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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.47 Lisboa dez. 2023  Epub 29-Dez-2023

https://doi.org/10.15847/cct.30462 

ARTIGO ORIGINAL

Entre o doméstico e o urbano. Os sistemas de transição como espaço para um habitar colectivo

Between the domestic and the urban. Transition systems as a space for collective living

1Universidade de Lisboa, Faculdade de Arquitectura, CIAUD, formaurbis LAB, Portugal, joao.leite@edu.ulisboa.pt

2Universidade de Lisboa, Faculdade de Arquitectura, CIAUD, URBinLAB, Portugal, filipaserpa@edu.ulisboa.pt


Resumo

O espaço público é a estrutura, o esqueleto espacial da cidade (Sòla-Morales, 1997). É o lugar de partilha, de encontro do colectivo (Gehl, 1971), da liberdade democrática; é o espaço que sedimenta o habitat urbano. Ainda assim, é no espaço limite entre público e privado que se estabelecem algumas tensões espaciais que configuram o modo como vivemos a cidade. A habitação comum é, por outro lado, a matéria construída que dá, silenciosamente, corpo à estrutura da cidade, face ao protagonismo do espaço público (Monteys, 2013; Serpa, 2015). É sobre os espaços in between que tendências actuais de pensamento arquitectónico reflectem sobre o valor da ambiguidade espacial enquanto produtora de porosidades que reconfiguram os limites e os modos de apropriação e permanência no espaço público e privado (Monteys, 2010), recuperando a memória conceptual da planta de Roma de Nolli (1748). Os espaços de transição surgem como complemento, por um lado ao espaço público reinterpretando reflexões teóricas apontadas no Movimento Moderno e pelo grupo Team 10 na década de 1960 (Hertzberger, 1991), por outro lado ao espaço privado, como prolongamento da casa, redefinindo os limites da domesticidade (PLOT 50, 2019).

O artigo procura, então, reflectir sobre a relevância dos espaços de transição em edifícios habitacionais colectivos e como estes podem contribuir para a construção de sistemas de continuidade espacial entre o urbano e o doméstico. Tendo como enquadramento Portugal e os casos desenvolvidos em projectos de investigação como “Tipologia Edificada” e “Entre Habitação e Cidade”, pretende-se decompor morfologicamente os sistemas de permanência e distribuição (Boettger, 2014) de edifícios de habitação, interpretando-os como um limiar espesso onde se habita (Van Eyck, 1962). Procura-se abrir o debate na produção arquitectónica sobre a importância destes sistemas como dispositivos de transição, mas também, enquanto estruturas de articulação e dilatação do espaço público (Schmid, 2019) e doméstico que activam o habitat, tornando-o mais integrado e contínuo.

Palavras-chave: habitação colectiva; espaços colectivos; sistemas de transição; limiar

Abstract

Public space is the structure, the spatial frame of the city (Sòla-Morales, 1997). It is the place of sharing, of collective meeting (Gehl, 1971), of democratic freedom; it is the space that sediments the urban habitat. Even so, it is in the limit space between public and private that some spatial tensions are established that shape the way we live in the city. Common housing is, on the other hand, the built matter that silently embodies the structure of the city, given the protagonism of public space (Monteys, 2013; Serpa, 2015). It is on spaces in between that current trends in architectural thought reflect on the value of spatial ambiguity as a producer of porosities that reconfigure the limits and modes of appropriation and permanence in public and private space (Monteys, 2010), recovering the conceptual memory of Nolli’s plan of Rome (1748). The transition spaces appear as a complement, on the one hand to the public space, reinterpreting theoretical reflections pointed out in the Modern Movement and by the Team 10 group in the 1960s (Hertzberger, 1991), on the other hand to the private space, as an extension of the house, redefining the limits of domesticity (PLOT 50, 2019).

The article therefore seeks to reflect on the relevance of transition spaces in collective housing buildings and how they can contribute to the construction of systems of spatial continuity between the urban and the domestic. Taking Portugal as a framework and the cases developed in research projects such as “Building Typology” and “Between Housing and the City”, it is intended to morphologically decompose the permanence and distribution systems (Boettger, 2014) of residential buildings, interpreting them as a thick threshold where one inhabits (Van Eyck, 1962). The aim is to open the debate in architectural production on the importance of these systems as transition devices, but also as articulation structures and expansion of public (Schmid, 2019) and domestic space that activate the habitat, making it more integrated and continuous.

Keywords: collective housing; collective spaces; transition systems; threshold

Introdução

A questão do habitar desde sempre esteve presente na discussão teórica e prática da disciplina da arquitectura como primeira condição, tanto na sua dimensão objectual como urbana. Ao longo da história, o Homem procurou conceptualizar o seu abrigo numa profunda relação com o território, ora tirando partido das suas circunstâncias de suporte, ora transformando e trabalhando com a matéria base. O lugar de habitar consubstancia um espaço de projecção, mas também de encontro, partilha e contemplação de uma paisagem. Como Steen Elier Rasmussen (1974) menciona, o Homem não só se refugia como produz uma casa, um lar. A temática da habitação é, por isso, uma problemática transversal que ao longo do tempo preserva a sua pertinência em função dos sucessivos desafios que a contemporaneidade coloca.

“O acto de habitar revela as origens ontológicas da arquitectura, lida com as dimensões primordiais de habitar o espaço e o tempo, ao mesmo tempo em que transforma um espaço sem significado em um espaço especial, um lugar...”

Juhani Pallasmaa, 2017, p.7.

O artigo pretende contribuir para a discussão contemporânea sobre o projecto de habitação colectiva, em particular, como determinadas características formais do objecto arquitectónico constituem espaços de transição que promovem sistemas de continuidade com o espaço público, prolongando o espírito colectivo para o espaço privado. Através de um olhar centrado nos sistemas de transição, procura-se sistematizar os dispositivos arquitectónicos que por um lado prolongam os espaços do habitar mais doméstico, para fora do limite rígido do fogo e, por outro, constituem sistemas de amarração com a forma da cidade e seu espaço público, promovendo lugares de encontro e vida colectiva.

Consciente de um debate crescente sobre esta temática, acompanhado por diversos casos internacionais que ensaiam soluções arquitectónicas que operam directamente sobre o espaço comum em edifícios de habitação colectiva, o artigo parte de um conjunto de referências teóricas e práticas internacionais, mergulhando no território português como campo de observação e na cidade de Lisboa como espaço de análise e sistematização. Para tanto, toma como base o material produzido e analisado pelo projecto de investigação “Tipologia Edificada - Inventário Morfológico da Cidade Portuguesa”1, mas também a investigação de doutoramento “Entre Habitação e a Cidade”2 (Serpa, 2015) e a investigação desenvolvida no âmbito das celebrações dos cem anos de políticas públicas de habitação em Portugal, através do capítulo “Habitação de promoção pública. Da construção nova à reabilitação, uma leitura dos projectos” (Serpa et al., 2018).

Assim, apoiando-se num conjunto de casos de estudo localizados na cidade de Lisboa, pretende-se interpretar morfologicamente diferentes tipos de sistemas de transição em edifícios de habitação colectiva, evidenciando as qualidades formais e os elementos que contribuem para a construção de lugares colectivos. Através da decomposição sistémica (Dias Coelho, 2013), procura-se destacar e sintetizar a sua relevância na estrutura espacial do edifício, assim como os diversos modos como o espaço de transição estabelece lógicas de continuidade com a cidade. O registo fotográfico é complementado com o desenho enquanto instrumento de leitura e síntese interpretativa.

Deste modo, pretende-se evidenciar a relevância do edifício de habitação na produção do espaço urbano (Muratori, 1959) e como determinadas características formais constituem factos decisivos no modo como habitamos colectivamente a urbe. Importa, portanto, reclamar para a produção arquitectónica e urbana contemporânea uma maior porosidade dos limites entre público e privado (Niskanen, in Vesikansa, 2018), recuperando princípios ambíguos de apropriação do espaço, que o modernismo racional e funcionalista procurou segmentar e desagregar, e assim contribuir para uma maior coesão entre elementos urbanos e para uma maior diversidade nos modos de habitar.

Ambiguidades urbanas, público ou privado... colectivo!

“Porosity is the inexhaustible law of the life of this city, reappearing everywhere.”

Walter Benjamin and Asja Lacis, 1925, p.168.

Na cidade de matriz ocidental europeia, o espaço público constitui-se como o lugar de expressão do colectivo. Seguindo uma tradição cultural da Grécia antiga o espaço público representa a base da civitas, espaço de debate, partilha, comunhão, lugar de liberdade e manifestação democrática. Neste sentido, assume-se como estruturador (Sòla-Morales, 1997; Montaner, 2001) da forma da cidade, constituindo as bases morfológicas e espaciais onde o parcelário e o tecido edificado se agregam (Panerai & Mangin, 1999). Por outro lado, é igualmente o espaço de interacção das pessoas, onde a vida urbana sucede e onde estabelece nexos com o edificado adjacente. Constituem-se vínculos formais entre as actividades humanas, os modo de habitar o espaço e os edifícios (Gehl, 1971; Alexander, 1977).

Neste sentido, o piso térreo surge como um interface de articulação entre a esfera pública e privada da cidade. A ideia de limite, enquanto superfície que separa ou simplesmente se cruza e atravessa, é questionada. Entende-se que este limite adquire um valor espacial, uma espessura (Van Eyck, 1962; Boettger, 2014), que incorpora espaços de cariz público, mas também privado, configurando um espaço de sentido colectivo que emerge como um todo e dissipa o sentido de fronteira rígida e claramente demarcada. Neste limite permanece-se, isto é, habita-se.

A produção arquitectónica contemporânea, ao longo do século XX, mas de uma forma mais acelerada no século XXI, tem ensaiado um conjunto de soluções arquitectónicas que propõem precisamente actuar no espaço entre o edifício e o espaço público, aquilo que Aldo Van Eyck, Hertzberger ou ainda Alison e Peter Smithson definem na década de 1960 como space in-between. No pressuposto de acolher um colectivo abrangente, o edificado incorpora dispositivos arquitectónicos que podem dilatar o espaço público. São eliminadas barreiras (físicas e psicológicas) promovendo actividades públicas no interior do espaço privado ou, no sentido oposto, apropriando-se de espaço público com actividades de carácter privado. O próprio objecto arquitectónico promove a criação de espaços de âmbito colectivo ou, em determinadas situações, alguns dos seus elementos arquitectónicos (Foscari, 2014) produzem mesmo espaço público, desenhando cidade. As configurações espaciais desenvolvem lugares de encontro do colectivo, verificando-se nos espaços de transição do limiar entre público e privado, fricções urbanas que potenciam uma maior actividade e lugares de maior urbanidade (Wolfrum & Janson, 2019).

Estes fenómenos vêm contribuir para uma nova dimensão espacial do espaço público, conforme Innerarity (2010) afirma: dá-se uma diluição dos lugares tradicionais de debate e partilha da actividade pública.

O “público” caracteriza aquilo que é de interesse geral e apela para um espaço de acção em que todos os membros de uma comunidade resolvem (...) os assuntos que dizem respeito a toda a sociedade. (...) é um lugar onde os problemas são assinalados e interpretados, onde tensões são experienciadas e o conflito se converte em debate (...) A ideia de espaço público reúne (...) vontade colectiva.”

Innerarity, 2010, p. 10.

O habitar urbano torna-se mais ambíguo e versátil onde os limites são imprecisos e a utilização colectiva do espaço é expandida independentemente da sua condição pública ou privada, interior ou exterior (Stiftung, 2014). Xavier Monteys (2010), em “domesticar la calle”, apresenta um conjunto de sistemas ou factos arquitectónicos que trabalham precisamente com a ambivalência da apropriação do espaço urbano, sustentado numa maior porosidade do espaço privado, enquanto hipótese de alargamento do espaço público para o interior do tecido edificado e, assim, contribuir para uma maior activação da rua e da sua urbanidade. Em certa medida, recupera a ideia de limiar expressa por Aldo Van Eyck (1962) e outros arquitectos estruturalistas do grupo Team X que propunham uma reflexão sobre a classificação fechada e binária entre espaço público e privado. Para Van Eyck, a redefinição conceptual de limite transformaria a prática arquitectónica moderna, reposicionando os princípios de concepção espacial principalmente nas relações estruturais entre cidade, edifício e espaços de transição. Neste mesmo sentido Herman Hertzberger (1991) defende que o espaço de transição entre a casa e a rua não devia configurar separações rígidas de modo a estimular de sentido comum, um lugar de partilha. O edifício, e os sistemas de ligação à estrutura pública da cidade, emergem como elementos transformadores do lugar colectivo.

A importância desta porosidade arquitectónica foi revelada, de uma forma particularmente expressiva, na planta de Roma, de Giambattista Nolli em 1748, onde átrios, pórticos, pátios e edifícios de carácter público, como as igrejas, são entendidos como “espaços públicos”. Deste modo, a ligação entre tipologia edificada, elemento arquitectónico, e espaço público consolida-se numa ambiguidade espacial que fomenta uma utilização colectiva, diversa, livre e comum. Se nos edifícios excepcionais e de carácter público esta ambivalência é historicamente reconhecida e explorada, importa observar os recursos e sistemas a partir dos quais o edifício de habitação colectiva pode assumir esta qualidade de promoção da vida colectiva.

Habitar o espaço colectivo, entre a vida doméstica e a vida urbana

A questão da porosidade urbana não é, então, apenas um fenómeno que se circunscreva aos edifícios de carácter público ou de serviço ao tecido colectivo da urbe. Na realidade, podem encontrar-se diversos exemplos onde o edificado comum3 (Caniggia & Maffei, 2008; Dias Coelho, 2013) incorpora dispositivos arquitectónicos que fomentam e configuram espaços activadores da vida colectiva, constituindo partes do edifício onde o público se expande para o espaço interior e privado. Nos anos sessenta do século XX um amplo debate procurou discutir o espírito e os princípios conceptuais do espaço de transição na produção arquitectónica de habitação colectiva. Conscientes da relevância deste espaço intermédio enquanto dispositivo de articulação entre a casa e a cidade, o debate procurou sistematizar princípios de composição arquitectónica que promovessem, por um lado, soluções espaciais de encontro colectivo e, por outro, de integração com a estrutura da cidade. Van Eyck e Hertzberger entendiam os espaços de transição, particularmente associados aos sistemas de distribuição e acesso aos fogos, como lugar de utilização simultânea onde moradores do edifício e moradores da cidade se cruzavam e podiam sociabilizar. Em contrapartida, autores como Alexander e Chermayeff defendiam a criação de sistemas de protecção da privacidade, constituindo filtros (controláveis pelo morador) de aproximação à intimidade (Alexander & Chemayeff, 1963). Para uns seria necessário o estabelecimento de um conjunto de espaços válvula (Botelho, 2010), definido e gerido pelo morador, para os outros, o espaço intermédio era o lugar do convívio.

Este debate, nos dias hoje, permanece relevante (Lawrence, 1984, 2020; Schimd, 2019), por um lado, pela recorrência do edifício de habitação enquanto produtor do tecido urbano comum da cidade, e como tal possui um amplo potencial transformador do espaço urbano e, por outro lado, no espaço interior e comum do edifício de habitação constitui, em diversas ocasiões, uma oportunidade transformadora dos modelos de habitar contemporâneo, incorporando sentidos mais democráticos e cooperativos que interligam comunidades de moradores e restantes habitantes da cidade.

Assim, o limite, entre edifício e cidade pode adquirir uma complexidade espacial acrescida, podendo ser interpretado como um momento de enriquecimento urbano e diversificador do como modo usamos o espaço. As suas múltiplas combinações, carácter público (interiores ou exteriores) de uso exclusivo do colectivo de moradores (interiores ou exteriores) cria experiências e formas de viver o espaço (Schimd, 2019) que potenciam a urbanidade local.

O fenómeno internacional... expressão e algumas tendências

A temática do habitar colectivo encontra eco ao longo do tempo na arquitectura, expressando-se através de diversas experiências e interpretações. No entanto, importa talvez centrar a atenção nos ensaios realizados no século XIX, principalmente ligados ao habitar da classe operária, como momento significativo de entendimento do habitar colectivo como resposta a uma problemática da sociedade. Neste sentido, a experiência conceptual do Falanstério do teórico social Charles Fourier marca um começo conceptual na procura racional do espaço de habitar em comunidade e em partilha. Em vez de habitações mono-família, a proposta conceptualiza uma estrutura edificada composta por vários compartimentos (de dimensões variáveis) destinado a famílias de diferentes configurações e extractos sociais, que partilhavam áreas comuns, como pátios, vestíbulos, galerias, mas também, lavandarias, cozinhas, espaços de higiene e áreas de refeição.

Depois de um período, até às primeiras décadas do século XX, fortemente marcado por respostas onde este espaço colectivo partilhado surge ligado a interesses económicos, verifica-se uma alteração de paradigma com a ascensão do Movimento Moderno. Neste momento progressista, o espaço comum do edifício habitacional é trabalhado com um sentido político e ideológico (Schimd, 2019). Veja-se por um lado as experiências socialistas do leste europeu ou, por oposição, as propostas mais liberais do centro da europa. Se, no primeiro caso, espaços como a cozinha ou salas de refeição são entendidos como grandes espaços de encontro e sociabilização de uma comunidade alargada, no caso das propostas influenciadas pela Carta de Atenas, apontam para uma maior diversidade de serviços, por vezes, pequenos equipamentos que também procuram incentivar uma utilização colectiva. Nas “máquinas de habitar” modernas, as coberturas dos edifícios, o plano de chão libertado pelos pilotis ou ainda os seus sistemas de galerias de distribuição horizontal a cada piso, são interpretados como lugares de usufruto colectivo. Em alguns casos verifica-se ainda a introdução de alguns equipamentos de apoio, como creches, ateliers, lavandarias, ginásios ou outros espaços de lazer. Exemplos paradigmáticos como Interbau Apartment House de Oscar Niemeyer de 1957, em Berlim, ou a icónica Unité d’Habitation, de Le Corbusier em 1952, em Marselha, demostram esta variedade de espaços, acrescentando a meio do bloco a existência de um piso particularmente livre, onde diferentes tipologias habitacionais ou espaço comerciais alimentam uma vivência colectiva de maior intensidade.

Nas décadas seguintes registam-se inúmeras experiências projectuais (Figura 1) influenciadas pelos princípios conceptuais do Movimento Moderno, um pouco por toda a Europa, mas também no continente Sul Americano. Rio de Janeiro, São Paulo, Buenos Aires, entre outras cidades, são um bom exemplo disso (Correia, 2018), tome-se como exemplos os casos do Pedregulho (1947), do Minhocão da Gávea (1952), ambos de Affonso Eduardo Reidy, ou ainda o Edifício da Louveira (1946) de Vilanova Artigas, onde estes lugares de utilização colectiva, na esfera privada do interior do edifício ou parcela, procuram disponibilizar atributos espaciais e funcionais tradicionalmente oferecidos no espaço público da cidade histórica. O espaço colectivo flutua então para a domínio privado, sendo controlado o seu acesso, apesar das configurações formais do edifício convidarem a uma continuidade espacial.

Nesta fase, os modelos habitacionais assentavam na ideia da reprodução as estruturas da cidade dentro do próprio bloco edificado, oferecendo um conjunto variado de equipamentos e espaços de interacção colectiva. Mais tarde, principalmente a partir da década de 60, os sistemas de apropriação colectiva tendem a abrir-se e a conectarem-se efectivamente com o traçado público da cidade. São exploradas algumas soluções onde a ambiguidade espacial se expressa na utilização livre e pública de espaços de gestão privada. A fusão entre esfera privada e pública pretende estabelecer articulações mais eficazes com a estrutura do espaço público e desse modo unir elementos urbanos, como o edifício e a rua, contrariando princípios da Carta de Atenas, que defendia uma maior autonomia entre elementos. Através das reflexões teóricas do grupo Team 10, o espaço público encontra lógicas de permeabilidade no interior do tecido edificado, quebrando fronteiras e unificando os sistemas de circulação e o traçado urbano. À dicotomia publico-privado é acrescentada uma nova peça, um espaço limiar que configura filtros sucessivos entre o comum e a intimidade utilizando os espaços de entrada, os umbrais e os espaços de circulação como ferramentas de composição sistémica e espacial (Schimd, 2019).

“This interaction between public and private has direct consequences for daily coexistence of the residents collective living spaces”.

Susanne Schimd, 2019, p. 15

Os estruturalistas holandeses, como Aldo Van Eyck, procuravam, deste modo, encontrar um dispositivo arquitectónico que voltasse a unir espacialmente os diferentes elementos urbanos que os princípios racionais funcionalistas do Movimento Moderno procuraram segmentar. A galeria de distribuição enquanto elemento arquitectónico é então utilizada como extensor da rua. Transforma-se numa rua elevada (Fernandez Per & Mozas, 2013), providenciando um acesso imediato às habitações e simultaneamente introduzindo à estrutura espacial da rua vários níveis (Silva Leite, 2016). Em complexos edificados como o Gallaratese, em Milão, em especial no conjunto projectado por Carlo Aymonino, construído entre 1967 e 1974, verifica-se o uso sistemático da galeria como forma de interconectar diferentes blocos, mas também, como elemento de articulação topográfica assumindo-se como ruas que estruturam todo o complexo. No caso de Park Hill, em Sheffield, de Jack Lynn e Ivor Smith (1961) à vocação estruturadora da galeria é claramente adicionado, através da generosa largura, um sentido comunitário4. A galeria incorpora actividades de convívio entre moradores e converte-se em espaço de brincar para as crianças.

No final do século XX, mas principalmente ao longo das últimas duas décadas já no século XXI, o espaço colectivo aparece como ferramenta expressa para uma maior integração social, interpretando os espaços de articulação como espaços de construção de uma comunidade.

“El acto de compartir no se limita a la multiutilización y, por tanto, a la optimización espacial; tiene que ver com la creación de comunidades y el fomento de la idea de pertinência a esas comunidades que están vinculadas a uma nueva sociabilidad.”

Carmen Espegel, Andrés Cánovas, José Maria de Lapuerta, 2022, p. 197

Neste sentido, várias têm sido as experiências que oferecem modos de habitar que divergem de uma norma estandardizada. Ensaios tipológicos como Wohnprojekt Wien (2013), em Viena, Uhjjuhdah House (2015), Seul ou ainda o edifício La Borda (2018), exemplificam apostas baseadas na definição de um conjunto de princípios habitacionais e de vida, que passam pela estabilização de espaços comuns de partilha e pela sua utilização e gestão partilhada entre os vários moradores do edifício.

O complexo habitacional em Viena assenta numa pequena comunidade que partilha o desejo de viver a cidade de um modo sustentável entendendo o habitar em colectivo como uma estratégia de distribuição de recursos. Deste modo, o edifício oferece um conjunto de espaços servidores da comunidade moradores, como uma cozinha comum, sauna, salas de trabalho e de lazer (para adultos e crianças), ao mesmo tempo, que desenvolve espaços exteriores complementares, tanto ao nível da cobertura como junto ao piso térreo.

Em contrapartida o exemplo coreano propõe uma combinação mais complexa e híbrida. Tipologias habitacionais da casa micro5 e apartamentos duplex são articulados com um espaço de trabalho (um atelier de arquitectura) e áreas de partilha colectiva. O edifício constitui-se através de dois blocos que se associam por meio de uma escada comum que contém patins bastante generosos, tornando-se espaços de encontro. Esta espinha dorsal emerge como grande espaço vertical de mediação dos vários habitantes, encontrando ao nível do piso térreo uma área livre destinada ao convívio de todos e simultaneamente de abertura à cidade (Hong, 2016).

Por outro lado, a experiência do projecto La Borda, do atelier catalão Lacol, apresenta uma sedimentação dos conceitos de habitação partilhada, valorizando por um lado os espaços de utilização colectiva e por outro procurando consolidar amarrações de carácter urbano. Baseado numa iniciativa cooperativa, o projecto La Borda representa um ensaio contemporâneo, onde o espaço colectivo privado estrutura o edifício e, simultaneamente, o liga à cidade. O projecto recupera princípios de habitar sustentados na definição de um conjunto de espaços e áreas de serviço de utilização comum, fomentando nestes lugares o encontro entre pessoas, gerações e distintos perfis sociais e humanos. Neste caso, um grande pátio estrutura o bloco edificado, e com ele desenvolve o sistema de distribuição vertical e horizontal, agregando momentos de maior generosidade dimensional, que vão potenciar o desenrolar de actividades diversas e indefinidas.

Figura 1 Alguns exemplos de espaços de encontro colectivo na produção habitacional do séc.XX/início do sec.XXI 

Em torno do pátio a galeria de distribuição agrega uma diversidade de tipologias, que acolhem diferentes tipos de família, mas também espaços como a lavandaria, a cozinha comum, uma sala de refeições ou ainda uma área multiusos. Estes espaços colocam-se em continuidade com o sistema de circulação do bloco, e funcionam também como complemento aos espaços infraestruturados que equipam individualmente cada casa.

Estes espaços assumem-se como dispositivos arquitectónicos e infraestruturais que promovem a criação e consolidação de comunidades habitacionais que expandem os conceitos clássicos de casa e de família. Todo o edifício se transforma numa grande casa. O pátio é o coração do edifício, e constitui-se como espaço de transição entre o doméstico e a cidade.

Acresce, no caso de La Borda, uma intenção clara de interligar esta comunidade com a cidade. O piso térreo acomoda não apenas o pátio colectivo, mas também oferece uma área de comércio comunitário e uma generosa passagem urbana que permite o atravessamento público da parcela, entre a rua e um jardim/horta existente na parte oposta do lote. Deste modo, criam-se condições para acrescentar vida urbana à vida comunitária, colocando em relação moradores do edifício e habitantes da cidade.

Diversidade em Portugal

No contexto português, os casos das vilas operárias (Lisboa) ou das ilhas (Porto) representam talvez dos primeiros ensaios tipológicos de carácter unitário que nas primeiras décadas do século XX procuram constituir uma resposta funcional à carência habitacional, sustentando-se numa ideia de conjunto onde o espaço da casa se estende para um exterior, através de uma rua partilhada pelos moradores e que, apesar de por vezes se integrar no traçado urbano das cidades, se constitui como um espaço encerrável à utilização pública. A rua colectiva da vila assume um carácter articulador entre o espaço da casa (da intimidade) e a cidade, sendo em alguns momentos vivido em simultâneo por moradores locais ou de uma área urbana mais abrangente. A dimensão reduzida do espaço de habitar encontra um complemento no pátio ou arruamento que se conforma entre habitações, imprimindo sobre este espaço o sentido colectivo e de utilização ambígua que estabelece princípios de continuidade espacial com a restante estrutura pública da cidade.

Contudo, o tema do espaço colectivo na produção habitacional portuguesa encontra bem mais tarde uma expressão mais significativa e ampla. No quadro da promoção pública de habitação, a segunda metade do século XX (Serpa et al., 2018) vê serem testados formatos tipológicos onde a procura pela articulação entre o que é o espaço público da cidade e o espaço privado da casa se faz através de recursos arquitectónicos que configuram espaços de mediação entre a vida privada e a vida pública, estimulando a vida colectiva. São dispositivos como as galerias de distribuição - generosas, abertas e públicas - que contactam com a rua, que a prolongam e transportam para níveis superiores, como é o caso dos muitos projectos estruturados a partir de galeria que definem a paisagem arquitectónica dos Olivais, em Lisboa, ou, mais recentemente, o caso do conjunto Monte Espinho6 em Matosinhos, construído ao abrigo do PER, que configura o tal fricção urbana promotora de uma mais intensa urbanidade; ou do projecto da Travessa de Salgueiros7 no Porto, que, sem entrar no espaço privado do edifício, define a partir do projecto arquitectónico do conjunto habitacional um plateau urbano que permite e promove a vida colectiva, através do qual se estabelecem percursos pedonais públicos que atravessam o edifício e definem um bypass urbano entre ruas; ou a sucessão de espaços públicos que configuram um pátio mais regular e fechado, delimitado pelo edificado, antecedido e sucedido pelo desenho de espaços públicos mais abertos à cidade, que o complementam e definem um percurso de continuidade, assumindo diferentes níveis de intimidade ou exterioridade relativamente ao conjunto habitacional, como acontece por exemplo no Quarteirão de Entrecampos8, em Lisboa ou em Faro, na Urbanização Horta das Laranjeiras9. Também o conjunto em Penela de João Álvaro Rocha trabalha sobre “tensão, entre espaços verdes e espaços construídos, espaços públicos e privados” (Álvaro Rocha, 2014) assumindo estes como temas centrais da composição e da mediação entre edifício e topografia.

Estes são casos de arquitectura habitacional corrente, os ditos edifícios comuns, que trabalham a mediação entre as diferentes esferas do habitat, explorando recursos entre a forma urbana e a forma edificada, na procura e construção de diversos momentos e progressivos graus de intimidade - de “domesticidade” na cidade (PLOT 50, 2019).

Cinco formas de dilatar o habitar: como os sistemas de transição se constituem como espaços do habitar colectivo

A cidade de Lisboa, pela sua condição de maior núcleo urbano português e capital do país, incorporou um elevado número de experiências, ao longo do século XX, que procuraram dar resposta ao crónico deficit do tecido habitacional. Principalmente a partir da 2ª metade do século XX, com a produção de habitação colectiva, promovida pelo Estado Novo e, paralelamente, o crescimento da oferta privada, o tecido urbano lisboeta acolhe um conjunto de exemplos que ensaiam diálogos intensos entre a tipologia arquitectónica e o espaço urbano. Alvalade, Olivais, Chelas ou Telheiras e mais recentemente o Parque das Nações constituem fragmentos urbanos onde as matrizes tipológicas da habitação determinam diferentes características formais e modos de apropriação do espaço público e privado.

Neste sentido, a produção de habitação colectiva, em especial a de promoção pública, concretizada a partir da década de 60 e, no pós 25 de Abril, promove ensaios onde o espaço de interacção colectiva, em contexto habitacional, é interpretado como uma oportunidade para compor sistemas espaciais que se pudessem ligar, de forma contínua, com o traçado urbano. Diversas experiências foram desenvolvidas, algumas ainda influenciadas pelos princípios modernos, mas onde as questões da cidade e da integração entre elementos urbanos encontram resposta mais integrada. A consciência de constituir espaços de habitar que incorporem estruturas de sociabilização e, simultaneamente, saibam integrar-se na estrutura do espaço urbano envolvente, permitiu testar um conjunto de hipóteses que entendiam as áreas comuns do edifício de habitação colectiva como espaços de encontro, extensores da própria casa e dispositivos de ligação com a cidade. Galerias, passagens, pisos térreos, entradas, pátios, patamares e patins, surgem como elementos arquitectónicos (Foscari, 2014) que conferem ao espaço limiar entre a casa e o espaço urbano, sistemas de transição que constituem subespaços de congregação do colectivo.

Neste sentido, Lisboa e o seu tecido edificado acolhem um universo rico e diversificado, tornando-se possível identificar uma variedade de situações onde os sistemas espaciais de suporte ao colectivo se conformam através de estruturas mais elementares, baseados num só tipo de elemento arquitectónico ou, por oposição, segundo sistemas mais complexos e híbridos que combinam vários elementos arquitectónicos ou constituem dispositivos arquitectónicos de ambientes ambíguos, onde o sentido público e privado é conciliado ou mesmo transfigurado numa dimensão única de apropriação colectiva (Innerarity, 2010).

Assim, partindo do inventário tipológico “Tipologia Edificada”10, procurou-se seleccionar casos de estudo que demostrassem diferentes abordagens e tipos de espaços de transição, principalmente na sua relação espacial entre a casa e o tecido urbano lisboeta11.

Assim, o método de selecção dos casos de estudo teve em conta o amplo universo estudado no projecto de investigação já mencionado e que, para além de inventariar um leque alargado de diferentes tipologias habitacionais em Portugal, produziu um conjunto de quadros de síntese onde os exemplos surgem organizados em função de determinadas questões tipológicas. Paralelamente, os casos inventariados eram devidamente enquadrados no seu contexto urbano adjacente, explicando o princípio de integração da tipologia no tecido urbano e seu grau de repetição ou excepcionalidade. Posto isto, tornou-se possível identificar diversos casos onde o edifício de habitação colectiva incorporava sistemas de transição com a estrutura da cidade, articulando a casa com o espaço público ou outras áreas privadas de sentido colectivo. A partir dessa leitura identifica-se diversas configurações do espaço de transição, interessando-nos particularmente situações que exemplificassem diferentes opões de abertura, continuidade ou privacidade entre o espaço público e espaços privados de utilização colectiva, exteriores ou já interiores do edifício. Assim, pretendia-se analisar variações espaciais e filtros de privacidade distintos.

Entendeu-se, então, analisar cinco edifícios que por um lado protagonizam modelos tipológicos de habitação colectiva distintos, torre, banda, inserção em quarteirão ou constituição de um quarteirão autónomo e, por outro, que representassem diferentes soluções de composição dos sistemas de transição e sua relação com o traçado urbano.

Através dos casos: Torres dos Olivais; Cinco Dedos; Bloco das Águas Livres; Quarteirão da Célula 9 de Telheiras e o Oriente Complex (Figura 2) procura-se dar resposta à diversidade tipológica bem como a diferentes níveis de complexidade do sistema e na sua mediação entre a cidade e o espaço doméstico. Pretende-se explorar, por isso, o seu sentido urbano e, assim, reafirmar a influência que o projecto arquitectónico, e em particular o espaço de transição, tem na configuração da forma da cidade, ao mesmo tempo que define filtros de intimidade para o lar.

Fonte Figura 2 © João Silva Leite e Filipa Serpa, 2023 Planta de localização dos casos de estudo na cidade de Lisboa 

Torre dos Olivais

As torres de habitação social desenvolvidas por Nuno Teotónio Pereira, Nuno Portas e António Pinto de Freitas, concluídas em 1968, protagonizam uma solução inovadora à data, no panorama lisboeta (Figura 3) e 4) Num evidente gesto de contestação às propostas modernas, baseadas na galeria como elemento estruturador, estas torres propõem uma solução assente num patim de distribuição que se transforma em mais que uma simples infraestrutura de acesso. O patim afirma-se conceptualmente como espaço agregador das quatro casas e das pessoas que nelas habitam.

“... dois corpos soltos ligados e corresponde aos estudos que valorizam a coluna de distribuição vertical como elemento de caracterização social e simbólica na habitação...”

Nuno Portas

A simples colocação de um banco, um patim que abre ao exterior e uma sombra que reduz o espaço e acolhe quem chega, surgem como ferramentas de composição espacial que funcionam como activadores do espaço, segundo os autores (Providência & Baia, 2019). Conceptualmente, o patim prolonga a casa, incorporando pequenos equipamentos que criam as condições necessárias para receber e conversar numa antecâmara do espaço privado.

Por outro lado, o patim apresenta-se como um espaço totalmente aberto, na sua vertente mais a sul, observando-se a norte uma janela, que permite controlar o grau de exposição ao vento e à temperatura. Esta característica e a própria matéria de pavimento, em calçada portuguesa, promovem sobre o patim um sentimento de continuidade com o espaço público da cidade.

Fonte: © João Silva Leite e Filipa Serpa, 2023.  

© João Silva Leite e Filipa Serpa, 2023

Fonte Figura 4 Torre dos Olivais - Teotónio Pereira, Nuno Portas. Collages de ambientes de apropriação dos espaços de transição 

O sentido público presente nesta coluna vertical de sociabilização encontra no contacto com o solo um sentido de sequência natural, que pretende receber e encaminhar o morador para o interior da torre. O plano de chão em calçada funde-se com o pavimento do espaço público e é rematado com a presença de um banco que configura um espaço de espera e convívio social. Esta solução assume particular interesse como ferramenta de diluição de limite, tornando o plano de vidro que constrói a porta da rua como um elemento de menor relevância. O desenho do sistema de distribuição e a sua permeabilidade com o exterior abrem caminho a uma integração mais eficaz com o espaço envolvente, amarrando os circuitos e os sistemas de aproximação ao edifício com a rede de caminhos pedonais do espaço público.

O espaço público invade o edifício e a vida doméstica contamina a cidade. Deste modo os autores procuram contrariar a ideia de um objecto isolado protagonizado pelos princípios do plano de Olivais Norte (Lopes Dias, 2018).

Cinco Dedos

No conjunto habitacional 5 Dedos projectado por Vítor Figueiredo com a colaboração de Eduardo Trigo de Sousa e Jorge Gil, em 1977, para a zona N2 do Plano de Urbanização de Chelas (Figura 5 e 6), encontra-se uma solução conceptual que toma a galeria como elemento fundamental na construção de lugares de encontro de todo o complexo. O sistema proposto de circulação assume um papel mais abrangente que ultrapassa a simples serventia do bloco. As galerias surgem como um sistema transversal que amarra os 5 blocos, articulando-os entre si ao mesmo tempo que resolve um ligeiro declive topográfico do sítio. As primeiras galerias aparecem como uma continuidade do espaço público ao mesmo tempo que definem um corpo de embasamento, que ajuda a configurar um espaço central de congregação.

“Ao percorrer as galerias que ligam todo o conjunto (...) garante-se que a passagem da rua para o interior das casas seja mais do que um “não-lugar”. Abre-se a possibilidade de percorrer os cinco edifícios por qualquer morador, deixando descobrir os múltiplos espaços intersticiais, de convívio ou apenas de encontro...”

Carlos Azevedo, João Crisóstomo, Luís Sobral, Miguel Santos, 2021, p. 117.

Por outro lado, nos nós de articulação entre os dois sistemas, galerias de embasamento e blocos habitacionais, surgem as escadas principais, elevadores e infraestruturas de recolha de lixos, o que confere a este corpo horizontal um sentido hierárquico importante na transição entre a cidade e a unidade de habitar. (Maldonado & Namorado Borges, 2015).

© João Silva Leite e Filipa Serpa, 2023.

Fonte Figura 5 5 Dedos - Vitor Figueiredo. À esquerda, localização na zona morfológica homogénea, Chelas; à direita, decomposição do sistema de transição 

© João Silva Leite e Filipa Serpa, 2023

Fonte Figura 6 5 Dedos - Vitor Figueiredo. Collages de ambientes de apropriação dos espaços de transição 

Complementarmente, importa talvez ainda realçar dois pormenores que conferem ao espaço das galerias detalhes significativos para a construção de um sistema de transição diverso e de intimidades distintas: um facto prende-se com a cobertura do corpo de galerias do embasamento, que tira partido da pendente do território para configurar um conjunto de espaços ao ar livre que estendem o espaço colectivo de encontro para o exterior; a segunda situação revela-se num ligeiro recesso na entrada da casa, que alarga ligeiramente a galeria, convidando a entrar e simultaneamente demarcando um espaço mais privado que articula o exterior (galeria) e o interior (casa) dando, inclusivamente, início a um subsistema de transição que se prolonga para o interior do fogo e da sua organização espacial (Toussaint, 2021).

Assim, apesar das múltiplas alterações realizadas pelos moradores, o complexo habitacional dos 5 Dedos apresenta recursos conceptuais relevantes, reflectindo uma crítica subtil às propostas modernas, onde a galeria se apresentava como elemento de encontro colectivo, mas frequentemente associada ao uso privado dos moradores. A proposta de Vítor Figueiredo aponta, como já mencionado, para uma maior sensibilidade urbana, propondo um dispositivo arquitectónico que age na articulação entre o urbano e o doméstico. A configuração em leque do conjunto dos cinco blocos, a sua rotação que acompanha a curvatura da rua principal de acesso, acabam por constituir igualmente estratégias subtis de integração na estrutura do plano (Delgado, 2018) e paralelamente convidam os utilizadores do espaço público a aceder ao sistema de galerias. Deste modo, as galerias, para além de conectarem os blocos a diferentes pisos, recuperando alguns princípios apontados pelo grupo Team 10, apresentam no projecto um espírito totalmente público e democrático. A rua, espaço público, multiplica-se em vários níveis.

Bloco das Águas Livres

O Bloco das Águas Livres (Figura 7 e 8)representa, por seu turno, um exemplo onde os espaços comuns constituem sistemas espaciais complexos, diversificados e sofisticados. A obra de Nuno Teotónio Pereira e Bartolomeu da Costa Cabral (1955) incorpora um conjunto de espaços, equipamentos e circuitos, que amarram o edifício e a praça adjacente à rua Gorgel do Amaral, conferindo ao objecto um sentido muito completo e celular, mimetizando conceitos tipificados na Unité d’Habitation de Le Corbusier, mas sabendo interpretar a estrutura espacial da cidade de Lisboa e integrando-se nela (Toussaint, 2014).

Ao nível térreo, o Bloco das Águas Livres apresenta um sistema de entrada que se concretiza desde logo através do espaço público e se projecta para o interior do edifício. Junto à praça, uma plataforma ligeiramente desnivelada começa a desenhar o acesso ao edifício e, simultaneamente, permite chegar a um conjunto de ateliers ou espaços de trabalho aos quais se acede também pelo interior do bloco. A plataforma e a cobertura que se estende dos ateliers conferem a este espaço público um sentido ambíguo pois a presença de uma guarda que se transforma, ao mesmo tempo, num banco cria o sentimento de apropriação e permanência. O espaço funciona, por um lado, de aproximação pública aos ateliers, por outro lado, como extensor da actividade privada para o espaço exterior. Gera-se um espaço de comunhão.

No imediato seguimento observa-se um pequeno passadiço que nos conduz para interior do Bloco, configurando ao acesso ao grande átrio de acolhimento e distribuição do edifício. Este espaço generosamente amplo e espacial e materialmente rico oferece-se aos utilizadores do edifício como ponto de encontro, permitindo ao mesmo tempo o contacto visual com uma segunda entrada a uma cota inferior e com a galeria interior de acesso aos escritórios (piso 1) e que se prolonga até à entrada de serviço da Rua Gorgel do Amaral. A multiplicação do sistema de entrada em vários níveis imprime sobre este uma importância acrescida, tornando-o para além da grande infraestrutura de acessos interiores e ligação à cidade, um grande espaço de encontro do colectivo onde subespaços particulares convidam a permanecer mais tempo e a partilhar. O limite construído entre o Bloco das Águas Livres e o espaço público é, em certa medida, diluído, verificando-se um uso racional e estratégico da transparência, dos materiais ou da cor, como ferramentas de relação e promoção da continuidade entre os espaços internos e a cidade.

“... o atravessamento da porta de entrada, cruzando o plano de vidro que emoldura a porta, o percurso ao longo do passadiço cuja tijoleira vermelha faz raccord com o tom do tecto interior, de cortiça pintada, desagua no hall a uma cota que corta o pé direito, tornando o espaço numa casa.”

Delfim Sardo, 2014 (in Toussaint, 2014, p. 73)

© João Silva Leite e Filipa Serpa, 2023.

Fonte Figura 7 Bloco das Águas Livres - Teotónio Pereira, Bartolomeu Cabral. À esquerda, localização na zona morfológica homogénea, Amoreiras; à direita, decomposição do sistema de transição 

© João Silva Leite e Filipa Serpa, 2023

Fonte Figura 8 Bloco das Águas Livres - Teotónio Pereira, Bartolomeu Cabral. Collages de ambientes de apropriação dos espaços de transição 

Por outro lado, a riqueza dos espaços de transição desta obra estende-se ao longo dos diversos pisos. O sistema de distribuição e agregação das casas combina a utilização da galeria e do modelo esquerdo-direito, criando filtros diferenciados no modo como se circula e como as pessoas se cruzam. A galeria afirma-se aos dias de hoje como local de inter-relação geral dos moradores de cada piso (ou até entre pisos, se utilizarmos a escada localizada a meio da galeria) e o patim do elevador como micro espaço de comunhão entre vizinhos e que se pode isolar através de uma porta de vidro opaco que permite acrescer intimidade ao local. Se o patim de entrada em casa representa o espaço de antecede a privacidade total, a grande sala de convívio localizada na cobertura representa o espaço de congregação dos moradores do Bloco das Águas Livres. É o espaço de lazer, convívio e contemplação para a paisagem urbana de Lisboa.

O espaço colectivo neste edifício de referência em Lisboa, assume diferentes graus de privacidade, constituindo sucessivos filtros e graus de privacidade, mas também compondo espaços de transição que encaminham os utilizadores para um silêncio doméstico ou para uma intensidade urbana.

Quarteirão de Telheiras, Célula 9

Mais tarde, a partir da década de 80, Lisboa incorpora no seu tecido edificado habitacional diversas experiências que procuram construir diferentes modelos de vivência colectiva e paralelamente compor um diálogo mais integrado com a forma urbana da cidade.

O quarteirão correspondente à célula 9 (Figura 9 e 10), da autoria dos arquitectos Rodrigo Rau e Eugénia Cruz, 1982-1985, revela um desenvolvimento de um sistema de espaço colectivo que procura ligar a actividade urbana das ruas limítrofes, com o interior do quarteirão de uso exclusivos aos moradores dos quatro blocos que o configuram. Este espaço exterior, privado, de utilização colectiva, tipo pátio/praça urbana, resulta, portanto, de uma composição de maior escala e não de apenas um edifício. A galeria de distribuição, piso a piso, surge neste caso como um elemento estruturante na ligação das múltiplas tipologias habitacionais que compõem os blocos, mas também como um elemento de criação de espaços colectivos que potenciam as relações humanas.

Neste quarteirão de Telheiras revela-se interessante o modo como o sistema de galerias se interliga com o grande pátio/praça no interior do quarteirão. Equipado com algumas áreas de espaço verde e um campo de ténis, o interior do quarteirão surge como um espaço que serve uma comunidade mais abrangente, observando-se que a galeria e os espaços de ligação aos elevadores configuram lugares de encontro colectivo mais particular.

© João Silva Leite e Filipa Serpa, 2023

Fonte Figura 9 Quarteirão de Telheiras, Célula 9 - Rodrigo Rau, Eugénia Cruz. À esquerda, localização na zona morfológica homogénea, Telheiras; à direita, decomposição do sistema de transição 

© João Silva Leite e Filipa Serpa, 2023

Fonte Figura 10 Quarteirão de Telheiras, Célula 9 - Rodrigo Rau, Eugénia Cruz. Collages de ambientes de apropriação dos espaços de transição 

Oriente Complex

Oriente Complex

Em contrapartida, pode-se observar o caso do Oriente Complex (Figura 11 e 12), obra do atelier Promotório de 2003 e localizada no Parque das Nações, onde a solução pátio interior de utilização colectiva é combinada com a introdução de um espaço aberto de utilização pública.

Este quarteirão desenvolve uma combinação híbrida de funções, apresentando uma parte da sua estrutura composta por um bloco de escritório e uma segunda parte constituída por dois blocos de habitação colectiva. Estas três barras encontram-se amarradas entre si por um piso de embasamento que une as três peças e, paralelamente, resolve um encaixe topográfico do sítio. Na cota alta, da Rua do Pólo Sul, o corpo de embasamento desenha uma frente de rua continua que se torna porosa para o interior do quarteirão, configurando os dois pátios.

O pátio a sul afirma-se, de uma forma clara, como uma praça pública desenvolvida em dois níveis, articulado a cota alta e a cota baixa através de galerias e passagens que se manifestam na Rua do Pólo Sul e se abrem de forma ampla para a Alameda dos Oceanos. Este pátio/praça define um espaço público de utilização diversa, onde habitar e trabalhar se encontram, oferecendo uma combinação entre espaços de permanência e pausa, áreas de restauração e acessos ao piso subterrâneo de estacionamento comum. O pátio a norte assume-se com um sentido mais intimista e de utilização dos moradores do complexo habitacional. Apesar da sua total abertura à estrutura pública da cidade, é possível identificar um conjunto de opções formais que pretendem construir uma maior discrição no acesso, conferindo uma maior domesticidade ao lugar. Este pátio encontra-se a num segundo piso, sendo apenas acedido através de uma escada que se revelam no recuo do embasamento na Rua do Pólo Sul e que serve, ao mesmo tempo, de espaço de aproximação à entrada dos blocos habitacionais.

O Oriente Complex incorpora, então, um sistema de espaço de mediação que configuram lugares com diferentes graus de intensidade urbana. O desenho e os elementos arquitectónicos utilizados preservam um sentido público aos espaços vazios entre blocos, mas imprimem sobre estes dois vazios qualidades e níveis de intimidade significativamente distintos. A configuração arquitectónica deste quarteirão acaba por determinar os diferentes modos de apropriação, apontando para cada um deles uma identidade: a sul, um espaço urbano; a norte um espaço doméstico.

© João Silva Leite e Filipa Serpa, 2023

Fonte Figura 11 Oriente Complex - Promotório arquitectos. À esquerda, localização na zona morfológica homogénea, Parque das Nações; à direita, decomposição do sistema de transição 

© João Silva Leite e Filipa Serpa, 2023

Fonte Figura 12 Oriente Complex - Promotório arquitectos. Collages de ambientes de apropriação dos espaços de transição 

Conclusão

“Since public-private boundaries must be continually explored and renegotiated according to social developments such as changing lifestyles, household types, modes of work, and mobility, the polarity is constantly in motion. Gradations between public and private are created, and degrees of public access can be decided upon”.

Susanne Schimd, 2019, p.18

A fragmentação do tecido urbano contemporâneo e, principalmente, o processo de urbanização que resulta de uma collage de operações urbanísticas (Portas, 2011), onde nem sempre são salvaguardas relações mínimas de estruturação espacial ou de integração eficaz entre elementos urbanos, torna essencial a reflexão sobre os espaços de transição enquanto dispositivos de mediação entre elementos urbanos, constituindo, deste modo, sistemas espaciais mais coesos e contínuos e que promovam lugares de permanências e activação social.

Savero Muratori (1959) estabeleceu uma ligação intrínseca entre a forma da cidade e a tipologia edificada comum (edifício de habitação), fruto da sua recorrência e repetição. Tal facto introduz sobre o edifício de habitação um potencial transformador no modo como vivemos e moldamos o espaço urbano. O desenvolvimento de sistemas de transição qualificados fomenta não só a integração espacial entre o edifício (a casa) e a restante estrutura da cidade como promove, igualmente, espaços de convivência e interacção entre pessoas capazes de compatibilizar graus de intimidade e partilha colectiva.

Os casos apresentados (Figura 13) constituem uma amostra da diversidade e do valor do espaço de transição enquanto sistema espacial de mediação morfológica, mas também enquanto estrutura de suporte para actividades sociais do foro colectivo. O espaço de transição emerge como lugar de potencial interacção de vizinhança e não apenas como ferramenta arquitectónica de ligação entre as diferentes partes constituintes do tecido das nossas cidades. Através da leitura crítica dos casos de estudo pôde-se evidenciar cinco diferentes abordagens espaciais que interpretam o espaço de transição, entre público e privado (ver Tabela 1), entre o interior e o exterior, como um momento de oportunidade para sedimentar apropriações colectivas, promover a interacção entre pessoas e consolidar laços de vizinhança, através de graus de complexidade sistémica e porosidades com o espaço público (Secchi & Viganò, 2011). Patamares amplos, galerias, pátios, pavimentos diferenciados ou simplesmente um banco, surgem como ferramentas de definição arquitectónica que constroem lugares e que fomentam a fixação de actividades de convívio e vida colectiva.

“Porosity is the space of opportunities and improvisation (...) and its relevance as a tool for understanding urban dynamics and for developing a set of instruments to describe and design space.”

Paolo Viganò, 2018, p. 50

Nas Torres dos Olivais, o espaço colectivo é concretizado através de um simples elemento arquitectónico, o patim comum. Este, multiplica-se nos vários pisos da torre, definindo-se como um sistema bastante elementar mas igualmente eficaz, pela centralidade que incorpora e pela materialidade da sua constituição, na mediação entre os quatro fogos, assim como no modo como aparentemente se dilui no espaço público envolvente ao edifício quando este “toca” o chão. A colocação de bancos em locais estratégicos, as varandas que se projectam a sul ou a janela que estreita a norte fomentam um sentido doméstico no patim e convidam a permanecer no espaço.

Em contrapartida, no projecto dos Cinco Dedos, a galeria procura afirmar-se como a continuidade da rua e assumir um papel de articulação transversal entre os cinco blocos. Além de elemento de ligação, a galeria pretende ser uma rua aérea que se abre à cidade pública.

Por outro lado, a observação do Bloco das Águas Livres permite exemplificar a constituição de sistemas de transição mais complexos, onde verdadeiramente a linha de fronteira entre privado e público é difícil de delimitar. Espaços públicos da cidade são apropriados, mas partes do sistema de distribuição e articulação do interior são utilizados por um colectivo que extravasa a comunidade que habita o bloco.

© João Silva Leite e Filipa Serpa, 2023

Fonte Figura 13 Sequência das diferentes relações de continuidade entre o espaço público e o espaço colectivo 

Aliás, importa reforçar a particular riqueza desta obra de Teotónio Pereira e Bartolomeu Cabral pela capacidade que demostra na sucessiva construção de espaços de transição, que vão definindo crescentes graus de privacidade. Observam-se filtros consecutivos que marcam o percurso desde o espaço público, para um espaço colectivo abrangente e múltiplo, para um espaço colectivo mais íntimo, até finalmente à última camada, o espaço privado - a casa. No Bloco das Águas Livres a passagem e ligação entre o urbano e o doméstico encontra uma expressão formal e espacial equilibrada, balanceando os níveis de domesticidade e urbanidade conforme as diferentes partes do comum do edifício ou proximidades com a estrutura pública da cidade. Nesse sentido, pode-se afirmar que o Bloco das Águas Livres incorpora soluções, espaciais, formais (urbanas e detalhe arquitectónico) e de uso de qualidades indiscutíveis tornando-o o exemplo referência a vários níveis na produção arquitectónica portuguesa. O modo como interpreta e combina espaços de grande domesticidade com espaços colectivos e de usos abertos à cidade demostra a mais-valia/possibilidade da compatibilização dos modos de viver “aparentemente” antagónicos sem que as especificidades de cada um sejam colocadas em causa.

Os casos do Quarteirão de Telheiras (célula 9) e o quarteirão Oriente Complex, no Parque das Nações, por sua vez, evidenciam a aposta no pátio como principal estrutura de acolhimento da vida colectiva. Em Telheiras, o pátio é a confluência do complexo sistema de circulação horizontal dos blocos que conformam o quarteirão, permitindo estender o sentido colectivo das galerias para um grande espaço aberto. Enquanto o Oriente Complex se baseia na definição de dois pátios públicos que funcionam como estruturas de articulação entre a cidade e os habitantes. Contudo, os atributos arquitectónicos do projecto permitem identificar distintos sentidos de privacidade entre os dois pátios. Um afirma-se como praça e, consequentemente, como uma componente da estrutura pública da cidade; por oposição, o outro pátio pretende esconder-se da cidade e oferecer o seu espaço à vida colectiva dos moradores.

© autores, 2023

Fonte Tabela 1 Sistematização tipológica dos espaços de transição analisados 

A análise dos cinco casos permite-nos, então, confrontar com estratégias projectuais distintas de concretização de um limite de transição espesso, habitável com dimensões e profundidades variáveis. Opções materializadas nos cinco casos variam entre situações onde o espaço colectivo de transição, apesar de totalmente privado, possui uma continuidade espacial e visual com o espaço público, como é o caso da Torre dos Olivais, ou ainda situações onde o complexo edificado desenha novos espaços públicos para a cidade, como podemos observar no Oriente Complex. O limite entre edifício e espaço urbano é nos cinco exemplos muito mais que uma fronteira fixa. É um espaço que medeia a casa e a cidade, é um momento onde se permanece. Enquanto estrutura de transição, recebe prolongamentos das actividades domésticas da casa, enquanto favorece vivências comuns.

Os cinco casos de estudo constituem uma amostra referência da importância do espaço de transição enquanto tema fundamental na produção arquitectónica contemporânea e, em particular, no projecto de habitação colectiva. O seu entendimento enquanto estrutura de sutura entre traçado urbano e espaço de habitar abre caminho à sistematização de espaços que fomentem a partilha colectiva, constituindo gradações e transferências progressivas de intimidade ao mesmo tempo que pode constituir um eixo para a composição de redes de vizinhança e conhecimento de uma comunidade mais próxima, potenciando melhor integração social. O pulsar da cidade pode contaminar a estrutura privada e, por outro lado, uma permeabilidade controlada do espaço doméstico pode influenciar a vida da cidade. Interpretar o espaço de transição enquanto estrutura activadora da vida colectiva, que tira partido do seu posicionamento intermédio, entre casa e cidade, mas também da sua condição ambígua de pertencer a ambos (Monteys, 2018), pode constituir uma oportunidade para desenvolver sistemas mais generosos e partilhados de habitar o espaço urbano.

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1 Projecto de investigação financiado pela FCT - ref. PTDC/ART-DAQ/30110/2017 concluído em 2022, desenvolvido pelo formaurbis LAB da FA.ULisboa e com a coordenação de Carlos Dias Coelho e Sérgio Fernandes.

2Investigação de douto ramento financiada pela FCT - ref. SFRH/BD/42107/2007 concluída em 2015.

3Entende-se por edifício comum, o edifício de tipologia habitacional precisamente por se constituir como a estrutura edificada de uma maior recorrência e repetição no tecido urbano. “... edifício comum, como definidor da maioria do tecido edificado, seriado e eminentemente particular...” (Dias Coelho, 2013)

4“Lynn y Smith habían propuesto la calle elevada en varios concursos, Golden Lane entre ellos, em el que también participaron los Smithson sin éxito”. (Fernandez Per & Mozas, 2013)..

5As principais metrópoles asiáticas, como Banguecoque, Xangai, Seul ou Tóquio, apresentam uma expressiva parte do seu tecido habitacional composto por módulos habitacionais individuais muito compactos, variando entre 8 e 20 m2 e contendo suporte infraestrutural básico, como um pequeno espaço de confecção/aquecimento de alimentos e unidades mínimas de higiene. Estes modelos habitacionais colocam-se numa certa ambiguidade sendo possível a sua interpretação como casa individuais ou quartos equipados.

6Monte Espinho - data da construção 2004/2005, projectista Arqta. Paula Petiz.

7Travessa de Salgueiros - data da construção 2001/2008, projectista Arq. Carlos Veloso.

8Quarteirão Entrecampos - data da construção 2005/2010, atelier Promotório enquadrando no programa EPUL Jovem.

9Urbanização Horta das Laranjeiras - data da construção 1988, projectista Arq. José Lopes da Costa

10Consultar nota 3 e para uma informação mais detalhada: https://formaurbislab.fa.ulisboa.pt/the-building

11Ao universo de aproximadamente 300 casos de habitação colectiva inventariados pelo projecto de investigação, adicionou-se um conhecimento amplo sobre a produção de habitação social e a participação em mais de uma década de projectos científicos por um dos autores.

Recebido: 25 de Março de 2023; Aceito: 19 de Dezembro de 2023

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