérito aqui realizado beneficia de um período de exercício mais alargado), embora tal tenha sido conseguido pelo esforço dos eleitos que supera (“muito”, em alguns casos) o exercício dos cargos. O processo impositivo mobilizou os autarcas a prestar o melhor serviço às populações (em particular nas freguesias integradas, para atenuar o sentimento de desconfiança e marginalização, falta de apoio e perda de identidade), imprimindo maior dinamismo, cooperação e proximidade à sua atuação. Para minimizar os impactes negativos do desaparecimento das freguesias agregadas, foram mantidas as instalações, com o estatuto de “delegação”, onde os presidentes da Junta procuram fazer atendimento regular. Mas em algumas áreas urbanas é admitida a tendência para o seu desaparecimento a prazo (redução de custos, pouca justificação pela proximidade ou facilidade de acesso à sede da Junta, progressiva integração da população na nova realidade), o que já começou a acontecer.

Porém, em algumas situações são reconhecidas dificuldades acrescidas na prestação de serviços, nomeadamente em Bensafrim e Barão de S. João e em Alcoutim e Pereiro, dada a dimensão territorial das novas freguesias, no segundo caso agravada pela baixa densidade, envelhecimento e condicionamentos de acessibilidade. Noutros casos o processo ainda não foi assimilado: em Vila do Bispo e Raposeira, embora o presidente considere que a freguesia agregada beneficiou com a agregação, a população, muito crítica, ainda não se resignou. Outros casos de desconfiança persistem, sobretudo nas freguesias rurais: Bensafrim e Barão de S. João; Alcantarilha e Pera; Alcoutim e Pereiro; Querença, Tor e Benafim; Conceição e Estói; Conceição e Cabanas de Tavira; Moncarapacho e Fuseta. Nestas duas últimas, as divergências permanecem vivas, persistindo a rejeição das freguesias agregadas. Nas freguesias urbanas, sobretudo em Lagos e Tavira, o maior envolvimento das populações no processo favoreceu o esbatimento dos antagonismos e o resultado global é mais satisfatório.

A maioria das atuais freguesias não passou a assegurar diretamente novos serviços. Mas houve casos de reforço na prestação dos existentes e de contratualização com outras entidades (p.e., transporte de doentes pelos Bombeiros Voluntários; transporte de passageiros em circuito urbano pela EVA - Giro em Albufeira; CTT nas instalações da Junta).

O questionamento aos Presidentes das Juntas sobre a eventual reversão do processo mostra duas tendências: nas freguesias urbanas já não suscita mobilização, pelos custos implícitos (financeiros e não só) (p.e. Lagos, Tavira); em muitas freguesias rurais permanece tal expectativa e já ocorreram duas reversões: Estói e Conceição de Faro (outubro de 2022) e Querença, Tor e Benafim (dezembro de 2022).

Por fim, procurou-se identificar eventuais mudanças no relacionamento das freguesias com a autarquia municipal respetiva. As respostas foram consensuais: a relação com as Câmaras Municipais não registou alterações expressivas, havendo casos pontuais de “tensão” por diferenças político-partidárias, sem ligação com a reorganização administrativa; nas Assembleias Municipais, onde os Presidentes de Junta têm assento por inerência de cargo, a representatividade das freguesias não foi afetada.

5. Discussão e conclusões

Desde os anos 1960, muitos países europeus procederam a reformas territoriais do Estado, sendo as entidades municipais particularmente visadas. Esta incidência decorreu da pequena dimensão (territorial e/ou populacional) destas circunscrições e da preocupação em atingir maior eficiência na gestão dos recursos, através de economias de escala na prestação de serviços às populações. As mudanças traduziram-se na fusão de circunscrições ou na sua reconfiguração (ampliação) territorial, dominadas por dois modelos: um top down, nacional, apoiado em critérios quantitativos pré-definidos; outro, por iniciativa de autoridades/comunidades locais, numa perspetiva bottom up, privilegiando o funcionamento e as particularidades dos territórios envolvidos. Estas reformas persistiam em vários países aquando da crise económico-financeira de 2008, sendo impostas pela troika nos países intervencionados. Em Portugal a reforma incidiu na freguesia, consagrada na Constituição como autarquia inframunicipal. Constava do programa do Governo, em exercício à data, a Reforma da Administração Local. No País eram reconhecidos desajustamentos nos limites de muitas freguesias face às realidades socio-territoriais, sendo passíveis de reconfigurações portadoras de mais-valias para os territórios através de processos participativos ˗ como verificado na Amadora e em Lisboa. Para responder às exigências de uma entidade externa (concretização célere e redução do número de freguesias), a metodologia top down adotada conduziu à “fusão” de duas ou mais unidades territoriais, apoiada em indicadores quantitativos, omitindo especificidades territoriais, relações de vizinhança, princípios de subsidiariedade e democracia local. O modus operandi prevalecente levou à sua rejeição generalizada.

A incidência da reforma centrada na freguesia enfatiza a sua fragilidade, que tende a agudizar-se quando parte das suas competências pode ser exercida pelo município, penalizando sobretudo a presença dos poderes públicos nos territórios rurais mais vulneráveis (Gato, 2015). De facto, a redefinição territorial das freguesias tem duplo entendimento: redução de unidades para contrair custos e assegurar maior eficácia na prestação de serviços; alteração dos limites, desenhando territórios coerentes para uma gestão mais eficiente das políticas e estruturação de comunidades mais coesas. Em momentos e contextos diferentes (reforma dos municípios em Portugal no século XIX e em diversos países da Europa no século XX; reforma das freguesias em Portugal no início do século XXI) as políticas de fusão foram sustentadas nas mesmas razões: racionalidade governativa; economias de escala; estabilidade financeira do país (Teles, 2021, p.70). O processo comprometeu uma oportunidade para reajustar a matriz territorial das freguesias às ocupações, dinâmicas atuais e necessidades das comunidades implicadas, como demonstram práticas bottom up bem-sucedidas (Copano Ortiz et al., 2020; Ventura Fernández et al., 2021; Henriques et al., 2020).

As freguesias são o nível autárquico de base no sistema político-administrativo português e a existência de municípios fortes justifica que reforcem o desempenho de tarefas inerentes à proximidade. Quando uma reforma administrativa é implementada “de cima para baixo”, ignorando esta dimensão vivencial das comunidades, tende a erodir a identidade territorial e a vizinhança. A evolução sociodemográfica, económica e das acessibilidades no país impunha a reorganização das freguesias (número, configuração territorial, atribuições, competências e recursos). Mas tal requeria o envolvimento das comunidades num processo participativo capaz de articular o tradicional sentido de pertença (por vezes exacerbado) com as realidades socioeconómicas contemporâneas. Estas são muito diferenciadas entre áreas rurais (p.e. despovoadas, dispersas, nas franjas urbano-metropolitanas) e urbanas (p.e. centros históricos, contextos suburbanos e periurbanos), e dentro de cada uma delas. No Algarve também entre a serra, o barrocal e o litoral. Ignorar essas diferenças é menosprezar a territorialização da política, padronizando realidades distintas.

No Algarve sobressai a crítica dos eleitos à condução do processo, pois a solução imposta omitiu o território e a sua apropriação pelos locais. Este facto foi agravado pela não beneficiação financeira (não disponibilização dos 15% do FFF). Embora o mapa redesenhado das freguesias esteja em assimilação (superou duas eleições autárquicas), persistem rejeições pontuais pela descontextualização face ao território integrante, e já aconteceram duas reversões.

No que concerne às competências das freguesias, releva-se: desfasamento entre quadro legal e sua aplicação; delegação de competências pelos municípios sem alterações face ao quadro anterior; reconhecimento dos presidentes de junta que é possível fazer melhor com mais recursos financeiros e técnicos. Como estes tendem a manter-se, sobressaem duas visões: melhor gestão pelos ganhos de escala; pior serviço face ao alargamento do território ou a novas funções. A abordagem top down incrementou atitudes colaborativas e de partilha entre freguesias (ou mesmo com o município), mobilizando o esforço de eleitos para atenuar tensões e unir comunidades. Apesar dos problemas que persistem, muitos já veem a reversão como penalizadora (custos financeiros, “destruição” do conquistado). O processo acabará por ser internalizado, mas não deixa de corresponder a um retrocesso: o fosso entre retórica dos conceitos e fraqueza da sua operacionalização conduzem à descredibilização do Estado e da democracia local. O Estado, representante das populações e dos seus interesses, perdeu uma oportunidade para, partindo do conhecimento do território, redesenhar territórios coerentes com potencial para melhorar a eficiência na prestação do serviço público e, desse modo, a coesão territorial e a inclusão das comunidades, não as discriminando pelo lugar de residência. Assim, a reforma, circunscrita à freguesia, não conduziu a territórios mais ajustados ao exercício do poder local, porque desvalorizou as dinâmicas locais de funcionamento e o sentido de pertença, necessidades e anseios das populações.

Referências

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Batalhão, C.J. (coord.) (2016). As Freguesias na Organização do Estado - Um património Nacional. Lisboa: ANAFRE [ Links ]

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1 Das 201, 72 (35,8%) permaneceram inalteradas; 33 (16,4%) agregaram uma ou mais freguesias ; 96 (47,8%) foram de novo agregadas, muitas vezes à freguesia da qual se haviam separado poucos anos antes.

2Artigos 3.º e 4.º da Lei 11/82, de 2 de junho.

3Artigo 4.º da Lei 8/93, de 5 de março.

4Alínea e) do Artigo 7.º da Lei 8/93, de 5 de março.

5Artigo 10.º da Lei 11/82, de 2 de junho.

6Artigo 12.º da Lei 8/93, de 5 de março.

7A Reorganização Administrativa de Lisboa, iniciativa dos órgãos municipais e inserida na reforma da governação do município, ocorreu segundo a Lei 56/2012, de 8 de novembro.

8N.º 2 do Artigo 6.º da Lei 22/2012, de 30 de maio.

9“Pareceres e propostas concretas de reorganização administrativa das freguesias situadas no território de Portugal continental” (https://app.parlamento.pt/utrat/).

10Os partidos da oposição (PCP-PEV e PS) tinham as presidências de 20 dos 58 municípios cujas assembleias municipais se pronunciaram favoravelmente à agregação de freguesias, embora as suas posições nas assembleias municipais fossem maioritárias em apenas 2 dos 20 municípios. Por outro lado, relativamente aos 151 municípios cujas assembleias municipais se pronunciaram pela manutenção do número de freguesias, ou não responderam (posição que revela discordância), em 46 os partidos da coligação então no poder tinham as presidências e eram maioritários em 34 das respetivas assembleias municipais (https://www.eleicoes.mai.gov.pt/autarquicas2009).

Recebido: 30 de Agosto de 2022; Aceito: 17 de Abril de 2023

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